aparecem esses saberes. A psicanálise foi um dos protagonistas, no
cenário da cultura argentina e
francesa. Do mesmo modo, a
psicologia experimental, a psicometria e campos relacionados.
A Rede Ibero-americana de
Pesquisadores em História da
Psicologia, formada por pesquisadores de várias nacionalidades,
demonstra a vitalidade da área de
história da psicologia na região.
Além disso, integrou-se à conjuntura internacional, a publicações de
grande impacto em nível mundial
como a Revista de Historia de la
Psicología (Espanha), History of
Psychology (APA), Journal of the
History of the Behavioral Sciences , e
instituições como Cheiron, o Centro
de História da Psicologia da
Universidade de Akron e outras.
Este livro será lido e estudado
com grande proveito por todos os
interessados no desenvolvimento
da psicologia e dos demais saberes
psi, em muitas partes do mundo. As
iniciativas de Ana Jacó-Vilela e de
Francisco Teixeira Portugal contribuíram para signicativos avanços
da área. Deram identidade a
quem trabalha com história da
psicologia. E, o que é mais importante: deram identidade à psicologia ao incluí-la em determinado
contexto e em determinada
época.
RUBÉN ARDILA
Este livro expõe algumas das contribuições do
encontro promovido pelo Programa de Estudos e
Pesquisas em História da Psicologia Clio Psyché,
realizado em 2012, reunindo reexões e debates
sobre instituições e institucionalizações, enfatizando a perspectiva histórica nas investigações sobre
psicologia e ciências ans.
A primeira parte do livro centra-se no recurso
biográco. Ao apresentar reexões sobre a
trajetória de Alves dos Santos, Eliezer Schneider,
Emilio Mira y López, Sílvio Lima e Waclaw Radecki,
expõe simultaneamente parte da história da psicologia no Brasil, na Espanha e em Portugal, bem
como algumas de suas relações.
A segunda e a terceira partes abordam a
história de instituições relevantes para a conformação da psicologia na Argentina, França e
Brasil, como os hospícios, as universidades e a
Companhia de Jesus.
ISBN 978-85-88642-92-8
Universidad Nacional de Colombia
Bogotá, Colômbia.
9 788588 642928
Este livro reúne pesquisas apresentadas no X Encontro Clio-Psyché
(2012), organizado pelo Programa
de Estudos e Pesquisas em História
da Psicologia da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Os
autores são da Argentina, Brasil,
Espanha e Portugal, e os estudos se
referem às instituições e sua intersecção com a psicologia e com a
história, objetivo do Encontro.
Aqui, encontramos uma riqueza
de informação, análises, críticas,
reexões sobre a maneira como o
conhecimento psicológico se
desenvolveu, se inseriu na sociedade, cresceu, se diversicou e
superou os obstáculos. Como todas
as novas ciências, disciplinas ou
áreas do conhecimento, os saberes
psi têm sido um desao para muitas
crenças e atitudes arraigadas na
sociedade. A psicologia teve que
provar sua legitimidade, seu objeto
de estudo e investigação, sua
metodologia, sua relação com
outras disciplinas e suas aplicações e implicações.
É uma história de grande importância, especialmente para os
interessados em psicologia iberoamericana e em guras pioneiras
como Emilio Mira y López, Wachaw
Radecki e Eliezer Schneider. O livro
mostra o desenvolvimento das
instituições e a complexa relação
com a religião e com as igrejas, o
papel dos institutos e das universidades, as pessoas, a sociedade, as
inuências culturais e históricas,
enm, todo o contexto no qual
Alejandro Dagfal
Alexandre de Carvalho Castro
Alexandre Trzan-Ávila
Ana Cristina Figueiredo
Ana Maria Jacó-Vilela
Ana Maria Talak
Annette Mülberger
Celso Pereira de Sá
Cristiana Facchinetti
Cristiane de Sá Reis
Filipe Degani-Carneiro
Florencia Adriana Macchioli
Francisco Teixeira Portugal
Hugo Klappenbach
Jane Araújo Russo
Lucía A. Rossi
María Andrea Pineda
Marina Massimi
Rogério Centofanti
Saulo de Freitas Araujo
Teresa Sousa Machado.
Copyright © by 2014 Alejandro Dagfal, Alexandre de Carvalho Castro,
Alexandre Trzan-Ávila, Ana Cristina Figueiredo, Ana Maria Jacó-Vilela, Ana
Maria Talak, Annette Mülberger, Celso Pereira de Sá, Cristiana Facchinetti,
Cristiane de Sá Reis, Filipe Degani-Carneiro, Florencia Adriana Macchioli,
Francisco Teixeira Portugal, Hugo Klappenbach, Jane Araújo Russo, Lucía
A. Rossi, María Andrea Pineda, Marina Massimi, Rogério Centofanti, Saulo
de Freitas Araujo, Teresa Sousa Machado.
Capa, projeto gráfico e diagramação | Rodrigo Ferreira da Cruz Barbosa
Tradução dos textos em espanhol para o português | Bethania Guerra de Lemos
Revisão | Felipe A. P. L. Costa
Coordenação Editorial | Lucia Koury
Conselho Editorial
Ana Maria Jacó-Vilela (Uerj)
Andréa Fetzner (Unirio)
Celso Vasconcellos (USP)
Cleci Maraschin (UFRGS)
Lia Maria Teixeira de Oliveira (UFRRJ)
Maria Alice Rezende (Uerj)
Maria Celi Chaves de Vasconcellos (UCP/Uerj)
Roberto Conduru (Uerj)
Dados Internacionais para Catalogação na Publicação (CIP)
C641
Clio-Psyché : instituições, história, psicologia / Ana Maria Jacó-Vilela e Francisco Teixeira Portugal (organizadores) ; [traduções do espanhol, Bethânia Guerra de Lemos]. — Rio de Janeiro : Outras Letras, 2014.
324 p. ; 23 cm.
Inclui bibliografia.
Trabalhos apresentados no X Encontro Clio-Psyché, realizado na Universidade do
Estado do Rio de Janeiro, de 17 a 19 de outubro de 2012.
ISBN 978-85-88642-92-8
1. Psicologia – História - Congressos. 2. Hospitais psiquiátricos – Aspectos sociais –
Congressos. 3. Psicólogos – Prática – Congressos. I. Jacó-Vilela, Ana Maria, 1950-. II.
Portugal, Francisco Teixeira, 1964-. III. G. DE LEMOS, Bethania
CDD – 150
Apoio financeiro | CNPq (Edital Universal) e Faperj (Cientista do Nosso Estado)
Todos os direitos desta edição reservados à
Outras Letras Editora Ltda.
Tel./Fax: (21) 2267.6627
[email protected] | www.outrasletras.com.br
Sumário
Apresentação | Ana Maria Jacó-Vilela e Francisco Teixeira Portugal............. 7
Parte I | Sobre indivíduos e instituições
1 | A primeira campanha de divulgação da psicologia de Emilio Mira y
López | Annette Múlberger................................................................................... 17
Comentários ao texto de A. Múlberger Saulo de Freitas Araujo................................................................................... 39
2 | Sobre indivíduos e instituições: Eliezer Schneider e a psicologia no Rio de
Janeiro | Ana Maria Jacó-Vilela.......................................................................... 46
3 | Teoria, método e aplicação na obra de Waclaw Radecki | Rogério
Centofanti............................................................................................................... 59
4 | Contributos para a história da afirmação da psicologia em Portugal: o
papel de Alves dos Santos e de Sílvio Lima | Teresa Sousa Machado........... 71
Parte II | Aproximações e diferenças entre argentina e
brasil | História da institucionalização dos saberes e práticas
psi no brasil e na argentina
5 | O Hospício Nacional: arquitetura, política e população (18521902) | Cristiana Facchinetti e Cristiane de Sá Reis........................................... 95
6 | La institucionalización de la psicología en la Argentina: saber universitario
y usos sociales (1890-1920) | Ana Maria Talak.................................................. 124
omentários a respeito dos capítulos 5 e 6 C
Alexandre de Carvalho Castro.................................................................... 150
7 | O psicólogo como psicanalista: os casos da França e da Argentina em
perspectiva histórica | Alejandro Dagfal.......................................................... 155
8 | O movimento psicanalítico no Rio de Janeiro dos anos 70: a psicanálise
dos psicólogos | Ana Cristina Figueiredo.......................................................... 170
Comentários a respeito dos capítulos 7 e 8 Jane Araújo Russo......................................................................................... 196
9 | Uma instituição transmissora de saberes antropológicos e psicológicos no
Brasil colonial: a Companhia de Jesus | Marina Massimi................................ 201
10 | Institucionalização da psicologia na Argentina: das sociedades
científicas às associações profissionais | Hugo Klappenbach....................... 220
Parte III | A psicologia na argentina
11 | Genealogia de instituições a partir das práticas psicológicas e áreas
profissionais. Sua história na Argentina | Lucía A. Rossi................................... 247
12 | A família como sistema: recepção da Teoria da Comunicação Humana
na Argentina dos anos 1960 | Florencia Adriana Macchioli.......................... 259
13 | Modelos de psicologia e perfis de psicólogos na UBA e na UNLP.
Incidência de publicações e editoras em cursos introdutórios à psicologia:
1957-1982 | María Andrea Pineda..................................................................... 279
Parte IV | Depoimento
14 | Transcrição de entrevista com Celso Pereira de Sá | Entrevistadores:
Alexandre Trzan e Filipe Degani Carneiro........................................................ 305
Sobre os autores................................................................................................... 318
Apresentação
Instituições e história da psicologia
Ana Maria Jacó-Vilela &
Francisco Teixeira Portugal
Esta coletânea dá continuidade à série de livros resultantes dos eventos realizados pelo Programa de Estudos e Pesquisas em História da Psicologia Clio-Psyché. O X Encontro
Clio-Psyché — Instituições, Psicologia, História, realizado em
2012, questionou, sob a ótica da História, a pretensa “naturalidade” com que saberes e práticas não discursivas de cunho
psicológico habitualmente instituem seus objetos de conhecimento e de intervenção. Nos últimos eventos, particularmente
voltados aos temas da subjetividade (2002), do corpo (2004),
da alteridade (2006) e do gênero (2010), as instituições e a
institucionalização emergiram de modo tangencial àquelas outras temáticas, apontando necessidade de nos determos mais
especificamente nesta discussão.
Este livro traz, portanto, as contribuições do último encontro, reunindo reflexões e debates sobre instituições e institucionalizações, enfatizando principalmente sua historicidade,
na psicologia e nas ciências afins, promovendo intercâmbio e
mútua fecundação entre as investigações ali congregadas.
A noção instituição, tão recorrente na tradição sociológica,
adentrou a literatura consultada habitualmente por psicólogos
a partir, principalmente, dos anos 60. Ela, como toda noção,
abriga um conjunto heterogêneo de significações. O sentido
mais recorrente nas reflexões deste livro deriva da valorização
da pesquisa histórica e corresponde aos modos como os instituídos se configuraram desse ou daquele modo.
A história costuma se envolver com as emergências, as
transformações, os términos. Investigar emergências, transformações e términos das instituições é quase sinônimo de um de
seus sentidos em dicionário: ato ou efeito de instituir; criação.
7
Embora frequentemente a noção instituição seja compreendida
por seu sentido de organização, isto é, um conjunto de regras
e modos de funcionamento estabelecido em algum lugar e em
algum momento com propensão a se reproduzir, ao historiador
interessa, sobretudo, o processo pelo qual estes produtos foram
criados, isto é, sua instituição. Insistindo ainda na diferenciação do termo, e valendo-nos dos institucionalistas, apontamos
para o sentido de instituição como composição de regulações
das atividades humanas. Neste sentido mais estrito, mas cujo
alcance é muito amplo (afinal são exemplos de instituição a
própria linguagem, a divisão social do trabalho), os capítulos
que compõem esta publicação têm pouco a dizer. Mas nos movimentos que compõem determinados saberes e nas inerentes
regulações dos modos de viver relacionadas àquilo que se chama psicologia encontramos algumas histórias.
A primeira parte do livro, composta por quatro capítulos,
centra-se no recurso biográfico. Transformações na trajetória
da psicologia na Espanha, em Portugal e no Brasil são expostas
pelos olhos de alguns de seus atores.
Nesta senda, Mülberger discorre sobre a institucionalização da psicologia articulada à psiquiatria na Espanha, na primeira metade do século XX. O texto, centrado na análise da
trajetória de Mira y Lopez, um dos personagens desse processo,
expõe a curiosa articulação entre a psicologia e a psiquiatria
proposta pelo médico. Uma psicologia concebida como base
para a psiquiatria e cujas referências articulavam o condutismo watsoniano (em sua síntese dos objetivistas) e a psicanálise
freudiana. Tal processo foi vigoroso até o trágico acontecimento da Guerra Civil espanhola. Acompanha o capítulo a análise crítica de Araujo que contribui para enriquecer a reflexão
histórica ali presente.
Voltado para a descrição biográfica de Eliezer Schneider,
o texto de Jacó-Vilela fornece algumas pistas para investigar a
institucionalização da psicologia tanto na universidade como
na profissão. O percurso do biografado acompanha um período de transformação. No início de sua trajetória, a psicolo8
gia configurava-se como conjunto de ações dispersas apoiadas
em saberes centrais, no final, a formalização da profissão e a
criação de cursos de graduação nas universidades conferemlhe uma nobreza e uma naturalidade questionáveis. É função
da história provocar estranhamentos e, neste caso, é curioso
ver nessa trajetória tão recente modificações tão profundas no
cenário da psicologia.
Por meio da análise da obra e da atuação de Radecki no
Brasil, questões centrais sobre a produção, a aplicação e as
funções sociais dos testes mentais são tematizadas no texto de
Centofanti. A escassez de trabalho histórico sobre o polonês e
a superficialidade com que foi tratado movem o texto, embora
o principal aspecto do trabalho seja a evocação dos debates e
dos autores envolvidos com os testes nas primeiras décadas do
século XX. A história do psicólogo acompanha e coloca em
questão a disseminação dos testes naquele momento histórico.
A história do que Machado denomina “afirmação” da psicologia em Portugal suscita o interesse dos leitores brasileiros
pelas similaridades com o que se passou por aqui. Assim como
no capítulo anterior, a perspectiva técnica da psicologia se impõe como momento de consolidação de práticas psicológicas
no país; práticas essas, é bom lembrar, elaboradas em outros
países, como a França e a Suíça. Assim, a difusão dos testes e
do procedimento experimental como procedimentos canônicos
da psicologia é exposta pelo recurso biográfico. Dessa forma,
as trajetórias de Alves dos Santos e de Sílvio de Lima expõem a
consolidação do que atualmente ainda se considera psicologia.
A segunda e a terceira partes do livro incluem oito textos
que se voltam para a história de diferentes instituições. Grandes organizações — hospícios, universidades, Companhia de Jesus — servem de solo para construção textual dos modos como
saberes psicológicos consolidaram-se. Por outro lado, a recepção — como ferramenta de pesquisa histórica — contribuiu com
certa recorrência para o trabalho dos autores.
Facchinetti e Reis narram com exuberantes informações
históricas o descompasso entre o que se poderia considerar um
9
gradativo aprimoramento da psiquiatria no ordenamento do
espaço asilar. Dinâmicas políticas relacionadas ao Império e
ao início da República, a gestão religiosa do espaço asilar e
a ordenação arquitetônica compõem um cenário vibrante do
Hospício Nacional bastante distante de uma leitura monocórdica da simples ordenação racional imposta pelo saber científico representado pela psiquiatria. O comentário de Castro
situa o texto dos autores no recente esforço crítico de historiadores da ciência de escapar a essencializações que têm apresentado o conhecimento científico como centralmente europeu
com derivações estadunidenses.
A história das relações entre psicologia e psicanálise na
França e na Argentina, países que apresentam proporcionalmente grande número de psicanalistas, é narrada por Dagfal por meio
informações biográficas e da análise da produção de Lagache e
de Bleger. O cenário conceitual, com suas semelhanças e diferenças, montados por esses autores permite compreender o repetido esforço identitário de isolamento, por meio especialmente da
oposição, da psicanálise e da psicologia. Curiosamente, ambos
os autores defenderam a integração da psicologia e da psicanálise.
A investigação dos embates ocorridos nas instituições psicanalíticas, nas décadas de 1970 e 1980, baliza o texto de Figueiredo. Tomando esse momento de transição da prevalência
médica sobre a psicanálise para a disseminação dessa teoria e
o movimento entre psicólogos, o texto discorre sobre o movimentos de criação e dissolução de grande número de associações centradas na psicanálise e a participação de dois vetores
relevantes naqueles anos, a participação intensa dos argentinos
com sua forte formação psicanalítica e a divulgação da perspectiva lacaniana no Rio de Janeiro.
Os dois últimos textos são comentados por Russo que evidencia os aspectos políticos de querelas teóricas e institucionais,
face muito frequentemente secundarizada mesmo entre os trabalhos históricos realizados por psicólogos.
O entrelaçamento entre práticas e elaborações conceituais
como modo de administração utilizado pela atuação missioná10
ria da Companhia de Jesus é evidenciado por Massimi por meio
da análise dos catálogos trienais produzidos nos séculos XVI e
XVII. Esses instrumentos que coletavam e organizavam informações “antropológicas” e “psicológicas” nos campos conceituais então circulantes foram articulados a práticas de ordenação social da instituição religiosa. O texto constitui exemplo da
articulação, como toda a riqueza que tal análise histórica pode
produzir, entre formas de fazer histórias frequentes em nosso
meio: aquela que faz história das ideias e a que faz história das
práticas ou instituições como se fossem isoladas uma da outra.
Defendendo a diversidade e pluralidade da pesquisa histórica, Klappenbach indica diferentes esforços para contar a
história disseminados entre os que se dedicam à história da psicologia. Nesse entrocamento, o autor visa narrar a história das
sociedades científicas e profissionais, explorando motivações
presentes no desaparecimento ou substituição por associações
profissionais das primeiras sociedades científicas de psicologia
na Argentina. Questão de interesse para todos os psicólogos envolvidos com a pesquisa e a formação profissional, revelam-se
nessa história algumas tensões entre os modos de funcionamento da pesquisa e da profissão ao longo do último século neste
país em que o mundo psi tem um lugar destacado.
Rossi elabora uma genealogia de instituições envolvidas
com práticas psicológicas na Argentina, nos últimos dois séculos. A análise ordena cinco modos de funcionamento institucional, ordenamento conceitual e social envolvidos com demandas
específicas. Dessa forma, são expostos derivas entre o hospital,
o hospício e a colônia como organizações privilegiadas, trânsito entre ordenamentos conceituais médicos, psicológicos e
educacionais relacionados a propósitos de gestão de imigrantes,
finalidades higiênicas e profiláticas.
Valendo-se das reflexões historiográficas sobre a recepção
de ideias, Macchioli compõe uma narrativa do modo como,
na Argentina, principalmente a partir da década de 1960 e
no âmbito dos saberes psi, a família foi concebida como sistema. Tal percurso remonta ao Mental Research Institute, ca11
racterísticas e atores locais. Se determinada matriz conceitual
– como a Teoria da Comunicação Humana — desempenhou
papel crucial na forma de conceber e intervir sobre indivíduos, família e grupos sociais, o texto indica também como a
recepção (concebido como ferramenta analítca) desta teoria
envolveu transformações e inovações imprescindíveis para sua
compreensão na Argentina.
O texto de Pineda constroi os modelos de psicologia e os
perfis de psicólogo, por meio de uma análise sociobibliométrica
dos programas de cursos introdutórios à psicologia, na UBA
(Universidade de Buenos Aires) e na UNLP (Universidade Nacional de La Plata), entre 1957 e 1982. Aqui, como no capítulo
anterior, também se configura a recepção bastante intensa de
produções europeias e estadunidenses na formação da psicologia em solo argentino. A pesquisa organizou grande quantidade de dados e arranjos que fornecem um panorama dos
cursos e de suas tendências. É interessante notar a diversidade
de autores, editoras e traduções presentes no período. Por fim,
vale comentar como a análise histórica pode ser beneficiar de
tratamentos quantitativos da informação, algo relativamente
raro neste meio.
O capítulo final — que constitui a quarta e última parte do
livro — corresponde à transcrição da entrevista realizada com
Celso Pereira de Sá. Os encontros Clio Psyché realizam entrevistas com psicólogos cuja carreira merece nossa atenção. Neste
ano a trajetória do entrevistado está marcada pela própria instituição que abriga os encontros e cuja história mistura-se com
o período de institucionalização da psicologia. Esperamos também contribuir com este relato para o registro deste percurso.
O livro expõe reflexões históricas acerca da emergência,
constituição e institucionalização das práticas psicológicas em
diferentes países ao longo dos últimos séculos. Devemos ressaltar a diversidade temática e metodológica presente nestes escritos que revelam a riqueza do campo.
Esta obra, derivada dos encontros Clio-Psyché, mantém
a forte presença de pesquisadores da Rede Iberoameriana de
12
Pesquisadores em História da Psicologia. Nela, comparecem
como autores Hugo Klappenbach, Lucía Rossi, Alejandro Dagfal, Maria Andréa Piñeda, Florencia Macchioli, da Argentina,
Annette Mulberger, da Espanha e Maria Theresa Machado, de
Portugal. A estes colegas agregamos os brasileiros que, como
nós, partilham do interesse constante pela construção de história dos saberes psi.
13
Parte I
Sobre indivíduos e instituições
1
A primeira campanha de divulgação da psicologia
de Emilio Mira y López1
Annette Mülberger
Introdução
No presente trabalho, que está relacionado com o projeto
“Entre o centro e a periferia científica: o jornalismo médico na
Catalunha (1898-1938)”2, analiso, de forma integrada, algumas das primeiras contribuições de Emilio Mira y López (em
catalão: Emili Mira i López), a partir de uma pesquisa que me
levou a interpretá-las como conformadores de uma unidade. O
conjunto dos primeiros aportes de Mira (1921a, b, 1924b, c,
1926a, b) versa basicamente sobre três temas: o condutismo, a
psicanálise e sua própria visão da psicologia, sendo o resultado
de aulas e palestras ministradas por ele para fins de divulgação.
Enquanto seu trabalho sobre psicanálise (Mira, 1926a, b, especialmente a versão castelhana de 1935) recebeu grande atenção
por parte dos historiadores, a publicação sobre psiconeurose
(Mira, 1924b, c) esteve totalmente ignorada ou desconhecida
até o momento. Apesar do título (“Estado actual del concepto
de las psiconeurosis”), é justamente nesse par de artigos que o
psicólogo catalão apresenta sua concepção de psicologia.
Essas palestras, aulas e publicações fazem parte de uma
primeira campanha lançada por Mira para divulgar o conhecimento psicológico entre os médicos catalães. Assim como demonstrarei a seguir, a campanha perseguia três principais objetivos concretos. Em primeiro lugar, Mira desejava mostrar que
a psicologia constitui um âmbito importante para a medicina
(e especialmente para a psiquiatria). Além disso, ele queria se
1. Tradução do espanhol ao português realizada por Bethania Guerra de Lemos.
2. Projeto financiado pelo Ministério da Estudação na Espanha sob o código
HAR2009-11342/HIST
17
Clio-Psyché: Instituições, História, Psicologia
firmar como um especialista nesse terreno e, em terceiro lugar,
visava promover o seu próprio ponto de vista.
Alguns historiadores estudaram a presença da psicanálise
na obra de Mira (ver, por exemplo, Sánchez Lázaro, 1986; Carpintero & Mestre, 1987; Iruela, 1988, 1993; Anguera, 1989;
Moreu, 1998; Carles et al., 2000). As pesquisas citadas, no entanto, em geral se limitam a apresentar um resumo e a julgar, do
ponto de vista psicanalítico, a exposição das ideias apresentadas
por Mira, criticando frequentemente suas deficiências ou a falta
de fidelidade com relação à obra de Freud. Não levam em conta
o contexto profissional nem o tipo de psicologia que o autor
catalão queria desenvolver no início de sua carreira profissional.
Distancio-me desse tipo de enfoque. Procuro mostrar que Mira
apresentava uma direção muito clara guiando o seu trabalho e a
leitura de textos condutistas e psicanalistas. Para tanto, adotarei uma estratégia historiográfica de contextualização, que provém, com variações, da de Moreu (1998) e supõe um trabalho
em quatro níveis que considero inter-relacionados entre si: o
doutrinal, o metodológico, o institucional e o corporativo.
Mira nos anos 20: alguns dados biográficos
Mira é um personagem chave para a história da psicologia
e da psiquiatria, pois foi o primeiro catedrático de psiquiatria
da história universitária espanhola; por sua dedicação à psicologia, é considerado por muitos como o primeiro psicólogo
profissional do país; e foi, sem dúvida, um dos pioneiros da
orientação profissional (Iruela, 1988).
Assim como em outros países, também na Espanha a psicologia se encontrava presente há muito tempo como um tema
de interesse entre filósofos, educadores e médicos (Carpintero,
2004; Mülberger, 2008), alguns dos quais conseguiram se especializar nesse campo (e.g., Juan Vicente Viqueira, Gonzalo
Rodríguez Lafora e o próprio Mira), bem antes de existir como
profissão. Em nível institucional, apesar de alguns avanços anteriores, como o caso da cátedra de Simarro ou os dos Institutos
18
A primeira campanha de divulgação da psicologia de Emilio Mira y López
de Orientação Profissional, a psicologia demoraria praticamente até meados do século XX até encontrar um lugar definitivo
na formação universitária e no mundo profissional.
Essas circunstâncias explicam as dificuldades que os cientistas espanhóis encontraram para ter acesso a uma formação
psicológica regular (tanto teórica como técnica). Apesar disso,
muitos se esforçaram para se manter atualizados em relação
às publicações que a nova ciência gerava no exterior, especialmente na França, nos países de língua alemã, nos anglo-saxões
e na Itália.
Após uma infância difícil como filho único, o jovem Mira
destacou-se muito cedo por sua criatividade, inteligência e atitude rebelde (Iruela, 1988). Cresceu em uma Catalunha massacrada por crescentes conflitos sociais e na qual as reivindicações de autonomia eram patentes. Decidiu estudar Medicina.
Durantes os estudos universitários (1911-1917), recebeu uma
forte influência do fisiologista Augusto Pi Suñer (em catalão:
August Pi i Sunyer), o que relaciona Mira com a Escola Biológica Catalã de Ramón Turró (Miralles, 1980; Iruela, 1988).
Ao concluir os estudos, obteve o prêmio extraordinário de graduação. Seu biógrafo destaca que, com o falecimento do pai e
o casamento com Pilar Campins, as necessidades econômicas
para pagar os gastos do lar aumentaram (Iruela, 1988).
Em 1918, foi nomeado médico municipal de Barcelona
e, no mesmo ano, abriu um modesto consultório privado em
casa (García et al., 1993). Também se dedicou de maneira intensa à tradução de obras psicológicas e psiquiátricas e à leitura
autodidata de obras psicanalíticas. Por meio de informações
biográficas fornecidas por sua filha, Montserrat Mira, hoje sabemos que ele que tinha formação em francês, inglês e alemão.
Enquanto a geração anterior de psiquiatras, incluindo nomes
como Mata, Giné y Partagás, Pi Molist e Letamendi, foi muito
influenciada por fontes francesas, a geração seguinte, à qual
Mira pertenceu, ao lado de Sanchis Banús, Rodríguez Lafora,
Rodríguez Arias, Sacristán e López Albo, seguiria mais as diretrizes da psiquiatria alemã (Miralles, 1980).
19
Clio-Psyché: Instituições, História, Psicologia
Ao final da Primeira Guerra Mundial (1914-1919), a psicologia pôde afirmar-se na Europa e nos Estados Unidos como
uma nova ciência, proporcionando uma perspectiva relevante
para áreas como a gestão do trabalho, a jurisdição, a psiquiatria e a pedagogia. Além disso, nos anos 20, a Catalunha viveu
um momento de eclosão cultural e institucional que propiciou
a criação de associações profissionais, o estabelecimento de instituições pioneiras e a fundação de novas revistas científicas.
A biografia de Mira está estreitamente ligada à trajetória do
Institut d’Orientació Professional, de Barcelona, o primeiro
centro desse tipo na Espanha, e no qual ingressou para dirigir o laboratório de psicofisiologia, em 1919. No seio dessa
instituição, conseguiu desenvolver uma grande capacidade de
trabalho, sendo nomeado mais tarde seu diretor. Em 1920,
participou da 1ª Conferência Internacional de Psicotécnica e
Orientação Profissional, em Genebra, viagem durante a qual
aproveitou para visitar instituições similares na Europa. Quando em 1921, graças ao prestígio do Instituto barcelonês e ao
apoio de Claparède, organizou-se a segunda conferência em
Barcelona, Emilio Mira obteve assim alguma projeção inicial
internacional como psicotécnico.
No instituto, conduziu a pesquisa, “As correlações somáticas do trabalho mental”, com a qual obteve, em 1922, o
título de doutor na Universidad de Madrid (Mira, 1923). Em
sua tese de doutorado, apresentou evidências de que o trabalho mental tem uma base somática, determinando o seu efeito
cardiovascular. Essa pesquisa psicológica, de acordo com García et al. (1993), mostra o interesse precoce de Mira em determinar as mudanças corporais que acompanham a atividade
psíquica do indivíduo.
Em 1923, participou do VII Congresso Internacional de
Psicologia, em Oxford. Segundo Sánchez & Ruiz (2012, p.26),
o congresso “foi, sem dúvida, um impulso definitivo para a trajetória internacional de Mira”, já que ali ele foi eleito membro
do Comitê Internacional de Psicologia. Mira também teve a
oportunidade de conhecer numerosas personalidades da psi20
A primeira campanha de divulgação da psicologia de Emilio Mira y López
cologia e da psiquiatria, como Adolph Meyer, Kurt Koffka,
Wolfgang Köhler, Henri Pieron, Charles Spearman, Louis Leon
Thurstone e também Alfred Adler (Mira, 1923a; Iruela, 1988;
Sánchez, 2011; Sánchez & Ruiz, 2012).
Ao longo desses primeiros anos de sua trajetória científica,
Mira foi membro atuante de um grupo de jovens médicos catalães entre os que se encontravam também Belarmino Rodríguez
Arias e Manuel Saforcada. Viveram esses anos mergulhados
em um ambiente entusiástico, de frenética atividade científica
e política (Mülberger & Jacó-Vilela, 2007). Compartilhavam
um otimismo característico da psiquiatria da década de 20, segundo o qual seria possível mudar a sociedade por meio da
ciência. Impulsionaram uma transformação global da psiquiatria do país, tanto do ponto de vista teórico como em termos
assistênciais e legais.
Para isso, Mira participou com entusiasmo do projeto jornalístico da Revista Médica de Barcelona, lançada pelo grupo
de jovens médicos catalães em plena época da ditadura de Primo de Rivera. Ao mesmo tempo, e junto com outros colegas espanhóis, foi protagonista do movimento psiquiátrico-higienista.
Participou da assembleia constitutiva da Associação Espanhola
de Neuropsiquiatras, na qual apresentou duas iniciativas: impulsionar o projeto de criação da Liga de Higiene Mental (que
se tornaria realidade poucos anos depois) e apoiar o ensino da
Psiquiatria e da Neurologia (Iruela, 1988).
Mira e o condutismo
Mira foi um dos primeiros psicólogos espanhóis que se
interessaram pelo condutismo. Em um ciclo de quatro palestras
ministradas no Instituto de Fisiologia de Barcelona, ele falou
sobre a “recente psicologia condutista do Professor Watson”,
a respeito da qual publicou um resumo na revista Archivos de
Neurobiología (Mira, 1921a, b). Mira seguiria com atenção as
publicações desse autor, o que o levaria, anos depois, a ser o
tradutor do livro de Watson, El conductismo (Watson, 1924).
21
Clio-Psyché: Instituições, História, Psicologia
A palestra tinha como ponto de partida uma publicação
prévia do psicólogo estadunidense, na qual aquele apresenta
sua “psicologia do ponto de vista condutista” (Watson, 1913).
Segundo Mira, esse viés havia despertado grande interesse entre filósofos, psicólogos e biólogos. Ele também assegura que,
embora se trate de algo bastante radical, esse novo ponto de
vista contém mais acertos do que erros, razão pela qual não só
resiste às investidas das críticas, mas também se afiança a cada
dia. Do mesmo modo, Mira estava ciente de que a perspectiva
condutista iria suscitar discussões na Espanha com aqueles que
defendiam o método introspectivo; dizia, porém, que, enquanto se mantivesse em um tom discreto e científico, ela poderia ser
de grande proveito.
Em primeiro lugar, ele tenta remover do condutismo o seu
caráter revolucionário. Deixa claro que cientistas como Bastian, Pavlov, Sechenov e Bechterew constituem uma tradição
objetiva em psicologia, com a qual a Escola Catalã de Ramón
Turró e Pi Suñer simpatizavam há muito tempo, tendo antecipado grande parte das afirmações de Watson. Sustenta que
a este último “não cabe outro mérito que o de ter reunido de
forma sistematizada as ideias de [...] outros objetivistas” (Mira,
1921a, p. 191). Segundo Mira, a razão pela qual a obra de
Watson conseguiu naquele momento um maior impacto foi que
“a concepção watsoniana representa um grau mais avançado de
materialização, com maior clareza na fala, do que a de Bechterew” (Mira, 1921a, p. 194). De acordo com ele, Watson é mais
direto, claro e radical. Substitui a psicologia por um estudo
da conduta animal. Distingue o animal do humano apenas em
termos de conduta, dizendo que o último reage de forma mais
complexa que o primeiro, usando, além disso, reações da linguagem (speech reactions). Essa perspectiva nega a existência
de fenômenos mentais como tais.
Mira apresenta o condutismo como uma ideia finalista,
cujo objetivo é predizer com exatidão a resposta que determinadas situações ou estímulos provocam em um animal, podendo assim vir a controlar a conduta humana. Como consequên22
A primeira campanha de divulgação da psicologia de Emilio Mira y López
cia desse interesse científico do condutismo, reconhece que os
temas com os quais trabalha são diferentes dos da psicologia
tradicional. A proposta de Watson é interessante por classificar
as respostas em hereditárias e adquiridas, as quais, por sua vez,
podem ser explícitas ou implícitas.
Embora atribua um grande valor ao condutismo, Mira
não deixa de criticá-lo. Antes de começar sua exposição lançava já uma primeira crítica dizendo que: “O professor Watson,
como bom estadunidense, é um homem perfeitamente cúbico,
que resolve com critério retilíneo os problemas mais profundos
da psicologia, e isto o incapacita em algumas ocasiões, como é
natural, a poder abraçá-los em toda a sua grandiosa perplexidade” (Mira, 1921a, p. 189). A partir do uso dessa curiosa metáfora, na qual certamente quis usar a palavra “complexidade”,
em vez de “perplexidade”, ele tentou mostrar sua consciência
do reducionismo inerente à colocação watsoniana.
Mira e a psicanálise
Em 1921, após uma leitura autodidata da obra de Freud
e Jung, Mira expôs um primeiro caso “simples” de psicanálise (Mira, 1921c). Trata-se da transcrição das conversas que
manteve com uma jovem paciente, a qual ele submeteu a um
interrogatório para esclarecer as causas e as circunstâncias de
um episódio vivido anteriormente, cuja repressão parecia ser a
causa de seu mal-estar. Utilizou como apoio o teste de associação de palavras de Jung e o relato que a moça fez de um sonho,
que o guiaram em seu interrogatório e finalmente o levaram a
descobrir a verdade e solucionar os problemas da paciente.
No ano seguinte deu um curso de “Psicologia médica” na
Academia e Laboratório de Ciências Médicas da Catalunha,
que constava de 25 lições (Carles et al., 2000). Segundo Glick
(1982) e Carles et al. (2000) foi a primeira vez que a psicanálise
aparecia na formação psicológica de um curso médico (acadêmico) na Espanha. As duas publicações que comento a seguir
(Mira, 1926a, b) estão tematicamente ligadas a esse curso, du23
Clio-Psyché: Instituições, História, Psicologia
rante o qual apresentou os conceitos e a teoria da psicanálise
ortodoxa, embora naquele momento tais assuntos já não fossem mais uma novidade na Espanha.
As primeiras notícias a respeito da obra de Freud tinham
chegado com rapidez, mas a compreensão e absorção da psicanálise como doutrina e método de trabalho foi, na verdade,
lenta, descontínua e problemática (Carles et al., 2000). A partir
da segunda década do século XX, cresceram o interesse e a
curiosidade pela teoria e pela técnica da escola psicanalítica,
estimulados pela leitura da obra de Freud por parte da elite
intelectual do país. Assim como aconteceu em outros países,
como a Alemanha, os psiquiatras na Espanha mantiveram, de
um modo geral, uma atitude claramente distante e crítica. Alguns aplicaram métodos psicanalíticos no trabalho com seus
pacientes, mas sem que isso implicasse em um comprometimento com os conceitos da corrente. Quando Mira começou a publicar sobre o tema, já circulavam no país noções de psicanálise,
embora não houvesse psicanalistas, seja no sentido de profissionais especializados, seja no de terapeutas formados por meio de
uma análise pessoal junto a algum membro destacado da escola
psicanalítica (o que mudaria depois com Ángel Garma).
Mira entendia a psicanálise como uma “doutrina especial da estrutura e do funcionamento do psiquismo humano”3
(Mira, 1926a, p. 9). E resume a crítica a essa corrente da seguinte maneira (Mira, 1926b, p. 59-60):
1. O determinismo psíquico parecia-lhe exagerado, pois supunha que todo processo psíquico se produz sob a influência
de outro processo psíquico, sem levar em conta causas somáticas, como a fadiga ou a intoxicação.
2. Assinalou o problema que supõe a transferência afetiva
como parte da análise.
3. A psicanálise expõe uma natureza essencialmente dinâmica
3. Todas as citações procedentes dos textos de Mira y López sobre a psicanálise (1926a,
b) foram traduzidas pela autora do catalão ao castelhano, e deste ao português pela
tradutora do presente capítulo.
24
A primeira campanha de divulgação da psicologia de Emilio Mira y López
do inconsciente, que supõe cada ideia ou lembrança como
dotadas de uma carga afetiva. Esse fato contradiz sua própria experiência, por meio da qual não consegue reconhecer tal carga em algumas lembranças “neutras” de viagens
e situações cotidianas.
4. Mira criticou a suposta “visão antropomórfica dos complexos” (os quais, segundo a sua interpretação da teoria freudiana, atuariam por mimetismo). Considerou errônea essa
visão, por não estabelecer uma relação com os processos fisiológicos cerebrais. Concretamente denunciava que a teoria
de Freud “apresenta-nos uma psicologia de palco (teatral),
sem nenhuma correspondência com os fatos conhecidos da
fisiologia cerebral [...]. Se tivermos que admitir a analogia
entre reflexos psíquicos e reflexos neurológicos puros (ao
menos quanto a sua base material) [também] temos que
acreditar que os primeiros obedecem, assim como os segundos, à lei do tudo ou nada, isto é, que se realizam completamente ou não se realizam de forma alguma, mas em nenhum
caso são capazes de realizar-se parcialmente, como pretende
Freud” (Mira, 1926b, p. 59).
5. Rejeitou a ideia da suposta “imortalidade” dos processos
mentais.
6. Considerou um erro por parte de Freud o fato de contemplar
o instinto sexual como o único responsável pelos fenômenos
psíquicos, “quando justamente o amor próprio, ligado ao
instinto de conservação individual se opõe, em muitíssimas
ocasiões, à satisfação do instinto sexual e triunfa sobre ele”
(Mira, 1926b, p. 59).
7. O simbolismo freudiano dos sonhos parecia algo completamente arbitrário, forçando a análise em direção
a uma interpretação criada pelo analista, sem deixar
espontaneidade ao paciente.
8. Por último, Mira criticou o fato de o esquema esboçado por
Freud se apoiar em numerosas observações de casos patológicos, o que não permitiria deduzir se esses mecanismos
operam do mesmo modo em uma pessoa normal.
25
Clio-Psyché: Instituições, História, Psicologia
As oito críticas de Mira reproduzem algumas reticências
muito comuns, como o caso da objeção à libido como único
impulso ou a crítica à simbologia usada na interpretação dos
sonhos. Vários historiadores (e.g., Sánchez Lázaro 1986; Anguera, 1989) criticaram dois aspectos dessa apresentação da
psicanálise feita por Mira. Em primeiro lugar, por estar restrita
à leitura da época inicial do pensamento de Freud, ignorando a obra do psiquiatra vienense posterior a 1910. Em segundo lugar, em função talvez de sua formação autodidata, pelo
fato de cometer alguns erros conceituais e por seu afã na busca
de correlações neurofisiológicas.
Em minha opinião, a análise dos historiadores é problemática. Em primeiro lugar, porque ignora que Mira não era (nem
pretendia ser) freudiano, embora quisesse apresentar a psicanálise a seus contemporâneos. Respeitava o psiquiatra vienense
apenas por ele ter sido o pioneiro da psicanálise e por ter ajudado a destronar uma psicologia intelectualista. Afirmava que a
moderna psicologia dinâmica havia corretamente destacado “a
preponderância da vida afetiva sobre todas as demais formas de
atividade psíquica. Nossas tendências instintivas inconscientes
determinam nossas ações conscientes” (Mira, 1924b, p. 355).
Segundo Mira, foi graças a Freud que a catatímia,4 processo conhecido em psiquiatria, passou a integrar o campo conceitual
da psicologia. Com relação ao restante, parece que ele se sentiu
defraudado pela obra de Freud, dando mais atenção às ideias
de Jung e Adler (Mira 1926c, 1941).
Mira adotou dois conceitos-chave, “complexo” e “inconsciente”, muito usados ao longo dos anos e cujo significado
foi muito discutido.5 Na definição adotada por Mira, em 1926,
podem ser encontrados traços da teoria de Jung. Ele entendia o
complexo como uma formação psíquica dissociada, que apre4. Um “processo em virtude do qual os acontecimentos do mundo real são submetidos
à ação das nossas tendências afetivas, ao ponto de serem percebidos não como são, mas
sim como nós gostaríamos que fossem” (Mira, 1926b, p. 38).
5. Ver, por exemplo, os artigos do volume 13, número 2, do British Journal of Psychology (1922).
26
A primeira campanha de divulgação da psicologia de Emilio Mira y López
senta uma vida independente do resto do psiquismo, dando lugar a uma segunda personalidade fragmentária e perigosa, pois
se trata de uma “‘neoplasia psíquica’, parasita do organismo”
(Mira, 1924b, p. 357).
Mira destaca também o potencial energético do inconsciente. Do ponto de vista estritamente funcional designa “um
conjunto de reações e tendências de reação que não são acompanhadas pelo conhecimento interno” (Mira, 1924b, p. 358), mas
que, apesar disso, influem sobre a personalidade orgânica. Sem
distinguir entre diferentes níveis, inclui no inconsciente todo um
conjunto variado de conteúdos psíquicos, como “o conjunto de
tendências de reação e simbolismos ancestrais [...], o conjunto
de lembranças de experiências individuais, ideias inacabadas,
desejos insatisfeitos, emoções reprimidas, hábitos automatizados, etc., etc., dão ao inconsciente um caráter tal de vitalidade
e energia que quase é possível estranhar que tudo isso não seja
consciente e que todos não sejamos loucos ou psiconeuróticos”
(Mira, 1924b, p. 359). Perante essa afirmação, fica claro que
Mira coincide com os psicanalistas no que tange a importância
que concedem ao inconsciente, porém, ao mesmo tempo, ele
também inclui aspectos próprios da psicanálise de Jung, como
os simbolismos ancestrais, que combinam com os hábitos automatizados mais próprios da psicologia estadunidense.
Com relação aos métodos psicanalíticos, Mira distinguiu
entre três deles: a interpretação dos sonhos, as provas de associações e o método do interrogatório. Usou o primeiro poucas vezes e sem seguir a simbologia de Freud. Nas provas de
associações empregou frequentemente a de Jung, juntamente
com registros de variáveis fisiológicas, como a respiração ou
o reflexo psicogalvânico e o teste de Rorschach. Este último é
um método que certamente foi deduzido a partir do modo de
conversar com os pacientes que Freud apresentou em suas primeiras obras (Freud, 1900), mas no qual Mira usava soníferos
para “explorar o inconsciente” e conseguir a verdade a partir
de perguntas inquisitivas. Com essas versões sui generis do método psicanalítico, advertiu que a psicanálise como método de
27
Clio-Psyché: Instituições, História, Psicologia
exploração é muito útil segundo quem o utilize. Como médico
com experiência clínica, formação científica sólida e leituras
psicanalíticas autodidatas, considerava-se preparado para empregar e apropriar-se dessa metodologia de trabalho, apesar de
não ter nenhuma formação específica.
A concepção psicológica de Mira
Para avaliar em que medida o contato com a psicanálise e
o condutismo influiu na concepção psicológica de Mira, devemos revisar o seu trabalho sobre o estado atual do conceito das
psiconeuroses, no qual apresentou as bases teóricas de sua psicologia (Mira, 1924b, c). O psicólogo e psiquiatra catalão afirmava que, contrariamente à psicanálise, o clínico deve partir
de um conhecimento a respeito do funcionamento psicológico
saudável e normal, e não o contrário. Denunciou o “frequente
desconhecimento que nossos clínicos gerais têm dos fatos mais
elementares do funcionamento psíquico ‘normal’, que se faz
necessário para compreender as psiconeuroses” (Mira, 1924,
p. 350).
Apresentou uma concepção unitária do ser humano como
unidade biológica e portador de três tipos de reações (tróficas/
nutritivas, sexuais/reprodutivas e de relação/sublimação que
permitem adaptação entre o sujeito e o meio), cuja finalidade utilitária seria a adaptação — i.e., “assegurar a vida do ser”
(Mira, 1924b, p. 351). Declarou que o velho dualismo mentecorpo estava superado, do mesmo modo como havia desaparecido a barreira entre o consciente e o inconsciente. Para ele,
seguindo Le Dantec e na mesma linha de pensamento de Sherrington, Cannon, Bechterew e Pi Suñer, “a vida é uma série de
momentos funcionais de um órgão único, variável a cada instante” (Mira, 1924b, p. 352). Diante de um estímulo, o organismo vivo, único, inteiro e indivisível responde, em consonância,
portanto, com a teoria da unidade funcional de Pi Suñer (1918).
No Congresso Internacional de Psicologia, em Oxford,
Mira presenciou as discussões a respeito da noção de “ener28
A primeira campanha de divulgação da psicologia de Emilio Mira y López
gia” mantidas pelos psicólogos (ver Mira, 1924). Definiu seu
ponto de vista dinâmico partindo da ideia de que a energia de
que dispõe o organismo humano em qualquer momento pode
transmutar-se e ser aplicada, em diferentes proporções, na execução dos três referidos tipos de reações. Nesse processo, podem ocorrer alterações quantitativas e qualitativas. A primeira
pode levar ao que Mira denomina o “super-homem normal”
(com superioridade orgânica, cuja dinâmica energética está representada pelo conjunto de laços mostrado à esquerda na figura 1) ou ao “hipobiótico” (definido por ele como o “doente
equilibrado”). No segundo caso, a proporcionalidade entre as
partes é rompida, dando lugar às seis figuras que correspondem
a tipos de individualidades que Mira representa graficamente,
como se pode ver no lado direito da figura 1.
Figura 1.1. Representação esquemática do modelo de personalidade de Kempf, segundo Mira (1924b).
Correspondência com tipologias da personalidade de Kempf:
A. O tipo hiponutrido, lutador, ascético, paranóide e filosofante.
B. O tipo abatido, autoerótico (narcisista ou esquizoide).
C. O tipo gordo, guloso, de escassa atividade intelectual e sexual.
D. O tipo erótico, hipomaníaco, extrovertido e inspirado.
E. O tipo arrogante, fecundante e hipofrênico (valentão ou prostituta).
F. O tipo confortador, ascético, gastrônomo e religioso.
Diante de tal esquema, Mira indicaria que “todas as psiconeuroses se dão em pessoas que, temporal ou definitivamente, possuem uma vida não enquadrável no primeiro esquema
29
Clio-Psyché: Instituições, História, Psicologia
(normal), mas são especialmente frequentes nas pertencentes ao
tipo B” (Mira, 1924b, p.353).
A representação gráfica da teoria da personalidade que
Mira apresenta em seu trabalho sobre a psiconeurose reproduz,
em versão castelhana, um esquema publicado anteriormente
por Edward Kempf, em sua obra The autonomic functions and
the personality (1921). O exemplar que se conserva ainda na
Biblioteca de Medicina da Universidade de Barcelona mostra
que o psicólogo catalão possuiu um exemplar dessa obra, tendo-o lido com atenção. Trata-se de uma contribuição bastante
original de um psiquiatra nova-iorquino que tentou conseguir
uma síntese entre o condutismo de Watson e a psicanálise de
Freud, na linha das pesquisas biológicas e neurológicas de Darwin, Sherrington, James, Cannon e von Bechterew.
Como mostrou Gondra (1985), Watson foi muito influenciado pela doutrina psicanalítica e, durante algum tempo, se esforçou para conectar sua psicologia com os conceitos e as teorias
daquela corrente. Kempf partia de uma concepção da personalidade humana fundamentada no reflexo autônomo (vegetativo)
condicionado, que substituiria o conceito de libido (Engel, 1990).
De acordo com sua teoria das funções dinâmico-autônomas, as
reações humanas se apoiariam em uma série de reflexos que servem para adaptar o organismo ao meio: “Assim como a fome, vimos que nas alterações autônomo-afetivas dos tipos amor, medo
e ira, o organismo reajusta de uma forma reflexa suas relações
com o entorno, para adquirir dele estímulos que tenham a capacidade de provocar esse tipo de reações autônomas e com isso
poder neutralizar as tensões afetivas e autônomas desagradáveis
e perturbadas”6 (Kempf, 1921, p. 55). Sob essa visão condutista,
o aparelho autônomo determina a personalidade e constitui o
único princípio dinâmico capaz de uma ação duradoura.
Parece que Kempf (1921), na opinião de Mira, era capaz
de traduzir para a linguagem neurológica e psiquiátrica-tipoló6. Tradução ao português a partir da versão castelhana feita pela autora deste artigo.
Original em inglês. (N.T.)
30
A primeira campanha de divulgação da psicologia de Emilio Mira y López
gica o núcleo teórico comum entre o condutismo e a psicanálise,
com o que oferecia finalmente essa base empírica e científica
que o psiquiatra catalão vinha reclamando. Em suas oito críticas, vimos que ele incluía uma na qual exigia de Freud explicações de sua teoria no âmbito neurofisiológico (ver crítica nº
4), um tipo de interpretação que levou Iruela a elaborar um esquema comparativo entre a reflexologia e a psicanálise (Iruela
1988, 1993). A leitura reflexológica que Mira faz da psicanálise
explica porque ele foi atraído pela teoria de Kempf, segundo a
qual a dinâmica psíquica do indivíduo é interpretada de forma
análoga às atividades de uma célula viva, baseadas na nutrição,
reprodução e reação. Mantendo-se em uma linha fisiológica e
materialista, ampliou assim a teoria gnosiológica de Ramón
Turró, baseada no instinto trófico a três respostas básicas das
quais a última seria aquela propriamente psíquica.
Ao mesmo tempo, o esquema de Kempf estava em sintonia com o estilo das tipologias promovidas pela psiquiatria
psicológica, especialmente por Kretschmer. É até curiosa a forma como Mira absorveu essa classificação de Kempf, acrescentando uma crítica social por meio de exemplos de profissionais
que mais tendem a cada um desses tipos. Assim, os jornalistas,
os políticos, os propagandistas, os inventores e os lutadores
teriam em geral tendência ao tipo A (hiponutrido, lutador, ascético, paranóide e filosofante), enquanto os artistas correm o
risco de cair no tipo B (abatido e autoerótico, narcisista ou
esquizoide). Por último, os proprietários burgueses seriam os
que mais tendem ao tipo C (gordo, guloso, de escassa atividade intelectual e sexual), muito de acordo com seu ativismo
político na época.
Esse tipo de categorização de humanos em tipos psicológicos será uma tarefa que Mira continuaria realizando ao longo
dos anos seguintes (para um exemplo de tipologia própria, ver
Mülberger & Jacó-Vilela, 2007). O esquema de Kempf voltaria
a aparecer em sua obra quando, no encontro científico em Madri, ele se refere à influência do psiquismo no funcionamento
orgânico (Mira, 1928).
31
Clio-Psyché: Instituições, História, Psicologia
Conclusão: uma campanha de sucesso
Ao longo da segunda metade do século XIX, a psiquiatria tentou seguir o caminho das ciências naturais, adotando
um modelo de doença materialista e empírico, o qual deveria
identificar, entre os fatores somáticos, a origem da doença mental. A obra de Kraepelin representa uma clara tentativa nessa
direção, por meio da incorporação da experimentação psicológica e da introdução de uma nova nosologia, baseada na observação empírica da evolução dos pacientes. A partir de 1882,
ano em que começou a trabalhar no laboratório de Wundt, ele
passou a contar com uma ampla experiência no campo da pesquisa psicológica. Porém, segundo Engstrom (1990), Kraepelin não foi capaz de integrar seu trabalho experimental com
a nosologia psiquiátrica.
Isso não diminuiu a esperança de que a psicologia servisse
como uma ferramenta indispensável ao trabalho psiquiátrico.
Tal afirmativa é facilmente comprovada pelos tratados psiquiátricos da época, como, por exemplo, o Manual de psiquiatria
(1916), de Bleuler. Nele, o autor considerava que uma formação
básica em psicologia seria essencial, pois uma psiquiatria sem
psicologia seria, segundo ele, como uma patologia sem fisiologia. O problema era que a psicologia experimental praticada
por Wundt e seus discípulos não oferecia um método de trabalho e um conhecimento fácil de ser transferido, com aplicações
óbvias no âmbito clínico. Nesse sentido, as psicologias neurológicas e objetivas (de laboratório) da escola reflexológica (especialmente o trabalho de Bechterew) e, mais tarde, a psicologia
de Watson, alcançaram uma maior projeção na prática clínica.
Ao mesmo tempo, surgiram psicologias a partir da própria consulta psiquiátrica e da terapia clínica. Pode-se contemplar a psicanálise e a psicologia médica de Kretschmer (1922)
como produtos desse processo. Ambas têm em comum a origem na prática médica, o fato de não separarem o psicológico
do patológico, a atenção ao plano afetivo e dinâmico e a busca
por uma base sistemática baseada em mecanismos biológicos
fundamentais. Embora tenham recebido inúmeras críticas, am32
A primeira campanha de divulgação da psicologia de Emilio Mira y López
bas se constituíram em modelos de trabalho que atrairiam o
interesse dos psiquiatras espanhóis.
Com a intenção de se estabelecerem como especialistas,
defendendo o terreno profissional da psicoterapia, psiquiatras
como Mira se viram impulsionados a documentar os casos de
seus pacientes tratados com sucesso por meio da psicanálise.
Essa precipitação pragmática não apresentou uma aceitação
acrítica da doutrina.
Embora pareça uma contradição, apesar de mostrar que
a psicanálise funciona, Mira e outros psiquiatras insistam, nesses relatórios, que a psicanálise não se configura como um método de cura mais eficaz que os tradicionais. O motivo reside na ameaça que perceberam diante do aparecimento de um
novo coletivo profissional de psicoterapeutas. Preferiram mostrar rapidamente que se podem oferecer terapias desse tipo de
forma eficaz, freando o entusiasmo por essa metodologia e a
propagação da análise em mãos não especializadas (entendase “não médicas”), alertando, inclusive, que seu uso poderia
ser muito perigoso.
Assim, embora tal posição, do ponto de vista epistemológico, possa parecer incoerente, para Mira era muito importante
separar, na psicanálise, a doutrina, o método de diagnóstico e
seu funcionamento como terapia. Rejeitou a doutrina freudiana
quase que completamente, embora tenha se apropriado de algumas técnicas de exploração do inconsciente, como a prova da
associação de ideias e uma versão particular do interrogatório.
Mira estava ciente da fragilidade institucional da psiquiatria e da psicologia de seu tempo. Para fortalecer ambas as disciplinas, decidiu seguir pela via pragmática e científica. Longe
de adotar uma atitude ateórica ou eclética, realizou uma apropriação seletiva e crítica da psicanálise, do condutismo e da
biotipologia, guiado por sua linha biológica e por seu trabalho
como psiquiatra e psicólogo. Adotou um ponto de vista que
poderíamos definir como materialista, dinâmico e determinista;
inspirado, no plano teórico, em trabalhos de autores como Bechterew e Pi Suñer. Tais aspectos o levaram a uma apreciação
33
Clio-Psyché: Instituições, História, Psicologia
do condutismo como uma versão da psicologia objetiva, embora não adotasse a perspectiva molecular e reducionista da análise da conduta de Watson. Guiado por seu interesse em apreciar
a personalidade, como psiquiatra, os conceitos de Kretschmer,
Kempf, e Meyer7 foram mais úteis a ele. Com isso, combinou
um trabalho em vários níveis, desde a análise neurológica até a
compreensão da pessoa como indivíduo particular.
Em suas aulas a futuros médicos, Mira manifestava uma
convicção que o acompanharia ao longo da sua vida profissional: “[...] toda classificação das perturbações psíquicas [...] só
pode ter uma finalidade didática” (Mira, 1924c, p. 440). “Toda
doença pressupõe uma reação ‘geral’ do organismo” (Mira,
1924c, p. 440) e, portanto, “não há doenças, mas sim doentes” (Mira, 1924c, p. 441). Com essa perspectiva holística em
mente, preferiu, de um modo geral, orientar-se com a ajuda de
biótipos a partir da apreciação da pessoa em seu conjunto, tendo em conta o aspecto físico apreciável à luz do dia, em vez de
“pescar” complexos nas profundezas escuras do subconsciente
ou de analisar condutas elementares implícitas e explícitas. Em
um momento em que a psicanálise questionava a barreira entre
o patológico e o saudável, Mira preferiu patologizar e medicalizar a partir de uma perspectiva mais somática e empírica — i.e.,
uma perspectiva guiada pelo registro fisiológico de determinadas atividades musculares ou glandulares.
Mira defendia uma medicina (psiquiatria) fundamentada
na psicologia. Destacava que a psicologia é necessária como
base para o diagnóstico psiquiátrico (médico) porque “a disciplina científica mais necessária e fundamental para o psiquiatra
é a ‘psicologia individual’” (Mira, 1924c, p. 441). Segundo ele,
uma tarefa que o médico deveria empreender de modo escrupuloso, antes de começar qualquer tratamento, era estabelecer
um “diagnóstico psicobiográfico pessoal” do paciente. E, para
7. Com relação à influência dos biótipos na obra de Lafora, Sacristán e Valenciano,
ver também Parajón & Del Barrio (1994); e sobre a relação entre Mira e Meyer, ver
Sánchez & Ruiz (2012). É importante ressaltar que Mira trabalhou de forma crítica com
os biótipos de Kretschmer no Instituto (ver Mira, 1925).
34
A primeira campanha de divulgação da psicologia de Emilio Mira y López
isso, precisaria ter algum conhecimento psicológico, tanto de
tipo neurofisiológico como tipológico e comportamental e, às
vezes, também psicanalítico.
Finalmente, a campanha de divulgação da psicologia de
Mira não foi uma ação solitária, mas sim uma atividade profissional que ele desempenhou como integrante de um conjunto de
psiquiatras que, naquele momento, se organizavam como grupo, criando a Sociedade Espanhola de Neuropsiquiatras. Para
conseguir um maior impacto social foram criadas revistas (Revista Médica de Barcelona) e associações que ultrapassaram o
terreno acadêmico, como foi o caso da Liga de Higiene Mental.
Apesar de alguns conflitos e problemas pessoais, a campanha de um modo geral foi um sucesso. Após alguns anos
de reivindicação para que a psiquiatria fosse institucionalizada
como especialidade, criou-se uma primeira cátedra na Universidad Autónoma de Barcelona, em 1933, um posto que Mira
viria a ocupar. Os comentários por parte de seus colegas, por
ocasião da tradução do manual de Bumke (Rodríguez Arias,
1928), indicam claramente a fama de especialista que ele havia
angariado no plano nacional: “Mira reúne todas as vantagens
para ser um tradutor ideal. Espírito de uma sensibilidade pouco comum, culto, imposto, possivelmente melhor que ninguém,
nacionalmente reconhecido em questões psicológicas e psicopatológicas, [...]” (Rodríguez Arias, 1928, p. 286). No âmbito
corporativo, o coletivo conseguiu o estabelecimento de novos
consultórios municipais para a prevenção e a consulta ambulante no escopo da psiquiatria, como o “Asilo del Parque”.
Com os anos, também viria a aprovação de novas leis, visando
regular a gestão e o ingresso de pacientes em sanatórios até que,
finalmente, a Guerra Civil espanhola impôs um novo panorama profissional e social.
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38
Comentários sobre o texto de Annette Mülberger
Saulo de Freitas Araujo
O psiquiatra cubano-hispânico Emilio Mira y López (18961964) de modo algum é uma figura desconhecida na América do
Sul. Tendo passado por diversos países, como Argentina, Brasil,
Equador, Uruguai e Venezuela, deixou marcas duradouras no desenvolvimento da psicologia sul-americana (Porras, 1964; Carpintero, 1994; Penna, 1998; Klappenbach, 1999; Alarcón, 2004).
No Brasil, aonde chegou em 1945 e viveu até o seu último
ano de vida, Mira y López foi um personagem central no processo de regulamentação e profissionalização da psicologia nacional (Jacó-Vilela & Centofanti, 2012). Atuando inicialmente
no campo da psicologia do trabalho, teve um papel fundamental como diretor do Instituto de Seleção e Orientação Profissional (ISOP), da Fundação Getúlio Vargas, no Rio de Janeiro
(Penna, 1992; Rosas, 2001). Além disso, é considerado um dos
pioneiros da psicologia escolar e educacional no país (Netto,
1996). Mas foi principalmente no campo da psicotécnica que se
destacou: fundou os Arquivos Brasileiros de Psicotécnica (hoje
Arquivos Brasileiros de Psicologia); foi um dos fundadores da
Associação Brasileira de Psicotécnica e criou o teste Psicodiagnóstico Miocinético, mais conhecido como PMK (Carpintero,
1994; Jacó-Vilela, 1999).1
Muito menos conhecidos do que as suas contribuições à
psicologia aplicada, ao menos entre nós, brasileiros, são os seus
trabalhos mais teóricos no início da carreira, antes da emigração para o exterior, nos quais procurou desenvolver uma concepção de psicologia em estreito vínculo com a psiquiatria.
1. No Brasil, o PMK vem sendo utilizado principalmente como instrumento de avaliação obrigatório para a obtenção da Carteira Nacional de Habilitação (CNH). Entretanto, em 15 de maio de 2012, o Conselho Federal de Psicologia (CFP) suspendeu
e proibiu o uso do PMK em todo o território brasileiro. De acordo com o parecer
da Comissão Consultiva em Avaliação Psicológica (CCAP) do CFP, a fundamentação
teórica é insuficiente, os estudos sobre validade estão comprometidos e os estudos de
precisão não são satisfatórios (Conselho Federal de Psicologia, 2012).
39
Clio-Psyché: Instituições, História, Psicologia
É nesse contexto que se insere a contribuição da profa.
Annette Mülberger, que vou aqui analisar.
Tendo já realizado uma investigação prévia sobre a relação
entre psicologia e atividade política na vida e obra de Mira y
López (Mülberger & Jacó-Vilela, 2007), a autora se volta agora
para a primeira campanha de divulgação da psicologia, na qual
o psiquiatra procurou promover o conhecimento psicológico
entre os médicos espanhóis, ao mesmo tempo em que buscava
integrá-lo em uma concepção própria sobre a vida mental.
No intuito de facilitar a exposição dos meus argumentos,
vou dividir a minha análise em três partes: na primeira, vou
apontar aquelas que considero como sendo as principais contribuições que a autora traz para a compreensão da obra de
Mira y López; em seguida, vou ressaltar alguns pontos que me
parecem carentes de maior elaboração e aprofundamento por
parte da autora; por fim, vou especular sobre algumas possíveis
relações entre essa obra inicial de Mira y López e a sua posterior atuação no Brasil.
O primeiro grande mérito do trabalho de Mülberger é exatamente o de lançar uma nova luz sobre a fase inicial de Mira
y López, na qual o ilustre psiquiatra começa a se apropriar do
conhecimento psicológico de sua época, buscando desenvolver
uma concepção própria de psicologia. Nesse sentido, a autora
expõe de maneira clara a presença nas reflexões de Mira não
apenas da psicanálise, mas também do behaviorismo.
Do ponto de vista metodológico, o texto de Mülberger
também traz uma inovação para a compreensão do pensamento de Mira y López. Em vez de reforçar a estratégia de outros
trabalhos historiográficos sobre o autor, os quais, julgando suas
ideias a partir do referencial psicanalítico, insistem na constatação de que ele não teria sido um “verdadeiro” psicanalista ou
não teria compreendido bem a teoria psicanalítica, Mülberger
adota uma nova perspectiva. Ao propor quatro níveis correlacionados de análise (doutrinal, metodológico, institucional e
corporativo), ela coloca em evidência o contexto específico da
apropriação da psicanálise feita pelo psiquiatra espanhol.
40
Comentários sobre o texto de Annette Mülberger
O resultado desta inovação metodológica é evidente: Mira
y López nunca quis ser um psicanalista! Independentemente do
grau de adequação de sua compreensão acerca da teoria e dos
conceitos psicanalíticos, seu propósito principal nunca foi o de
ser fiel a Freud, mas tão somente o de tomar de empréstimo
alguns procedimentos e idéias da psicanálise para o desenvolvimento de sua própria teoria e de sua prática profissional. Além
disso, não devemos nos esquecer de que a sua apropriação da
psicanálise veio acompanhada de uma série de críticas a Freud,
como também fica claro no texto de Mülberger. De fato, dada
a influência da psicologia acadêmica e da psiquiatria alemãs na
formação de Mira, o seu posicionamento crítico em relação à
psicanálise não deve causar surpresa.
No que diz respeito à concepção psicológica de Mira y
López, o foco de análise da profa. Mülberger é o artigo “Estado actual del concepto de las psiconeurosis”, publicado em
duas partes na Revista Médica de Barcelona, em 1924. Desta
análise resulta igualmente claro o ponto de vista a partir do
qual a psicologia é concebida: a medicina. Em outras palavras,
o conhecimento psicológico estava subordinado aos interesses
profissionais e práticos de Mira y López. Não se trata de modo
algum de uma psicologia pura, como em Wundt, mas de uma
psicologia aplicada, em estreita ligação com a medicina. Isso
significa também que o desenvolvimento da psicologia deveria
ser avaliado não pelos seus próprios méritos, como um saber
científico autônomo, mas sim pelo seu potencial de iluminar a
prática médica. Compreende-se, assim, que o pioneirismo de
Mira y López estivesse, ao menos nessa fase inicial, vinculado
principalmente à psiquiatria, fato este reforçado pela sua ocupação da primeira cátedra nessa área, na Universidade Autônoma de Barcelona, em 1933.
Ainda em relação à sua concepção própria de psicologia, o
texto de Mülberger sugere que o interesse fundamental do psiquiatra espanhol era elaborar uma tipologia ou caracterologia
que o permitisse classificar e separar os indivíduos a partir de
sua constituição psicobiológica. Nesse contexto, é importante
41
Clio-Psyché: Instituições, História, Psicologia
ressaltar outro grande mérito do trabalho da profa. Mülberger,
a saber, o de mostrar a influência do psiquiatra Edward Kempf
na teoria da personalidade de Mira y López. Até aqui, esse aspecto de sua obra parece não ter sido levado em consideração
por outros estudiosos.
Finalmente, a autora chama a atenção para o caráter sintético e unitário da proposta de Mira y López, avesso a qualquer
tipo de dualismo. O homem seria entendido como uma unidade biológica que se diferencia funcionalmente. Desse modo, o
psiquiatra procurou integrar o pensamento de Watson, Bekhterev e outros com as novidades trazidas pela psicanálise e pela
psiquiatria da época, chegando a uma concepção fisiológica e
materialista do ser humano.
Em que pesem todos os inegáveis méritos do trabalho da
profa. Mülberger, gostaria agora de salientar alguns pontos que
me pareceram obscuros ou carentes de um maior esclarecimento ou desenvolvimento em trabalhos futuros. O primeiro deles
diz respeito à influência do behaviorismo de Watson sobre o
pensamento de Mira y López. Embora a autora mostre que
ele realmente se envolveu com as idéias de Watson, a influência deste último não ficou bem estabelecida. Para tanto, seria
necessária uma análise mais ampla, com a introdução de elementos comparativos de ambas as obras. Por certo, do mesmo
modo como fez em relação à psicanálise, Mira y López apropriou-se seletivamente do behaviorismo de Watson, como a
própria autora reconhece no texto. E é exatamente em função
dessa apropriação seletiva que a análise comparativa se faz necessária, assinalando os pontos de coincidência e divergência
entre os dois autores.
Meu comentário anterior aplica-se igualmente à integração do esquema de Kempf na teoria psicológica de Mira y López. Embora a autora afirme que Kempf faz uma tradução do
núcleo teórico comum entre o behaviorismo e a psicanálise, em
termos neurológicos e tipológicos, ela não fornece exemplos
concretos dessa tradução. O texto certamente seria muito enriquecido se tivéssemos uma análise mais detalhada dessa relação
42
Comentários sobre o texto de Annette Mülberger
entre Kempf e Mira y López. O mesmo vale para as influências de Kretschmer e Meyer, que são apenas mencionadas, mas
não são estabelecidas.
No plano metodológico, há no texto de Mülberger uma
assimetria entre os quatro níveis de análise propostos. Enquanto os dois primeiros ocupam a quase totalidade do texto, os
dois últimos aparecem apenas no final, de modo muito sucinto.
Essa assimetria tem como consequência o enfraquecimento de
uma das teses centrais da autora, a saber, a afirmação de que
as críticas de Mira y López à psicanálise se desenvolveram em
um contexto institucional de defesa do terreno profissional da
psiquiatria, em que a propagação da psicanálise para não psiquiatras era vista como uma ameaça. Levando-se em conta o
uso potencial e a importância desta tese, no contexto dos debates historiográficos acerca dos interesses profissionais e institucionais no estabelecimento da psicologia em diversos países,
caberia discuti-la mais detalhadamente.
Há ainda no trabalho de Mülberger outros dois pontos
que poderiam ser aprofundados. O primeiro está relacionado
ao problema do ecletismo. A autora defende explicitamente a
tese de que a apropriação feita por Mira y Lópes das diversas influências que recebeu (behaviorismo, psicanálise, Kempf,
Meyer etc.) não é uma forma de ecletismo, mas sim uma síntese
holista. Para sustentar essa tese, a autora poderia ter apresentado mais detalhes de tal apropriação, destacando o sentido das
inovações trazidas pela síntese do autor. O segundo aspecto diz
respeito ao problema da relação mente-corpo. A autora afirma
que Mira y López considerava o velho dualismo superado pela
sua concepção unitária de ser humano. Mas ficamos sem compreender adequadamente como isso acontece, isto é, em que
sentido a referida abordagem supera o dualismo.
Na terceira e última parte destes comentários, gostaria de
explorar algumas ideias depertadas em mim pela leitura do texto da profa. Mülberger. Acima de tudo, fiquei com a impressão
de que este trabalho deve gerar estudos adicionais em torno de
suas teses principais. Em primeiro lugar, penso que valeria a
43
Clio-Psyché: Instituições, História, Psicologia
pena investigar a influência dessa fase inicial do pensamento de
Mira y López na continuação de sua obra. Haveria alguma modificação significativa em sua concepção de psicologia? Teria
ele mais tarde rejeitado alguma tese central daquele período?
Em segundo lugar, tendo em vista a importância de Mira y López para o desenvolvimento da psicologia entre nós, considero
que não está suficientemente clara a relação entre essa concepção inicial de psicologia e as atividades posteriormente empreendidas por ele em nosso país. Em que sentido, por exemplo, os
trabalhos desenvolvidos no ISOP, a divulgação do PMK e o seu
envolvimento geral com a psicotécnica estariam em harmonia
com a teoria, compondo uma espécie de aplicação desta última aos problemas surgidos no trabalho, na educação etc.? Por
fim, seria igualmente significativa uma investigação que buscasse revelar se as atividades desenvolvidas no Brasil o levaram a
introduzir alguma modificação em sua teoria psicológica geral,
especialmente em sua tipologia.
Ao levantar essas questões, certamente me distanciei
do trabalho de Mülberger ora analisado. Entretanto, se o fiz,
foi apenas com o intuito de sugerir possíveis desdobramentos do tema em investigações futuras, o que, a meu ver, torna ainda mais visível e reforça o mérito e o valor intrínseco
de sua pesquisa.
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***
45
2
Sobre indivíduos e instituições:
Eliezer Schneider e a psicologia no Rio de Janeiro
Ana Maria Jacó-Vilela
A historiografia clássica nos forneceu uma narrativa que
sinteticamente definimos como baseada em “fatos, datas e
heróis”, estes localizados na camada dirigente e descobertos
em documentos oficiais. A história é assim contada a partir
de reis que assinam tratados, generais que vencem guerras. É
uma história vista “por cima” e que conduz a um imaginário
centrado na persona, em seu valor na realização do que-fazer
social. Mais que isto, como se o seu valor fosse o único capaz
de produzir acontecimentos.
Ainda no século XIX, época em que se estabeleceu esse
modelo historiográfico, alicerçado na ideia do trabalho do herói, segundo a tradição de Carlyle (Ball, 2011), e com sua base
metodológica fundamentada na confiança no documento como
retrato fiel do passado, na linha de Leopold von Ranke (17951886), novas correntes de pensamento trouxeram à tona a relevância de outros fatores, para além do herói e do documento
que relatava seus feitos.
Na Universidade de Berlim, uma forte crítica ao modo
de fazer história e, consequentemente, ao indivíduo como centro, emergiu com a chamada escola prussiana de historiadores, capitaneados por Wilhelm Humboldt (1767-1835) Para os
defensores desse ponto de vista, a observação imediata – i.e.,
a leitura de documentos ao estilo de Rancke – permitia ao observador entender apenas a conjuntura imediata, faltando-lhe
a possibilidade de compreensão mais ampla do contexto causal
do acontecimento em questão (Burke, 1990).
Dentro ou fora da academia, se sobrepuseram diferentes
vozes: as diferentes nuances do pensamento socialista, com variação de grau na crítica à “ilusão burguesa” da existência de
um indivíduo autônomo e à ideologia liberal que criaria essa
46
ilusão, como uma cortina de fumaça, de modo a explorar melhor o proletariado (Marx, 1988 [1859]; Nilsson, 1988).
A essa abordagem, que considera a sociedade, a ideologia
e as instituições sociais como decorrentes do modo de produção de uma determinada época, vieram se somar, no final do
século XIX e início do XX, as diferentes pesquisas antropológicas que passaram a tratar os hábitos, costumes, modos de
vida e instituições sociais como particularidades de uma determinada cultura, que nela eram engendradas e que dela se fortaleciam (Malinovsky, 1976; Mead, 1978 [1935]). Uma corrente,
conhecida como “cultura e personalidade”, desenvolvida nas
primeiras décadas do século XX, intentou explicar como se articulavam estes dois mundos, do sujeito individual e do grupo
em que ele nascia e se desenvolvia (Linton, 1965).
É nesse período, durante o qual se estabeleceram as disciplinas denominadas posteriormente como ciências humanas e
sociais, que se constituiu também a psicologia. Enquanto história, sociologia e antropologia rapidamente descartaram o indivíduo, optando por entender como fonte primária “as circunstâncias” concomitantes e sequenciais, as lutas entre as classes,
as estruturas sociais, a cultura etc., a psicologia se viu, desde
cedo, em uma encruzilhada: seu objeto de estudo é o próprio ser
humano. Mas seus processos internos e a sua forma de agir, que
recebem denominações várias sob abordagens diversas, devem
ser compreendidos de maneira abstrata? Ou cabe à psicologia
relacioná-los à sua ambiência, às condições mais amplas de sua
produção? A psicologia deve falar de um homem abstrato ou
de um homem concreto, em suas circunstâncias específicas?
Visto estarmos interessados principalmente na questão
historiográfica, estas não são, aparentemente, questões para
tratarmos aqui. Basta, no momento, apontarmos que os modos
de pensar não são independentes uns dos outros nem das circunstâncias em que são produzidos. Assim, durante um longo
período tivemos a primazia de análises das condições sociais,
culturais e institucionais, com pouco apreço pelas biografias. O
“socialismo de Estado” que vigorou na antiga União Soviética
47
Clio-Psyché: Instituições, História, Psicologia
também contribuiu para o abandono dos retratos pessoais no
mundo ocidental, pois poderiam parecer similares ao “culto à
personalidade” que lá então se desenvolvia.1
Esse predomínio das condições sociais, no entanto, começou a ser contrabalançada com novas análises a partir de
alguns pensadores. Destaco aqui, por um lado, Certeau, e sua
discussão sobre a operação historiográfica, como se referindo
à “relação entre um lugar [...], procedimentos de análise [...] e
a construção de um texto” (Certeau, 1979, p. 27), o que veio
a possibilitar melhor compreensão das condições de produção
do texto e, portanto, das biografias, quando o texto delas trata.
Outra referência é Hobsbawm, conhecido historiador marxista,
e sua bela homenagem às “pessoas comuns”, cujos retratos traça, e homenageia como “pessoas extraordinárias”, em várias
pequenas biografias (Hobsbawm, 1998).
Esses dois autores serviram de base e justificativa para
construir uma narrativa da trajetória de Eliezer Schneider
(1916-1998) de outra forma.2 A partir de Certeau, avalio meu
lugar na produção do presente capítulo como ambíguo: me
considero, e sou considerada, há anos, historiadora da psicologia e, como tal, supõe-se que eu conheça e siga as regras
do ofício. Entretanto, propus-me a escrever este texto em um
momento em que nosso Programa de Estudos e Pesquisas em
História da Psicologia – Clio-Psyché inaugurava o seu acervo.
Este foi denominado Acervo Eliezer Schneider, em reconhecimento à doação da biblioteca do professor Schneider, por sua
família, ao nosso Programa. Que lugar, pois, seria esse? De
historiador, de membro de uma instituição universitária? De
gratidão a uma família?
1. Como exemplo desse tipo de biografia, renegada por muitos, temos no Brasil o
livro de Jorge Amado sobre Luís Carlos Prestes, O Cavaleiro da esperança, cuja primeira edição foi publicada na Argentina, em 1942; a primeira edição brasileira apareceu
em 1945; em 1964, com o golpe militar, o livro foi proibido, voltando a ser reeditado em
1979.
2. Digo “de outra forma” porque já publiquei um texto a seu respeito (ver Jacó-Vilela, 1999).
48
Sobre indivíduos e instituições: Eliezer Schneider e a psicologia no Rio de Janeiro
Ainda, com relação aos procedimentos de análise, além
das implicações acima referidas, várias outras permeiam minha
escrita: como ex-aluna e ex-orientanda do professor Schneider,
além de coordenadora de um documentário a respeito da sua
trajetória, sou afetada continuamente pela relação que tivemos,
bem como pelo contato que tive com a sua família. Todos esses
fatores, certamente, estão presentes na construção deste texto.
O texto de Hobsbawm, por sua vez, vai ao encontro do
que dizíamos em artigo anterior (Jacó-Vilela, 1999): Schneider,
embora tenha sido um dos relevantes personagens da história
da psicologia no Rio de Janeiro, em sua fase institucional – sobre o que falaremos mais adiante –, não obteve o mesmo destaque de outros dos seus contemporâneos, como Antonio Gomes
Penna (1917-2010) e Franco Lo Presti Seminerio (1923-2003).
O primeiro foi seu colega e amigo por toda a vida; Seminerio
chegou à psicologia carioca bem mais tarde, mas nela ocupou
papel de destaque. Frente aos dois, Schneider se tornou uma
“pessoa comum” e é dessa pessoa – extraordinária – que pretendo falar, em sua relação com a institucionalização da psicologia
na cidade do Rio de Janeiro.
Este capítulo procura, pois, traçar o percurso profissional
de Eliezer Schneider, em sua relação com as instituições de psicologia de sua época, instituições aqui entendidas em seu sentido amplo: como estabelecimentos, como organizações sociais,
como relações de poder.
Schneider e as instituições
Formado em Direito, em 1939, pela Faculdade Nacional
de Direito, da antiga Universidade do Brasil (atual Universidade Federal do Rio de Janeiro), é desse estudo, segundo relato
do próprio Schneider, que surgiu o seu interesse pela psicologia:
como entender o criminoso, como caracterizar a inimputabilidade? (Schneider, 1998). Prestou concurso para o Instituto
de Psicologia da Universidade do Brasil, então órgão suplementar da Reitoria, onde ingressou como técnico de assuntos
49
Clio-Psyché: Instituições, História, Psicologia
educacionais, em 1941. Ao ingressar na Universidade de Iowa
(EUA), para realizar o seu mestrado, tornou-se um dos primeiros brasileiros com formação acadêmica em psicologia. Os primeiros cursos de psicologia surgiram no Brasil na década de
1950 (Antunes, 1999; Jacó-Vilela, 2002). Até então, tínhamos
pessoas com formações em diferentes áreas que eram autodidatas em psicologia, muitas delas se habilitando, por concurso,
como docentes nas escolas normais e nos cursos superiores em
que havia cátedra de psicologia. No anos 40, alguns poucos
brasileiros realizaram cursos pós-graduação em psicologia no
exterior, como Annita Cabral (Ghiringhello, 2001), Heloísa
Marinho (Lourenço Filho & Penna, 2001) e Eliezer Schneider.
Este último obteve o título de mestre com uma tese sobre as
teorias emergentistas da personalidade, orientado por Gustav
Bergmann (1906-1987). Dessa época, manteve seu interesse
pelo behaviorismo, menos talvez por sua metodologia do que
por sua ênfase nas situações ambientais como determinantes do
comportamento humano.
Ampliando-se o sentido de “situações ambientais” para
“condições sociais”, o behaviorismo sem dúvida representava,
na psicologia, uma contrapartida teórica da opção política de
Schneider: fora membro da Juventude Comunista e militara nos
movimentos antifascistas. O grau de sua atuação pode ser medido pelo resultado de uma eleição entre os grupos estudantis
de esquerda, quando derrotou Carlos Lacerda3 (Dulles, 1994).
Essa militância implicou também em prisão e tortura, durante
o governo de Getúlio Vargas. Aliás, a fala de Schneider a esse
respeito é reveladora de seu bom humor, de sua ironia fina: relata que os carcereiros aplicavam palmatória durante o dia e, à
3. Carlos Frederico Werneck de Lacerda (1914-1977) não concluiu o curso na Faculdade Nacional de Direito. Político e jornalista, iniciou sua carreira ao lado da
esquerda, da qual se afastou em 1939, aliando-se então com a União Democrática
Nacional (UDN), de tendência liberal. Aliado de primeira hora, mas não apoiado pela
ditadura militar de 1964, articulou uma Frente Ampla, com os derrotados, na qual se
inseriram, posteriormente, Juscelino Kubsticheck (1902-1976) e João Goulart (19181976). A morte dos três em datas próximas fomentou uma teoria conspiratória contra
o regime militar, o qual, a rigor, já se encontrava em sua metade final.
50
Sobre indivíduos e instituições: Eliezer Schneider e a psicologia no Rio de Janeiro
noite, cuidavam das feridas… (Schneider, 1998).
Seu engajamento na luta política levou a outras punições.
Foi impedido, por exemplo, de voltar aos EUA, na década de
1950, visando realizar seu doutorado – eram os tempos do
macartismo e a militância fez dele uma persona non grata aos
olhos de quem via o mundo dicotomizado em amigos e inimigos. Também foi proibido de prestar concurso para professor
da Universidade Federal Fluminense durante a ditadura militar
(1964-1985). Para se inscrever, era então necessário apresentar
um “atestado de bons antecedentes”. O famigerado Departamento de Ordem Política e Social (DOPS), encarregado de monitorar indivíduos e entidades “perigosos” ou de algum modo
suspeitos de tramarem contra o regime, só entregou o referido
atestado a Schneider (e a seu amigo Antonio Gomes Penna)
após o encerramento das inscrições. O poder exerce seu controle de formas sutis…
Vemos Schneider aqui, portanto, como aquele de fora do
instituído, tentando romper barreiras, criar algo novo, sendo
contido por aquilo que já está pronto, dado, feito. Se nas décadas seguintes o encontramos inserido em instituições e, aparentemente, dentro de seus ditames, podemos verificar que sempre
manteve alguma distância do hegemônico, do consolidado, do
bem constituído. Isso fez com que ele tivesse uma carreira pouco congruente à esperada de um professor de sua envergadura,
pois foi, durante toda a sua vida profissional, não só psicólogo do Manicômio Judiciário como também professor de várias
instituições de ensino. Embora isso possa ser justificado pelos
baixos salários pagos aos docentes, também pode ser explicado
pelo fato de Schneider não ter sido alçado a postos mais elevados nas duas instituições públicas onde trabalhou: a UERJ, na
qual chegou a ser professor titular substituto,4 e a UFRJ, na
qual foi preterido em eleição para diretor em favor de outro
candidato.
4. O que é esse degrau significa na carreira docente? Lembrando que Schneider havia
sido o primeiro diretor do Instituto de Psicologia da UERJ.
51
Clio-Psyché: Instituições, História, Psicologia
Schneider e a psicologia – formação e profissão
A década de 1950 representou um momento importantíssimo na história da profissão de psicólogo: foi quando eclodiu
o movimento pela regulamentação da profissão e dos cursos.
Aqui surgem as discordâncias entre diferentes personagens representativos de grupos, principalmente entre Emílio Mira y
Lopez (1896-1964),5 seguramente o inspirador do anteprojeto
de lei, regulamentando a profissão, proposto pela Associação
Brasileira de Psicotécnica ao Conselho Nacional de Educação,
em 1953 (Jacó-Vilela, 2002), e Nilton Campos (1898-1963),6
que se opôs à proposta, considerando haver nela exclusivamente um caráter aplicado. Havia uma clara divergência entre
“teóricos” e “práticos” – Nilton Campos era um crítico contundente da “vulgarização” da psicologia, promovida, segundo
ele, pelo Instituto de Seleção e Orientação Profissional (ISOP),
sob a orientação de Mira y López, este um grande defensor da
psicologia aplicada (Mancebo, 1997).
Schneider foi o mediador entre os dois. Atuava no Instituto de Psicologia, já sob a direção de Nilton Campos, e havia
trabalhado com Mira y López. Este, conhecendo suas habilidades diplomáticas, solicita que ele atue como conciliador entre
as partes, tarefa na qual Schneider não obteve sucesso, dada
a rigidez das posições de Nilton Campos. Essa experiência,
contudo, possibilitou que ele posteriormente integrasse uma
comissão que foi criada para a proposição de um novo ante-
5. Emílio Mira y López, psiquiatra espanhol, relevante nome da psicotécnica europeia,
socialista, exilado após a vitória franquista na Guerra Civil Espanhola, convidado pela
Fundação Getúlio Vargas para criar e dirigir seu Instituto de Seleção e Orientação
Profissional (ISOP), permaneceu no Brasil de 1947 a 1964, quando faleceu. Ao redor
e a partir do ISOP, foram criadas outras unidades em diferentes estados brasileiros, a
Associação Psicotécnica de Psicologia, a revista Arquivos Brasileiros de Psicologia – associação e revista criadas em 1949 e que, com outros nomes, perduram até hoje – e o
movimento que resultou na Lei 4.119, de 27/8/1962.
6. . Nilton Campos, médico, estudioso da fenomenologia, catedrático de Psicologia
da Faculdade de Filosofia, da Universidade do Brasil, criou, em 1951, com incentivo
de seus assistentes Antonio Gomes Penna e Eliezer Schneider, o Boletim de Psicologia,
informativo destinado aos professores e alunos da cátedra, que teve vida efêmera, sendo
publicado até 1974.
52
Sobre indivíduos e instituições: Eliezer Schneider e a psicologia no Rio de Janeiro
projeto. Foi dessas conciliações entre contrários, labutando entre pressões externas e internas (Costa, 2008), que finalmente
emergiu a Lei 4.119, regulamentando a profissão e os cursos,
e o Parecer 43/62, estabelecendo um currículo mínimo para a
graduação em Psicologia.
Após a regulamentação, diversos cursos foram criados.
Observamos que Schneider era, normalmente, um dos primeiros professores de cada um deles: da atual UFRJ – onde já trabalhava –, da UERJ, da Universidade Gama Filho, da Faculdade
de Humanidades Pedro II. Nada a estranhar, visto que, naqueles idos dos anos 60 e 70, eram pouquíssimos os profissionais
habilitados a ministrar disciplinas em cursos de graduação. Em
todos os lugares por onde Schneider atuou havia, contudo, ao
menos um denominador comum: a disciplina Psicologia Jurídica no currículo dos cursos, uma presença que supomos ser
resultado de seu esforço em apontar as articulações entre Psicologia e Direito, algo que ele próprio tão cedo havia percebido.
Na UERJ, essa disciplina, ministrada inicialmente na graduação, foi acoplada ao curso de especialização de orientação clínica então existente, tornando-se assim a base para a constituição
de um curso de especialização em Psicologia Jurídica, criado na
década de 1970 e considerado o primeiro nessa área no país.
Isso também decorreu do seu trabalho pioneiro no Manicômio Judiciário Heitor Carrilho, do Ministério da Saúde, entre
1954 e 1976, quando exerceu os cargos de psicologista e depois
de psicólogo. Ele tinha, portanto, uma experiência a relatar, a
contrapor às teorias.
Era esse o seu modo de ensinar psicologia social, talvez o
tema a que mais tenha se dedicado na docência, tanto na graduação como na pós-graduação. Krüeger (2001), em análise de
sua produção bibliográfica, verificou que esta decorria das disciplinas que ministrava. Em outra palavras, Schneider, um bom
professor nos anos 1960-1970 – quando ainda não havia uma
produção bibliográfica local, nem tradução de livros em quantidade suficiente para a formação de psicólogos; quando ainda
não havia, enfim, as facilidades que temos hoje (internet, com
53
Clio-Psyché: Instituições, História, Psicologia
fácil acesso a periódicos etc.) – escrevia textos que produziam,
para seus alunos, o conhecimento necessário à disciplina que
ministrava naquele momento. Não eram, entretanto, simples
reproduções ou resenhas de textos estrangeiros. Eram textos
que traziam sua reflexão sobre os diferentes temas. Tanto assim
que suas aulas, sua orientação e seus textos produziram uma
vertente na psicologia social no Rio de Janeiro que pôde se contrapor eficazmente à vertente cognitivo-experimental trazida
por Aroldo Rodrigues.7
Falando então em publicações, um resultado acadêmico
por excelência: não só no Boletim, mas igualmente nos Arquivos Brasileiros de Psicotécnica (depois “de Psicologia Aplicada”
e, finalmente, “de Psicologia”) e em outras revistas, Schneider
publicou, até onde conseguimos apurar, um total de 121 artigos. Sua época permitia levar a contento um modo de ser que
não privilegiava o registro contábil da vida, como hoje somos
obrigados a fazer. Em 1978, publicou o seu único livro, o qual,
em minha opinião, traz no título o cerne de seu pensamento:
Psicologia social – Histórica, cultural, política.
Schneider, entretanto, não se restringiu à formação e à especialização de psicólogos. Atuou também na pós-graduação,
tanto no ISOP como no Instituto de Estudos Avançados em
Educação (IESAE), da Fundação Getúlio Vargas,8 na UFRJ, na
Universidade Gama Filho. Nas três primeiras, trabalhou nos
anos 70 e 80. Já na Gama Filho, onde ingressou nos anos 60,
para a constituição do curso de graduação, permaneceu até
7. Aroldo Rodrigues é reconhecidamente o principal psicólogo social de orientação
cognitivo-experimental no Brasil e, talvez, na América Latina. A versão brasileira do
seu livro, Psicologia social, está na 30ª edição; no Mexíco, o livro está na 5ª edição (Editora Trillas). Não conhecemos outras edições.
8. Tanto o ISOP como o IESAE foram extintos em 1990, durante o reordenamento
da FGV promovido pelo governo Collor. Com relação ao ISOP, cabe salientar as ironias
do destino: sua biblioteca, sua pós-graduação (inexistente à época de Mira y López) e
a revista Arquivos Brasileiros de Psicologia, nome atual dos Arquivos Brasileiros de Psicotécnica, foram todas transferidas para a Universidade Federal do Rio de Janeiro, por
intervenção do professor Franco Lo Presti Seminerio. Os livros e as revistas estão alocados hoje no Pavilhão Nilton Campos. Vitória da teoria sobre a prática? Ou simples
contingências das quais não se pode tirar conclusões?
54
Sobre indivíduos e instituições: Eliezer Schneider e a psicologia no Rio de Janeiro
1998. Sua atividade nos cursos de pós-graduação dessas instituições pode ser considerada baixa se comparada ao alto índice de produtividade e ao número de alunos nos dias de hoje.
Todavia, considerando que Schneider atuou principalmente ao
longo das décadas de 1970 e 1980, veremos que ele orientou
um número considerável de teses e dissertações (40), todas em
torno de temáticas sociais e educacionais, além de ter participado de ao menos 150 comissões examinadoras.
Hoje em dia é quase incompreensível para nós que um
professor titulado como ele trabalhe, ao mesmo tempo, em
tantos estabelecimentos, ministrando aulas e orientando alunos. Some-se a isso o fato de Schneider também ter ocupado,
paralelamente, alguns cargos de direção: foi diretor do Colégio
Hebreu Brasileiro; diretor do Instituto de Psicologia, da UERJ;
diretor substituto do Instituto de Psicologia, da UFRJ; chefe do
Departamento de Psicologia, da FAHUPE; chefe do Departamento de Psicologia Educacional, do IESAE.
Sob a perspectiva atual, em que a política educacional
do governo pretende distinguir tipos de instituições de ensino
superior, tornando algumas dedicadas à graduação e outras à
pesquisa – política que traz implícita, simultaneamente, uma
correspondente diferenciação qualitativa dos docentes dessas
instituições –, a profícua atividade docente de Schneider não
nos permite enquadrá-lo em um modelo único. Pesquisador no
cotidiano, cúmplice no ensino, amigo na universidade, ele foi,
para a burocracia acadêmica, um homem-paradoxo. A sua produção escrita, além de suas aulas, sempre articularam conhecimento, história, reflexão, utopia. Poderíamos dizer que sua
generosidade nos permitiu participar, por meio de múltiplos
modos de expressão, de histórias para além das escrituras.
Um exemplo desse movimento pendular entre vida e obra
nos é dado pela sua relação com Antônio Gomes Penna. A longa convivência entre os dois pode ser apreciada, dentre outros
vetores, no movimento editorial de ambos. Em 1951, criaram
juntos o referido Boletim do Instituto de Psicologia, informativo que circulou até 1974. Com dignidade e respeito, atribuiram
55
Clio-Psyché: Instituições, História, Psicologia
a criação do Boletim ao catedrático, Nilton Campos.
Entretanto, de todas estas atividades, a que efetivamente mais o apaixonava era a docência, o dia-a-dia da sala de
aula. Por meio dela, formou um infindável número de psicólogos, com destaque especial aos psicólogos sociais. Sempre, com
seu ”método” – o conhecimento teórico deveria ser apreendido
por meio da análise abrangente de fatos do cotidiano, muitas
vezes melhor revelados em filmes, novelas, seriados (Sá, 2001)
e sempre mediante uma atenção particular ao aluno. Seu caminho era recorrer à multidisciplinaridade para melhor afiançar o
conhecimento psicológico.
Na perspectiva de uma sempre inóspita história oficial,
seu apogeu teria ocorrido entre as décadas de 1960 e 1970. No
entanto, há outros indicadores de produção, sucesso e prestígio.
Nos anos 80, entrando na aposentadoria compulsória, tanto na
UFRJ como na UERJ, suas atividades passam a se restringir à
Universidade Gama Filho. Esta age em relação a ele com a elegância com a qual Schneider permeava suas relações: quando
seus problemas físicos se agravaram, a ponto de tornarem o
deslocamento até a universidade por demais doloroso, a universidade autorizou que os alunos tivessem aulas e orientações
em sua residência.
Isso se processa com o aval e o reforço da segunda esposa,
Fanny, com quem se casou em 1968 e com teve um segundo
filho, Marco André, que se somou a Jean Bayard, fruto de seu
casamento anterior com Guiomar. Em meio a todas as atividades profissionais, Schneider nunca deixou de dedicar tempo e
carinho aos amigos e à família, que sempre o acompanharam.
Schneider é, para todos os que o conheceram e que com
ele conviveram, um exemplo de competência, afeto, simplicidade. Tudo o que é necessário para permanecer nas mentes
e nos corações.
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Sobre indivíduos e instituições: Eliezer Schneider e a psicologia no Rio de Janeiro
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***
58
3
Teoria, método e aplicação na obra de
Waclaw Radecki
Rogério Centofanti
Uma discussão preliminar
A participação de Waclaw Radecki à frente do Laboratório de Psicologia, na Colônia de Psicopatas, em Engenho de
Dentro, e do Instituto de Psicologia, criado por ele na cidade
do Rio de Janeiro, em 1932, foi maior do que as linhas que até
agora mereceu, decerto a exemplo de alguns outros personagens apontados na história da psicologia no Brasil. Circunstanciado pelo formato panorâmico e pelas categorias que os
historiadores adotaram (e ainda adotam) para classificar personagens na história — a partir do modelo original, arquitetado
pela pioneiríssima Annita de Castilho e Marcondes Cabral –,
Radecki ficou, digamos, deslocado. Fez-se por vezes personalizar por adjetivos, não raro depreciativos, os quais colaboraram
para diminuir a largura, o comprimento e a altura do seu devido lugar. O único talvez a receber esse tipo de tratamento.
Há mais a se dizer do que o contido em Radecki e a psicologia no Brasil, de 1982; no capítulo dedicado a ele por Antonio Gomes Penna, em 1992; e no breve O discriminacionismo
afetivo de Radecki, de 2003.
Trabalho imperfeito, certamente, este último, sobre o
discriminacionismo afetivo, mas minimamente necessário
para desfazer o rótulo de nonsense a ele atribuído por alguns dos historiadores pioneiros, e repassado pelo costumeiro
mecanismo da reprodução.
Não foi apenas o discriminacionismo afetivo que ficou
por ser mais e melhor esclarecido. Em função da publicação de
1982, ele ficou marcado pelas dificuldades nos relacionamentos interpessoais, sociais e políticos e depois, acompanhado por
Penna, em 1992, pela intransigência com aquilo que denomi59
Clio-Psyché: Instituições, História, Psicologia
nava de vulgarização da Psicologia e pelo ataque aos que reclamavam “prática”, mas em detrimento das correspondências
teóricas e metodológicas.
Foi essa corrida ao “prático” que facilitou, dentre outros
procedimentos de estrito valor de uso, mas desprovidos de
equivalência teórica, o ingresso dos testes no cenário nacional,
dada a possibilidade de acesso a uma Psicologia prêt-à-porter.
Serviam para atender as necessidades imediatas da Educação,
da Medicina e até mesmo da Engenharia, então interessada em
seleção profissional. Foi essa a origem de um dos interesses do
Exército, possivelmente, por intermédio da Escola de Aplicação
do Serviço de Saúde — e com vistas à seleção de aviadores –, no
patrocínio do curso de psicologia, programado e ministrado
por Radecki, entre 1928 e 1929. Desse curso resultou a coleção
de 17 fascículos, intitulados Resumo do curso de psychologia,
cujos conteúdos formaram depois o livro Tratado de psicologia.
Durante este curso, fequentado por médicos militares, Radecki manifestou algumas de suas resistências frente à febre dessas ferramentas na epidemia do praticismo, e
que contagiava rapidamente.
No plano externo e contiguo às suas atividades, grupos
organizados de médicos e educadores — sob o olhar atento
de setores da Igreja, também com interesses — disputaram
a formação e o exercício profissional da Psicologia. Radecki estava no centro desses interesses, sendo por isso mesmo
envolvido em jogos políticos. Na presença de autodidatas,
tinha o hábito de intitular-se “psicólogo”. Reclamava para
si um sistema próprio, quando os demais se espelhavam em
modelos consagrados no exterior. Estrangeiro em clima de
intenso nacionalismo. Finalizou por criar um Instituto de
Psicologia independente e isso feriu interesses corporativos
de alguns grupos.
Com foco nessa tensão entre teoria e prática, no decorrer
da década de 20, retorno a Radecki, apresentando novos elementos que podem ser de interesse aos estudiosos e pesquisadores da história da psicologia no Brasil.
60
Teoria, método e aplicação na obra de Waclaw Radecki
O saber e o fazer
Já nas primeiras linhas de seu curso, Radecki (1928-9) reconhecia que tinha em vista futuras aplicações. Como era dirigido a médicos, explica que dedicaria ali a maior parte dos esforços à explanação da própria ciência psicológica, “partindo
da base que só se pode aplicar em uma ação consciente, uma
coisa conhecida à outra conhecida” (p. 3). Dizia com isso, certamente, que a prática desacompanhada de uma teoria correspondente não poderia ser denominada de ação consciente.
Tinha ao seu lado o fato de os alunos serem formados
em ciência natural, materialista, biológica, determinista, experimental e funcional. Dotada, portanto, dos mesmos princípios
de sua psicologia. Não teria a mesma facilidade com educadores e religiosos, certamente.
Situará a jovem ciência psicológica na marcha da história.
Mais precisamente, no que diz respeito à necessidade de rendimento social, material, moral e estético, chega um momento
em que as máquinas e a organização rígida do trabalho se tornam insuficientes. Nessas condições, abria-se o interesse para o
homem que age, para as suas aptidões e, no seu entendimento,
para as leis de seu funcionamento interno. Nascia, portanto, “a
noção de coeficiente humano, noção prática na ação, teórica no
estudo” (p. 4)
Sabia que a educação, a medicina e a engenharia necessitavam dos conhecimentos da psicologia, de modo a fazerem
frente às exigências emergentes daquele tempo, uma vez que o
“coeficiente humano” passava a ser visto como o mais relevante
para melhorar o rendimento da vida social, material, moral e
estética. Por sua vez, eram as mesmas emergências que criavam demandas para que, no entorno, fosse chamada à pressa
e praticidade operatória.
De fato. Basta uma passada de olhos por Tests (1924), de
Medeiros e Albuquerque, para notar que eles despertam o interesse do autor em duas direções. A primeira, como um modo
de reduzir a falibilidade dos exames, na instrução, no comércio
e na indústria, uma vez que, objetivos, neutralizariam o poder
61
Clio-Psyché: Instituições, História, Psicologia
discricionário de professores e empregadores. O teste seria assim um instrumento objetivo de medida do conhecimento. A
segunda, como um instrumento para avaliar o grau de inteligência — o “teste mental” (ou mental test). Na escola, seria de
interesse para a formação de classes homogêneas, não apenas
para avaliar o rendimento, mas também a inteligência. Seria
igualmente pela identificação dos graus de inteligência que se
poderia reconhecer “retardados ou subnormais e tomar algumas providências a respeito deles” (p. 52). No comércio e na
indústria seria de valor para a escolha “objetiva” dos trabalhadores mais inteligentes. Diante de questionamentos teóricos,
adota a mesma linha de argumentação dos defensores dos tests:
pouco importava saber o que era inteligência, uma vez que
essa definição preliminar não era “tão imperiosa como pode
parecer” (p. 67). Afinal, testes não eram aplicados aos milhares,
mas aos milhões, “e a experiência é a suprema autoridade científica” (p. 72), sentencia. Muito prático.
Em diálogo hipotético, Radecki talvez concordasse em
parte com Medeiros e Albuquerque. Afinal, não há em seu Resumo nenhum capítulo destinado especificamente à inteligência. Esta será tratada em uma aula prática, intitulada Emprego
das experiências associativas na qualidade de tests, na qual
estava interessado em demonstrar os extensos conteúdos teóricos da associação, no escopo de uma Psychologia da vida intellectual, e ainda assim, na perspectiva de uma psicologia individual. Em um plano mais amplo, não aceitaria, nem mesmo em
tese, a afirmação de que a experiência é a suprema autoridade
científica, se tal afirmativa estiver desprovida de conceitos que
possam emprestar o sentido de ação consciente, isto é, experiência de uma coisa conhecida (prática) a outra, previamente
conhecida (teoria).
Quanto à inteligência, explica Radecki, ela ainda carecia,
no âmbito da pasicologia, de uma definição teórica exata. Irá
adotar o ponto de vista de Claparède, ao afirmar que o que nós
chamamos de inteligência “representa mais um nome sintético,
certa forma prática de manifestar a atividade psíquica, do que
62
Teoria, método e aplicação na obra de Waclaw Radecki
a definição de uma função psíquica separada ou de mecanismo especial de evolução psíquica” (p. 147). Considerava que
em um ato de inteligência poderiam participar igualmente os
mecanismos de associação, discriminação, memória, percepção,
julgamento etc., mas seria a sua efetividade específica, sua plasticidade de adaptação, que o caracterizam como ato de inteligência, “e não o conteúdo heterogêneo dos mecanismos que entram em jogo” (p. 147). Ponto de vista assemelhado apareceu
na 2ª edição de Psicologia (1936), de Plinio Olinto. Dizer que
a inteligência representa o jogo harmônico das funções intelectuais e que se caracteriza pela capacidade de adaptação, explica
Olinto, não é defini-la, “mas tem o valor de afastar as concepções que consideram a inteligência como uma única aptidão,
apenas” (p. 233).
Aptidão. De fato, Radecki reconhece que diante da necessidade de aplicação, a função psicológica deixa de ser concebida exclusivamente como função, “e começa a ser substituída
pela noção de aptidão, isto é, função avaliada sob o ponto de
vista do rendimento prático” (p. 146). Reafirma o seu rigor ao
concordar que, a partir das pesquisas das aptidões, criou-se um
novo ramo científico, a psicotécnica, mas na condição de ponte
“entre a psicologia pura e suas aplicações práticas” (p. 146).
Reagia, portanto, a qualquer exercício de aplicação prática de
psicologia, sem correspondência teórica na psicologia pura.
Parece claro que os tests para ele têm valor como método
de pesquisa científica, servindo como instrumento da psicotécnica, mas lembrando que o papel do psicologista é o de estabelecer as causas. Nessa medida, considerando qualquer experiência com test, “não podemos perder de vista os mecanismos
psíquicos predeterminantes” (p. 146). Nenhuma transigência,
portanto, com a prática desacompanhada da teoria.
À margem dessa discussão, explicará ele aos seus alunos
médicos que nenhum exame psicotécnico (aplicação das teorias
da psicologia individual e coletiva) pode dispensar a interpretação. Tal interpretação, porém, caberia apenas a quem tenha
conhecimento do psiquismo. Algo evidente aos médicos, pois
63
Clio-Psyché: Instituições, História, Psicologia
eles sempre souberam que resultados de tests de laboratório
são dados complementares aos exames clínicos. E possivelmente compreensível por parte de engenheiros, os quais, embora
desprovidos de formação biológica, estão sempre tomando decisões a respeito de relatos técnicos.
Falando aos seus alunos sobre a dificuldade metodológica de se distinguir funções psíquicas, ele afirma que o caráter
subjetivo do fenômeno psíquico impossibilitava a observação
direta dos processos psíquicos “alheios”. Assim, o psicologista
deveria limitar as suas observações às palavras, ações e manifestações orgânicas. Portanto, querendo observar a função psíquica de um indivíduo, o psicologista deveria observar o que
tal indivíduo diz, faz e o que nele acontece, isto é, o que nele
se processa organicamente.
Para interpretar apropriadamente as manifestações objetivas, o psicologista deveria ao mesmo tempo representar em si
próprio a respectiva função, “cuja representação imediata só
pode ser tirada da sua própria vida psíquica” (p. 14). Interpretar, portanto, se tornava possível pela observação extrospectiva
e introspectiva, concomitantemente.
Pouco antes de Radecki divagar com seus alunos a respeito de história, ciência, conceitos e metodologia, Isaias Alves
publicou Teste individual de inteligência (1926) — tenho diante
de mim um exemplar da 3ª edição (1932). Na introdução do
livro, diz o autor que o grau variável de inteligência complicava
a ação dos professores, pois se viam diante da necessidade de
abandonar os menos inteligentes ou de cansar os mais inteligentes com repetição de assuntos indispensáveis aos mais fracos. O
problema dos escolares repetentes residia nessa dificuldade.
Podia-se reduzir a despesa do Estado, aumentando a eficiência da escola por meio da simplificação dos métodos e pela
acomodação dos alunos em classes homogêneas, o que lhes facilitaria o progresso ao longo dos vários graus escolares. Realizações de exames da inteligência eram práticas do passado,
mas envolvendo várias medidas de faculdades isoladas, ora
predominando a memória, ora o raciocínio, ora a atenção, o
64
Teoria, método e aplicação na obra de Waclaw Radecki
que não traduziria a capacidade do sujeito. Era necessário, de
acordo com ele, organizar um exame complexo, “que ofereça
dificuldades de várias ordens, pondo em atividade as diversas
funções cerebrais, e em prova calma e habilidade do sujeito no
solver problemas mais ou menos difíceis” (p. 5). Tal exame era
o teste, citando o de Binet como o mais célebre, do qual haviam
realizadas várias revisões nos países “leaders” da “civilização”,
notadamente os Estados Unidos. Não se podia “esperar outra
orientação do gênio prático dos americanos” (p. 5). Diferenciava, decerto, testes de inteligência de testes de aproveitamento.
A apreciação da inteligência, afirma, é assunto de grande
importância para orientar a educação nacional. Afinal, o valor
econômico de um país estava em íntima relação “com a aplicação apropriada das atividades individuais às funções industriais, políticas, literárias ou científicas” (p. 13). Observava que
“entre nós” o homem inteligente era o que fazia belos discursos,
“que brilha e empolga as multidões” (p. 14), motivo de julgar
necessária a criação de um critério “positivo” para classificar
as inteligências. Pondera que esse é o “embaraço” de grande
número de psicólogos, pois entre eles há os que negam a mensurabilidade da inteligência, enquanto outros sustentam que
isso é possível pela medida de seus efeitos, em analogia com a
eletricidade. Na busca de medidas, mais do que de relações, a
inteligência ficava sendo, como historicamente sabido, aquilo
que os testes mediam. Como se, por analogia, fosse possível
definir temperatura pelo que é medido pelo termômetro. Sem
opinar sobre o embaraço dos psicólogos, boa parte do livro é
um guia prático, dirigido aos examinadores, do teste Binet-Simon-Burt. Prático.
Também aqui, em diálogo hipotético, talvez Radecki concordasse até certo ponto, uma vez que Alves sustentava-se sobre
argumentos similares aos de Medeiros e Albuquerque. Grosso
modo, porém, justamente por não saber precisar o que seria a
inteligência, faria ressalvas em medi-la ou em aceitar medidas de
fenômeno desconhecido como sinônimo de inteligência. Preferiria, talvez, investigar a inteligência por meio das várias “faculda65
Clio-Psyché: Instituições, História, Psicologia
des isoladas”, como diria Alves — embora por ele denominadas
de funções –, uma vez que previamente definidas, conhecidas.
De modo geral, por razões teóricas e metodológicas, Radecki tinha sérias restrições ao que se fazia acompanhar do
adjetivo “prático”. Esta palavra, como exigência dirigida à ciência, “degenerou em bruto imediatismo” (p. 381), sentenciou.
Também ele criava e se utilizava de teste, na condição de um
entre outros instrumentos de seu laboratório. Sabia que qualquer experiência psicológica pode ser transformada em test
quando o fazemos “com o intuito de comparar os processos de
um indivíduo com os processos de outros” (p. 145). Dizia que
a palavra teste estava se tornando “moda”, perdendo o caráter
de método científico e servindo aos leigos “como prova de eficiência ativa destacada do fundo funcional” (p. 146). Não dizia
isso de Medeiros e Albuquerque e de Isaias Alves, certamente,
aqui trazidos para efeito de um diálogo imaginário.
Em laboratório, explicará Radecki a seus alunos que o
psicologista ou psicólogo (Radecki emprega os dois termos
indistintamente) provoca artificialmente certo fenômeno, de
modo metodicamente planejado, “em condições que possivelmente facilite e torne acessível ao investigador a observação
desse fenômeno” (p. 21). Dai a necessidade de aparelhos destinados à produção de excitantes, bem definidos do ponto de
vista de sua “qualidade e intensidade psíquicas” (p. 26). Excitantes sensoriais (visuais, auditivos, tácteis, olfativos, dolorosos
etc.), como também os mais complexos, com material destinado a ser representado, percebido, fixado na memória, discriminado, associado etc. Afinal, quando comparada à química e
física, reconhecerá que uma das dificuldades experimentais da
psicologia repousa na impossibilidade de isolamento da função
a ser submetida à experimentação.
Os laboratórios com fins puramente práticos especializariam certos domínios de aplicação imediata, dando origem à
psicotécnica experimental, servindo para exames psicológicos
de aptidões, elaboração técnica da organização do trabalho,
da produtividade e da tática militar. Na concepção de Radecki,
66
Teoria, método e aplicação na obra de Waclaw Radecki
cada laboratório de psicotécnica deveria estar subordinado a
um laboratório de psicologia geral, e qualquer exame psicotécnico, que visasse consequências práticas, não poderia dispensar
um prévio exame psicológico. Nada prático.
Ao se referir então ao emprego de testes, criticava os erros cometidos, mas não a aplicação dos testes em si. Ressalta
que quando Kräpelin construiu seus cadernos de cálculos, para
pesquisar a atenção voluntária, não tinha em vista criar um
teste psicológico, mas realizar pesquisa. Ressalta ainda que, em
épocas anteriores, se falava em teste de atenção, de discriminação e de memória; agora, no entanto, se fala em “test de
fulano ou test de sicrano” (p. 391). Isso acontecia porque o autor, “criando um quebra cabeças mais ou menos interessante ou
espirituoso” (p. 391), nem se preocupa em explicar o objetivo
psicológico aos que vão aplicar o teste.
Evidente que esses preceitos todos não estavam ao alcance,
preocupação ou desejo de quem não tinha por objetivo construir uma ciência. Muito menos uma ciência experimental e menos ainda uma ciência com um pé na biologia. Isso tudo seria
apenas estorvo para quem estivesse empolgado apenas com o
uso imediato, com a aplicação.
Testes despertavam interesse no Brasil, em especial entre
educadores. O livro mais célebre de Binet & Simon, La mesure
du développment de l’intelligence chez les jeunes enfants, foi traduzido por Lourenço Filho, sendo publicado com o título Testes
para a medida do desenvolvimento da inteligência (1929). No
prefácio da versão brasileira, o tradutor escreveu que, entre outros valores, a obra “acresce o do conhecimento de um processo
de medida psicológica sem aparelhamento complicado, podíamos dizer, sem aparelhamento algum, que habilita todo mestre a
tentar a experimentação psicológica, por si só, e a observar por
ela, melhormente, seus discípulos” (p. 6). Prático. Como colaboradores das várias tentativas de adaptação dos testes Binet e
Simon no país, cita Manoel Bomfim e Isaias Alves, entre outros.
Cabe lembrar que Lourenço Filho ficou conhecido pelos
Testes ABC, cujo epicentro de pesquisa foi — embora apenas
67
Clio-Psyché: Instituições, História, Psicologia
como locus — o laboratório de psicologia na Escola Normal de
São Paulo, por volta de 1925, em meio aos aparelhos e instrumentos utilizados por Ugo Pizzoli, durante os exatos seis meses
que ali permaneceu, em 1914.
As opiniões de Radecki sobre testes aplicados por professores não eram em nada elogiosas. Dirá que Goddard defendia
a ideia de professores apliquem testes nas escolas e que, “para
o teste de Binet, bastam seis semanas de prática para poder um
leigo aplica-lo” (p. 392). Dirá também que Claparède defendia
a ideia dos testes nas mãos de pedagogos, afirmando: “tanto
melhor — vamos forçar os professores a conhecerem a psicologia” (p. 392). De fato, escreverá Radecki, sem forçar os professores a conhecerem essa ciência, “dando-lhes séria instrução
psicológica, não se pode exigir deles nenhum proveito na aplicação dos testes”. Continua: “admitindo mesmo que depois de
seis semanas de prática, como quer Goddard, eles apliquem os
testes direitinho, quem irá interpretar os resultados e... quem
tirará proveito disso para as crianças investigadas?” (p. 392).
Manoel Bomfim relata (Bomfim, 1928) que Binet, de quem
fora aluno na França, em 1902, exigia “além do conhecimento
teórico, longa prática de experimentação psicológica ou prática
especial em laboratório de pedagogia, ou uma aprendizagem
como ajudante de um experimentador, durante pelo menos cinco semanas, tendo acompanhado o exame individual em vinte crianças” (p. 8). Existiam, portanto, as tais poucas semanas,
mas, na origem, mais do que isso. Não é sem razão que seu livro,
O methodo dos tests, é leitura cativante. Além do agradável didatismo do autor, encontra-se nele, como em Radecki, uma reverencia pelo “método”, mais do que pela utilidade da ferramenta.
O próprio título vem acompanhado do interesse principal do
autor pelos testes: com aplicação à linguagem no ensino primário. O livro é um vibrante compartilhamento das pesquisas a
respeito do “método” dos testes, iniciados em 1921, juntamente
com Maurício de Medeiros, para o estudo das possibilidades
dos testes no ensino primário. Cauteloso nos procedimentos,
como Radecki, lembrará que “não devem tentar o emprego dos
68
Teoria, método e aplicação na obra de Waclaw Radecki
testes quem não tem a noção bem definida e precisa do que significam essas provas, e do que se pode obter por meio delas” (p.
8). Dirá, e de modo emblemático, que “se o teste é uma prova
de inteligência, ele tem que ser apreciado inteligentemente” (p.
5). Não foi por acaso que ele é o único autor brasileiro citado
no Tratado, de Radecki, embora em plano conceitual, sem nada
a ver com testes — está ali por conta de Pensar e dizer (1923).
Em 1928, Radecki publica Teste de intelligencia para
adultos. Apresenta esse “método” como contribuição técnica,
“na esperança de que, modificado, adaptado e aperfeiçoado por
outros psicólogos, possa prestar-lhes os mesmos serviços que
tem prestado em minha prática” (p. 346). O artigo é demasiadamente extenso para ser aqui reproduzido, e complexo para
ser resumido em poucas linhas, sem risco para a compreensão.
Para Radecki, o que o homem faz para resolver problemas não é a inteligência em si, mas os efeitos dela. Assim entendendo, apontará ao psicólogo o interesse pelo que torna o
fundo psíquico capaz de atos de inteligência, e não pela sua
mera medida de eficiência.
Para os interessados será possível identificar nesse artigo
o discriminacionismo afetivo. De qualquer modo, está à disposição de quem desejar replicá-lo, pois descrito em detalhes,
de modo a sabermos, hoje, se de fato dotado ou não de valor. Fica aqui reafirmado o convite de Radecki para quem por
ele se interessar.
Referências
Alves. I. 1932. Teste individual de inteligência, 3ª edição. Rio de Janeiro: Typographia d’A Encadernadora.
Bomfim, M. 1928. O methodo dos tests. Rio de Janeiro: Escola de
Aplicação.
Bomfim, M. 1923. Pensar e dizer: estudo do symbolo no pensamento
e na linlguagem. Rio de Janeiro. Casa Electros.
Centofanti, R. 1982. Radecki e a psicologia no Brasil. Psicologia, Ciência e Profissão 1: 2-50.
69
Clio-Psyché: Instituições, História, Psicologia
____. 2003 O discriminacionismo afetivo de Radecki. Memorandum
5: 94-104.
Lourenço Filho, M. B. 1929. Prefácio do tradutor. In: A. Binet & T.
Simon. Testes para a medida do desenvolvimento da inteligência. São Paulo: Melhoramentos.
Medeiros e Albuquerque, J. J. C. C. 1924. Tests. Rio de Janeiro: Francisco Alves.
Olinto, P. 1936. Psicologia, 2ª edição. Rio de Janeiro: Guanabara.
Penna, A. G. 1992. História da psicologia no Rio de Janeiro. Rio de
Janeiro: Imago.
Radecki, W. 1928. Test de intelligencia para adultos. In: Trabalhos de
psychologia [extraído dos Annaes da Colonia de Psychopathas
1: 323-46]. Rio de Janeiro: Papelaria e Livraria Gomes Pereira.
____. 1928-9. Resumo do curso de psychologia, vários fascículos. Rio
de Janeiro: Imprensa Militar.
***
70
4
Contributos para a história da afirmação da
psicologia em Portugal:
o papel de Alves dos Santos e de Sílvio Lima
Teresa Sousa Machado
Introdução
Em Portugal, não se impôs ainda a tradição de narrar
a “sua” história da psicologia. Diversos fatores poderão explicar essa ausência, que contraria tendências de muitos outros países os quais, como refere Salas (2012), nos legaram
textos muito significativos a respeito da “história da psicologia a nível mundial” — textos que, eles próprios, se tornam documentos de história da psicologia. Neste trabalho,
propomos narrar uma pequena “história da psicologia portuguesa”, assinalando os seus primeiros passos em estudos
experimentais que visam afirmar a possibilidade científica
dos estudos psicológicos.
Concordando com Jesuíno (1994), quando afirma que
assinalar começos absolutos de uma ciência é sempre um pouco arbitrário, não pensamos cair em contradição quando nos
propomos a procurar marcos da autonomização da psicologia científica em Portugal. Destacaremos os primeiros anos do
século XX como período significativo para a primeira tentativa de afirmação do cariz científico da psicologia entre nós.
Ou seja, à semelhança das tendências emergentes no restante
da Europa (Schultz & Schultz, 1992 [1969]; Goodwin, 2005),
encontramos em Portugal, mesmo que com certo “atraso”,
estudos no campo da psicologia experimental que visam, explicitamente, contribuir para a afirmação desta ciência, nomeadamente, no meio académico. Não será por acaso que, em
uma outra linha, i.e., no campo médico, também no início do
séc. XX, e curiosamente, no mesmo ano em que seria criado o
primeiro laboratório de psicologia experimental em Portugal,
71
Clio-Psyché: Instituições, História, Psicologia
se verá a afirmação da tendência médico-pedagógica, com forte
pendor assistencial; mas essa é “outra história”, a ser narrada
em outro trabalho.
Recordemos, em primeiro lugar, que a oficialização do
ensino superior público de psicologia em Portugal ocorreu
apenas em 1976 — após, portanto, a revolução de abril de
1974. Para alguns observadores (mas não todos), a longa vigência de um regime político ditatorial teria contribuído para
essa tardia criação (Nogueira et al., 2006). Antes disso, é
certo, alguns profissionais lidavam com questões psicológicas, nomeadamente aplicações, entre a Primeira e a Segunda Guerra Mundial, em contexto militar. Nesse sentido, foi
criado o Instituto de Orientação Profissional (IOP), em 1925,
distinguindo-se as palestras de Faria de Vasconcelos a respeito das relações entre psicologia e a atividade militar (1937).
A psicologia será igualmente “usada” para fins de recrutamento militar durante a Guerra Colonial, iniciada em 1961,
em Angola, alastrando-se logo depois para Moçambique e
Guiné. Serão, aliás, as contingências da seleção inerentes à
Guerra Colonial que entravarão o projeto inicial do Centro
de Estudos Psicotécnicos do Exército (C.E.P.E.), criado em
1960, após a visita de uma equipe de oficiais aos Centros de
Recrutamento e Seleção na Bélgica, na Alemanha e na França, visando a criação de centros semelhantes em Portugal.
Ainda nos anos 1960, vemos surgir um curso de graduação
(licenciatura) em psicologia, em uma instituição privada, o
Instituto Superior de Psicologia Aplicada (ISPA), pertencente
a congregações religiosas; e um Centro de Investigação Pedagógica (1963), sustentado pela Fundação Calouste Gulbenkian e que impulsionará a investigação aplicada à educação e ao desenvolvimento.
Regressando ao início “formal” do ensino público da
psicologia, podemos aceitar, juntamente com Jesuíno (1994) e
Nogueira et al. (2006), que a sua tardia institucionalização em
Portugal se deverá mais às condições económicas do país e à
inércia estrutural do sistema académico e social, do que, verda72
Contributos para a história da afirmação da psicologia em Portugal
deiramente, ao regime ditatorial. Com efeito, do ponto de vista
institucional, em 1911, logo após a proclamação da República
(1910), surgem em Lisboa e Coimbra (no Porto, em 1919) as
primeiras Faculdades de Letras e Escolas Normais Superiores,
sendo que estas últimas deveriam “promover a alta cultura pedagógica”, capacitando professores para as Escolas Normais
Primárias e os Liceus, além de preparar inspetores de ensino
(Borges, 1985b; Gomes, 1990).
Em todos esses casos, foram desde logo criadas (definidas
no referido decreto de 21/5/1911) as disciplinas de “Psicologia Experimental”, no curso de Filosofia, as quais deveriam ser
complementadas por estudos laboratoriais (Gomes, 1990); e
disciplinas de “Pedologia” (com exercícios de pedagogia experimental) e “Psicologia Infantil” (para os futuros professores)
(Bairrão, 1968; Borges, 1986; Gomes, 1990). Tal determinação
se manterá nos decretos posteriores (i.e., de 1930 e de 1957),
constatando-se que o ensino oficial da psicologia “cai” no campo da filosofia. Assim, embora proposta sob decreto, o ensino de psicologia, de acordo com as reformas de 1911, 1930
e 1957, não chega a forjar o estabelecimento de uma licenciatura própria, o que leva Bairrão a afirmar que tais “reformas”
nada trouxeram de novo a respeito do ensino de psicologia,
já que esta continuava a ser uma “psicologia para filósofos e
educadores e não psicologia para psicólogos” (Bairrão, 1968,
p. 742). Opinião semelhante foi anteriormente expressa por
Sílvio Lima (Lima, 1949), ao comentar que a psicologia até
então “praticada” em Portugal se devia fundamentalmente a
médicos, psiquiatras, sociólogos, filósofos e pedagogos, e não
a psicólogos profissionais (com os quais ainda não contávamos,
acrescentamos nós).
Relativamente a essa psicologia ensinada nas Faculdades de Letras, Bairrão (1968) sintetiza: “a) a Psicologia não é
ensinada num corpo próprio de disciplinas, mas integrada na
Filosofia; b) o seu ensino visa sobretudo a formação de profes-
73
Clio-Psyché: Instituições, História, Psicologia
sores;1 c) existem importantes limitações legais ao ensino da
Psicologia”, pois falham domínios fundamentais da mesma.
Compreende-se assim que Isolinda Borges possa afirmar que “na verdade a Psicologia em Portugal ainda não tem
uma história em termos que possamos considerar consistentes”
(Borges, 1983, p. 3). Que a autora o refira em um dos primeiros artigos de uma série sobre a história da psicologia no país
não será paradoxal, considerando que as incursões na área
eram, até então, fragmentárias; e que os primeiros “estudos
experimentais”, em vez de sedimentar um cariz científico — à
semelhança do que fizeram outros laboratórios na Europa, no
final do século XIX, início do século XX — , parecem, como
veremos, não ter deixado continuadores diretos. Não obstante
o que escreveu Sílvio Lima (Lima, 1949), poderíamos aceitar
igualmente a sistematização de Gonçalves e Almeida (1995,
apud Azambuja et al., 2007), quando dividem a história da
psicologia portuguesa em três períodos: pré-académico (do início do séc. XX à criação dos primeiros cursos de graduação),
acadêmico (após 1975) e profissional (atualmente).
Em resumo, desde o início do século XX que se conhecem incursões várias no campo da psicologia em Portugal. Porém, a descontinuidade nos esforços da sua autonomização em
meio académico não favoreceu a sua afirmação (Lima, 1957).
Importa assim voltar um pouco ao início para compreender o
que se passou.
1. A propósito da psicologia que é ensinada nos cursos pedagógicos, das Escolas Normais Superiores, destinados à formação de professores do ensino secundário, Sílvio
Lima (Lima, 1949) é particularmente crítico. O autor repudia fundamentalmente a ausência
de treino prático e contacto com a realidade dos alunos, já que a formação não saía da
especulação em meio académico. Afirma o autor: “na estrutura geral dos Cursos Pedagógicos reside um vício inato metodológico: a desintegração radical, estabelecida por lei,
entre o magistério teórico universitário e o magistério prático liceal” (Lima, 1949, p.
1490). Na verdade, embora estivessem previstas, no decreto de 19/8/1911, atividades
práticas — i.e., exercícios de pedagogia experimental e estudos de psicologia infantil,
essas atividades eram conduzidas no Laboratório de Psicologia (anexo às Faculdades
de Letras) (Gomes, 1990), sem incluir visitas a escolas; ao contrário, por exemplo, do
que Sílvio Lima observara na Suíça.
74
Contributos para a história da afirmação da psicologia em Portugal
O experimentalismo-crítico na psicologia do
início século XX em Portugal
Seguindo agora a sistematização de Sílvio Lima (Lima,
1949), teríamos em Portugal um primeiro período de mera especulação teórica — entre meados do século XIX e início da
Primeira Guerra Mundial. Nesse período, encontramos uma
psicologia associacionista, determinista e atomística, essencialmente positivista, do ponto de vista epistemológico (Bairrão,
1968). Os contributos para tal psicologia — uma psicologia
“científica-natural” — dão-se, sobretudo, por vias indiretas das
ciências médicas; destaque para nomes como os dos médicos
Júlio de Matos, Miguel Bombarda e Magalhães Lemos, entre
outros (Bairrão, 1968). Todos eles “partilhando vivamente da
influência de Augusto Comte, delimitando a psicologia entre
estruturas fisiológicas e psicológicas” (Borges, 1985a, p. 19).
Para Sílvio Lima (Lima, 1957), a adesão desses grandes vultos da medicina portuguesa à tese comteana negará a própria
essência da psicologia; negação que podemos traduzir nas palavras de Miguel Bombarda, quando define esta ciência como
“a ciência física do que se chama espírito” (resultando este da
função dos átomos).
A partir dessa linha de orientação, dos “grandes médicos”, emergem — também em Portugal — repercussões várias
dos “excessos” da influência fisicista da consciência; como, por
exemplo, a condenação de atos que fogem à “norma”; i.e., à
norma desejada por “autoridades” (sejam estas os pais, os maridos, os tutores), auxiliados pelas “autoridades médicas”, e
normas essas balizadas por Lombroso, entre outros, a quem alguns dos alienistas portugueses da época pediram para comentar, confirmando, os seus pareceres (cf. Curado, 2007). Pois que
também em Portugal, na década de 1880, se fez sentir o fascínio
inebriante pela “possibilidade” de descrever tipos de pessoas
por meio de “mensurações da cabeça e dos ossos” (Madureira,
2003, p. 285). Assim, em finais do século XIX, início do século
XX, o recurso à ciência “objectiva do espírito” legitimará uma
dada concepção de inimputabilidade, permitindo julgar como
75
Clio-Psyché: Instituições, História, Psicologia
“insano” (retirando-lhe direitos) aqueles que contrariam o que
seria esperado (Madureira, 2003; Curado, 2007). Mas essa já
seria também outra história, pois “não há uma história da psicologia, mas inúmeras histórias e modos de narrá-las” (Figueiredo, 2011, p. 9).
Em um segundo período (entre 1912/14 e 1941) — sobre
o qual nos debruçaremos agora –, destacam-se duas atitudes:
o experimentalismo crítico e o médico-pedagogismo (Lima,
1949; Bairrão, 1968). É no âmbito do “experimentalismo crítico” que encontramos o contributo de Alves dos Santos e de Sílvio Lima — professores da Universidade de Coimbra e autores
de obras de psicologia experimental (publicadas na década de
1920) que incidem sobre o estudo da memória. Além de pioneiras, essas obras se tornaram marcos históricos (Pinto, 1993),
tendo de certo modo inaugurado, ainda que sem seguidores
imediatos, a psicologia experimental em Portugal.
Um terceiro período (a partir de 1941) será descrito por
Sílvio Lima como o que traduz a emergência das “tendências da
psicologia ‘compreensiva’, humanística, biotipológica” (Lima,
1949).
Vejamos então, resumidamente, a razão pela qual as obras
de Alves dos Santos e de Sílvio Lima se tornaram marcos na
história da psicologia portuguesa.
Alves dos Santos
Augusto Joaquim Alves dos Santos (1866-1924) recebeu
ordens sacras no Seminário de Braga; obteve o grau de doutor em Teologia, em 1900, e, em 1916, doutorou-se em Letras.
Foi professor na Faculdade de Teologia e, com a sua extinção,
em 1911, transitou para a Faculdade de Letras, em Coimbra,
onde ministrou várias disciplinas, incluindo Pedagogia, Filosofia e Lógica, Psicologia Geral e Psicologia Experimental.
Essas disciplinas foram instituídas, como referimos, por decreto, no contexto da reforma universitária e sob influência
da Primeira República.
76
Contributos para a história da afirmação da psicologia em Portugal
A Constituição Universitária, de 19/4/1911, previa que
as universidades de Coimbra, Lisboa e Porto (as duas últimas
criadas pela Lei da República, de março de 1911) integrariam,
entre outras, uma Faculdade de Letras (substituindo, assim, a
antiga Faculdade de Teologia) e uma Escola Normal Superior
(onde seriam ministradas as “primeiras” disciplinas psicológicas) (Gomes, 1990). Alves dos Santos foi ainda membro do
Conselho Superior de Instrução Pública, sendo apontado como
o principal autor da reforma do ensino primário, em 1911. Na
verdade, o autor havia “há muito pouco” repudiado o ideal
monárquico, tendo-se convertido ao republicanismo, traduzindo-se este nomeadamente no ideal da defesa da educação como
fator de regeneração do país (Carvalho, 2011). É considerado
um pioneiro da psicologia experimental no país.
No contexto da reforma de 1911, por ocasião da introdução da disciplina Psicologia Experimental, na secção de Filosofia, na Faculdade de Letras, em Coimbra, Alves dos Santos
é enviado “em missão científica ao estrangeiro” para adquirir
conhecimentos sobre o assunto e equipar o laboratório correspondente, o qual seria inaugurado em fevereiro de 1913 (Gomes, 1990; Pinto, 1993; Abreu & Oliveira, 1999).
Em 1912, Alves dos Santos foi a Genebra, onde estagiou no recém-criado Instituto Jean-Jacques Rousseau, com
E. Claparède, que tanto o influenciaria; visitou ainda diversas escolas, estudando o sistema de “instrução e educação na
Suíça” (apud Gomes, 1990). Assiste a diversas palestras na
Universidade de Genebra. Segue para Paris, onde visita laboratórios de psicologia e fisiologia, nomeadamente o Laboratório Clínico de Neurologia, na Salpêtrière, e os Laboratórios
de Fisiologia e de Psicologia, da Escola de Altos Estudos, na
Sorbonne. É recebido por Henri Piéron (colaborador de Binet,
falecido no ano anterior), sendo levado a conhecer o Laboratório de Pedagogia Normal de uma escola primária, onde
pôde observar os processos utilizados para medir as aptidões
mentais e morais das crianças, retornando depois a Genebra
(Lima, 1949; Gomes, 1990). O que recolheu nessas visitas
77
Clio-Psyché: Instituições, História, Psicologia
foi decisivo para a orientação que viria a imprimir no laboratório de Psicologia e Pedagogia Experimental, em Coimbra
(que refletirá as preocupações desenvolvimentais e pedagógicas do Instituto J.-J. Rousseau). Foi também nesse contexto
que o seu nome se fixou na história da psicologia em Portugal
(Borges, 1985b; Gomes, 1990). Recorde-se que, como referem Campos & Nepomuceno (2011), o Instituto Rousseau
era “um dos principais centros de referência sobre o movimento da Escola Nova na Europa, envolvido na crítica à educação tradicional e na defesa de mudanças na educação que
tornassem a escola mais humana e mais interessante para as
crianças” (p. 245). Daí se constituir em um local de formação/
inspiração fundamental, estando na vanguarda da formação
de educadores e pesquisas na psicologia e na pedagogia (Campos & Nepomuceno, 2011).
Cabe ressaltar que quando partiu de viagem para Paris,
Alves dos Santos ia céptico em relação ao proveito das “medidas experimentais” realizadas nos laboratórios, posto que tinha
conhecimento do descontentamento sentido face às “possibilidades” da psicofísica deslindar os mistérios da psique. Registra
no relatório de sua viagem: “(...) o meu espírito sofria de uma
certa perplexidade acerca da legitimidade da psicometria e do
seu valor real, como método de análise dos processos psíquicos” (apud Gomes, 1990, p. 14). Posteriormente, porém, registra no livro Psicologia experimental e pedologia (1923) a sua
conciliação com as possibilidades da psicologia experimental,
refutando, todavia, o paralelismo entre fenómenos mentais e
fenómenos físicos. Mas, não será necessária a redução de fenómenos mentais a fenómenos físicos para que se legitimem os
estudos experimentais da consciência. Ou seja, não será necessário pressupor que cada fenómeno psíquico tenha uma “tradução física”; e o fato de tal correspondência não ser esperada
não invalida o interesse nas “medidas”, visto que “reconhecendo, no estado presente dos nossos conhecimentos científicos, a
heterogeneidade da consciência, afirmamos a possibilidade de
existirem entre a vida desta e a atividade do sistema nervo78
Contributos para a história da afirmação da psicologia em Portugal
so, relações fixas, proporções definidas” (Santos, 1923, p. 14).
Está assim garantida a legitimidade das medidas “psicofísicas”
para o estudo dos processos mentais. E Alves dos Santos reforça: “(...) nós sustentamos que é possível medir, embora indireta
e mediatamente, o fenómeno psíquico, sem que essa medida
haja de ser tida como ilegítima” (1923, p. 14-15; itálicos no
original). Como? — pergunta e responde o autor:
A medida, em Física, supõe sempre uma grandeza,
ou quantidade concreta (...), e consiste em comparar
uma grandeza dada, com outra, da mesma espécie
que se toma por unidade. É claro que este conceito
de medida envolve a convicção de que, fora da consciência, existe uma realidade; alguma coisa, que dela
se distingue, e que por ela pode ser apreciada.
A verdade, porém, é que nós, do mundo externo da
matéria, (...), nada mais temos, nem conhecemos, do
que impressões dos sentidos, ou sensações. O mundo, de facto, para nós, não passa duma ‘construção’,
empreendida pela dinâmica mental, sobre essas sensações, ou à custa exclusiva daquelas impressões,
imediatas, ou acumuladas, dos nossos sentidos. (...)
De modo que, em última análise, poder-se há sustentar que não existe medida que não seja psíquica,
por não haver grandeza que não seja subjectiva (...)
(Santos, 1923, p. 15-16; itálicos no original).
Alves dos Santos permanecerá à frente do Laboratório
de Psicologia Experimental — o único em Portugal na época
(Gomes, 1990) — durante dez anos; quando saiu, em 1923,
deixou um relato de uma série de experiências ali realizadas.
Os seus trabalhos a respeito particularmente da memória serão considerados por Amâncio da Costa Pinto (Pinto, 1992,
1993, 2002), ao lado de trabalhos de Sílvio Lima sobre o mesmo tema e igualmente realizados nos anos 20, como pioneiros
no campo da psicologia experimental em Portugal. O projeto
79
Clio-Psyché: Instituições, História, Psicologia
inicial de Alves dos Santos para o livro ficará, todavia, incompleto — o autor morre em 1924 –, não vindo a incluir todos
os capítulos previstos relativamente aos trabalhos de investigação no campo da pedologia. Assim, ficaram por publicar os
seguintes capítulos (sobre estudos realizados) previstos pelo
autor (cujos títulos nos permitem antever as preocupações e
trabalhos de cariz psicopedagógico em curso no início do século XX, na Universidade de Coimbra): 1) “Pedologia Somática:
a puberdade física dos rapazes em Portugal”; 2) “Inquéritos
psicográficos do laboratório de psicologia: o génio da eloquência”; 3) “Modelos de exames psíquicos, efectuados no laboratório, sobre crianças anormais e sobre atrasados pedagógicos,
de escolas primárias de Coimbra” (ver Santos, 1923, p. 207).
Quanto ao capítulo que o autor efetivamente escreveu, diz respeito a relatos e observações de experiências — realizadas entre
1913 e 1914 — a respeito de sugestibilidade em crianças. Tais
trabalhos são inspirados diretamente nos relatos de monografias recebidas da França, de investigações conduzidas pelos discípulos de Binet, no laboratório da Sorbonne (Santos 1923).
O propósito da experiência relatada — efetuada em 1914, com
meninas de uma escola primária de Coimbra — consistia em
“(...) averiguar não a existência da sugestibilidade, porque esta
é incontroversa; mas a relação que existe entre a sugestibilidade, e a fisionomia psíquica, ou a estrutura mental das pessoas,
em que se verifica” (Santos, 1923, p. 190; sublinhados no original). As crianças tinham entre 9 e os 13 anos, e o material da
experiência envolvia desenhos de linhas, comparação de pesos,
cores e indução capciosa. É interessante observar que o autor
recorre a informações dadas pela professora a respeito de diversas caraterísticas das crianças (e.g., notas relativas ao nível
escolar, “nível mental”, “temperamento” e o que designa por
“feição psíquica” de cada uma); caraterísticas essas que hoje,
nos estudos sobre o tema (sugestionabilidade interrogativa) encontramos avaliadas de modo mais “controlado”, por meio de
questionários, os quais, ainda que elaborados por processos
sofisticados, visam, não obstante, avaliar as mesmas variáveis
80
Contributos para a história da afirmação da psicologia em Portugal
(e.g., Chae & Ceci, 2006; Lambe et al., 2008). Na sessão inicial das experiências, foram efetuados ainda exames psicofísicos dos sentidos (visão e audição), tendo sido a eles explicado,
cuidadosa e pormenorizadamente, o que iria ser feito. Das conclusões, o autor destaca:
“a) a sugestibilidade é um facto determinado por influências que podem derivar quer do próprio indivíduo,
como de causas externas; b) essa atitude diminui com
a idade; c) manifesta-se em razão inversa da inteligência e da autonomia da vontade” (Santos, 1923, p.
205-6).
Note-se que, não considerando a forma dos termos empregados pelo autor, as ideias subjacentes permanecem as mesmas, (re)confirmadas em estudos contemporâneos com uso de
metodologias mais apuradas (e.g., Melnyck et al., 2007) — i.e.,
100 anos mais tarde e impulsionadas hoje pelas mudanças de
princípios que regem o sistema judicial, as quais permitem o
testemunho de crianças em tribunal, vimos reafirmada a pertinência do tema de investigação experimental aflorado por Alves dos Santos (Lamb et al., 2008; Costa & Pinho, 2010).
Sílvio Lima
Sílvio Vieira Mendes Lima (1904-1993) licencia-se em
Ciências Históricas e Filosóficas, na Universidade de Coimbra, com a dissertação “O Ensaio sobre a ética de Guyau nas
suas relações com a crise moral contemporânea”, apresentada em 1927 e cujo brilhantismo levará os seus professores a
convidá-lo a ingressar na carreira universitária (Ferreira da Silva, 1979). A partir de 1929, inicia a regência, na faculdade de
Letras, das disciplinas de Psicologia, Filosofia e História; em
1930, com a criação da Seção de Ciências Pedagógicas, será encarregado de uma série de disciplinas no domínio da psicologia.
A carreira universitária, porém, seria interrompida em 1935,
81
Clio-Psyché: Instituições, História, Psicologia
expulso pelo regime político que não tolerava os seus ensaios
críticos; quando é readmitido, é impedido de fazer concursos
acadêmicos, o que impede o seu progresso na carreira (Ferreira da Silva, 1979, 2002; Carvalho, 2011). Mas, antes dos
desencontros entre o “regime político totalitário, despótico e
intolerante e uma compleição espiritual que rejeita todo o dogmatismo em nome do espírito crítico” (Ferreira da Silva, 2002,
p. XI), ele parte para a Universidade de Paris, onde já havia
frequentado cursos de férias, indo depois para Genebra, onde
conduzirá, no laboratório do Instituto Jean-Jacques Rousseau
e em uma escola primária (École du Petit Village Suisse), sob
orientação de E. Claparède, P. Bovet e Hélène Antipoff, entre
1927 e 1928, uma série de estudos experimentais sobre a recognição. Esses trabalhos, precedidos de uma exposição teórica
crítica acerca de 11 teorias sobre a recognição, darão corpo
à parte experimental da sua tese de doutorado, “O problema
da recognição. Estudo teórico-experimental” (1928), apresentada à Faculdade de Letras, na Universidade de Coimbra. Defendida em 29 e 30/1/1929, será considerada a primeira tese
de doutorado em psicologia experimental em Portugal (Pinto,
1992, 1993; Ferreira da Silva, 2002, 2004), tornando-se assim
um marco histórico.
Tal como Alves dos Santos, Sílvio Lima atribui um “lugar
de relevo” à memória, retomando, do primeiro autor, a ideia de
que será ela que dota de sentido a personalidade, povoando-a
construtivamente dos conteúdos que consubstanciam cada eu
particular (Lima, 1928; Pinho, 1993; Pinto, 1993). Como refere Pinho, a memória é (em Sílvio Lima) “(...) perspectivada
em articulação com a identidade do eu e a recognição funda
a personalidade, garantindo-lhe a sua dimensão prospectiva”
(1993, p. 32). E, citando, com a autora, as palavras de Sílvio
Lima, encontramos a sua tese fundamental:
“O que para nós constitui a memória como memória,
é, não a reprodução automática ou reflexa... do já
vivido ou experimentado, mas a recognição do facto
82
Contributos para a história da afirmação da psicologia em Portugal
presente como tendo feito e fazendo ainda parte da
nossa vida ulterior” (Lima, 1928, apud Pinho, 1993,
p. 32).
O autor é explícito ao defender a sua tese: “Sem recognição não existe propriamente memória, mas inframemória;
numa palavra, existe hábito” (Lima, 1928, p. 191). A descrição
que Sílvio Lima (1928) nos deixa das experiências2 nas quais
mostra a ideia da superioridade do poder da recognição sobre
o da reprodução, bem como o “efeito da posição” — i.e. a tendência para se “gravar mais profundamente na memória” o
primeiro e último item de uma situação/experiência — torna-se
em si mesmo um interessante documento da história da psicologia, visto que encontramos como “sujeitos” das experiências
nomes como Antipoff, Claparède, Bovet,3 e outros investigadores de várias nacionalidades que se encontravam então no
Instituto Jean Jacques Rousseau. Mas, tal como as experiências
anteriores, não é também ainda esta experiência que possibilitará ao autor optar por uma ou outra das explicações teóricas
2. Encontramos “testes” de reprodução e recognição de “palavras”, “sílabas sem sentido”, “quadros” (e.g. paisagens, casas).
3. Vejamos, por exemplo, o “teste dos quadros”, no qual é pedida a identificação/
recognição — entre uma série de 30 quadros — de cada um dos quadros apresentados
previamente durante cinco segundos, enquanto o sujeito, simultaneamente, cumpria a
tarefa de repetição regressiva de uma série de números. Destaca Sílvio Lima dois dos
fatores que sobressaem como significativos na tarefa de recognição: a) o fator emotivo
e b) o fator intelectual ou representativo; sendo o primeiro traduzido, e.g., nas “(...)
impressões vagas, fugitivas mais ou menos afetivas de que os diversos teóricos impressionistas falaram (...), sentimentos de beleza ou harmonia, de familiaridade, de
estranho, (...)” (Lima, 1928, p. 255). Torna-se duplamente interessante ler as descrições
(i.e., “exame introspectivo”, nas palavras de Sílvio Lima) dos sujeitos à medida que
reconhecem os quadros — sabendo que entre tais sujeitos se encontram grandes nomes da história da psicologia que, aí, se oferecem como “sujeitos de experimentação”.
Exemplifiquemos: a) “Estou incerta. Fixei apenas um pormenor (détail): uma árvore
que se estorcia ao vento. (...). Como há dois quadros com duas árvores torcendo-se
sob o vento, não posso dizer se é este ou aquele” [afirmação de Antipoff]; “Certo. Já
vi isto. A gravura impressionou-me por causa das minhas recentes experiências sobre
a profundidade” [afirmação de Claparède]; b) “Sim, já visto. A imagem da ribeira à
direita. O resto do quadro não o pude fixar devido à dispersão da atenção produzida
pela operação dos números. Os números incomodaram-me muito, porque estou na
Suíça apenas à quatro meses” (Lima, 1928, p. 256-8).
83
Clio-Psyché: Instituições, História, Psicologia
vigentes (1ª parte da tese) — nomeadamente entre a primazia do
fator afetivo (teses impressionistas) ou a primazia intelectual/
representativa, acerca dos “elementos possíveis que entrarão
no processo recognitivo” (Lima, 1928, p. 259). Seguem-se assim outras experiências, com distintos materiais. O “teste dos
números”, por exemplo, do qual continuam a participar Bovet,
Antipoff, Claparède, entre outros, confirma (ao confrontar os
dados com o teste anterior das gravuras) a ideia anteriormente
formulada por Binet & Henri (1894) sobre a superioridade de
recognição de uma gravura versus números ou versus desenhos
irregulares (“teste do taquitoscópio”); esta situação experimental leva Sílvio Lima a afirmar:
“Apoiados nesta experiência julgamos legítimo afirmar (...) o indivíduo, ao reconhecer um dado fenómeno como já experimentado, pode ter no espírito
uma constelação de imagens e de associações. Longe de nós — repetimos — recusar a importância dos
elementos representativos invocados pela escola intelectualista. Todo o seu erro está em atribuir um papel de primeira plana — em detrimento do elemento
afectivo — aos dados representativos, tornando-os
conditiones sine quibus non. O que parece lógico
concluir-se da experiência é antes a predominância
do afectivo sobre o representativo e não deste sobre
aquele” (Lima, 1928, p. 279).
Para Amâncio da Costa Pinto, “a tese de Sílvio Lima foi
e continua a ser uma das mais ricas, mais importantes e melhor estruturadas teses de investigação em psicologia até hoje
realizadas em Portugal” (Pinto, 1992, p. 41); aí, segundo Ferreira da Silva (2004), pratica o autor, com maestria, o método
experimental, acentuando sempre desde então, o caráter experimental da psicologia. Além disso, podemos admitir que a
tese de Sílvio Lima sobre a memória — como recognição (i.e.,
implicando uma reconstrução pessoal à qual não será estra84
Contributos para a história da afirmação da psicologia em Portugal
nho o significado atribuído por quem “reconstrói” — ou seja,
o “afectivo”, nos termos do autor) — traduzirá igualmente
a concepção global, fundamental, que Claparède imprimia
no Instituto Rousseau:
“Abordar os fenómenos psíquicos do ponto de vista
do seu papel, de sua função na vida, de seu lugar na
conduta em um momento dado. Isto implica colocar
a questão de sua utilidade. Depois de me perguntar
para que serve o sono, examinei da mesma forma
para que serve a infância, para que serve a inteligência, para que serve a vontade...” (Claparède, 1941,
apud Campos & Nepomuceno, 2011, p. 246).
Poderíamos acrescentar, na mesma linha, que Sílvio Lima
teria perguntado: “para que serve a memória?”
O contributo de Sílvio Lima para a história da psicologia
se deve também aos trabalhos — sempre críticos — que escreve
sobre a psicologia em Portugal. É também com eles que podemos retornar ao que se fazia entre nós, nessa área, no início
do século XX.
Em 1950, publica o ensaio “A Psicologia em Portugal”,
na revista Biblos, descrito por Ferreira da Silva (1979) como
“panorama-síntese, histórico e cultural das principais correntes
científico-psicológicas surgidas em Portugal desde os primórdios do séc. XIX até à atualidade”. O estudo fora escrito para o
volume “World Psychology” e, além da síntese das influências e
dos protagonistas da psicologia em Portugal, esboça a relação
entre o seu desenvolvimento e as implicações na área da educação especial e da saúde mental, comentando brevemente sobre
o trabalho dos seus promotores (Ferreira da Silva, 1979; Fróis,
2003). É nesse ensaio que ele propõe dividir a história da psicologia em Portugal (até 1949) em três períodos, uma sistematização que será retomada por Bairrão (1968) e outros, incluindo
esta autora. Seus ensaios refletem sempre o seu espírito crítico
e atento à realidade intelectual da época. Dentro da crítica ao
85
Clio-Psyché: Instituições, História, Psicologia
positivismo, por ocasião do centenário da morte de Augusto
Comte, publica “Comte, o positivismo e a psicologia” — traduzindo a sua visão dos excessos castradores do positivismo,
referindo: “O positivismo — querendo-se a-metafísico — redundaria num deformador e dogmático coisismo psicológico, ou
no fisicalismo psicológico” (Lima, 1957).
Em síntese, como refere Fróis, “o papel de Sílvio Lima,
como crítico e ensaísta, bem como as suas qualidades pedagógicas, concedem-lhe lugar de destaque no desenvolvimento das disciplinas de Psicologia e Pedagogia na Universidade
portuguesa” (Fróis, 2003). Que ele tenha sido, a certa altura,
“suspenso” por essa mesma universidade, caberá à história recordá-lo para que não se incorra nos mesmo erros do passado,
os quais, paradoxalmente, se traduzem na negação (ao repudiar
o “livre-arbítrio”) do que é suposto atribuir-se como missão
fundamental daquela instituição. Daí que Rui Lopo sustente:
“Importaria, por outro lado, do ponto de vista estritamente
histórico, integrar Sílvio Lima na complexa trama de relações
entre o regime, a Igreja e os intelectuais, dando conta das purgas nas academias, das limitações curriculares e metodológicas,
da amputação de investigações” (Lopo, 2004). Compreende-se
este comentário à luz da interpretação da expulsão de Sílvio
Lima que Real (2004) nos oferece — i.e., teria sido mais como
um desdobramento da crítica de Sílvio Lima à obra do cardeal
Cerejeira do que propriamente por motivos políticos. Em todo
caso, qualquer que tenha sido o motivo principal, as lições do
passado são facilmente apagadas e surgem métodos mais subtis
visando “manter a linha” de pensamentos, métodos ou conteúdos que se queiram privilegiar — esperemos que os bastidores
das publicações científicas não se encarreguem sub-repticiamente da legitimação dessa tarefa.
Considerações finais
Os papéis de Alves dos Santos e Sílvio Lima na afirmação
da psicologia científica em Portugal têm sido tratados, como vi86
Contributos para a história da afirmação da psicologia em Portugal
mos, por diferentes autores — particularmente por professores
da Universidade de Coimbra –, em diferentes momentos. Assim
se faz a história de uma ciência. Tal não significa, porém, que
o seu papel seja muito conhecido entre nós. A “memória é curta”, dizem os portugueses, mais do que isso, porém, e seguindo
as teses de autores aqui mencionados, o significado atribuído
por cada um deles terá influência; além disso, ao que parece, é
mais fácil narrarmos — marcando lugar na história — um autor
distante do que um conterrâneo nosso; talvez porque a proximidade de sua história pessoal possa se confundir com a nossa
e, por contraposição (do que não fizemos), nos fragilize. Os
100 anos de criação e ligação dos autores ao Laboratório de
Psicologia Experimental, na Universidade de Coimbra, foram
comemorados em 2012; porém, o papel destes autores não
deve ser confundido, ou reduzido, ao referido laboratório (que
se recorda fundamentalmente enquanto marco); muito mais do
que isso, ambos retratam uma época significativa na afirmação
do saber universitário — no campo da psicologia e da pedagogia — e, também, uma época de transições políticas e rigidez
intelectual. O fato de os nossos dois personagens terem estado
em Paris e Genebra é um testemunho da influência francófona
que marcou as primeiras incursões de portugueses em trabalhos de psicologia e pedagogia, influência esta que perdurou e
se fez sentir na própria organização curricular das primeiras
licenciaturas em Psicologia criadas em Portugal. Nos anos 20,
enquanto Alves dos Santos e Sílvio Lima publicavam resultados experimentais de investigações sobre processos psicológicos, outras afirmações da psicologia iam se impondo entre nós,
igualmente sob influência de tendências europeias; nomeadamente, a criação do Instituto de Orientação Profissional (com
forte pendor assistencial para crianças e jovens desfavorecidos),
em 1925, sob impulso de Faria de Vasconcelos, pedagogo ligado ao Movimento Escola Nova. Ou seja, as influências do
“funcionalismo europeu”, de que falam Campos e Nepomuceno
(2011), particularmente das concepções de Claparède e Piaget,
estenderam-se para além das universidades, incentivando inter87
Clio-Psyché: Instituições, História, Psicologia
venções psicopedagógicas e sociais. O conhecimento científico
do desenvolvimento humano — nomeadamente dos processos
psicológicos e suas funções na adaptação do sujeito ao longo
da vida — tornou-se uma importante ferramenta para que se
pudessem promover as condições necessárias a esse mesmo desenvolvimento. Todavia, no meio académico português, a psicologia parece ter ficado enclausurada, afastando-se, durante
algum tempo, dos tais desígnios fundamentais de busca da “utilidade”, das funções para a adaptação, de que falava Claparède,
e da qual Piaget, com a sua formação científica-natural, jamais
terá esquecido. Terminamos com as palavras de Sílvio Lima,
quando diz:
“Nos séculos XV e XVI foram as necessidades práticas de pilotagem astronáuticas (e não só as lucubrações teóricas do Sábio) que nos conduziram, a
nós que demos ao mundo “novos mundos” (Camões), (...); decerto não parecerá estranho que se reivindique para a coeva psicologia do luso o mesmo
pragmatismo cultural, “trabalhista” que nos levará
igualmente — quem sabe? À descoberta de outros
novos mundos — os mundos interiores do Homem
Integral” (Lima, 1949).
Pensamos que hoje a psicologia em Portugal cumpre
eficazmente esses desígnios.
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***
91
Parte II
Aproximações e diferenças entre
Argentina e Brasil
História da institucionalização dos saberes e
práticas PSI no Brasil e na Argentina
5
O Hospício Nacional: arquitetura, política e
população (1852-1902)
Cristiana Facchinetti &
Cristiane de Sá Reis
O interesse pela descrição das práticas e estratégias presentes em instituições psiquiátricas tem sido crescente desde
a difusão da obra de Foucault no Brasil, na década de 1980,
como atestam recentes estudos (Lima & Holanda, 2010; Venancio & Cassilia, 2010). Entre as pesquisas que buscam ressaltar como discursos se articulam a práticas e instituições locais, este trabalho investiga o Hospício Nacional de Alienados
do Rio de Janeiro. Nas últimas três décadas, diversos autores
examinaram o processo de fundação do referido hospital, a hegemonia de seu modelo para a psiquiatria nacional e o seu lugar como marco para as mudanças institucionais e teóricas que
ocorreram na psiquiatria do país.1 Outros estudos examinaram
aspectos clínicos e sociais de seus pacientes, bem como os de
suas terapêuticas.2
Na esteira desses trabalhos, este capítulo procura descrever a estrutura física, clínica e administrativa do período, as
relações de poder no interior do asilo, as características sóciodemográficas e clínicas da população asilada, assim como o
movimento da população manicomial no período, abarcando
desde a sua fundação até o início do século XX. O objetivo é
apresentar um panorama do cotidiano do hospício, de modo
a ampliar a nossa compreensão a respeito de seus mecanismos
assistenciais e políticos.
1. Para exemplos de estudos sobre essas questões, ver Machado (1978); Engel (2001);
Gonçalves (2010).
2. Ver, por exemplo, Venancio (2003); Dias (2010); Facchinetti et al. (2010); Muñoz
(2010); Facchinetti & Cupello (2011).
95
Clio-Psyché: Instituições, História, Psicologia
O Hospício de Pedro II: estrutura arquitetônica e
política
A história do primeiro hospício especialmente voltado
para alienados no Brasil se inicia em 18 de julho de 1841, dia
da coroação de Pedro II. O primeiro decreto (Decreto n. 82,
18/7/1841) assinado pelo Imperador, no ato de sua coroação,
dizia respeito aos alienados da Corte3:
O decreto informa as diretrizes do novo Império: afirma o Brasil como uma nação marcada pela ciência e delineia o ideário iluminista de progresso que o orienta (Kury,
1994). Desse modo, a Coroa afirmava aos súditos o seu papel
civilizador e modernizador.
“Desejando sua Majestade o Imperador que a memória de sua sagração e coroação fosse transmitida à
3. DECRETO Nº 82 de 18 de Julho de 1941 — Fundando hum Hospital destinado
privativamente para o tratamento de Alienados, com a denominação de Hospício Pedro Segundo. “Desejando assinalar o fausto dia de minha sagração com a criação de
um estabelecimento de pública beneficência: hei por bem fundar um hospital destinado privativamente para tratamento de alienados com a denominação de — Hospício
de Pedro Segundo — o qual ficará anexo ao Hospital da Santa Casa de Misericórdia
desta Corte, debaixo de minha imperial proteção, aplicando desde já para princípio de
sua fundação o produto das subscrições promovidas por uma comissão da praça do
comércio, e pelo provedor da sobredita Santa Casa, além das quantias com que eu houver por bem contribuir. Cândido José de Araújo Viana, do meu conselho, Ministro e
Secretário de Estado dos Negócios do Império o tenha assim entendido e faça executar
com os despachos necessários. Palácio do Rio de Janeiro, 18 de julho de 1841, 20 da
Independência e do Império.
Com a rubrica de SM o Imperador. Cândido José de Araújo Viana.
96
O Hospício Nacional: arquitetura, política e população (1852-1902)
posteridade em um monumento que, recordando aos
vindouros esta notável época da história nacional,
indicasse ao mesmo tempo os sentimentos do paternal amor que consagra aos seus súditos, nenhum outro podia melhor preencher as vistas do monarca do
que o estabelecimento de um hospício destinado ao
tratamento daquelas pessoas para quem, vivendo na
sociedade, no meio das pessoas que lhes são unidas
pelos laços mais estreitos, com a perda da razão a sociedade expirou, e expirarão todas as afeições que se
prendem naqueles laços: para os alienados” (Vianna,
1843, p. 40, apud Oliveira, 2013, p. 38).
Mas Teixeira (1997) chama atenção para outro dado que
não deveria passar despercebido: a compreensão de uma época
na qual o desenvolvimento da civilização era pensado como
fonte de aumento de alienação na população. Assim, segundo o autor, o ato imperial poderia ser compreendido também
como uma afirmação, ante a Europa, de que o Brasil já era
uma nação capaz de produzir loucos — i.e., já estava em meio
a um processo civilizatório. O certo é que o projeto levou dez
anos para ser levado a cabo. Em 30/11/1852, o hospício foi
finalmente inaugurado, novamente com a presença do Imperador e do Arcebispo do Rio de Janeiro. Começou a funcionar
no dia 8 de dezembro do mesmo ano, com a chegada de 144
alienados, transferidos da Santa Casa da Misericórdia, e das
enfermarias do asilo provisório de alienadas da Praia Vermelha
(Fontes, 2003).
A obra, planejada pelos arquitetos José Maria Jacinto Rebelo (1821-1871), Joaquim Cândido Guillobel (1787-1859) e
José Domingos Monteiro (1765-1857), só foi dada por encerrrada em 1855. Inspirado na Maison Nationale de Charenton,4
4. Estabelecimento construído em 1641 e reformado entre 1833 e 1842 pelo arquiteto
Émile Jacques Gilbert orientado pelas teorias alienistas formuladas por Jean-Étienne
Dominique Esquirol (1772-1840), diretor do asilo desde 1828. Segundo suas orientações, os asilos deveriam ter um corpo central reservado para os serviços gerais e de
97
Clio-Psyché: Instituições, História, Psicologia
de Paris, o Hospício de Pedro II,5 foi o primeiro hospital psiquiátrico da América Latina e sua administração ficou a cargo do
Hospital da Santa Casa da Misericórdia da Corte. A edificação
era composta por um grande retângulo que enquadrava quatro
pátios internos separados por um corpo central. A divisão em
duas alas foi pensada para para impedir qualquer comunicação
entre homens e mulheres, separação esta levada a cabo apenas
a partir de 1855 (Barbosa, 1856, p. 99, apud Engel, 2001, p.
204). No centro, em posição de destaque, ficava a capela, abaixo desta, no andar inferior, ficava a farmácia, permitindo subsumir que a Igreja estava no comando da instituição, acima da
ciência.como afirma Lopes (1966, p. 338). Localizado em um
sítio distante da cidade, com apenas uma porta de entrada, o
asilo foi ainda mais afastado do contato com o mundo exterior
por grades colocadas na frente do edifício, a pedido do primeiro chefe do setor clínico (1852-1866), o médico Manuel José
Barbosa (Engel, 2001, p. 203).
Em 1875, a estrutura do prédio foi novamente detalhada
por Philippe-Marius Rey (1846-1918).6 Segundo o alienista, no
que diz respeito à parte central da construção:
“Na entrada, há um grande saguão decorado com
duas estátuas de mármore representando Pinel e
Esquirol. À esquerda se encontra a secretaria, uma
única sala para o médico-chefe, o administrador e o
cada lado, estruturas isoladas para acomodar os pacientes, rodeadas por uma galeria
(Ministère de la Culture et de la Communication de France, 2013).
5. A instituição foi chamada de Hospício de Pedro II durante o Império; com a proclamação da República, passou a ser chamada de Hospício Nacional de Alienados e,
em 1911, ganhou o nome de Hospital Nacional de Alienados. Em 1927 foi renomeada
como Hospital Nacional de Psicopatas (Facchinetti et al., 2010).
6. Médico interno dos asilos de alienados do Sena, mais tarde médico-adjunto dos
asilos de Vancluse e Ville-Évrard. Entre 1874 e 1878, fez viagens à América do Sul e à
Península Ibérica. Publicou a tese “Étude anthropologique sur les botocudos” (1880),
sobre os índios botocudos do Espírito Santo, e “Considérations cliniques sur quelques
cas d´ataxie locomotrice dans l´aliénation mentale (1875). A partir de 1893 é nomeado
médicin-en-chef de asilos em Montdevergue, Aix e Marseille. Faleceu em 1918, com
o título de “médico honorário dos asilos públicos de alienados” (Rey, 2013 [1875]).
98
O Hospício Nacional: arquitetura, política e população (1852-1902)
secretário, um bengaleiro, duas salas e um depósito,
uma escada que leva até o primeiro andar. À direita
se encontra o consultório. No fundo do saguão, há
uma escada central que leva à capela, a qual ocupa
o plano superior. Duas portas laterais levam a um
armazém de alimentos, ao refeitório da comunidade, às cozinhas e à farmácia. Essas diferentes partes
são interligadas entre si, bem como de cada lado por
uma galeria externa que as separa de um pátio com
hortas. No primeiro andar, há uma sala de recepção,
um salão de honra e uma sala onde estão expostas
as várias obras dos pacientes.” (Rey, 2013 [1875],
p. 383).
A respeito das duas estruturas laterais que integravam a
construção central, registrou:
“A ala esquerda é ocupada pelos homens, a ala direita pelas mulheres. No térreo, ao redor de um pátio
central, há uma galeria com: 1) do lado da fachada,
seis quartos particulares, com uma ou duas camas,
um dormitório, dois quartos particulares, uma sala
de reuniões; 2) do lado do prédio central, há uma enfermaria para doenças intercorrentes, um dormitório para os incuráveis, uma sala para os guardas; 3)
do lado livre, oito células e um dormitório; 4) os banheiros e as latrinas compõem o quarto lado. Finalmente, dois refeitórios adjacentes, um para os pensionistas e outro para os indigentes, se encontram
na continuação do quarto lado e, vinculando-o aos
atendimentos gerais, completam assim o retângulo
formado pelo conjunto dos edifícios. As galerias ligam diretamente a parte central com as duas divisões
laterais. No piso térreo se encontram os agitados, os
paralíticos, os epilépticos e os idiotas.” (Rey, 2013
[1875], p. 383).
99
Clio-Psyché: Instituições, História, Psicologia
Em cada uma das laterais havia também uma lavanderia
e uma biblioteca. Acima dos banhos, havia um terraço coberto
que servia de pátio, onde os pacientes podiam passear. Além
disso, estavam previstas no projeto de reforma novas latrinas
eram previstas para o primeiro andar.
Rey nos informa ainda acerca da existência de “celas fortes”, consideradas por ele como “absolutamente primitivas”:
“Elas são compostas por uma sala bastante espaçosa,
com paredes grossas, que está fechada do lado da
galeria por uma enorme grade de ferro. Cada cela
é iluminada por uma janela com grades que se encontra na parede traseira. Uma segunda grade, que
se encontra um pouco mais na frente, separa um
espaço ocupado pelas latrinas entre ela e o espaço
ocupado pela janela. Finalmente, algumas celas são
divididas em duas câmaras por uma terceira grelha
transversal. A primeira câmara é ocupada pelos paralíticos senis, a segunda pelos agitados.” (Rey, 2013
[1875], p. 383-4).
Nesse mesmo relato, somos então informados de que reformas arquitetônicas estavam sendo realizadas. Tais modificações
visavam adequar a edificação às necessidades científicas de tratamento, além de ampliar a capacidade de internação, já que a instituição era pequena para receber doentes de todo o país. Segundo
Rey (2013 [1875], p. 387), o “número aproximado dos alienados
conhecido em todo o Império [era então] de 15.000 para uma
população de 11.780.000 habitantes”, enquanto que o número
de vagas no asilo do Rio de Janeiro era de apenas 300 internos.
De acordo com Rey, as modificações arquitetônicas em
curso iriam resultar em alguma melhoria: afinal, estavam em
processo de construção novos edifícios ao lado dos banhos, para
que cada sexo tivesse sua própria ala, com um piso térreo, um
primeiro andar (para doentes tranquilos, dormitórios particulares e sala de reuniões) e um pátio central. O asilo assumiria
100
O Hospício Nacional: arquitetura, política e população (1852-1902)
então a forma de uma ferradura. Ele relata ainda a construção
de uma seção inteira para os agitados, no térreo, composta de
“duas fileiras de quartos, separadas por um corredor, para os
semi-agitados”; dez a doze celas fortes mais adequadas. As celas por ele criticadas seriam removidas, dando lugar para uma
seção de ”pacientes imundos”. A reforma previa também a
construção de novas enfermarias, refeitórios, banhos, latrinas e
jardins, além de monitoramento por vigias. Concluída a reforma, o hospício passaria a abrigar mais 250 pacientes, além dos
300 inicialmente previstos.
Cinco anos depois, François Jouin (1854-1928), médico
interno dos hospitais de Paris, médico alienista e clínico geral
(Teixeira & Ramos, 2012, p. 374), de passagem pelo Rio de
Janeiro, chamava a atenção para as novas áreas construídas,
ressaltando a existência de “dois tipos de fossas, mas grandes,
limpas e muito bonitas”, “localizados no centro de cada divisão, sob o piso térreo para que os pacientes não possam sair”,
“nas quais os agitados e os maníacos permaneciam ao longo do
dia, sendo monitorados por um único guarda, em tempo integral” (Jouin, 2012 [1880], p. 404). O alienista relatou também
a construção de um pavilhão para trabalhos de campo, como
terapêutica moral. Finalmente, chama atenção para o esmero
com que tinham sido reconstruídas as celas fortes:
“cada recinto foi construído com um cuidado tão especial que parece, às vezes, exagero. Assim, até as celas acolchoadas são construídas com uma perfeição
incrível. Tudo foi previsto: os cantos são protegidos
por espuma, as paredes são acolchoadas e, para sair,
o louco furioso deve quebrar duas portas dispostas
de modo que não pode nem danificá- las, nem utilizá
-las como armas contra si mesmo (...)” (Jouin, 2012
[1880], p. 408).
De acordo com Rey, no entanto, dificilmente um prédio
construído “a partir de um plano defeituoso” conseguiria ser
101
Clio-Psyché: Instituições, História, Psicologia
completamente sanado de seus vícios de origem por reformas
(Rey, 2013 [1875], p. 384). De fato, não era apenas um médico
do além-mar que percebia os problemas do hospício. Quase uma
década antes, o então diretor, Ludovino da Silva (1867-1968),
sucessor de Manoel Barbosa, já reclamava no relatório para a
Santa Casa sobre a promiscuidade dos doentes, ressaltando a
necessidade de separá-los “por classes de doenças e tipos para o
efetivo tratamento, pela moral, pela higiene e pela disciplina do
estabelecimento” (Silva, 1868, p. 187, apud Engel, 2001, p. 205).
As queixas nos relatórios dos chefes de serviço à Provedoria da Santa Casa a respeito das instações físicas continuaram
ao longo das décadas. A essas queixas, juntavam-se outras, que
diziam respeito menos à construção e mais aos problemas decorrentes das contradições que se afirmavam entre os objetivos
da caridade das irmãs e os objetivos científicos dos alienistas:
como vimos, desde o decreto de sua fundação, a administração
havia sido confiada à Santa Casa. No hospício, isso se configurou na divisão dos serviços: o administrativo-financeiro ficou a
cargo do administrador da Santa Casa e de dois auxiliares; o
sanitário, a cargo de um facultativo clínico de cirurgia e medicina, de serventes e de um farmacêutico, além de vinte irmãs de
caridade que trabalhavam “nos atendimentos gerais”, sendo
“responsáveis pela supervisão e execução de prescrições médicas”, com ajuda de “alguns poucos enfermeiros” não especializados. A direção desse serviço também ficava a cargo de uma
irmã (Rey, 2013 [1875], p. 385-6). Por fim, o religioso, dirigido
por capelães (Decreto n. 1.077, Art.3, de 4/12/1852).
Em 1875, a presença religiosa ainda predominava. O relato de Rey é bastante detalhado com relação ao pessoal empregado no hospício, naquela época. Somos informados por ele
que a estrutura de chefia do hospício era composta por “um
administrador, dois médicos, um dos quais é médico-chefe, um
médico-assistente, responsável pela consulta de pacientes externos, um suplente do médico ausente, uma irmã superior e um
capelão” (Rey, 2013 [1875], p. 385). Em seu relato, o alienista
visitante lamentava o fato de que o hospício estivesse entregue
102
O Hospício Nacional: arquitetura, política e população (1852-1902)
na maior parte do tempo a uma madre superiora, “à qual o
regulamento confere um alto grau de autoridade”. Para diminuir a força do poder religioso e não especializado, sugeria o
aumento no número de médicos da instituição, por meio da
contratação de um médico interno para o hospício, bem como
de estudantes da escola de medicina (Rey, 2013 [1875], p. 386).
O médico alienista, visitando a instituição cinco anos depois, insistia na mesma tecla, embora de modo bem mais conciliador. Dizia então que o asilo D. Pedro permanecia “inacessível aos estudantes de medicina do Rio de Janeiro”, em parte
pela ausência de “um curso clínico sobre a alienação mental”
no país. Jouin reafirma então o poder da Santa Casa na administração da instituição, enumerando os médicos encarregados
do tratamento dos pacientes, como sendo de apenas dois, “um
para os homens e outro para as mulheres” e de um médico
assistente (Jouin, 2012 [1880], p. 411-2). Relatava ainda a
presença de um médico especial para o tratamento de doenças intercorrentes, um farmacêutico e seu assistente. Apesar de
ressaltar a riqueza do prédio e a gentileza do chefe do serviço
sanitário, afirmava que o tratamento não era adequado pela
falta de mão de obra especializada.
Já em 1877, o relatório do chefe do serviço sanitário
(1877 a 1881), Gustavo Balduíno de Moura e Câmara, que
guiaria Jouin em sua visita, tratava desses mesmos temas, além
de expressar o seu desagrado ante outros problemas que dificultavam a especialização do hospício: a presença de um “consultório gratuito” no local, destinado a atender à população
vizinha ao asilo acometida de moléstias gerais, e a presença
de algumas órfãs, filhas de “mulheres pobres que morrem no
Hospital da Misericórdia” e que acabavam por viver ali toda a
sua juventude (Azevedo, 1877, p. 390 e 393, apud Engel, 2001,
p.209). Tais queixas ressoavam como aquelas feitas pelo antigo
diretor Manoel José Barbosa em 1870, para quem o problema
da superlotação do hospício não se devia à estrutura física, mas
à estrutura política da Santa Casa, que determinava o acolhimento de alienados de todas as províncias do Império. Recla103
Clio-Psyché: Instituições, História, Psicologia
mava a construção de novos asilos para alienados em outras
localidades, demandando, ainda, um asilo para inválidos que
permitisse realocar parte da população de internos ali alocada
de modo inapropriado (Gonçalves, 2011, p. 48).
Os conflitos entre os poderes do hospício
Se as divergências entre as irmãs vicentinas e os médicos
já podiam ser percebidas nas entrelinhas dos relatórios médicos, ainda na virada dos anos de 1860, é possível depreender
por meio dos relatórios dos chefes e de visitantes ao asilo que,
na década seguinte, os conflitos ganharam maior visibilidade. Ao final da Guerra do Paraguai, crescia um movimento
de descontentamento frente ao status quo monárquico. As reformas políticas empreendidas pelo gabinete do Visconde de
Rio Branco (1871-5), que estruturalmente em nada alteraram
as instituições políticas, produziram uma grave ruptura política, enfraquecendo “os pilares e instituições que sustentavam
o Segundo Reinado, desfigurando a lógica política imperial e
criando um clima de incerteza”. (Alonso, 2000, p. 42). Nesse
contexto, profissionais liberais educados no Segundo Reinado,
advindos da classe média nascente, ganharam novos espaços
de ação política.
É nesse caldo político e cultural que os médicos do asilo
começam a se manifestar. As queixas e o inconformismo ante a
administração da Santa Casa se misturam aos questionamentos
mais gerais, acerca do regime e de seus mecanismos de legitimação e reprodução (Teixeira & Ramos, 2012). As demandas de
medicalização e especialização do asilo e o enfrentamento frente à administração religiosa passam a ser mais claras e diretas.
Nas palavras de Jouin:
“O Dr. Moura e Câmara, que acompanha as notícias
francesas com a maior atenção, lamenta profundamente essa situação [a falta de alunos e especialistas]
e aguarda impacientemente o momento em que um
104
O Hospício Nacional: arquitetura, política e população (1852-1902)
curso clínico sobre a alienação mental será implementado no asilo, ‘um curso igual ao de Ball’” (Jouin, 2012 [1880], p. 411).
Mas se ele delicadamente defendia os interesses científicos
dos médicos do asilo, reforçando a posição política do diretor,
Moura e Câmara, isso não teve serventia para o seu guia. Ao final de 1880, após o envio do relatório anual para a mesa administrativa da Santa Casa, declarando ali o seu pesar frente aos
objetivos religiosos do asilo, o que inviabilizava sua especialização, Moura e Câmara foi demitido (Teixeira & Ramos, 2012).
Em seu lugar, assumiu Nuno Ferreira de Andrade (18511922), que desde 1877 havia se tornado médico adjunto do
Hospício de Pedro II e buscava estabelecer o curso de patologia
mental, ao qual Moura e Câmara se referira quando da visita
de Jouin. Buscando apoio para vencer a resistência das religiosas, Nuno apelou ao Barão do Lavradio, então presidente da
Academia Imperial de Medicina, que passou também a defender a necessidade do estudo de moléstias mentais e a criação de
uma cadeira de ensino da matéria (Teixeira & Ramos, 2012).
Como resultado do apoio da maior autoridade médica da Corte, a disciplina foi criada na Faculdade de Medicina do Rio de
Janeiro, em meio à reforma do ensino médico, levada a cabo
por Visconde de Sabóia (1835-1909), em março de 1881 (Edler,
1996).
A partir de então, as investidas dos médicos a favor de
uma maior medicalização do hospício se intensificaram. Afinal, a entrada do alienismo no campo das diversas disciplinas que compunham a formação dos novos profissionais
apontavam para o reconhecimento dessa especialidade e
sua institucionalização acadêmica.
Acreditando no empoderamento de seu cargo, Nuno de
Andrade escreveu uma carta ao provedor da Santa Casa, José
Ildefonso de Sousa Ramos, o Visconde de Jaguarão (Santa Casa,
2013), reivindicando a ampliação dos poderes médicos no asilo e criticando o tratamento religioso, que seria contrário aos
105
Clio-Psyché: Instituições, História, Psicologia
preceitos alienistas de Pinel e Esquirol. Acusava ainda as irmãs
de um comportamento em nada condizente com a ética cristã
(Andrade, 1882, apud Engel, 2001).
Mas ele havia superestimado o seu poder: após a referida missiva, de abril de 1882, Nuno foi destituído do serviço,
perdendo também, meses depois, a cadeira de moléstias mentais na Faculdade de Medicina para Agostinho José de Souza
Lima (1842-1921), que assumiu interinamente até ser sucedido
por João Carlos Teixeira Brandão (1854-1921), aprovado por
concurso como titular da cadeira de clínica psiquiátrica e de
moléstias nervosas, em 1883.
A partir de 24/10/1884, Teixeira Brandão tornou-se também facultativo clínico do Hospício de Pedro II, trabalhando
com Souza Lima até substituí-lo, em fevereiro de 1887. Ao assumir a chefia do serviço sanitário do asilo, retomou as críticas
de Nuno de Andrade contra a administração religiosa e passou
a exigir a adoção de “reformas racionais”, como a criação de
colônias rurais. De fato, as queixas com relação à pouca medicalização e efetividade do hospício cresceram na última década
do Império (Calmon, 1952).
Capitaneada por Teixeira Brandão, a medicina mental
passou a buscar apoio na opinião pública, denunciando os inúmeros problemas do asilo e tentando assim atrair simpatia para
sua causa: conseguir se separar da Santa Casa e instituir uma direção médica para a instituição. Afirmavam então que, no asilo
administrado pela Santa Casa, os cuidados não científicos impediam a cura dos internos; referiam-se à atitude pouco cristã das
irmãs; defendiam a necessidade de se criar uma assistência médica e legal para os alienados sob responsabilidade estatal, bem
como a construção de novos asilos em todo o país, dirigidos
por médicos capazes de dar um tratamento adequado, visando
a cura (Brandão 1956 [1886]). Dessa vez, enfim, as palavras foram ouvidas: a imprensa diária passou a denunciar as precárias
condições do asilo, cobrando ações imediatas do governo.
O apoio começou a se materializar em 1889, quando Antonio Ferreira Viana (1833-1903), então ministro do Império,
106
O Hospício Nacional: arquitetura, política e população (1852-1902)
mandou fundar as colônias de São Bento e de Conde de Mesquita, na Ilha do Governador. Mas foi com a proclamação da
República que a Assistência aos Alienados finalmente foi legalmente instituída. De acordo com Moreira (2011 [1905]), o
senador Aristides da Silveira Lobo (1838-1896) deu início ao
projeto de organização da Assistência Médico-Legal de Alienados. Ainda no primeiro semestre de 1890, o Hospício de Pedro
II, na maré de renomeações do período republicano, passou a
se chamar Hospício Nacional de Alienados (Decreto n. 142A, 11/1/1890), sendo desanexado da Santa Casa e passando às
mãos do Governo Provisório.
Teixeira Brandão ganhou ainda mais poder nesse processo.
O “militante histórico do movimento republicano” (Teixeira &
Ramos, 2012, p. 371), além de ganhar a direção do Hospício
Nacional, foi nomeado diretor geral da Assistência Médico Legal de Alienados, tornando-se, entre 1897 e 1899, inspetor geral da Assistência (Brandão, 2013). A partir de então, subordinado ao Ministério do Interior, Brandão passou a supervisionar
todos os serviços dos asilos, incluindo as admissões, transferências e saídas de internos, bem como a distribuição pelas seções,
de acordo com as enfermidades; passou a nomear médicos e
internos, assim como a contratar enfermeiros e auxiliares do
serviço clínico; finalmente, ficou responsável pela higiene e segurança dos estabelecimentos (Decreto n. 2467, 19/2/1897).
O decreto que passou a reger os alienados, logo após a
proclamação da República, foi promulgado em meio aos embates e rupturas institucionais do Governo Provisório (Decreto n. 206-A, 15/2/1890), promovendo o primeiro processo de
especialização da assistência e de autonomização do campo
científico, já quea “direcção geral” passou a ser “confiada a
um medico de competência provada em estudos psychiatricos”
(Decreto n. 508, 21/6/1890) — i.e., Teixeira Brandão. Vale dizer
que a Assistência também passou a controlar as clínicas particulares do Distrito Federal, assim como garantiu, por meio
do decreto, sua supervisão às futuras instituições do Distrito
Federal (Moreira, 2011 [1905], p. 73-5). Nesse processo, a As107
Clio-Psyché: Instituições, História, Psicologia
sistência passou a se colocar como “protetora dos alienados”,
ganhando o poder de impedir “seqüestrações arbitrárias”, sem
“provas documentadas da moléstia”, advindas de fraudes contra a liberdade individual e causadas por interesses econômicos
(Brandão, 1918, p. 147). Brandão ressaltava que esta teria sido
a tônica das internações aceitas pelas irmãs vicentinas.
Sob a sua direção, a Assistência incluiu as colônias São
Bento e Conde de Mesquita (Decreto n. 508, 21/6/1890), criou
a Escola Profissional de Enfermeiros e Enfermeiras (Decreto n.
791, 27/9/1890) e fundou o Pavilhão de Observação, para avaliação preliminar dos pacientes (Brandão, 2013). Esse pavilhão
se configurou a partir de então como porta de entrada do asilo,
além de espaço de aula prática de psiquiatria para estudantes
da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, disciplina dirigida
por Teixeira Brandão (Dias, 2010). Além da diversificação de
tratamentos, distribuídos entre hospitais de agudos e de cronificados, nos hospitais-colônia (Amarante, 1982), a estrutura
mesma do hospício foi novamente remodelada, de modo a permitir a absorção de novos alienados, admitidos ou transferidos de outras instituições (Engel, 2001). No relatório de 1894,
Brandão solicitava ao ministro que, além da separação de pacientes por sua patologia — que já havia sido efetuada –, era
necessário construir novas instalações, de modo a permitir uma
separação dos pacientes por categoria social e por idade.
Todavia, apesar de todos os empreendimentos, reformas
políticas, contratações, estatização e laicização, o hospício continuava a enfrentar, segundo os relatórios, um índice baixo de
cura, concomitante às elevadas taxas de mortalidade. Os problemas crônicos — superlotação, inadequação terapêutica, problemas sanitários, alimentares etc. persistiam (Dias, 2010).
A tensão que, nos primeiros anos da República, dominou
as relações entre religiosos, juristas, legisladores e médicos fez
com que tais dificuldades estivessem constantemente em pauta
nos tribunais, no Senado e na imprensa diária, a ponto de o
todo-poderoso Teixeira Brandão perder a direção do hospí108
O Hospício Nacional: arquitetura, política e população (1852-1902)
cio e da Assistência (Oliveira, 2013).7 Tais embates resultaram
ainda na instalação de um inquérito, em 1902, visando apurar
as condições no Hospício Nacional e nas colônias da Ilha do
Governador.8 Mais uma vez, ficou evidente a precariedade do
hospício, tanto no que diz respeito às construções decadentes e
envelhecidas como em termos de higiene. A comissão do inquérito também chamou a atenção para o desrespeito dos médicos
em relação à Igreja, deixando entrever que os embates do passado recente perduravam (Oliveira, 2013, p. 181).
Por sua vez, os funcionários do asilo, convocados a preparar um relatório para a comissão, denunciavam a administração
não especializada e burocrática de Dias de Barros como o fator
responsável pelo estado do Hospício Nacional. O relatório de
Márcio Nery, então chefe da seção Pinel e ex-diretor da instituição, logo após a saída de Teixeira Brandão, oferece pistas para
compreendermos os embates; ele chama a atenção para um elemento que teria concorrido de maneira decisiva, em sua opinião,
para o estado de coisas de então: a reforma da Assistência empreendida por Campos Sales, em 1899. Na esteira de desonerações
do Estado, em meio à crise financeira que o país vivia, o governo
suprimira o cargo de inspetor geral da Assistência (Decreto n.
2467, 19/2/1897). A falta de uma superintendência responsável
pela administração de todos os estabelecimentos teria sobrecarregado o diretor do asilo, que deixara de cuidar apenas do serviço
clínico e sanitário, para ter de responder também pelas funções
administrativas da instituição. Como resultado, Nery afirmava
que os diretores passaram a se debruçar apenas sobre as questões
econômicas e administrativas, negligenciando a alma da instituição: o tratamento para os alienados (BRASIL, 1903, p. 42-5).
7. A estratégia de Teixeira Brandão, diante dos embates, foi a de se afastar da Assistência para enfrentar as questões no campo político, onde se dedicou à legislação sobre
os alienados e a distinção dos alienados em relação aos criminosos (Oliveira, 2013).
8. O “Relatório técnico da Comissão de Inquérito sobre as condições da Assistência
a Alienados no Hospício Nacional e colônias da Ilha do Governador. Ministério da
Justiça e Negócios Interiores” foi anexado ao relatório referente ao ano de 1902 da
Assistência, no ano de 1903. Tal relatório está disponível em Brasil (2010).
109
Clio-Psyché: Instituições, História, Psicologia
Apesar dos inquéritos, denúncias e averiguações, a saída
da Assistência e a crise no Hospício não significaram a perda
de poder por parte de Teixeira, como seus detratores poderiam
imaginar (Engel, 2001; Oliveira, 2013). Apoiado pelo governo de Rodrigues Alves (1902-1906) e pelo novo ministro do
interior, José Joaquim Seabra (1855-1942), Teixeira Brandão
garantiu sua participação na Comissão de Instrução e Saúde
Pública9 e se elegeu deputado. Foi assim que, “respondendo
a solicitações do presidente”, elaborou um projeto de lei que
propunha as modificações sublinhadas pela comissão de 1902
para a assistência a alienados (Anais da Câmara dos Deputados, 23/11/1903, p. 807 apud Oliveira, 2013, p. 212-8). Sua
luta foi coroada pela aprovação da Lei de Alienados (Decreto
n. 1132, de 22/12/1903).
A entrada de Juliano Moreira para a direção do Hospício
Nacional de Alienados acabou por materializar a trajetória das
mudanças operadas em lei. Sob sua direção, o asilo passou por
novas modificações, buscando a adequação do hospital a demandas consideradas mais modernas, advindas da psiquiatria
alemã e de seus laboratórios.10
Aos alienados, a República
De acordo com os estatutos aprovados pelo decreto n.
1.077, de 4/12/1852, as portas do hospício foram abertas aos
“alienados de ambos os sexos de todo o Império, sem distinção
de condição, naturalidade e religião” (Machado, 1978; Engel,
2001; Oliveira, 2013). Mas quem eram esses personagens que
preenchiam as exíguas vagas da instituição? De onde vinham,
quais as suas características sociais? Como eram diagnosticados no período? É o que buscamos demonstrar.
9. Além de Teixeira Brandão, a comissão era composta por Malaquias Gonçalves
(presidente interino), Germano Hasslocher, Sá Freire, Satyro Dias e Valois de Castro
(Engel, 2001).
10. Sobre o período de Juliano Moreira, ver Portocarrero (2002), Dias (2010), Facchinetti & Muñoz (2013) e Venancio (2003).
110
O Hospício Nacional: arquitetura, política e população (1852-1902)
Classes
Quando visitou o asilo, em 1875, Rey observou que as
diferenças de classe da sociedade eram representadas também
no hospício. Relatou então a presença daqueles admitidos gratuitamente: eram estes escravos únicos de senhores sem condições financeiras de custear o tratamento; marinheiros de navios
mercantes; soldados do Exército e da Marinha; além de associados da Santa Casa da Misericórdia, admitidos gratuitamente
em uma das classes de pensionistas (Rey, 2012 [1875]). Mas o
alienista relatou também a maciça presença de pensionistas de
várias classes, com direitos diferenciados no que diz respeito
ao tipo de acomodação e ao tratamento recebido (nos termos
dos artigos 5, 6 e 7, do referido decreto n. 1.077), além de espaços distintos para pacientes agitados, imundos, rebeldes ou
com doenças infectocontagiosas. Em 1880, Jouin revela em seu
relato a permanência dessa segregação, informando a existência de duas categorias de internos: os considerados indigentes,
que eram “pessoas pobres do Império”, “escravos de pessoas
pobres” e “marinheiros em condições administrativas correspondentes”; e os pensionistas “de primeira, segunda ou terceira
classe, conforme sua fortuna”, além dos escravos de famílias
abastadas cujos senhores eram obrigados “a arcar” com a sua
estada no asilo (Jouin, 2012 [1808], p. 407). Outro dado importante a assinalar é a presença de um grande número de estrangeiros pagantes, principalmente imigrantes europeus, o que
provavelmente está relacionado à grande imigração da segunda
metade do século XIX (Teixeira & Ramos, 2012).
Movimento populacional
Todo ano, o diretor-médico apresentava um relatório ao
provedor da Santa Casa, no qual deveria informar o estado
do asilo, obras consideradas necessárias e sua organização administrativa. Esses relatórios são as principais fontes para se
investigar o cotidiano asilar durante a Monarquia. A partir da
República e, mais especificamente, a partir da construção do
111
Clio-Psyché: Instituições, História, Psicologia
Pavilhão de Observações (1894) e da realização de aulas em
suas instalações (1896), os documentos clínicos passam a ser
mais sistematicamente preenchidos, ampliando a base de informações a respeito do cotidiano do hospício.
Uma consulta a esses relatórios revela que, no início da
década de 1850, o asilo possuía uma população média anual
de 250 pacientes (Alves, 2010, p. 29). Em 18/8/1854, o provedor do hospício informava que seria possível, após as obras,
ampliar esse número para 300 internos (Gonçalves, 2011, p.
35). No entanto, as chegadas de pacientes, vindos de todo o
país, eram cada vez frequentes. No final da década de 1850, o
asilo já abrigava 335 alienados, 262 dos quais eram não pagantes. (Gonçalves 2011, p. 43). Na década de 1860, o número
de internos chegou a 400; a superlotação provocou diversos
protestos e trocas de correspondências entre o provedor da
Santa Casa, a polícia e os estados, que continuavam enviando
alienados para o hospício. Segundo Gonçalves (2009, p. 402),
foi neste período que se limitou a entrada de alienados, consolidando um tamanho máximo para a população de internos. Assim, na década de 1870, de acordo com o relatório do médico
Manoel José Barbosa, o número caiu para 297 internos. Até o
fim da Monarquia, a média anual se manteve estável, em torno
de 350 internos, segundo Moura e Câmara informou ao alienista Jouin (2012 [1880]). A tabela mostra como esse números
variaram no período 1883-1889.
112
O Hospício Nacional: arquitetura, política e população (1852-1902)
Tabela 6.1. Variação no número de internos no Hospital de Pedro
II, entre 1883 e 1889. O número médio de internos em tratamento em cada ano (Tratamento) é igual ao número inicial de
internos (Inicial), mais o número de novos internos que entram
(Entradas), menos os números de internos que saem (Saída) ou
morrem (Mortes). (Fonte dos dados: Alves, 2010, p. 80.)
Ano
1883
Inicial
393
Entradas
119
1884
1885
1886
1887
1888
1889
412
396
373
321
312
339
89
73
107
105
77
93
Saídas Mortes
58
57
63
34
34
31
28
21
42
40
147
88
22
91
Tratamentos
397
396
395
299
307
339
317
A tabela acima, além de ilustrar a variação ocorrida na
população asilar, no período em questão, permite inferir algumas coisas. Por exemplo, a taxa de mortalidade no asilo era
muito elevada — entre 1883 e 1889, cerca de 20% dos internos
morriam a cada ano. Outra coisa: em quatro dos sete anos ilustrados, o número anual de mortos foi superior ao de internos
que tiveram alta, com destaque para os anos de 1886 e 1889.
Segundo Alves (2010, p.117-131) a maioria desses pacientes permanecia longos períodos no asilo, e em grande parte,
morriam nele (59%). Menos de 30% dos que entravam recebiam alta, o que demonstra o baixo índice de cura.
Já nos primeiros cinco anos da República, a proposta de
internar qualquer um que perturbasse “a tranquilidade pública”, ofendesse “a moral e os bons costumes” ou ameaçasse “a
vida de outrem” ou “a própria” (BRASIL, 1895, apud Engel,
2001, p. 70), teve um grande impacto na entrada de novos pacientes (Messas, 2008, p. 66-7). E o mais impressionante: embora em todos os 12 anos com dados disponíveis (1892 ficou
de fora), o número anual de altas tenha sido superior ao de
mortes, houve uma significativa elevação na mortalidade dos
113
Clio-Psyché: Instituições, História, Psicologia
internos, com uma taxa anual superior a 35%.
Tabela 6.2. Variação no número de internos no Hospital de Pedro
II, entre 1890 e 1902. O número médio de internos em tratamento em cada ano (Trátamento) é igual ao número inicial de
internos (Inicial), mais o número de novos internos que entram
(Entradas), menos os números de internos que saem (Saída) ou
morrem (Mortes). (Fonte dos dados: Alves, 2010, p. 81 e 87.)
Ano
1890
1891
1892
1893
1894
1895
1896
1897
1898
1899
1900
1901
1902
Inicial
Entradas
Saídas
Mortes
Tratamentos
317
471
489
672
589
626
637
654
678
669
758
766
788
498
302
(–)
526
724
706
695
777
788
737
684
662
674
187
142
(–)
339
399
369
407
477
505
402
448
440
421
157
142
(–)
270
288
326
271
276
258
246
228
200
164
471
489
672
589
626
637
654
678
703
758
766
788
877
Outro aspecto que podemos extrair dos registros diz respeito aos requerentes da internação. Segundo Rey (2012 [1875],
p. 386), as internações muitas vezes eram feitas a pedido de particulares (membros da família, “curador de incapazes” ou proprietários de escravos; correspondendo a 22% do total) ou por
requerimento oficial (chefe da polícia, juiz de órfãos, superiores
militares, além daqueles advindos do Hospital Geral da Santa
Casa de Misericórdia e outras instituições de saúde) (Rey, 2012
[1875]). Após a proclamação da República, a maior parte dos
requerimentos passou a advir de instituições policiais (48%) e de
estabelecimentos de saúde (13%), enquanto as internações a pedido de particulares caíram vertiginosamente. Tal mudança de114
O Hospício Nacional: arquitetura, política e população (1852-1902)
monstraria a mudança de perfil que vinha sendo instituído na assistência pública (Alves, 2010, p. 89), uma vez que as internações
solicitadas por particulares partiam quase sempre de pensionistas.
A grande maioria dos pacientes tinha entre 22 e 40 anos
de idade; predominavam indivíduos brancos, do sexo masculino e ativos profissionalmente, embora a maioria pudesse
ser classificada como trabalhadores gerais, sem especialização
e de baixa qualificação (Engel, 2001; Alves, 2010, p. 89). O
número de indivíduos negros, embora menor, era expressivo;
antes da abolição, isso era resultado da internação de escravos,
mediante pagamento. Todavia, como nos informa Gonçalves
(2011), diante da cronificação de sua doença, muitos escravos
acabavam sendo abandonados, aumentando o contingente do
asilo (Ribeiro, 2012) e elevando os custos para a instituição. Os
internos abandonados passavam a ser tratados como indigentes, sendo então transferidos para a respectiva seção. Segundo
Alves (2010), os prontuários destes últimos eram muitas vezes
acompanhados das respectivas cartas de alforria, concedidas
como um modo de os antigos proprietários se eximirem do
ônus com a internação.
Diagnósticos
A proposição de que o hospício funcionasse levando em
conta diferentes tipos de doença (Art. 18 dos Estatutos, decreto
n. 1.077, 4/12/1852) não saiu do papel, pois, em razão de limitações na estrutura física do asilo, assim como por causa das
orientações de sua administração, não especializada, a divisão
por seção acabou se baseando apenas por critérios de gênero e
classe social (Machado, 1978). Na década de 1870, a única divisão de caráter médico então vigente, tanto para homens como
para mulheres, era ainda a de agitados e paralíticos, no térreo,
e de tranquilos, no 1º andar.
De acordo com Rey (2012 [1875]), todos os internos — pensionistas ou indigentes, livres ou escravos — eram
classificados apenas em agitados e tranquilos, faltando ainda
115
Clio-Psyché: Instituições, História, Psicologia
uma organização baseada nas categorias das diferentes moléstias mentais, “uma necessidade irrecusável reclamada pelo
tratamento, pela moral, pela higiene e pela disciplina do estabelecimento” (Silva, 1868, p. 187, apud Gonçalves, 2011, p.
57). A precariedade nas divisões físicas do asilo, assim como a
falta de pessoal qualificado, impedia que o tratamento moral
fosse ali levado a termo, a despeito de estarem seus médicos
“atualizados” com as teorias e práticas europeias (Jouin, 2012
[1880], p. 412).
Tal deficiência afetava também o processo diagnóstico.
Embora tenhamos conseguido algumas informações sobre os
diagnósticos do hospício antes do período republicano, Rey
(2012 [1875], p. 94) adverte que os médicos “adotam uma
classificação inusitada, na qual as alucinações, a exaltação maníaca e a mania periódica são relatadas como formas particulares. Além disso, uma grande parte dos pacientes permanece
sem diagnóstico”, embora chamasse atenção para a presença
também de diagnósticos de demência e de imbecilidade. Por sua
vez, Jouin destacou que entre os diagnósticos psiquiátricos mais
frequentes estavam a demência, a mania, a monomania, a lipemania, o alcoolismo, a imbecilidade, a histeria e a paralisia
geral. (Jouin, 2012 [1880], p. 373-4). Após a proclamação da
República, conforme destacado por Alves (2010), os diagnósticos mais comuns passaram a ser o alcoolismo, a epilepsia e a
imbecilidade. Para as mulheres, o diagnóstico de maior frequência era o de histeria.
Conclusão
A autonomia da psiquiatria como especialidade médica e
autoridade sobre a alienação não coincidiu com a substituição
do sistema antigo de internação na Santa Casa da Misericórdia
por um asilo especificamente pensado para alienados, como o
decreto de 1852 parecia propor. A especialização psiquiátrica
foi sendo constituída paulatinamente, ao longo dos primeiros
30 anos de funcionamento do asilo, no confronto com os obje116
O Hospício Nacional: arquitetura, política e população (1852-1902)
tivos caritativos e políticos das religiosas que o administravam.
Assim, o nascimento da psiquiatria no Rio de Janeiro do século
XIX se constituiu em um processo de institucionalização iniciado a partir de reformas na estrutura do asilo e da ampliação
da assistência por meio da fundação de novas instituições; em
seguida, se materializou no surgimento de uma disciplina de
psiquiatria na faculdade de medicina local e na implantação de
uma legislação específica para a assistência aos alienados, delegando-os ao incipiente Estado republicano, no final do século
XIX. Ainda assim, esse percurso não resultou no estabelecimento de uma rede assistencial para a população brasileira como
um todo, ficando subsumida a quatro instituições públicas (o
hospício; duas colônias; e o pavilhão de observação) no Distrito Federal, além de algumas clínicas particulares. No percurso,
o Hospício Nacional de Alienados permaneceu como a peça
chave da assistência psiquiátrica oferecida pelo governo central
(os estados eram independentes e manejaram a loucura a partir
de soluções locais).
Apesar dos esforços de médicos e administradores, ao longo do século XIX, o asilo manteve uma estrutura sub-medicalizada: seu espaço sempre esteve aquém das necessidades médicas
e suas condições de higiene sempre deixaram a desejar. Além
disso, os processos de diagnóstico e terapêutico não alcançaram o estatuto científico necessário para o reconhecimento da
especialidade entre os seus pares. Mesmo os visitantes que o
conheceram chamaram a atenção para a falta de cientificidade
no processo diagnóstico e no tratamento oferecido, problemas,
segundo eles, causado pela falta de mão de obra especializada.
Como dizia Jouin, em 1880, embora simpático, o tratamento
conduzido no asilo estava longe de ser aquele preconizado mesmo pelos que ainda apoiavam o tratamento moral pineliano.
Com a República, o hospital passou a receber um número cada vez maior de internos, a maioria sendo de indivíduos do sexo masculino, brancos, em idade produtiva e pobres.
O número de pacientes aumentou, ao mesmo tempo em que
o perfil social dos internos mudou. Isso, no entanto, não sig117
Clio-Psyché: Instituições, História, Psicologia
nificou uma mudança na qualidade da hospedagem, nem na
complexificação das categorias diagnósticas ou nos métodos terapêuticos empregados. Não obstante as intenções transformadas em lei, as categorias diagnósticas e terapêuticas utilizadas
continuaram pouco uniformizadas no asilo. Até a nova Lei de
Alienados, de 1903, o hospício continuava a sofrer das mazelas
observadas desde a sua fundação. Em resumo, o advento da
República não resultou no desenvolvimento imediato de um
instrumental teórico distinto daqueles até então vigentes (Engel,
2001; Messas, 2008).
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***
123
6
La institucionalización de la psicología
en la Argentina:
saber universitario y usos sociales (1890-1920)
Ana María Talak
Introducción
Los procesos de institucionalización de la psicología en
diversos países han sido analizados desde diferentes dimensiones y perspectivas. Se ha mostrado, por ejemplo, el papel de la
creación de sociedades científicas y de carreras universitarias,
la organización de la formación de posgrado y de la investigación, la edición de libros y revistas, así como la organización
de diversas áreas profesionales y la participación de algunas
figuras destacadas en el campo intelectual de la época. Los
momentos inaugurales en el desarrollo de la disciplina pueden
resultar especialmente interesantes, ya que mientras las dimensiones señaladas se encuentran iniciándose, la misma identidad
disciplinar no está todavía estabilizada. Si bien en todos los
momentos de la historia disciplinar se pueden encontrar debates, conflictos, luchas por la imposición de ciertas concepciones,
reglas y valores de legitimidad, y puede predominar una mayor
o menor estabilidad en la definición y aceptación de esos criterios, en los momentos inaugurales se producen negociaciones
por la constitución y conformación de un proyecto disciplinar
que, ante todo, debe definir su identidad con respecto a otros
saberes y prácticas.
En este capítulo, se analizan los procesos de institucionalización de la psicología en la Argentina, durante las dos primeras
décadas del siglo XX. En primer lugar se exponen los criterios
que se tienen en cuenta para examinar la institucionalización,
y a continuación, se analizan cada uno de esos criterios para el
caso argentino.
124
Dimensiones y criterios para rastrear la
institucionalización de la psicología
Se entiende aquí que la institucionalización de la psicología
como disciplina académica es un proceso complejo, que supone
el logro de cierta estabilidad en las prácticas de producción de
conocimiento, de difusión y uso del mismo, procesos de reproducción de esas prácticas a través de la enseñanza y la creación
de sociedades o grupos académicos, así como procesos de definición de una identidad con cierta delimitación, identidad que
debe ser reconocida por quienes se consideran pertenecientes
a la disciplina, y por referentes de otras disciplinas. Desde esta
base, pueden distinguirse entonces diferentes dimensiones:
1. Una dimensión vinculada a la producción del conocimiento.
2. Una dimensión vinculada a las prácticas profesionales, es
decir, la configuración de la psicología como saber experto.
3. Una dimensión que se refiere a la inserción de la psicología
en la cultura más amplia, en la medida en que contribuye
a la formación de una grilla de lectura psicologizada de los
problemas de la subjetividad humana y de la realidad social.
Estas múltiples dimensiones exigen tematizar, por un lado,
las relaciones entre esta psicología y otras disciplinas y profesiones, ya consolidadas o también en vías de formación, y por el
otro, las relaciones con las problemáticas sociales del momento.
Todo esto consolidó el estatus de la psicología como grilla interpretativa y como tecnología de intervención. Parte del proceso de
institucionalización de la psicología fue la consolidación de un
lenguaje, de términos con los cuales se definieron los objetos de
estudio y los problemas, y de una metodología de investigación
que fue reconocida como legítima por los referentes de las ciencias ya establecidas. En este punto, fueron importantes las vinculaciones de la psicología con la tradición experimental de investigación (de la física y de la fisiología), con la tradición médica y
la clínica psicoterapéutica, con la educación, con la criminología
y con la interpretación de los problemas sociales y de la historia
argentina. Todas estas vinculaciones de la psicología habían venido desarrollándose en otros países de Europa y América.
125
Clio-Psyché: Instituições, História, Psicologia
No se trata de identificar autores canónicos y un origen
puntual que funde la institucionalización de la disciplina. Por el
contrario, desde estos múltiples criterios, se trata de examinar
cómo se fueron conformando, definiendo y estabilizando — aún
con cierta movilidad — los límites de la disciplina, con su propio lenguaje, conocimientos, prácticas de investigación y prácticas de intervención en diferentes problemas sociales, a lo largo del tiempo. Cada uno de estos procesos puede haber tenido
su propio desarrollo temporal, con convergencias, o con desarrollos por separado, indiferentes entre sí, o bien, con líneas
que pueden haberse reforzado mutuamente. La indagación de
la institucionalización de la psicología, entonces, requiere una
perspectiva amplia, abierta al azar de los eventos y de los comportamientos colectivos, ya que la creación de una disciplina no
es obra de un solo autor, o producto de la publicación de una
obra fundamental. Por otro lado, el logro de cierta estabilidad
a través de acuerdos, consensos y reproducciones, de formas
de investigar, comunicar y usar los conocimientos, es decir, el
logro de cierta hegemonía, no excluye la presencia de debates con respecto a ciertos tópicos, no excluye los pensamientos
plurales, las disidencias, las insatisfacciones que promueven la
búsqueda de alternativas. La clave al indagar los procesos de
institucionalización de la psicología en cada ámbito local, consiste en identificar cómo se dieron en cada caso estos procesos
con sus peculiaridades, señalar qué llegó a ser estable y fuera
de discusión, y qué temas se podían seguir discutiendo, cómo la
comunidad enfrentaba los desacuerdos internos, las anomalías,
y las objeciones externas. También es imprescindible distinguir
entre proyectos y realizaciones, es decir, no identificar las aspiraciones o autorrepresentaciones de los propios actores sociales
con las actividades efectivamente realizadas y los resultados de
hecho logrados, y su permanencia diferenciada a lo largo del
tiempo. Todo esto lleva a la precaución de no buscar en la institucionalización el logro de un conjunto plenamente racional,
la configuración de una lógica unificada. Es necesario examinar,
en cambio, cómo se forma cierta lógica peculiar que dialoga,
126
La institucionalización de la psicología en la Argentina
se superpone o se enfrenta con otras lógicas (disciplinares, de
prácticas sociales, etc.). La institucionalización supone la conformación de una lógica que incluye discursos y prácticas, y
que, no obstante, en la narrativa histórica, deben ser expuestas
y justificadas discursivamente.
Por otra parte, una disciplina científica como la psicología,
encierra siempre aspectos que tienen que ver con una identidad
universal, o internacional, que científicos de diferentes países
reconocen, y a la vez, con peculiaridades locales que hacen tanto a los problemas que resultan relevantes resolver, así como a
las singularidades de los desarrollos locales de cátedras, recursos materiales, figuras individuales, producción de ideas nuevas
y su circulación, etc.
La psicología en la Argentina, a principios del siglo XX,
siguió los parámetros de las tradiciones de investigación y prácticas de la psicología europeas, y en menor medida, norteamericana. Esas tradiciones externas le brindaron un lenguaje ya
aceptado, problemas estándares, marcos teóricos diversificados,
prácticas de investigación diferentes para cada tipo de problemas y marcos de investigación. Todo esto le brindó una primera
base para el proceso de institucionalización. Los autores argentinos interesados en el desarrollo de la disciplina tuvieron a
mano esas tradiciones ya conformadas para apropiarse de ellas,
y continuar desde allí. También tuvieron como proyecto desenvolver y aportar a esa disciplina entendida como universal.
A sua vez, la psicología local abordó una serie de problemas
prácticos, que tuvieron aspectos en común con los problemas
prácticos que abordó la psicología en otros países, pero también tuvieron rasgos idiosincráticos, vinculados al contexto histórico del país. Los problemas prácticos de los cual la primera
psicología argentina se ocupó, fueron los relacionados con: el
logro de una educación eficiente, que partiera del conocimiento
psicológico del niño y la niña argentinos, así como el tratamiento de los niños retrasados, débiles o anormales; la explicación
de la delincuencia a partir del estudio psicológico del delincuente, en el cual se veían las causas de la criminalidad, y el cual
127
Clio-Psyché: Instituições, História, Psicologia
debía ser modificado; la incidencia de la herencia y de la mala
vida en los problemas de la delincuencia y del desorden social
en general, tales como la delincuencia precoz, la infancia abandonada, la prostitución; el comportamiento de las multitudes,
y su relación con los líderes y los gobernantes; la explicación
de la historia argentina desde un punto de vista colectivo psicosocial; definir y contribuir a implementar los caminos para el
logro de una identidad nacional según criterios de progreso y
de lo que se consideraba un país civilizado, con una inclusión
de la población como ciudadanos trabajadores y la formación
de una élite dirigente.
La posibilidad de que la psicología abordara esos problemas y brindara sugerencias y soluciones a un público más
amplio, dependió de un constante trabajo de traducción y de
diálogo, ya que los problemas eran definidos por fuera de la
disciplina, con un lenguaje no psicológico, y los autores los
reinterpretaban en clave psicológica. Y las soluciones psicológicas eran transmitidas de una forma que tenía una base de sentido compartida por los miembros de otras disciplinas y de una
cultura científica y élite intelectual, que veía desde cierta ubicación en el orden social, los problemas de la sociedad argentina.
Esta circulación de sentidos fue en ambas direcciones, y se hizo
en gran parte en forma inadvertida por los propios actores. El
conocimiento psicológico era reconocido como saber experto,
pero compartía una carga significativa de sentidos y valoraciones propias del grupo social al que pertenecían los autores. Esas
valoraciones y supuestos no se tematizaban y contribuían a naturalizar la perspectiva de clase o grupo social que adoptaban,
la cual adquiría una legitimación por el lugar académico que
poseían sus autores.
Se retoma aquí la tesis de Nikolas Rose (Rose, 1996) de
la psicología como una tecnología de intervención en tres sentidos, al menos: 1) la psicología es una tecnología por el lenguaje
que utiliza, ya que ofrece categorías para representar de cierto
modo a los seres humanos, sus diferencias, la normalidad y la
desviación; 2) por las técnicas de registro y medición, con las
128
La institucionalización de la psicología en la Argentina
que cuantifica y ordena las diferencias entre los seres humanos,
y de esta manera, esos aspectos registrados de las subjetividades
humanas se convierten en calculables; y 3) por las formas de
interpretar y plantear soluciones a los problemas, con intervenciones específicas (tratamientos, orientaciones o recomendaciones, etc.). Considerar ese aspecto tecnológico de la psicología
destacado por Rose (1990, 1996) supone tener en cuenta: 1)
que el conocimiento psicológico involucra una dimensión ética
y política, inherente a la producción de conocimiento; 2) que
el saber experto actúa como autoridad a partir del lugar especial desde el cual se produce y difunde, y esto le otorga un rol
especial en la distribución de las relaciones de poder entre los
seres humanos; y por último, 3) que al actuar desde ese lugar en
esas relaciones, y al intervenir en diferentes prácticas sociales
más amplias (educación, prácticas de higiene, tratamiento de
los delincuentes, etc.), la psicología participa del gobierno de
las conductas, gobierno que supone el desarrollo de técnicas a
través de las cuales los sujetos conducen sus propios modos de
pensar, de creer, de sentir, de aspirar, de comportarse, en función de criterios brindados por otros (grupos sociales, expertos,
autoridades de diferentes tipos, etc.).
A continuación, se analizan las tres dimensiones mencionadas para el caso de la institucionalización de la psicología
en la Argentina.
Primera: La institucionalización de la producción
del conocimiento
Esta dimensión se refiere sobre todo a la producción de
conocimiento en el ámbito universitario, a través de la enseñanza de la disciplina y la investigación, y en tanto esos investigadores y profesores fueron reconocidos como expertos en otros
ámbitos profesionales.
Los primeros cursos de psicología en el ámbito de la educación superior en la Argentina se abrieron en la Facultad de Filosofía y Letras de la Universidad de Buenos Aires (UBA), desde
129
Clio-Psyché: Instituições, História, Psicologia
1898; en la Sección Pedagógica de la Universidad Nacional de
La Plata (UNLP), desde 1906; y en el Instituto Nacional del
Profesorado Secundario (INPS), creado en 1904, pero que comenzó a funcionar efectivamente en 1906. La apertura de los
primeros cursos fue acompañada con la creación de laboratorios de psicología en las tres instituciones.
Se ha señalado que los mencionados cursos universitarios
de psicología constituyeron una especie de plataforma o suelo
desde el cual se produjeron operaciones discursivas y prácticas que definieron la psicología en tanto saber científico, de
acuerdo con ciertos marcos conceptuales, y se utilizaron criterios epistémicos específicos para legitimar el saber producido
localmente, apoyándose en los desarrollos europeos y norteamericanos contemporáneos (Talak, 2008). La producción realizada desde esos cursos dependió también de las orientaciones
de los ámbitos académicos en los cuales se insertaron (e.g., en
la UBA predominó una orientación clínica, en la UNLP y en el
INPS en cambio una orientación educativa) y de los aspectos
sociales, culturales y académicos que favorecieron u obstaculizaron la conformación de un campo intelectual en la Argentina
durante las dos primeras décadas del siglo XX. Los profesores
de esos cursos de psicología resultan referencias insoslayables:
Horacio G. Piñero, José Ingenieros, Carlos Rodríguez Etchart
en la UBA; Víctor Mercante, Rodolfo Senet y Alfredo Calcagno en
la UNLP; Félix Krueger y Wilhelm Keiper en el INPS.
Previamente a la creación de esos cursos universitarios, la
psicología en la Argentina había comenzado a ser estudiada
en relación a las ciencias naturales, desde una perspectiva más
empírica y fisiológica, en el ámbito de la escuela secundaria
(en el Colegio Nacional de Buenos Aires y en las escuelas normales). La formación de maestros, principalmente a partir de
la tarea educativa y difusora de Pedro Scalabrini en la Escuela
Normal de Paraná, fue uno de los ámbitos de la primera recepción de las ideas positivistas y evolucionistas que favorecieron
el enfoque naturalista de la psicología. En el Colegio Nacional
de Buenos Aires, Carlos Rodríguez Etchart había comenzado
130
La institucionalización de la psicología en la Argentina
a usar en la enseñanza de la psicología, los libros de G. Sergi,
Psicologia fisiologica (1881), y de F. Paulhan, Physiologie de
l’esprit (1880), traducidos al español. Esa orientación fisiológica sería continuada por Horacio G. Piñero, a partir de 1898,
en el mismo establecimiento y luego en la Facultad de Filosofía
y Letras. Víctor Mercante, también había iniciado investigaciones en el área de la psicología pedagógica en San Juan, desde
1892, estudiando diversas aptitudes en los alumnos de la escuela normal bajo su dirección, y, según su testimonio, montando un primer laboratorio elemental de psicofisiología en el
país. Su libro, La educación del niño y su instrucción (1897),
recogió esos primeros resultados. Además, diversos estudios
de psiquiatría o de psicología social planteados en términos de
patología mental, que se venían publicando, incluían entre sus
categorías interpretativas términos y explicaciones de carácter
psicológico, tales como La neurosis de los hombres célebres en
la historia argentina (1875), y las Lecciones clínicas sobre enfermedades nerviosas y mentales (1893), de José María Ramos
Mejía; South America. Ensayo de psicología política (1894),
de Agustín Álvarez; Hombres de presa (1888), de Luis María
Drago, que iniciaba la lectura psicológica de los problemas de
la delincuencia; Pasiones. Estudios médicos sociales (1893),
de Lucas Ayarragaray.
Los cursos universitarios y los laboratorios de psicología
posibilitaron una continuidad en la enseñanza y en la investigación incipiente en esos años. A nivel institucional, hubo una voluntad de fundar y sostener la orientación empírica, naturalista
de la psicología, que permitiera comprender las capacidades
psicológicas de los seres humanos y su relación con las demás especies animales, además de abordar ciertos problemas de carácter práctico, relacionados con el momento histórico que vivía la
Argentina y con los problemas del rápido crecimiento urbano.
Desde el punto de vista teórico, la psicología parecía ocupar un lugar clave en la división intelectual de las áreas del
saber científico: al reconocer que todas las ciencias empíricas se
basaban en la experiencia humana, la psicología aparecía como
131
Clio-Psyché: Instituições, História, Psicologia
la ciencia que se ocupaba de establecer el carácter de esa experiencia, y las relaciones entre subjetividad y objetividad. De esa
manera, la psicología era postulada como un puente entre las
ciencias y la filosofía, a la vez que parecía serle inherente una
doble naturaleza científica y filosófica. El modo de enfrentar
y asumir la ambigüedad de esta doble naturaleza marcó gran
parte de los debates acerca de su identidad disciplinar, definida
como evolucionista, monista y determinista (Ingenieros, 1919).
Los problemas de la gradualidad del desarrollo de las funciones psicológicas en la evolución filogenética, su relación con la
fisiología del sistema nervioso, el surgimiento de la consciencia
como propiedad de ciertas funciones psicológicas y el problema
de la memoria, definida en términos materiales y vivenciales,
condujeron a definir el estatus de la psicología como una ciencia biológica, que legitimó la extensión del lenguaje de la física
y de la biología evolucionista a la interpretación de los fenómenos sociales e históricos (Senet, 1909; Ingenieros,1919).
La biología evolucionista, la perspectiva energetista de
la física y la fisiología experimental otorgaron a la psicología
problemas y conceptos teóricos para abordarlos. Pero a la vez,
estas mismas teorías constituyeron los límites en el logro de
nuevos desarrollos teóricos de la psicología, con mayor especificidad en las herramientas conceptuales. El mayor obstáculo se
manifestó en la dificultad en abordar la incidencia de lo cultural
y lo social en la constitución misma de la subjetividad humana.
Desde esa naturalización de los valores de la propia época y del
propio grupo social, se pueden entender los desplazamientos
conceptuales constantes desde los postulados de las ciencias naturales hacia la comprensión de lo humano y lo social (como la
identificación de la historia con la evolución) y desde categorías
de comprensión de las sociedades hacia los fenómenos de la
naturaleza (como la identificación de la evolución en el mundo
natural con el progreso) (Talak, 2009).
Precisamente, la relación entre la herencia y la experiencia,
y la creencia en la herencia de las modificaciones adquiridas,
constituyeron otro problema fundamental, vinculado a las no132
La institucionalización de la psicología en la Argentina
ciones de evolución y progreso, cuyas implicancias prácticas
fueron enormes. La psicología, al tomar como objeto de conocimiento al ser humano, en sus relaciones con el resto de los
seres naturales, asumió la tarea de describir, clasificar y explicar las diferencias humanas. En esos procesos de descripción y
comprensión estaban presentes valoraciones de las cuales los
propios autores no eran conscientes. La fisiología, por ejemplo,
le brindó a la psicología provechosas herramientas de investigación y esquemas conceptuales, pero a la vez, esta quedó
limitada por estos mismos recursos en la resolución de algunos
problemas como el de la memoria y el de la conciencia (Talak,
2001). Además, en este marco de interpretación naturalista, las
diferencias entre los roles sociales del hombre y la mujer solían
interpretarse como características naturales de la psicología
masculina y femenina. Los usos de las nociones de atavismo,
regresión y degeneración en diferentes ámbitos, como la educación, la psicoterapia y la criminología, muestran también el
nivel dogmático con que se sostenía la apelación a la investigación empírica, y las valoraciones no tematizadas en el abordaje
de los problemas (Talak, 2010).
La institucionalización de una disciplina desde la dimensión de la producción del conocimiento, contribuye a consolidar la continuidad de su producción autónoma. Entre los indicadores más significativos de la institucionalización de una
disciplina, pueden considerarse los siguientes (Blanco, 2006,
p. 51-80):1
1. la producción de libros de textos, en la medida que estos se
vuelven portavoces de problemas y herramientas conceptuales y metodológicas comunes;
2. la enseñanza de la disciplina como un tema mayor, no como
una materia más, por profesores especializados, que han dedicado su formación a esa área y no, en cambio, que ejercen
1. Retomo aquí los indicadores que Alejandro Blanco (2006, pp. 51-80) ha tenido en
cuenta en el estudio de la institucionalización de la sociología en la Argentina, inspirado a su vez en Edward Shils, “Tradition, ecology, and institution in the history of
sociology”, Daedalus 99: 778 (1970).
133
Clio-Psyché: Instituições, História, Psicologia
la docencia de esa disciplina solo como una actividad complementaria de otra actividad profesional;
3. la existencia de publicaciones periódicas especializadas, en
las que que los practicantes de la disciplina puedan publicar
en vez de hacerlo en revistas científicas de carácter general
que se dedican a otros temas o áreas más amplias, no específicas;
4. el financiamiento de la investigación y la organización administrativa necesaria a tal fin; y
5. la aparición de sociedades científicas, que promuevan un espacio común de producción y aplicación del saber.
En estas primeras décadas se produjeron varios libros de
textos que fueron usados para la enseñanza de la psicología en
el nivel superior. Entre ellos se encuentran: Bunge (1903); Mercante (1906, 1911a, b, 1918, 1927); Senet (1909, 1911, 1940);
Ingenieros (1911); Rodríguez Etchart (1913); y Piñero (1916).
Varios de los profesores mencionados que enseñaban psicología en el nivel superior, se dedicaban exclusivamente a la
enseñanza. Tales fueron los casos de Horacio G. Piñero, quien
tenía un cargo de profesor titular de Fisiología, en la Facultad
de Ciencias Médicas, y de profesor titular de Psicología, en la
Facultad de Filosofía y Letras (ambos en el UBA); de Wilhelm
Keiper, en el INPS; de Rodolfo Senet y Víctor Mercante, en la
UNLP; aunque todos ellos no emseñaban exclusivamente una
materia, sino varias (al menos dos, como Horacio G. Piñero).
No fue así el caso de otros profesores médicos, como José Ingenieros y Carlos Rodríguez Etchart, quienes además de dar
clases en la universidad, trabajaban en la clínica privada o en
hospitales públicos.
En este período, se publicaron también varias revistas
científicas que incluyeron una cantidad significativa de artículos de psicología y se convirtieron en ámbitos de difusión local
de los conocimientos de la disciplina producidos en el exterior
y en el país: los Archivos de Psiquiatría, Criminología y ciencias
afines (1902), revista fundada y dirigida por José Ingenieros;
los Archivos de Pedagogía y ciencias afines (1906), dirigido por
134
La institucionalización de la psicología en la Argentina
Víctor Mercante, en la UNLP, y la Revista de Filosofía, Cultura, Ciencias, Educación (1915), creada y dirigida por José
Ingenieros, hasta su muerte en 1925. La Sociedad de Psicología de Buenos Aires, creada en 1908, publicó tres volúmenes
de trabajos producidos por sus miembros, bajo el nombre de
Anales de Psicología (1910, 1911 y 1914). Si bien no mantuvo
la continuidad, y duró un lapso de tiempo breve asociado a la
corta duración de esa sociedad, puede considerarse la primera
publicación periódica del país dedicada exclusivamente a la psicología. El Monitor de Educación Común, revista creada por
Domingo Faustino Sarmiento, en 1881, comenzó alrededor de
1900 a tener una política más clara de contribuir a la formación
y actualización de los docentes de nivel primario. A partir de
ese momento, comenzaron a aparecer entre sus trabajos, artículos en los que se difundían las nuevas concepciones de la psicología, los usos de la psicología experimental, de la psicometría
y de la psicopedagogía en la escuela, las nuevas corrientes de
psicólogos educativos extranjeros, etc.
El financiamiento de la investigación y la organización administrativa necesaria a tal fin estuvo prácticamente ausente.
La mayor contribución fue el sostenimiento de los laboratorios
creados, con la compra de instrumental y de la bibliografía necesaria, así como con el sostenimiento de cargos de Jefe de Trabajos Prácticos del Laboratorio. No obstante, no existía en esos
años una estructura que impulsara con recursos específicos la
investigación, ni existía una carrera profesional de investigador.
Las investigaciones eran llevadas a cabo por los mismos profesores, como una actividad incluida dentro de su cargo docente,
o bien, se realizaba en el tiempo privado de ellos.
Por último, la mencionada Sociedad de Psicología de Buenos Aires, creada en 1908 y que funcionó hasta 1913, cumplió
un papel significativo en la construcción de la identidad disciplinar. Sus impulsores principales fueron Horacio G. Piñero,
José Ingenieros y Francisco de Veyga. Siguió el modelo de las
sociedades europeas, que buscaban promover la investigación
y la discusión de temas de psicología, pero no un desarrollo
135
Clio-Psyché: Instituições, História, Psicologia
profesional de la psicología como profesión autónoma, a diferencia del modelo norteamericano de la American Psychological Association, que cumplió un papel más decisivo en la
conformación de la profesión del psicólogo. La Sociedad de
Psicología de Buenos Aires fue la primera de América Latina, y
se encontraba entre las primeras sociedades de psicología creadas en el mundo (e.g., en Estados Unidos, se creó en 1892; en
Francia y Gran Bretaña, en 1901; en Alemania, en 1904; y en
Italia, en 1910). Esta Sociedad contribuyó a establecer los límites disciplinares, en su producción, en sus aplicaciones y en su
enseñanza, pero en la apertura hacia disciplinas y profesiones
diferentes que pudieran contribuir a ella. Los primeros relatos
históricos de la psicología, de esos años, también recurrieron a
esta operación de delimitación y apertura, en los mismos cruces
disciplinares, acentuando los aportes en una y otra dirección, y
los componentes del marco común que unía la psicología con
todas las ciencias (naturales y humanas) (ver Talak, 2008).
En suma, si bien no se cumplieron la totalidad de los indicadores mencionados previamente, hubo pasos en dirección a
una institucionalización en el contexto de las posibilidades locales. De todas las obras mencionadas, Principios de psicología,
de José Ingenieros, fue la obra que alcanzó mayor difusión internacional, siendo traducida a otros idiomas (al alemán, al francés
y al italiano); fue considerada una obra de filosofía de la psicología, una obra que aportaba a la reflexión sobre el estatus teórico
de la psicología. Puede afirmarse que hubo una producción local
en psicología significativa para la época, aunque tuvo su mayor
valor en el campo de las aplicaciones en diferentes áreas, más
que en la investigación básica o en la innovación teórica.
Segunda: Las prácticas profesionales (el saber
experto)
Desde el punto de vista práctico, la psicología se proponía
como un saber que prometía intervenciones eficaces en la conducción de individuos, grupos y pueblos. Tales intervenciones
136
La institucionalización de la psicología en la Argentina
estarían basadas en la interpretación y en el abordaje de problemas de carácter individual y social, definidos en función de
la percepción contemporánea de los procesos de modernización
de la sociedad y de la construcción de la identidad nacional. La
conformación del Estado nacional, durante el último tercio del
siglo XIX, coincidió con el fortalecimiento y la expansión de la
creencia de que el progreso tenía como uno de sus componentes fundamentales la racionalización de las prácticas políticas,
institucionales y sociales, proceso en el que cumplía un papel
clave la aplicación del saber científico (Weinberg, 1998). Viejos
y nuevos problemas eran leídos a través de esa idea básica, que
ya no veía los males, los obstáculos al progreso, como algo
inevitable, sino como aquello sobre lo cual se podía y se debía
intervenir. Varios trabajos han puesto de relieve el rol del saber
médico y de la figura del médico en este proceso. Fue durante
el último tercio del siglo XIX que la profesión médica logró
consolidarse en la Argentina, a la vez que expandió su campo
de intervención a todo el cuerpo social, a través del movimiento
higienista (Armus, 2000; Nouzeilles, 2000). Si la higiene tuvo
presencia en el país desde mediados del siglo XIX, fue en el
último tercio del siglo cuando sus ideales quedaron incorporados plenamente en el proyecto modernizador. La expansión
del este movimiento higiénico coincidió con la visibilidad que
cobraron los problemas de la cuestión social a fines del siglo
XIX y principios del siglo XX (Zimmermann, 1995; Suriano,
2000). La expresión “cuestión social” alude a los problemas
sociales, laborales e ideológicos suscitados por la industrialización y la urbanización, que incluyeron tanto los problemas de
la cuestión obrera como los problemas asociados a la pobreza,
la prostitución, la vivienda, la criminalidad, los problemas de
género suscitados por el rol de la mujer como trabajadora y
madre, y la cuestión indígena. La ideología higienista y el saber
médico como modelo epistemológico (González Leandri, 2000)
se convirtieron en la matriz hegemónica en la interpretación de
estos problemas. La justificación de la psicología desde un punto de vista práctico se desenvolvió desde esa mirada médica, ya
137
Clio-Psyché: Instituições, História, Psicologia
extendida, legitimada y naturalizada, de los problemas sociales.
El problema crucial residía en determinar qué papel podía
cumplir el medio ambiente en el proyecto civilizador. En este
contexto, la intervención pedagógica o psicoterapéutica debía
apoyarse en los conocimientos científicos que marcaran sus
posibilidades y a la vez dirigieran su accionar. Desde una concepción evolucionista, el desarrollo físico y psicológico normal
suponía un tipo de evolución dirigida orgánicamente, que el
medio debía acompañar. El desarrollo anormal suponía, por el
contrario, una involución o degeneración, cuya etiología quedaba confusamente determinada, como tara hereditaria, proveniente de la sífilis, las psicopatías y el alcoholismo de los padres, o bien por haber sufrido en la primera infancia trastornos
cerebrales debidos a traumatismos o enfermedades infecciosas
(Senet, 1906; Bunge, 1918).
La psicología, entonces, tomó del modelo médico la forma de interpretar los problemas en términos de normalidad y
patología, como grilla interpretativa de sus propios objetos de
estudio, viendo como natural el uso de esos criterios para evaluar todos los fenómenos psicológicos y psicosociales. Y tomó
del higienismo la voluntad de intervenir en los problemas prácticos desde el saber académico, legitimando así la extensión de
su campo de acción. Pero a la vez, el higienismo, en esa operación de ampliación del objeto de intervención de la medicina a todo el cuerpo social, entendiendo la salud en términos
corporales y de costumbres y formas de vida, legitimó el uso de
una terminología psicológica y sociológica en la interpretación
pretendidamente biológica de los problemas urbanos.
Si bien todavía no había una profesión de psicólogo, los
autores que se especializaron en esta disciplina fueron convocados en otros campos, como autoridades en psicología humana,
para resolver diferentes tipos de problemas prácticos, en la clínica psicoterapéutica, en la criminología, en la educación y en
la interpretación de la sociedad y la historia argentina. Por eso
se utiliza aquí la expresión “usos de la psicología”, en vez de
prácticas profesionales de la psicología.
138
La institucionalización de la psicología en la Argentina
Clínica
En el ámbito médico, se usó la psicología para abordar
los problemas relacionados con la comprensión y el diagnóstico de conflictos psicológicos que suponían patologías leves,
intermedias, modificables. Estos trastornos no exigían la internación y exclusión del enfermo, como la demencia o alienación
mental, sino que motivaban otro tipo de intervenciones, que se
llamaron psicoterapias (Ingenieros, 1904). Estos tratamientos
se implementaron en los consultorios externos de los hospitales
generales, y se relacionaron con la crisis de la profesión psiquiátrica, y más tarde, se vincularían a la crisis de la interpretación
hereditaria de las enfermedades mentales. Estas intervenciones
clínicas fueron justificadas teóricamente de diversas maneras, y
tomaron muchas veces la forma de prácticas hipnóticas, sugestivas o persuasivas, educativas, o recuperadoras, y estuvieron
fuertemente marcadas por concepciones moralistas propias de
la ideología de clase de los intelectuales y profesionales que
las usaron (ver Vezzetti, 1996). Los tipos de problemas que
buscaban solucionar abarcaban tanto la supresión de síntomas
(enuresis, tartamudeo, algunos síntomas histéricos o fóbicos),
curar enfermedades (alcoholismo, neurosis, histerias), problemas sexológicos y problemas escolares (niños con cierto déficit
intelectual o con problemas de disciplina).
Criminología
Los problemas de la delincuencia formaban parte de la
cuestión social de la época, en un contexto de inmigración masiva, rápida urbanización, y a la vez, aumento de la pobreza,
la prostitución y la criminalidad. La intervención sobre estos
problemas se vinculaba al proyecto político de modernizar el
país y las grandes ciudades, lograr un saneamiento de las zonas
urbanas, y homogenizar a la población. La criminología nació
como el estudio del delincuente, desde una grilla interpretativa medicalizada, individualista, que veía la conducta delictiva
como una patología que debía modificarse. La antropología
139
Clio-Psyché: Instituições, História, Psicologia
criminal, creada por Cesare Lombroso (Lombroso, 1876), la
cual se proponía identificar los estigmas físicos que diferenciaban a los delincuentes de los hombres honestos, suponía no
solo una etiología biológica del delito, sino también una mirada clínica, individualista, que invisibilizaba las cuestiones sociales, económicas y políticas, de carácter estructural, presentes
en los desarrollos de la modalidades delictivas en cada sociedad
en cada momento histórico (Taylor et al., 2001). La psicología fue incorporada a la criminología dentro de esta matriz de
interpretación, y reforzó el modelo médico de lo normal y lo
patológico que tenía para el abordaje general de sus temas de
estudio (e.g., Ramos Mejía, 1904; Ingenieros, 1916). Médicos y
abogados que se dedicaron a la psicología, interpretaron y elaboraron los contenidos de la disciplina desde la perspectiva que
identificaba los problemas sociales con patologías individuales
y, por lo tanto, promovieron el examen de las personas, para
establecer diagnósticos y pronósticos. La misma idea de prevención, tan extendida y valorada durante esos años, mantenía
la concepción de que el medio ambiente favorecía o perjudicaba lo que ya estaba en el individuo, y desde allí se proponía las
medidas moralizadoras y disciplinadoras sobre la población. El
concepto de responsabilidad del código penal fue reemplazado
en la criminología por el de peligrosidad, que era lo que se debía diagnosticar, y modificar.
Aun cuando perduraron las referencias a las causas orgánicas (herencia, degeneración) y la identificación de estigmas
físicos de la patología, cada vez más se tendió a buscar las explicaciones etiológicas en los conflictos internos individuales
vividos por los sujetos examinados. El examen psicológico o
psicopatológico se convirtió en el principal instrumento de producción de conocimiento sobre los seres humanos. Ese conocimiento desembocaba en una identidad fijada en la clasificación,
acorde a los saberes que se sostenían en la época. Además de
la delincuencia urbana relacionada con los robos, estafas y homicidios, la psicopatología criminológica abordaba problemas
como la delincuencia infantil y juvenil, los delitos asociados a
140
La institucionalización de la psicología en la Argentina
la mujer (prostitución, abortos e infanticidios), las patologías
sexuales (homosexualidad, travestismo), la modificación de “la
mala vida” y el anarquismo.
Educación
Un tercer ámbito que estimuló en gran medida la producción y uso de los conocimientos psicológicos fue el de la educación. Allí fueron educadores, como Víctor Mercante y Rodolfo
Senet, no abogados o médicos, los que iniciaron y continuaron la investigación en psicología y sus usos en las cuestiones
prácticas de didáctica, organización institucional y curricular,
entre otros aspectos. Además, la escuela pública fue uno de los
ámbitos privilegiados de intervención del movimiento higiénico, ya que era desde allí donde se podía educar al nuevo sujeto
argentino en las normas de la vida higiénica, y a través de él,
modificar las costumbres de las familias. Así, observamos que
se crearon cátedras de higiene escolar, para formar a profesores
y maestros. Además, predominaban en el ámbito educativo los
componentes del clima de ideas de la época: el mito del progreso, las diferencias de papeles sociales entre mujeres y varones
justificadas como diferencias de naturaleza, la participación de
la herencia en la determinación de la identidad, pero a la vez
una creencia en el papel transformador de la educación (e.g.,
Senet, 1908, 1911; Mercante, 1909, 1918). La psicología se
centró en el estudio de los alumnos, identificando el niño con
el alumno del primario y el adolescente con el alumno del secundario. Toda una metodología psicométrica fue desarrollaja,
sobre todo a determinar medidas grupales (Talak, 2003). Los
tipos de problemas que la psicología abordó en este ámbito
fueron: el estudio de las aptitudes, sus variaciones según sexo
y a lo largo del desarrollo, su educabilidad; la determinación
de los tipos de déficit intelectuales y su educabilidad; la fatiga
intelectual; la orientación profesional; los métodos más eficaces
según las diferencias grupales; los problemas de la indisciplina,
entendidos como formas de patologías del carácter.
141
Clio-Psyché: Instituições, História, Psicologia
Interpretación psico-social
Por último, dentro de los usos de la psicología, también se
apelaron a los términos de la patología mental, a las nociones
de degeneración, de evolución y de herencia en la interpretación de los problemas sociales y la historia argentina. La psicología se proponía como aquella que permitiría comprender
las sociedades, los grupos, el pueblo, que se buscaba disciplinar y dirigir. Los problemas sobre los que más se centraron
las reflexiones fueron aquellos vinculados con las conductas de
lasmultitudes, y la relación entre los dirigentes y el pueblo (Ramos Mejía, 1944 [1907], 1952 [1899]); el papel del trabajo, o
la mala vida (Gómez, 1908), en relación con la herencia y el
tiempo necesario para lograr transformaciones estables; la interpretación de la herencia biológica y cultural de los españoles
y de los indígenas (Ayarragaray, 1912; Ingenieros, 1918); y los
conflictos obreros. La interpretación de la identidad nacional,
desde una ideología del progreso, dentro de un marco naturalista, evolucionista, cientificista, autorizó expresiones como
hombre carbono, atavismos, neurosis de hombres célebres (Ramos Mejía, 1915 [1878], 1933 [1896], 1952 [1899]), hombre
mediocre, hombre superior, genio, degeneración adquirida (Ingenieros, 2003 [1913]), en un contexto que buscaba comprender los problemas sociales y políticos del país.
La medicalización de los abordajes de los problemas sociales, estuvo presente entonces tanto en los usos de la psicología
como en los planteos teóricos, ya que se trató de un proceso por
el cual cierta grilla interpretativa (cuyos componentes hemos
señalado: la visión clínica de los problemas, la consideración
individual de los mismos y la del medio como simple facilitador
u obstaculizador, entre otros) se extendió a la comprensión de
todos los problemas humanos, sean estos teóricos (la conciencia, la memoria, etc.) sean estos prácticos (la criminalidad, la
educación, las patologías mentales, los conflictos sociales, etc.).
Esos usos de la psicología le otorgaron una visibilidad
social-profesional como saber experto. Esto contribuyó a consolidar su estatus de saber fundamental y aplicado, pero sin la
142
La institucionalización de la psicología en la Argentina
necesidad de definir un proyecto profesional autónomo. Además, se ha mostrado que los problemas relevantes que abordó
la psicología tuvieron que ver con el contexto social, cultural
y político en el cual esta fue utilizada. Esto favoreció un intercambio de vocabulario, de sentidos y de valoraciones, que
permitieron la comunicación entre discursos sociales y disciplinares diferentes.
Tercera: Inserción en la cultura más amplia
(grilla de lectura psicologizada)
A partir del análisis de los usos de la psicología en este
período, se ha visto cómo la medicina y el higienismo constituyeron la matriz principal desde la que se desarrolló la psicología, favoreciendo y legitimando el uso de un vocabulario
psicológico en la interpretación de los procesos sociales, y de la
transmisión de la enfermedad, desde una perspectiva individualista más que sociocultural.
La psicología participó así de un proceso histórico más
amplio, social y político, formando parte de las tecnologías humanas de producción de subjetividades. Gran parte de la producción académica de los saberes psicológicos en la Argentina,
en estas primeras décadas del siglo XX, y por tratarse de un
momento inaugural en el que no había todavía especialistas
en el área, se hizo desde esas diferentes disciplinas y profesiones (educación, medicina, clínica y psiquiatría, criminología, la historia y las ciencias sociales), las cuales orientaron la
comprensión psicológica de los problemas, y las lecturas que
se realizaron de autores europeos y norteamericanos, determinando la importancia teórica y práctica de ciertos abordajes
frente a otros.
Los problemas de las tradiciones extranjeras de investigación psicológica actuaron en la Argentina definiendo el suelo de
conceptos y de lenguaje aceptables para cualquier conocimiento psicológico creíble. Por eso, no se trató de la construcción de
una supuesta lógica interna de un campo nuevo y autónomo.
143
Clio-Psyché: Instituições, História, Psicologia
Fueron fundamentales las lógicas de los otros ámbitos disciplinares o profesionales desde los cuales se realizó su producción
y su enseñanza universitaria. Los problemas y los objetos de
conocimiento cobraron forma y adquirieron relevancia en esos
entramados de relaciones discursivas y prácticas.
En suma, en las dos primeras décadas del siglo XX, se
intentó desarrollar una psicología empírica científica, prometedora en sus proyecciones teóricas y prácticas, en relación a
una ideología del progreso presente transversalmente más allá
de las divisiones disciplinares y en un ideal que abarcaba los
anhelos de los intelectuales y políticos.
Consideraciones finales
La institucionalización de la primera psicología en la Argentina, no fue el resultado de la mera aplicación del método
experimental, o de la obra de un solo autor, o del papel singular
de una figura clave.
Por un lado, el experimento psicológico fue importante
en esta psicología, por varias razones. En los discursos sobre
la valoración del estado de la disciplina, la experimentación
aparecía como el instrumento clave que dejaba atrás las especulaciones filosóficas inciertas y le daba a la psicología una base
similar a la de las ciencias naturales. En la práctica, estimuló
la adopción de la nueva orientación empírica de la psicología,
promoviendo la creación de laboratorios y de una actualización tecnológica y bibliográfica, y, por lo tanto, la vinculación
con la producción internacional. En este proceso, se inició una
tradición psicométrica que se continuó hasta la creación de las
carreras de psicología, en la década de 1950, y tuvo diferentes
ámbitos de aplicación. Sin embargo, la función principal del
uso de la experimentación en psicología fue la enseñanza a los
estudiantes de la nueva metodología incorporada a la disciplina, estandarizada en diferentes prácticas de investigación en
otros países (además de su aplicación en campos de mediciones
psicológicas en la educación, la orientación profesional y los
144
La institucionalización de la psicología en la Argentina
peritajes psicológicos), y no la producción de nuevos “conocimientos” en sí mismos. Contribuyó a un aspecto de la institucionalización de la psicología, en la faz reproductiva de una
orientación empírica de la misma. Pero, fuera de una manera o
de otra, no puede servir de base para establecer un origen mítico de la psicología en el país.
Por otro lado, la figura de José Ingenieros fue significativa
en el desarrollo de la psicología, dado que articuló claramente
diferentes tradiciones de la psicología naturalista en un marco
teórico común (Ingenieros, 1911), el cual fue luego aceptado
por otros autores locales y reproducido en la enseñanza de la
psicología. Esa obra, a su vez, tuvo una resonancia internacional, como pocas producciones argentinas en psicología la
tuvieron en las décadas siguientes. Si tenemos en cuenta su papel como profesor, en la divulgación a través de la fundación
y dirección de revistas, en la Sociedad de Psicología de Buenos
Aires, y su figura como intelectual en el campo cultural y político de la época, Ingenieros también cumplió un rol importante
en la articulación entre prácticas y teorías, entre desarrollos
académicos, usos de los saberes e intervención política. Sin embargo, para el desarrollo e institucionalización de una disciplina es importante la conformación de una red de producción
de saber y de la organización de las pautas de esa producción,
legitimación y reproducción a través de la enseñanza y la difusión de ideas. Importa más en este caso las vinculaciones entre
ciertas figuras singulares y la formación y consolidación de esa
red institucionalizada, que la figura individual en sí misma.
Precisamente, a partir de todo lo expuesto en este capítulo,
se detecta una consolidación de la psicología durante las dos
primeras décadas del siglo XX, con una clara definición de un
proyecto teórico que definía la psicología como ciencia natural, pero ocupando a la vez un lugar destacado en la relación
entre las ciencias naturales, las ciencias sociales y la filosofía.
Desde el punto de vista práctico, hubo múltiples usos de la psicología en diferentes campos profesionales, como la educación,
la criminología y la clínica. Los autores abordaron y trataron
145
Clio-Psyché: Instituições, História, Psicologia
de aportar interpretaciones y soluciones “psicológicas” a los
problemas políticos y sociales de la época, aunque no plantearon un proyecto profesional autónomo, con una identidad independiente de otras prácticas profesionales. Los procesos de
institucionalización implicados muestran el papel que tuvo la
inserción de la psicología en la cultura más amplia, y en los
usos de sus técnicas y conocimientos en el abordaje de los problemas relevantes de las diversas áreas analizadas (educación,
criminología, psicología social). En estos usos estuvo vinculada
plenamente a valoraciones sociales y políticas de ciertos grupos
sociales de la época. Esas valoraciones estaban presentes en la
forma de comprender el ser humano, sus diferencias psicológicas, su naturaleza, su lugar en el orden social. Esas valoraciones
y la vinculación que estableció con otras disciplinas y prácticas,
y con la cultura más amplia, le dio a la psicología cierta fisonomía y modalidad de trabajo. A la vez que se fue logrando
una continuidad en la producción, enseñanza y aplicación de la
psicología, según normas legitimadas, esto se produjo a través
de la adopción de una visión y formas de intervención reproductivas del orden social vigente.
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149
Comentários sobre os textos dos capítulos 5 e 6
“O Hospício Nacional e a assistência a alienados do Distrito Federal: institucionalização de saberes e práticas no Brasil”, de Cristiana
Facchinetti & Cristiane de Sá Reis, e “La institucionalización de la
psicología en la Argentina: saber universitario y usos sociales (18901920)”, de Ana María Talak.
Alexandre de Carvalho Castro
A elaboração do texto acerca do Hospício Nacional
de Alienados (capítulo 5), remonta ao X Encontro Clio-Psyché — Instituições, Psicologia, História, evento que procurou congregar, na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ),
uma série de discussões sobre institucionalização, enfatizando
principalmente às questões relativas à historicidadade de instituições vinculadas à psicologia ou às ciências afins. Uma das mesas
-redondas desse congresso, apresentada em 17/10/2012, versou
sobre a “História da institucionalização dos saberes e práticas
psi em dois contextos nacionais”, contando com a participação
das professoras Ana María Talak (Universidad Nacional de la
Plata, Argentina) e Cristiana Facchinetti (Fiocruz, Brasil).
A idéia da mesa, à época, era a de suprir uma lacuna, dada
a escassez de estudos e investigações transnacionais no âmbito
da história dos saberes psi. Assim, as apresentações — sobre
“La institucionalización de la psicología en la Argentina: saber
universitario y usos sociales (1890-1940)” e “O Hospício Nacional e a assistência a alienados no Distrito Federal: Institucionalização de saberes e práticas no Brasil” — visaram contribuir
para uma maior compreensão de como as técnicas, saberes, e
práticas psi foram trilhando caminhos em terras sul-americanas, a partir de fins do século XIX.
Há, de fato, um importante campo de pesquisa frente às
iniciativas da recém-formada Rede Iberoamericana de Pesquisadores em História da Psicologia (a qual, aliás, teve o seu IV
Encontro incluído nas atividades do X Encontro Clio-Psyché).
O estudo da institucionalização da psicologia nesses países ain150
da tem muito caminho a percorrer e, nesse sentido, é importante ressaltar que, não só na América Latina, mas também em outros países do assim chamado Terceiro Mundo, tal empreitada
tem merecido efetivos esforços.
Sob a terminologia “indigenização”, pesquisas sobre a
institucionalização do saber psi ganharam maior corpo nos
idos dos anos 1980, com a publicação de vários estudos sobre a
recepção de práticas psi em diferentes países, regiões e culturas
(Adair, 1999). Alguns desses estudos, inclusive, são feitos à luz
de contribuições da história da ciência, contribuições essas que
questionam abordagens estáticas acerca da transposição e recepção de conhecimento científico a partir de uma região para
outra, e criticam aqueles que se fundamentam em uma distinção rígida entre “centro” e “periferia” (Gavroglu et al., 2008).
Sinha (1997, 1998), tido como um dos principais expoentes dessa corrente, se dedicou especificamente ao estudo do
processo de institucionalização da psicologia na Índia, embora
também tenha se referido a processos de indigenização na América Latina, mormente em Cuba, México, e Venezuela. Uma
implicação relevante de sua obra, todavia, é a que aponta para
a relativização das formas de institucionalização dos saberes
psi em distintos contextos sócio-culturais.
Significa dizer que se é possível, por um lado, constatar
que o saber psi foi se disseminando ao longo do século XX
em vários locais e domínios, a fim de solucionar problemas sociais e promover a compreensão de pensamentos e condutas
humanas; por outro, também é possível perceber que o desenvolvimento dessas técnicas e práticas, em diferentes contextos
culturais, não ocorreu homogeneamente.
Mediante tal ressalva, cabe registrar a distinção feita por
Sinha (1997), que acrescentou um quarto tipo de indigenização
aos três originalmente propostos pelo educador indiano Krishna Kumar, a saber:
1. O primeiro tipo de indigenização é de caráter estrutural, uma
vez que se refere à constituição de instituições locais capazes
de produzir e difundir saberes psi tidos como relevantes;
151
Clio-Psyché: Instituições, História, Psicologia
2. O segundo é a indigenização substancial, posto que, voltada
para as questões de conteúdo, orienta os temas de estudo
segundo o próprio povo e os próprios problemas, dando
ênfase ao contexto local;
3. O terceiro tipo ocorre quando pesquisadores estão envolvidos em construir modelos teóricos a partir da cultura local, circunstância na qual a indigenização teórica procuraria
refletir a respeito dos problemas contextuais através do re
-exame de teorias psi oriundas da cultura ocidental; e
4. O último tipo poderia ser chamado de indigenização de
métodos, por abordar o repertório metodológico e outras
questões daí decorrentes.
Mais do que a mera segmentação e tipificação de processos históricos, o que resulta como fundamental, no entanto, é
perceber que muito embora a utilização de certos conceitos,
como indigenização ou institucionalização, sejam didaticamente úteis para indicar e sistematizar a recepção de conhecimento
científico em países tidos como periféricos, há de se evitar os
riscos do reducionismo e do essencialismo (Domingos, 2006).
Historicamente, as apropriações de noções e categorias dos
saberes psi, assim como suas ferramentas e metodologias, foram mediadas por demandas sociais e aspectos culturais. Todavia, mesmo dentro de cada país, o processo se desenvolveu
de forma singular.
Em sua apresentação oral, na mesa-redonda, a professora Ana María Talak mostrou o quanto a institucionalização
da psicologia na Argentina manteve múltiplas relações com a
tradição experimental e psicométrica, com a medicina e a clínica psicoterapêutica, com a educação e a criminologia; e, além
disso, com a interpretação dos problemas sociais e históricos
do país. Seu viés de análise contemplou processos de variações
e continuidades que se deram simultaneamente nos diferentes
contextos em que os saberes psi foram utilizados.
O texto publicado no capítulo 6 — “La institucionalización de la psicología en la Argentina: saber universitario y usos
sociales (1890-1920)” — representa, contudo, significativo
152
Comentários sobre os textos dos capítulos 5 e 6
aprofundamento da análise inicial. Com a ressalva de que não
se trata de identificar um dado autor ou fato histórico como
marca original e pontual da fundação institucional da disciplina; a autora procurou mostrar que, ao longo do tempo, uma
multiplicidade de criterios envolveu elementos limítrofes (ainda
que eventualmente fluidos e móveis) de conformação e estabilização da psicología argentina.
A institucionalização, tanto da produção do conhecimento como das práticas profissionais, foram tomadas como dimensões que — associadas à inserção mais ampla da psicologia
nos processos históricos, sociais e políticos — estiveram presentes no processo ao longo do qual essa disciplina acadêmica se
institucionalizou, durante as primeiras décadas do século XX.
Consequentemente, essas constatações reforçam a tese de
que não é possível se referir ao termo “institucionalização” a
partir de uma concepção essencialista que considere tal circunstância como já dada, a priori. Na verdade, o que realmente existe são institucionalizações, diferentes, distintas e díspares entre
si. E um dos pontos fortes do trabalho preparado por Cristiana
Facchinetti e Cristiane de Sá Reis é justamente esse, o de analisar o Hospício Nacional de Alienados, o primeiro do gênero
no Brasil, dentro de uma perspectiva que valoriza a instituição
concreta, em detrimento de qualquer tipo de essencialização.
Para além de supostos grandes nomes que forjaram aquela instituição, bastante emblemática no contexto brasileiro, a
pesquisa privilegiou os documentos do cotidiano e as relações
de poder, em sua dinâmica do dia-a-dia, pois as práticas e estratégias dos saberes psi emergiram, sem dúvida, em meio a um
fogo cruzado onde estavam presentes tanto apoios como resistências. Aspectos detalhados da arquitetura, tensões veladas e
desveladas, limites mutuamente impostos pela ciência ou pela
caridade, internações de alienados e alterações de alienistas —
tudo isso compôs o quadro pintado, e fartamente documentado, pelas duas autoras.
Enfim, “O Hospício Nacional: arquitetura, política e população (1852-1902)” é particularmente relevante porque su153
Clio-Psyché: Instituições, História, Psicologia
pera as abordagens historiográficas reducionistas que preconizam estrita transmissão de saberes psi — no caso, o alienismo
francês e a psiquiatria alemã — do centro para a periferia. A
pesquisa, ao contrário, em vez de sobrevalorizar qual saber psi
teria sido recebido, dirigiu o foco na análise de como o conhecimento recebido passou a ser apropriado. Logo, o que estava
em questão não era uma suposta tensão entre o caráter imitativo ou original das ideias psi (Alonso, 2002), mas a análise do
contexto sociopolítico em sua dinâmica peculiar.
A institucionalização dos saberes psi no Hospital de Alienados, portanto, não seguiu processualmente uma linha reta,
mas um traço errático, da Monarquia à República, com idas
e vindas, avanços e retrocessos, revezes e confrontos. Vale
a pena conferir.
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***
154
7
O psicólogo como psicanalista:
os casos da França e da Argentina
em perspectiva histórica
Alejandro Dagfal
Introdução
Do ponto de vista histórico e epistemológico, a relação
entre a psicanálise e a psicologia está longe de ser uma relação de tipo “natural” ou necessária. Ao contrário, se trata de
uma ligação contingente e difícil, mas não impossível.1 Mesmo
a classificação da psicanálise já é problemática. É uma psicologia? Freud sempre foi ambíguo a esse respeito. Para ele, a sua
criação era uma teoria, um método de exploração do inconsciente e uma forma de tratamento de enfermidades psíquicas.
Era também um movimento, como a igreja ou o exército. E é
claro que esta dimensão social da psicanálise, que acarreta uma
organização em torno de um líder, inclui um ideal de filiação e
uma referência de identidade.
Do mesmo modo, a relação entre psicanálise e universidade não é uma relação natural. Ela também é difícil e contingente,
mas não impossível. À pergunta “a psicanálise deve ser ensinada
na universidade?”, Freud respondia, em 1919, que esse ensino
era possível, mas não obrigatório. Por um lado, a universidade
podia se beneficiar com a assimilação da psicanálise. Por outro,
o ensino da psicanálise era “uma satisfação moral para todo
analista”. Contudo, segundo ele, a psicanálise não precisava da
universidade para o seu desenvolvimento (Freud, 1919).
Hoje, tanto na Fraca como na Argentina (e também no
Brasil), a psicanálise ocupa um lugar muito privilegiado. No
1. Annick Ohayon intitulou o seu livro sobre a história das relações entre psicanálise
e psicologia na França “L’impossible rencontre”. Contudo, ela mostrou até que ponto
esse encontro foi possível em diferentes contextos e em distintos momentos (Ohayon,
1999).
155
Clio-Psyché: Instituições, História, Psicologia
resto do mundo, de um modo geral, houve certo declínio, depois de uma grande expansão (até os anos 60). No caso francês
e no caso argentino, essa expansão esteve ligada ao desenvolvimento da psicologia. Neste capítulo, vamos examinar esses
dois exemplos históricos, encarnados nas figuras de Daniel Lagache e José Bleger.
O caso francês: Daniel Lagache
Na França, desde princípios do século XX, os psicólogos
científicos eram muito críticos à psicanálise. Às objeções tradicionais ao pansexualismo e ao simbolismo, formuladas por
Pierre Janet (Janet, 1914), é necessário agregar as considerações negativas de Henri Piéron, Georges Dumas e Charles Blondel (Roudinesco, 1982; Ohayon, 1999; Dagfal, 2004, 2011).
Mesmo se Alfred Binet pudesse ser visto como uma exceção
(por sua posição mais moderada), as doutrinas freudianas não
acharam um representante acadêmico até a chegada de Daniel
Lagache (1903-1972) na universidade de Estrasburgo, em 1937.
Lagache tinha a dupla formação prescrita por Théodule
Ribot. Ele era ao mesmo tempo médico e filósofo. Por um lado,
com a sua concepção da conduta como objeto da psicologia,
foi o herdeiro intelectual de Pierre Janet. Por outro, ele se situou ativamente como o continuador da obra institucional de
Piéron, um dos rivais mais importantes de Janet.
No contexto do segundo pós-guerra, que implicou em uma
renovação social, cultural e econômica ligada à americanização,
Lagache tentaria uma ambiciosa refundação teórica da psicologia. Mas quem era Daniel Lagache? Em 1924, ele tinha começado os seus estudos de filosofia na École Normale Supérieure,
no mesmo grupo de Jean-Paul Sartre e Georges Canguilhem,
marcada pela fenomenologia alemã e a psicopatologia de Karl
Jaspers. Impactado pela apresentação de enfermos de Georges
Dumas, Lagache decidiu iniciar estudos médicos. Assim, depois
de conseguir a agrégation (professorado de filosofia), em 1928,
defendeu uma tese de medicina sobre as alucinações verbais,
156
O psicólogo como psicanalista
em 1934. Entre um curso e o outro, no ano anterior (1933),
ele havia iniciado uma análise didática com Rudolf Lowenstein
(Roudinesco, 1982; Dagfal, 2002a).
Em 1937, obteve um cargo de “Maître de conférences” de
psicologia em Estrasburgo (substituindo a Charles Blondel). No
mesmo ano, foi admitido como membro titular da Société Psychanalytique de Paris (SPP), apresentando um trabalho sobre
o luto. Essa coincidência temporal marcaria o destino da sua
trajetória intelectual na psicologia e na psicanálise, que iriam
juntas até o final. Em 1947, quando foi nomeado professor de
psicologia geral na Sorbonne (substituindo a Paul Guillaume),
já era um psicanalista reconhecido, além de ter defendido uma
tese de letras sobre “o ciúme amoroso” (Lagache, 1947).2
Em 1953, Lagache comandaria a primeira cisão do movimento analítico francês. Em 1953, liderou, juntamente com
Jacques Lacan e Françoise Dolto, a criação da Société Française de Psychanalyse (SFP) — não reconhecida pela International
Psychoanalytic Association (IPA) –, da qual foi o primeiro presidente. Dois anos mais tarde seria nomeado professor de psicologia patológica na Sorbonne, substituindo a Georges Poyer.
Já nos anos 60, faria parte da segunda cisão do movimento
analítico francês. Contra Lacan e Dolto, e agora ao lado de
Didier Anzieu, Wladimir Granoff, Jean Laplanche, Jean-Bertrand Pontalis e outros, retornaria ao seio da IPA, então como
presidente da Association Psychanlytique de France (APF), em
1964. Finalmente, em 1967 “dirigiu” a elaboração do célebre
Dicionário de psicanálise, escrito por Laplanche e Pontalis.3
2. A aula inaugural do médico-filósofo foi publicada em 1949, sob o título L’unité de la psychologie (Lagache, 1949). Como veremos, esse curto texto conteria o
seu projeto de disciplina e também os fundamentos teóricos da sua concepção da
profissão do psicólogo.
3. Na realidade, a idéia do dicionário pertencia a Lagache, que adoeceu. Durante a
sua enfermidade, o trabalho foi feito por seus discípulos, que receberam o crédito. A
“direção” de Lagache (fórmula que figura na capa do livro) foi uma solução de compromisso para o conflito suscitado pela autoria (Laplanche e Pontalis, 1967; Roudinesco,
1982; Dagfal, 2002b).
157
Clio-Psyché: Instituições, História, Psicologia
A crise e a unidade da psicologia segundo
Lagache
Na Europa, sobretudo nos anos 20, os debates sobre a crise e a unidade da psicologia estavam na ordem do dia (Friedrich, 1999). Já em 1926, Eduard Spranger havia escrito um texto chamado “A questão da unidade da psicologia” (Spranger,
1926). Em 1927, Karl Bühler produziu um livro intitulado A
crise da psicologia, cujo terceiro capítulo se chamava “A unidade da psicologia” (Bühler, 1927). No mesmo ano, na União Soviética, Lev Vygotsky, na obra Significado histórico da crise em
psicologia, tentava sustentar a unidade da disciplina por meio
de uma psicologia geral e compreensiva (Vygotsky, 1927). Por
fim, em 1928, na França, Georges Politzer denunciava a crise
da psicologia clássica e procurava fundar uma nova psicologia
concreta, baseada na psicanálise, na Gestalt e no behaviorismo
(Politzer, 1928).
Tudo indica que, no final dos anos 1930, a consciência de
uma crise na psicologia não estava menos presente do que as
tentativas de unificação, situação que não mudaria na década seguinte, tanto na Europa como nos Estados Unidos (Murchison,
1930; Woodworth, 1931; Heidbreder, 1933; Claparède, 1936).
Nesse contexto, o jovem Lagache, professor em Estrasburgo,
tentava, já em 1938, conciliar psicologia e psicanálise como solução para a crise. Em um artigo do tomo da enciclopédia francesa compilado por Henri Wallon, para explicar a sexualidade
humana, afirmava que “tanto na psicopatologia quanto na psicologia normal, a psicanálise e a psicologia podem colaborar de
modo frutífero” (Lagache, 1938; apud Ohayon, 1999, p. 208).
Assim, em 1947, quando Lagache ditou a aula inaugural de Psicologia Geral na Sorbonne, não foi tão surpreendente
que ele tenha começado a sua fala pelo diagnóstico da crise,
para propor o seu próprio projeto de unidade. Depois de publicado, em 1949, esse projeto, sempre esboçado, mas nunca
concretizado, se transformaria na França em um texto programático (como “O manifesto behaviorista”, nos Estados Unidos). O programa era simples. A multiplicidade de escolas e
158
O psicólogo como psicanalista
abordagens da psicologia podia se resumir em duas grandes
atitudes, a naturalista e a humanista; estas, por sua vez, se traduziam em dois grandes métodos, o experimental e o clínico,
respectivamente. Considerando que esses métodos não eram
excludentes, mas sim complementares, a conclusão lagachiana era ainda mais simples: o objeto da psicologia é um só, a
saber, a conduta humana, embora os modos de abordar esse
objeto sejam múltiplos.
A “teoria geral da conduta” tinha então como pano de
fundo unir naturalismo e humanismo psicológicos, mesmo se
isso desembocasse em uma articulação eclética. Em poucas
palavras, a síntese lagachiana implicava em uma justaposição de teorias muito heterogêneas. Integrava, entre outras, as
seguintes correntes teóricas:
• A psicologia da conduta de Pierre Janet, que definia o seu
objeto a partir da relação organismo/meio, utilizando também conceitos da Gestalt e de Kurt Goldstein.
• A psicologia da personalidade (de Gordon Allport, William
Stern etc.), que destacava os aspetos históricos da “totalidade psicofísica”.
• A fenomenologia alemã (Karl Jaspers, Max Scheler), com a
sua vocação de compreender a vivência no marco de uma
situação vital significativa.
• O pensamento social estadunidense: tanto a antropologia
cultural (Margaret Mead, George Mead, Ralph Linton)
como a psicologia topológica de Kurt Lewin (com o seu
conceito de campo psicológico, definido como um jogo de
forças).
• A psicologia concreta de Georges Politzer, que formulava
uma crítica ao realismo intelectual e situava a psicanálise
como pedra angular de uma nova psicologia.
• A psicanálise, particularmente a vertente ligada à psicologia
do Ego e às teorias de Anna Freud, como veremos mais tarde.
Finalmente, a respeito do problema da unidade e da multiplicidade da psicologia, a originalidade de Lagache foi ter
procurado fechar um debate que, até ali, só havia sido for159
Clio-Psyché: Instituições, História, Psicologia
mulado no plano ontológico. Pragmaticamente, ele situou o
debate em um nível puramente metodológico, evitando, assim, dificuldades epistemológicas maiores (Carroy & Ohayon,
1999; Dagfal, 2002a).
Psicologia clínica e psicanálise
O projeto teórico de Lagache implicava em uma contrapartida aplicada: a psicologia clínica. Ao mesmo tempo, nessa
psicologia clínica, a psicanálise desempenhava um papel privilegiado. Tratava-se, porém, de uma psicanálise particular.
Em 1948, durante o XI Congresso Internacional de Psicologia,
em Edimburgo, Lagache expôs o seu programa de psicanálise,
compreendida como um ramo da psicologia clínica (Lagache,
1949b). Segundo ele, durante a sua época heróica, a psicanálise se dedicou à análise do inconsciente, construindo entidades
abstratas a partir de um determinado realismo intelectual. Contudo, nesse momento — no qual a psicologia era definida como
ciência da conduta –, as doutrinas freudianas tinham de aceitar
os progressos dessa disciplina, tomando como objeto as condutas concretas. Do mesmo modo, a psicologia tinha aportado o
conceito de personalidade, que superava a oposição consciente/
inconsciente, dando conta da adaptação ao meio. A própria
Anna Freud havia dado um passo nessa direção, afirmando que
os psicanalistas deveriam se ocupar da “personalidade psíquica” (Freud, A., 1936). Assim, segundo Lagache,
“[…] a psicanálise tem como objeto a personalidade
total nas suas relações com o mundo e com ela mesma. Como essas relações não são outra coisa que
não condutas, podemos chegar à conclusão que, por
seu espírito, esta definição inclui a psicanálise dentro da psicologia, entendida como uma ciência do
comportamento dos seres vivos” (Lagache, 1949b,
p. 82).
160
O psicólogo como psicanalista
A psicanálise devia passar do estudo do inconsciente à interpretação de segmentos de conduta, em outras palavras, à
“análise da conduta”, uma velha formula janetiana por meio
de uma nova psicologia lagachiana, inspirada em uma psicanálise expurgada da dimensão inconsciente. Assim, a psicologia
clínica era “uma disciplina psicológica baseada no estudo profundo de casos individuais” (Lagache, 1949b, p. 84). Do mesmo modo que a teoria geral da conduta procurava harmonizar
pontos de vista contraditórios, a psicologia clínica tentava unificar campos de intervenção. Por isso, os seus fins práticos eram
aconselhar, curar e educar, a partir de uma operação fundamental: o diagnóstico.
Frente às limitações da psicologia experimental, a psicologia clínica se caracterizava pelo seu espírito totalizador. Na
realidade, o projeto de Lagache implicava em uma verdadeira
“clinicização” de toda a psicologia aplicada. Se Piéron havia
proposto uma psicologia aplicada fundada na experimentação, o jovem psicanalista promovia uma psicologia aplicada
“concreta”, que fazia parte do marco mais geral de uma psicologia clínica. Esta última, muito mais ambiciosa, aspirava
ser a garantia da unidade de uma nova psicologia adaptada
à realidade humana.
Consequências do projeto de Daniel Lagache
É difícil negar que Lagache aproveitou o élan integracionista da sua época de modo a celebrar o matrimônio da psicologia da personalidade estadunidense com a tradição comportamental francesa. Não obstante, se expressava em um
vocabulário filosófico ligado à fenomenologia existencial e incorporava a psicanálise. Mesmo ele tendo morrido (em 1972)
sozinho e longe dos espaços institucionais que ajudou a criar, o
seu projeto de psicologia deixou marcas perduráveis. A consequência mais importante talvez tenha sido iniciar uma tradição
de psicólogos-psicanalistas, particularmente a partir de Juliette
Favez-Boutonier e Didier Anzieu, entre outros continuadores
161
Clio-Psyché: Instituições, História, Psicologia
(Jean Laplanche, Jean-Bertrand Pontalis etc.). Para eles, o manifesto lagachiano serviu para legitimar um projeto de expansão
da psicanálise na universidade. O chamado de Lagache seduziu
então aqueles que, apesar da expansão do estruturalismo, ainda tinham esperanças na possibilidade de uma aliança fecunda
entre a psicanálise e a psicologia. Assim, entre os psicólogos
científicos e os lacanianos antipsicologistas, o psicólogo-psicanalista substitui o médico-filósofo, forjando-se uma nova identidade disciplinar e profissional.
Lagache foi, enfim, o pioneiro na implantação institucional da psicanálise dentro da universidade francesa. Do ponto
de vista teórico, conseguiu promover uma formação analítica
dentro do curso de psicologia. Do ponto de vista prático, as
suas lições foram uma referência fundamental nos combates
judiciais dos primeiros psicólogos contra o exclusivismo médico pelas competências clínicas (Ohayon, 2008). Por fim, esses
combates conduziram à aceitação social do psicólogo como terapeuta não-médico; basicamente, como psicólogo-psicanalista.
O caso argentino: José Bleger
A fundação da Associação Psicanalítica Argentina (APA)
ocorreu em 1942 (Balán, 1991; Plotkin, 2001). Naquele país,
a psicanálise teve uma lenta expansão até 1955, ano da queda
do governo de Juan Domingo Perón. A partir de então, houve
uma rápida implantação das doutrinas freudianas na cultura
e no sistema de saúde. Assim, entre 1955 e 1959, seis cursos
de graduação em psicologia foram criados em universidades
nacionais: Rosário (1955); Buenos Aires (1957); Córdoba, San
Luis e La Plata (1958); e Tucumán (1959). O perfil dos primeiros psicólogos era bastante eclético, sem um claro predomínio
de alguma orientação específica. Do mesmo modo, a maioria
dos fundadores não tinha predileção pela clínica (e menos ainda pela psicanálise). Se a França foi para eles uma referência
importante, estavam mais pertos do projeto científico de Piéron do que da psicologia clínica de Lagache. Não obstante,
162
O psicólogo como psicanalista
sobretudo a partir de 1959, ocorreram muitos debates sobre
a formação dos psicólogos, tanto entre os fundadores dos cursos como destes com os profissionais médicos. A carência de
professores formados acelerou o ingresso de professores jovens;
entre eles, muitos psiquiatras, próximos da psicanálise.
Foi o caso de José Bleger (1922-1972), talvez o melhor
expoente das interseções dessa época. Ele chegaria a ser um dos
professores de psicologia e um dos psicanalistas mais reconhecidos da Argentina (Dagfal, 2000, 2009). Filho de imigrantes
judeus, Bleger fez os seus estudos de medicina na cidade de Rosário. Muito cedo, se preocupou por questões sociais, tornandose membro do Partido Comunista Argentino (PCA). Em 1946,
mudou-se para Santiago del Estero, uma província sem muitas
possibilidades acadêmicas. Ali teve as suas primeiras experiências clínicas. Ao mesmo tempo, formou-se viajando a Tucumán,
onde se interessou pela reflexologia a partir do seu contato com
o imigrante russo Konstantin Gavrilov. Em Córdoba, visitou
o Instituto Neuropático fundado por Gregorio Bermann, em
1932.4 Finalmente, por volta de 1952, começou a sua análise
didática com Enrique Pichon Rivière, em Buenos Aires.
Nessa época, Bleger fez parte do conselho de redação da
Revista Latinoamericana de Psiquiatria, dirigida por Bermann
e pelo psiquiatra brasileiro Cláudio Araújo Lima.
Bermann estava perto dos psiquiatras comunistas franceses (como Lucien Bonnafé e Sven Follin), referências teóricas
que ele transmitiu ao jovem discípulo, que assim se aproximou
do movimento de saúde mental. Em 1952, Bleger publicou o
seu primeiro livro, Teoría y práctica del narcoanálisis (Bleger,
1952), a partir das suas experiências com tratamentos psicoterapêuticos envolvendo barbitúricos. Para ele, os narcóticos
facilitavam a transferência, obtendo a supressão de inibições e
4. Gregorio Bermann (1894-1972), além de ser uma referência nacional em psiquiatria,
desempenhou um papel central na constituição do movimento da saúde mental em
escala internacional. Em 1946, como representante da Argentina na seção de medicina
e higiene das Nações Unidas, em Paris, participou das discussões que conduzirem à
criação da Organização Mundial da Saúde.
163
Clio-Psyché: Instituições, História, Psicologia
o enfraquecimento das resistências (Bleger, 1952). Bleger apresentava a psicanálise ao lado da psicossomática, dentro de uma
“abordagem integral” das enfermidades mentais. Contra todo
reducionismo, afirmava que “a psicoterapia é um remédio que
sempre chega tarde […]. Não é capaz de solucionar as relações
sociais entre os homens; a sociedade enferma não pode se recostar na ‘chaise longue’” (Bleger, 1952, p. 92).
Por volta de 1954, mudou para Buenos Aires, onde foi admitido como candidato na APA. Essa dupla afiliação (psicanalista e membro do PCA) esteve muito presente na concepção do
seu segundo livro, Psicoanálisis y dialéctica materialista (Bleger,
1958), finalizado em 1957. Nessa obra, apropriando-se do filósofo franco-húngaro Georges Politzer, os objetivos de nosso
autor eram múltiplos. Por um lado, ele pretendia examinar a
psicanálise para depurá-la de suas “imperfeições teóricas”. Por
outro, aspirava fundar uma nova psicologia sobre essa base psicanalítica. “O mérito de Politzer é ter apontado o ponto crucial
da psicanálise no qual os seus descobrimentos se mistificam,
encontrando os fatos sobre os quais se apóiam as suas teorias
idealistas [...] Com os seus erros, Freud representa uma etapa
necessária na psicologia” (Bleger, 1958, p. 44).
O projeto de Bleger implicava dessexualizar a psicanálise,
fundando uma psicologia materialista e dialética. Iniciava o seu
trabalho formulando três perguntas: o que é a psicologia?; o
que é um psicólogo?; e como se articulam a teoria e a prática
psicológicas, a disciplina e a profissão? Em 1959, Bleger foi
nomeado professor nos cursos de graduação em psicologia de
Rosário e Buenos Aires (nas disciplinas “Psicanálise” e “Introdução à Psicologia”, respectivamente). O livro que ele acabara
de publicar tinha sido seu melhor cartão de visitas para os estudantes, famintos por novas teorias com compromisso social. O
ensino em “Introdução à Psicologia” foi a base do seu próximo
livro, o qual recebeu o mesmo título do célebre artigo de Janet,
de 1938, Psicologia da conduta (Bleger, 1963).
Ele formulava ali o seu projeto teórico para os psicólogos,
constituindo um bom exemplo de recepção, no sentido de uma
164
O psicólogo como psicanalista
apropriação ativa que exclui a mera repetição. Nesse terceiro
livro, esquematicamente, seguindo o legado de Pichon, o psiquiatra argentino criava um collage original. Na definição da
conduta, apelava ao “comportamento à francesa” (Lagache,
Politzer, Janet). Não obstante, para compreender a dimensão
inconsciente, citava a “escola inglesa” de psicanálise (Melanie
Klein, Ronald Fairbairn, Wilfred Bion etc.). Ao mesmo tempo,
para analisar a interação social, se referia ao grupo “à americana” (Kurt Lewin e George Mead, particularmente). Era clara a
sua vocação à síntese crítica, contra as ortodoxias. A partir de
uma matriz filosófica humanista (existencialismo, marxismo),
destacava-se uma utilização muito particular de uma psicanálise operativa, articulada com as ciências sociais.
Em todo caso, é indubitável que o livro foi um sucesso editorial. Rapidamente se transformou em uma obra de consulta
quase obrigatória, com múltiplas edições.5 Bleger se tornou a
principal referência dos alunos e dos primeiros psicólogos, na
medida em que ele estava em sintonia com as expectativas deles,
tanto teóricas como políticas.
Essa situação de privilégio não mudou com a publicação
do quarto livro, Psicohigiene y psicología institucional (Bleger,
1966), no qual ele, finalmente, formulava o seu projeto profissional para os psicólogos. Essa obra, escrita entre 1962 e 1965,
no marco do seminário “Higiene Mental” (que Bleger ditava
na Universidade de Buenos Aires), era o corolário aplicado do
seu projeto teórico. Ali, ele definia o psicólogo como um agente
de mudança social. A psicohigiene, por sua vez, era apenas um
velho nome para a saúde mental (para aquilo que hoje chamaríamos de prevenção). Nesse sentido, afirmava em seu programa:
“A função social do psicólogo clínico não deve ser
basicamente a terapia, mas a saúde pública, e dentro
dela, a higiene mental. O psicólogo não deve espe5. O livro chegou a ter oito reimpressões em menos de dez anos, em três editoras diferentes: Eudeba, Centro Editor de América Latina e, finalmente, Paidós.
165
Clio-Psyché: Instituições, História, Psicologia
rar que as pessoas adoeçam para poder intervir […].
Desejo promover uma mudança na atitude atual do
estudante e na atitude do psicólogo como profissional, levando o seu interesse fundamental do campo
da enfermidade e da terapia a aquele da saúde da
comunidade” (Bleger, 1966, p. 27-28).
Em 1966, o golpe de estado do general Onganía determinou a intervenção das universidades e a expulsão de centenas
de professores. Muitos outros renunciaram aos cargos, como
foi o caso de Bleger, que não voltaria a dar aulas até a sua
morte prematura, em 1972 (mesmo ano da morte de Lagache).
Em certo sentido, o seu projeto foi um sucesso, visto que as
primeiras gerações de psicólogos eram de inspiração “blegeriana”. Eles construíram um rol profissional atravessado pela psicanálise, capaz de produzir intervenções no âmbito público. Ao
mesmo tempo, porém, o modelo médico de atenção individual
em consultório era cada vez mais popular. Em consequência, os
psicólogos seguiram Bleger, mas também lhe “traíram”. Pouco
a pouco, tornaram-se “psicanalistas”, misturando o trabalho
em instituições (frequentemente de inspiração blegeriana) com
o trabalho privado e a terapia individual.
Comentários finais
Daniel Lagache, na França, e José Bleger, na Argentina,
encarnaram duas formas do ingresso da psicanálise na universidade e na formação de psicólogos. Tanto o projeto de Lagache
como o de Bleger implicavam em uma ampla vocação de síntese. A partir de uma definição da conduta como objeto que dava
unidade à psicologia, ambos tinham numerosas coincidências
nos autores que citavam e em uma matriz filosófica humanista
e existencialista. Mas também tinham diferenças conceituais
importantes. Segundo Lagache, a unidade da psicologia era só
metodológica. Ao contrário, para Bleger, a partir das suas convicções marxistas, essa unidade emanava da unidade dialética
166
O psicólogo como psicanalista
do real. Ambos seguiam modelos diferentes. Enquanto Lagache
privilegiava a psicologia clínica estadunidense, Bleger preferia a
psiquiatria social francesa.
Nos anos 60, na França, e nos anos 70, na Argentina, os
projetos de ambos foram relegados, em virtude do avanço do
estruturalismo e do lacanismo. Surgiram novos problemas na
relação entre psicologia e psicanálise, os quais começaram a
ser pensadas em separado (mesmo em oposição) e não mais
em conjunto. A identidade profissional do psicólogo, nos dois
países, passou a se ligar a uma matriz psicanalítica, implantada
pelos respectivos projetos de Bleger e de Lagache, ligação que
continua até a atualidade.
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***
169
8
O movimento psicanalítico no Rio de Janeiro
dos anos 70: a psicanálise dos psicólogos
Ana Cristina Figueiredo
A partir da década de 1970, a cidade do Rio de Janeiro
passou a se constituir em cenário do que se convencionou chamar de boom da psicanálise. Tal processo foi alimentado pela
crescente de difusão que se deu pela mídia (programas de TV,
novelas, matérias em jornais), incluindo a publicação de livros
acessíveis ao público leigo, bem como de revistas femininas
com seções de aconselhamento psicológico, assinadas por profissionais que se apresentavam como psicanalistas, substituindo os antigos ‘conselheiros sentimentais’ (Katz, 1974; Santos
1982; Figueira 1988).
O contexto em que se dá essa difusão diz respeito às transformações que a sociedade brasileira sofreu após o golpe militar
de 1964. Por um lado, o regime militar dá suporte ao chamado
“milagre econômico”, que se reflete na modernização da sociedade com a ascensão social e econômica de setores da classe
média, com destaque para os profissionais liberais. Por outro,
promove uma forte repressão ideológica dirigida aos setores
mais intelectualizados, principalmente no meio universitário,
sobretudo a partir do chamado Ato Institucional nº5, de 1968,
que restringe as liberdades de expressão, atingindo diretamente
intelectuais, professores e estudantes (Martins 1979; Coimbra
1993).
Martins (1979) se propõe a examinar o que denomina de
Geração AI-5, que seria um movimento de contracultura, estabelecido como modo de sobrevivência ao autoritarismo e que
seria mais reflexo de um processo de alienação do que propriamente um confronto político com o regime. Para o autor, suas
três manifestações seriam: o culto às drogas, a desarticulação
do discurso e o modismo psicanalítico.
Destacamos, para os propósitos deste capítulo, o último
ponto referido acima, centrando na expansão da demanda por
170
atendimento psicoterápico privado como um efeito da difusão
social da psicanálise. Profissionais liberais, principalmente psicólogos, professores, intelectuais, artistas e estudantes formam a
clientela emergente que não se inclui necessariamente nos critérios psicopatológicos considerados mais graves. A demanda é de
melhorar a qualidade dos vínculos eróticos, afetivos e familiares,
de ampliar a criatividade ou eficácia profissional, tornando a
queixa cada vez mais inespecífica e, em certo sentido, despolitizada. O esvaziamento do espaço público dá lugar à privatização
da experiência (Katz, 1974; Velho 1981; Figueira 1985, 1988).
A difusão do movimento psicanalítico no Rio de Janeiro
envolve diretamente os psicólogos e, paralelamente ao aumento na demanda pelo tratamento, há uma pressão na formação
dos novos profissionais. Estes, de consumidores da psicanálise
e objeto de investimento dos psicanalistas, como os seus futuros clientes, passam a ser agentes promotores da psicanálise,
demandando uma formação reconhecida.
Convém lembrar que não havia qualquer impedimento legal para os psicólogos praticarem a psicanálise ou terem acesso
a uma formação em psicanálise, de acordo com o regulamento
da International Psychoanalytical Association (IPA), que regulava a formação ‘oficial’ dos psicanalistas. O regulamento da
IPA permitia a criação de sociedades mistas, envolvendo médicos e psicólogos. Além disso, a psicanálise nunca foi uma profissão regulamentada pelo Estado ou outra instância não psicanalítica. A interdição ao acesso dos psicólogos a uma formação
legitimada vinha do regulamento das sociedades existentes no
Rio de Janeiro na época — Sociedade Psicanalítica do Rio de
Janeiro (SPRJ) e Sociedade Brasileira de Psicanálise (SBPRJ),
fundadas na década de 1950 — ambas contavam com alguns
psicólogos em seus quadros originais, mas depois adotaram o
modelo dos EUA, que facultava a formação somente aos médicos.1
1. Esta situação perdurou até 1980. Curiosamente, os fundadores da SBPRJ não permaneceram referidos ao psicanalista formador enviado da Inglaterra pela IPA, bus-
171
Clio-Psyché: Instituições, História, Psicologia
Destacamos aqui dois períodos desse processo. A primeira
metade da década de 1970, que se caracteriza pela ampliação
do campo psicanalítico,com certo ecletismo de teorias e práticas, tendo os psicólogos como principais agentes desse processo, apoiados no projeto político dos psicanalistas argentinos que chegam ao Brasil, constituindo o que chamamos de
uma ‘psicologia psicanalítica’. A segunda metade da década de
1970, por sua vez, apresenta os efeitos desse movimento, com
a desestabilização da hegemonia das sociedades psicanalíticas
‘oficiais’, ligadas à IPA e formadoras de psicanalistas de origem médica, e o surgimento de novas instituições de formação
lideradas por psicólogos.
Apresentamos esses dois períodos, destacando o protagonismo dos psicólogos e a aliança deles com alguns psicanalistas das sociedades intituídas e com os psicanalistas argentinos
(primeiro, os primeiros formadores e, posteriormente, os emigrados, em função da ditadura em seu país), consituindo a chamada ‘vaga argentina’, e destacando também a emergência da
ortodoxia lacaniana como novo paradigma para a ‘psicanálise
dos psicólogos’.
No primeiro período, quando o acesso dos psicólogos à
prática clínica está assegurado pelos conselhos profissionais, a
partir da década de 1960, a questão que surge é: o que é a
psicologia clínica? A dúvida é comum a psicólogos e psicanalistas, envolvidos em um jogo de poder sutil, no qual os últimos
se encarregam de definir a função dos primeiros. O processo
de afiliação que assegura a transmissão da psicanálise estava,
por um lado, restrito à análise didática nas sociedades ‘oficiais’,
as quais não aceitavam psicólogos, e, por outro, circulava oficiosamente nas relações de análise e supervisão que os psicanalistas estabeleciam com os psicólogos por iniciativa própria.
Como clientes, os psicólogos são um mercado fértil, mas ao
desejarem ter acesso à formação eram muitas vezes orientados
cando a sua formação na Asociación Psicoanalítica Argentina (APA), ligada à IPA,
em Buenos Aires.
172
O movimento psicanalítico no Rio de Janeiro dos anos 70: a psicanálise dos psicólogos
por seus psicanalistas a buscar alternativas para sua prática
clínica. Entretanto, a hegemonia da psicanálise era um fato
consumado — os psicólogos estavam impregnados por seus
mestres, seus analistas e pela própria psicanálise, já tão difundida no tecido social, como referência teórica e clínica. Como
estabelecer uma diferença?
Primeiro: A constituição de uma ‘psicologia
psicanalítica’
Entre 1970 e 1976, ocorreram vários eventos que resultaram na criação de instituições mais ou menos consolidadas
para abrigar psicólogos, visando retirar a psicanálise da ambígua tutela dos psicanalistas das sociedades da IPA, as quais detinham até então o monopólio sobre a formação e o exercício
da prática psicanalítica.
Destacamos três grupos nesse processo: primeiro, Fábio
Leite Lobo, o IOP e a SPC; segundo, o Grupo dos Oito e o
CESAC; e, por fim, os argentinos e a APPIA. Curiosamente
vários psicanalistas e psicólogos transitam entre esses grupos,
muitas vezes participando ativamente em mais de um evento.
Não cabe aqui detalhar cada um, mas localizar pontualmente
suas referências e articulações.
Fábio Leite Lobo o IOP e a SPC
Como diretor do Instituto de Ensino, da Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro (SPRJ), ligada à IPA, Fábio Leite
Lobo convida os psicanalistas argentinos Arminda Aberastury
e Eduardo Kalina para virem ao país, ministrar seminários sobre psicanálise na infância e adolescência. Os eventos, abertos
a profissionais de outras áreas, seriam realizados na sede da
SPRJ. A diretoria vetou a proposta, mesmo sob a alegação de
que, com um maior número de interessados, os custos poderiam ser barateados. Com o apoio de seus supervisionandos e
analisandos (em geral, psicólogos trabalhando no atendimen173
Clio-Psyché: Instituições, História, Psicologia
to a crianças), Fábio cria um curso paralelo, ministrado pelos
mesmos psicanalistas convidados. Esse curso deu origem ao
Instituto de Orientação Psicológica (IOP), que durou quatro
anos (1970-74), chegando a ser frequentado por cerca de 100
participantes, embora não tenha sido anunciado publicamente.
Além dos seminários teóricos, foram incorporados com
sucesso estudos de casos clínicos e supervisões, em grupos distintos, divididos entre os psicólogos mais experientes e os recém-formados. Era exigida formalmente uma experiência pessoal em análise. Assim, o IOP se aproximava, ainda que de
modo assistemático e não reconhecido, do modelo tripartite de
formação analítica preconizado por Freud e padronizado pela
IPA — i.e., seminários, supervisão e análise pessoal.
Outros psicanalistas argentinos participaram do IOP,
como docentes e supervisores, a saber: Mauricio Knobel (em
substituição a Arminda Aberastury, após a sua morte precoce),
Eduardo Rollas, Leon Grinberg, David Liberman, Marie Langer
e Arnaldo Rascovsky, todos pertencentes à Associação Psicanalítica Argentina (APA) ligada à IPA, e formados sob orientação
kleiniana, a qual também era hegemônica no Brasil. Alguns
desses psicanalistas, curiosamente, estavam se desligando da
APA por motivos políticos, passando a se alinhar com posições
mais à esquerda da posição liberal adotada pela APA durante a
ditadura na Argentina. Retomaremos este ponto mais adiante.
Os psicanalistas argentinos trazem inovações técnicas importantes, como as terapias breves e as técnicas de grupo. Além
disso, o próprio estilo de trabalho apresenta suas peculiaridades: quebra de certas formalidades nas sessões, tanto no que
diz respeito à frequência como na questão da tão polêmica neutralidade do analista; novas abordagens para crianças e adolescentes, sendo estes últimos ainda pouco considerados como
pacientes para análise. Configura-se então uma espécie de ‘neo
-kleinianismo argentino’, cujos principais expoentes teóricos
eram José Bleger, Arminda Aberastury, Enrique Pichon-Rivière,
Arnaldo Rascovsky e Emilio Rodrigué (este último veio posteriormente a se radicar no país).
174
O movimento psicanalítico no Rio de Janeiro dos anos 70: a psicanálise dos psicólogos
Uma consequência importante desse movimento de disseminação de uma abordagem que flexibilizava o setting foi o
fato de que a autenticidade da psicanálise se mantinha avalizada por esses psicanalistas que vinham ‘de fora’ e eram legitimados pela IPA. Assim, promoviam e instrumentavam uma
revisão da ortodoxia dos analistas brasileiros. Era o que os psicólogos precisavam para sustentar uma crítica legítima contra a
exclusão deles de uma formação ‘oficial’ em psicanálise.
Podemos dizer que esse foi o início de uma formação paralela, sem o controle da IPA, mas também sem qualquer compromisso em titular seus participantes, introduzindo, na verdade, a ampliação de uma formação sistemática. Nesse contexto,
em 1971, é fundado o primeiro grupo que se propõe a promover uma formação psicanalítica somente para psicólogos, ainda
que a psicanálise não pudesse aparecer no nome da instituição.
Era a Sociedade de Psicologia Clínica (SPC),2 cujos fundadores
eram todos psicólogos brasileiros, em geral ligados ao IOP.
O currículo dos seminários e cursos da SPC era baseado
na obra de Freud, mas a psicanálise aparecia apenas como uma
das técnicas indispensáveis à psicoterapia. Convém observar
que os coordenadores dos seminários eram todos psicanalistas
de sociedades ligadas à IPA e que se ofereceram a trabalhar
com os psicólogos. A SPC se estrutura à imagem dessas sociedades, tanto no aspecto administrativo como no acadêmico.
No entanto, duas modificações se fizeram necessárias: a inexistência da categoria de ‘analista didata’, na hierarquia dos membros — não havia didatas dispostos a assumir essa função — e o
veto inicial à entrada de médicos — uma espécie de represália.
Os psicólogos ficam caracterizados então como os ‘rebeldes submissos’ que não rompem com a ‘proibição do pai’,
mas também não se dobram a seus mandamentos. De qualquer
modo, a SPC era o único grupo instituído, na primeira metade
2. Posteriormente, nos anos 90, a SPC passa a se chamar SPCRJ — Sociedade de Psicanálise da Cidade do Rio de Janeiro. As letras ‘P’ e ‘C’ que indicavam Psicologia Clínica
passam a indicar Psicanálise e Cidade.
175
Clio-Psyché: Instituições, História, Psicologia
da década de 1970, que pretendia dar uma formação em psicanálise aos psicólogos, ainda que conservasse certa ambiguidade
presente no próprio no nome. Absorveu basicamente os profissionais já estabelecidos nos anos 60.
O Grupo dos Oito e o CESAC
Trata-se de um grupo de oito psicólogos que, após um
controvertido processo de seleção, não foram aceitos no curso de mestrado da Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro (PUC-RJ), em 1970. Eles se propuseram a buscar um
trabalho em psicologia clínica que pudesse se distinguir de uma
formação acadêmica. Inicialmente se organizam em torno de
dois psicanalistas da SPRJ, Inês Besouchet, que estava entre os
fundadores, apesar de não ser médica, e Wilson Chebabi. Posteriormente, foram incluídas Norma Jatobá, psicóloga e psicodramatista, e Marta Nieto, psicóloga uruguaia, que se apresenta também como psicanalista e que vai discutir a identidade
do psicólogo clínico.
Reproduzimos a seguir um pequeno trecho de um trabalho3 dos membros desse grupo, e que é revelador da confusão
em que se encontravam os psicólogos na época, em relação ao
seu próprio trabalho clínico e à psicanálise:
“Antes de nosso primeiro encontro [Inês] já era idealizada tanto pelos que a conheciam como pelos que
não a conheciam. Representava a própria psicologia
clínica assumida, vitoriosa e aceita até mesmo como
didata por uma sociedade psicanalítica que não aceita psicólogos para formação. Sabíamos já, como foi
dito, o que não queríamos, mas nossas ambições
eram as mais confusas. Não sabíamos os limites e
3. Trata-se do trabalho de conclusão do curso de especialização em Psicologia Clínica,
na PUC-Rio, em 1976, intitulado “O Grupo dos Oito — Pré-História do CESAC”, de
autoria de quatro membros do CESAC, Ira Fernandes, Maria Celuta Lanare, Neide
Lobato dos Santos e Vera Drummond.
176
O movimento psicanalítico no Rio de Janeiro dos anos 70: a psicanálise dos psicólogos
as diferenças entre ser psicólogo clínico, terapeuta
e psicanalista. Por isso mesmo, Inês era a síntese e
o símbolo ainda indefinido de nossas aspirações.”
(Fernandes et al., 1976, p. 11).
Assim, Inês passa a supervisionar os casos, mas afirma em
entrevista aos psicólogos que, ao ser procurada, como analista
didata, recusava a atender essa demanda alegando que o importante “não era conseguir um título, mas trabalhar bem”, e
que só assim eles seriam reconhecidos profissionalmente. Chebabi (1972), por sua vez, afirma que não acredita em nenhum
processo que reestruture uma vida que não seja análise e, reafirmando a inferioridade da psicologia clínica em relação ao
alcance transformador da psicanálise, diz (grifo meu):
“Respeitando o silêncio estou esperando que um dia
o cliente fale com sua própria língua. Mas se estamos tentando distinguir psicanálise de psicoterapia,
a psicoterapia utilizaria predominantemente recursos pré-verbais, e os reursos de verbalização seriam
mais da psicanálise, porque os primeiros não utilizariam recursos tão finos. O paciente que sai de uma
psicoterapia não sai livre de seus objetos internos.”
(Chebabi, 1972, p. 209).
Os psicólogos são então tomados pelo conflito de como
usar a psicanálise, sem ‘ser’ psicanalista, sem querer se parecer
com um psicanalista, sem diminuir seu próprio prestígio por não
ser psicanalista e, principalmente, sem poder utilizar os recursos verbais ‘mais finos’, só permitidos ao psicanalista, os quais
seriam uma garantia da qualidade de seu trabalho; ou então ser
psicanalistas a seu modo e prescindir do dito reconhecimento
‘oficial’. Os psicólogos trazem à baila a questão da psicoterapia
para psicólogos, mas são os psicanalistas que se encarregam de
fazer a diferença que não aponta para duas positividades, mas
para uma definição pelo negativo, pelo sinal ‘menos’ — menos
177
Clio-Psyché: Instituições, História, Psicologia
frequência, menos tempo, menos verbalização, menos interpretação –, subordinando uma prática à outra, marcando assim
negativamente a identidade do psicólogo clínico em função da
relação com o psicanalista. Mas o referencial teórico se manteria o mesmo. A que e a quem serviria essa manobra?
Essa ambiguidade permeia não só o grupo, mas a própria
instituição que vem a ser fundada nesse contexto. Trata-se do
Centro de Estudos de Antropologia Clínica (CESAC), fundado
em 1972, em parceria com o recém-criado curso de especialização em Psicologia Clínica da PUC-RJ. Os fundadores são dois
psicanalistas já atuantes no Grupo dos Oito, Inês Besouchet
e Wilson Chebabi, mais o teólogo Arcângelo Buzzi, o filósofo
Emmanuel Carneiro Leão, a psicodramatista Norma Jatobá e a
psicóloga Therezinha Lins.
O CESAC propõe, a partir de seus fundadores, um programa eclético e diletante, englobando rudimentos de filosofia, psicanálise, antropologia, matemática e outras atividades,
como a leitura do Antigo Testamento, com discussões etimológicas da língua hebraica, e o estudo da Cabala. Entretanto, uma
das exigências para a afiliação era que o interessado deveria
estar em análise, o que só faria sentido se fosse para uma formação profissional definida. Em 1972, o CESAC contava com
15 membros, três anos depois esse número chegou a 96, 23 dos
quais eram alunos do referido curso de especialização. A aliança do CESAC com a universidade mantinha uma indefinição de
sua proposta e uma ambiguidade em relação à formação dos
psicólogos. Estes buscavam legitimidade, sobretudo por meio
da universidade, mas permaneciam na periferia da psicanálise,
inclusive porque a universidade não teria como ‘formar’ psicanalistas — esta nunca foi (nem poderia ser) a sua missão. A
formação universitária, portanto, em nada ameaçava as instituições oficiais de formação psicanalítica, ligadas à IPA.
Em 1976, após a conclusão da última turma do curso de
especialização, o convênio com a PUC foi encerrado. Os psicólogos que faziam parte do CESAC já haviam desenvolvido
o seu trabalho clínico, mas permaneciam no limbo, aspiran178
O movimento psicanalítico no Rio de Janeiro dos anos 70: a psicanálise dos psicólogos
do uma formação que não cabia à universidade suprir. Coube a esse grupo, a partir de 1977, a tarefa de reestruturar o
CESAC, visando o que definiam como o permanente aprofundamento e aperfeiçoamento do psicólogo clínico. A primeira
medida adotada foi dar início ao atendimento clínico, sob a
coordenação da psicóloga Therezinha Lins e do psiquiatra e
psicanalista Isidoro Americano do Brasil. A segunda medida
foi rever os estatutos do CESAC, pensando no aperfeiçoamento
do psicólogo, embora nada fizesse referência explícita a uma
formação em psicanálise.
Em 1978, quando é criado um novo curso de especialização em psicoterapia psicanalítica no CESAC, tem início uma
nova crise interna sobre a função da instituição, o que termina
resultando na suspensão do curso. A nova diretoria decide que
a sigla CESAC atende a um centro de estudos com ênfase na
pluridisciplinaridade, e não na formação profissional em clínica. O grupo que propôs o curso se afasta; alguns de seus integrantes vão se engajar em outras instituições de formação que
estavam surgindo na época.
Os argentinos e a APPIA
A participação de argentinos na organização do movimento dos psicólogos é fundamental. Eles trazem, como foi mencionado antes, uma concepção de psicanálise que é compatível, e
mesmo promotora, de sua própria difusão, em nome de uma
justificável crítica às instituições estabelecidas e ao confinamento da prática psicanalítica aos consultórios privados. O projeto deles é eminentemente intervencionista, visando ampliar
o campo clínico da psicanálise, incluindo as áreas da infância
e adolescência, da família e da comunidade em geral. Para os
argentinos, a ‘vocação subversiva’ da psicanálise residia mais
em sua ocupação da sociedade mais ampla do que no recuo ao
atendimento privado individual em nome da ortodoxia. Esta
seria uma prática elitista a ser combatida. Assim, introduzem
diferentes técnicas terapêuticas, uma forte ideologia grupalis179
Clio-Psyché: Instituições, História, Psicologia
ta e, principalmente, as bases de um projeto preventivo-profilático para operar desde o campo da psiquiatria até sobre
a suposta normalidade.
Com relação aos psicanalistas argentinos que vêm ao país
nessa época, é importante destacar que já havia se iniciado um
movimento contundente contra o conservadorismo liberal da
Asociación Psicoanalítica Argentina (APA-IPA). Isto resultou
no desligamento de vários deles, entre analistas didatas e membros e candidatos, culminando com a criação de dois grupos
significativos para a ‘esquerdização’ do movimento psicanalítico na Argentina. Esse movimento teve forte influência dos
psicólogos do Rio de Janeiro. São eles os grupos Plataforma e
Documento.4 Faziam parte desses grupos vários psicanalistas
que estiveram no Brasil, sendo que Marie Langer era um de
seus principais articuladores.
Em 1972, esses dois grupos se dissolvem, dando lugar à
Coordenadoria de Trabalhadores de Saúde Mental, a qual incluía outros profissionais, entre psicólogos, psiquiatras, psicopedagogos e assistentes sociais, com o objetivo de desenvolver
uma luta político-sindical. Naquele mesmo ano, passa a funcionar o Centro de Docência e Investigação (CDI), subordinado
à Coordenadoria, com o objetivo de promover uma formação
em psicanálise, alternativa à APA, para todos os trabalhadores
de saúde mental. Foi criada assim uma nova categoria profissional, os Trabalhadores de Saúde Mental (TSM), com acesso
direto à psicanálise.
De modo diferente do movimento brasileiro, os psicanalistas argentinos, ao introduzirem novas abordagens técnicas,
não entendiam que conspurcavam a ortodoxia psicanalítica.
Ao contrário, acreditavam que faziam avançar e democratizar a
psicanálise, politizando seus atos e ampliando a formação profissional. É com essa marca, portanto, que os argentinos trazem
para o Rio de Janeiro um movimento que provoca grande revi4. Para um histórico completo dos grupos Plataforma e Documento, ver os trabalhos
publicados de Marie Langer (cf. referências bibliográficas)
180
O movimento psicanalítico no Rio de Janeiro dos anos 70: a psicanálise dos psicólogos
ravolta no cenário da ‘psicanálise dos psicólogos’, politizando
o movimento nos dois sentidos — i.e. em termos de militância
social e na política de formação.
Além dos profissionais que circulavam entre os TSM e
no CDI, havia outro grupo que tinha uma proposta interdisciplinar algo diferente da do CDI. Esse grupo era liderado por
psiquiatras e psicanalistas em contato direto com a American
Society for Adolescent Psychiatry, entidade que tinha um programa de higiene e psicoprofilaxia para a infância e adolescência, com grande penetração na América Latina. Em 1970, esses
psicanalistas fundaram a Associação Argentina de Psiquiatria e
Psicologia da Infância e Adolescência (ASSAPIA) tendo como
objetivo promover uma ampla discussão entre profissionais
de psiquiatria, psicologia e psicanálise em nível internacional,
por meio de congressos, palestras e publicações. Foi a partir
desse grupo que os primeiros psicanalistas argentinos vieram
ao Rio de Janeiro para ministrar cursos na SPRJ e no recémfundado IOP, a convite do próprio Fábio Leite Lobo. Vieram,
como já mencionamos, Maurício Knobel (primeiro presidente
da ASSAPIA), Eduardo Kalina (diretor de publicação da revista
da ASSAPIA), além de Arminda Aberastury, Leon Grinberg e
Arnaldo Rascovsky psicanalistas da APA ligados à ASSAPIA e
considerados padrinhos e mentores desse movimento.
A partir da I Reunião Pan-americana de Psiquiatria da
Adolescência, realizada em Buenos Aires, no início de 1971,
formou-se um comitê com a finalidade de fomentar o intercâmbio entre especialistas da América Latina, além de promover a
formação de novos grupos de estudo e sociedades fora da Argentina. Em outubro do mesmo ano, por ocasião do II Congresso Argentino de Psicopatologia Infanto-Juvenil, contando com
cerca de 1.500 participantes, compareceram aproximadamente
100 profissionais brasileiros, entre psicanalistas, psiquiatras e
psicólogos. Nesse congresso, os brasileiros se comprometem a
fundar, no Rio de Janeiro, uma associação nos moldes da ASSAPIA. Estavam lançadas as bases da APPIA — Associação de
Psiquiatria e Psicologia da Infância e Adolescência.
181
Clio-Psyché: Instituições, História, Psicologia
Os TSM, o CDI e a ASSAPIA funcionam como três focos
distintos, mas intercambiáveis, de fornecimento de profissionais e modelos de intervenção. Guardando entre si características diferentes, mas tendo a psicanálise como suporte comum
de seus projetos, eles vêm proporcionar uma maior autonomia
ao movimento dos psicólogos, visando se apropriar da psicanálise. Nessa proposta, esses grupos têm uma dupla função
política: no sentido amplo (i.e., ‘esquerdização’ do movimento
dos psicólogos) e no sentido estrito (i.e., organização e mobilização dos psicólogos em torno da psicanálise, fornecendo
subsídios para a ampliação de sua prática clínica). Os argentinos, portanto, vão ratificar o exercício do que chamamos
‘psicologia psicanalítica’.
A fundação da APPIA se dá no início de 1972. Seu primeiro presidente foi o psicanalista Carlos Cesar Castellar Pinto,
da SPRJ-IPA. A entidade contou com 54 membros fundadores,
sendo 13 psicanalistas, 34 psicólogos, quatro médicos e três assistentes sociais. Os psicanalistas eram todos membros da SPRJ,
entre os quais estavam Fábio Leite Lobo (SPRJ-IOP) e Wilson
Chebabi (SPRJ-CESAC). Entre os psicólogos, vários deles eram
ligados tanto ao CESAC como ao IOP e à SPC, e que posteriormente iriam se engajar nos novos grupos de formação em
psicanálise, surgidos na segunda metade da década de 1970.
Segundo seu fundador, a APPIA pretendia ser “uma sociedade científica multidisciplinar de orientação psicanalítica,
visando a prevenção em saúde mental e a promoção de cursos e
congressos com temas psicanalíticos e psiquiátricos”.5
A atuação fundamental da APPIA, tanto no que diz respeito à psicanálise como em relação aos profissionais psicólogos,
pode ser analisada sob dois aspectos que se complementam. O
primeiro se refere ao seu papel centralizador, uma vez que passa
a ser o centro de referência dos profissionais (psicólogos e psicanalistas) brasileiros mais progressistas, além dos psicanalistas
argentinos interessados em ampliar o seu mercado de trabalho
5. Depoimento de Carlos Cesar Castellar Pinto, em entrevista à autora, em 1983.
182
O movimento psicanalítico no Rio de Janeiro dos anos 70: a psicanálise dos psicólogos
ou mesmo se refugiar das sérias pressões políticas sofridas em
seu país. Para os psicólogos, a APPIA funciona como uma espécie de ‘sindicato’, possibilitando a arregimentação da categoria
a fim de definir sua função nesse projeto interdisciplinar para
a saúde mental. Os psicólogos clínicos do Rio de Janeiro eram,
em sua maioria, afiliados à APPIA.
O segundo aspecto diz respeito ao seu papel crucial na
difusão da psicanálise, em suas diferentes modalidades de intervenção, com o risco de descaracterizar o que se concebia então
como psicanálise, segundo a ortodoxia da IPA. Retornaremos
a este ponto mais adiante.
A promoção de dois grandes congressos, em 1972 e 1976,
concentrava uma verdadeira equipe internacional de promotores
de uma psicologia psicanalítica, ocupando espaço na mídia com
seus projetos de saúde mental para a infância, adolescência e as
famílias de modo geral. O comparecimento chegou a cerca de 2
mil participantes, em sua maioria jovens psicólogos e estudantes.
A partir de 1975, é exigida pelos próprios membros da
APPIA uma maior definição a respeito de seus propósitos: seria
uma entidade promotora de grandes eventos e cursos paralelos ou estaria comprometeria a formar especialistas em saúde
mental? Em 1976, já contava com mais de 1.000 associados,
a maioria de psicólogos. Nessa época, Carlos Castellar, pede
demissão do cargo de presidente, manifestando-se contra a
transformação da APPIA em uma instituição de formação sistemática de profissionais. De acordo com o vice-presidente, o
psicanalista José Inácio Parente, o esvaziamento da APPIA se
devia ao fato de a entidade já ter cumprido suas principais funções — e.g., servir como uma espécie de ‘embaixada’ da Argentina; uma função gremial, agrupando diferentes profissionais,
sobretudo psicólogos; e oferecer uma oportunidade de contato
com a psicanálise, basicamente de informação. Nessa época,
surgem outras instituições que se ocupam de atender a essa demanda recorrente de formação em psicanálise. Entramos assim no segundo período de nosso estudo, a segunda metade da
década de 1970.
183
Clio-Psyché: Instituições, História, Psicologia
Segundo: A ‘psicanálise dos psicólogos’ e o
acesso à formação
Na segunda metade dos anos 70, abrangendo o início dos
anos 80, a difusão da psicanálise entre os psicólogos resulta na
própria reorganização do movimento psicanalítico. São criados
vários grupos de formação, nos quais predominam psicólogos.
Esses grupos não apresentam muitos pontos de contato entre
si, sendo até bastante heterogêneos em suas propostas organizacionais. Todos, no entanto, pretendem se sustentar por meio
de critérios de legitimação que não incluam um recurso à IPA e,
sobretudo, que não se assemelhem às sociedades já existentes.
Travando discussões infindáveis e ameaçados de novas dissidências, esses grupos — vários dos quais estão extintos hoje –,
cada um com determinado tipo de investimento, passam a absorver a nova demanda de formação psicanalítica que se produziu na primeira metade da década de 1970.
Esquematicamente, essa descentralização envolve três
níveis: 1) o político-institucional — a IPA não tem mais ascendência direta sobre esses grupos, nem qualquer outra entidade
congregadora; 2) o teórico-técnico — ampliação e diversificação das discussões em torno da teoria e da técnica, articulados
com outros campos do saber; e 3) o mercado — multiplicam-se
os serviços de atendimento psicanalítico, oferecidos não apenas
pelos novos grupos de formação, mas também por intermédio
de vários núcleos autônomos que vão progressivamente se estabelecendo no Rio de Janeiro.
Um traço marcante desse período na reorganização do
movimento psicanalítico é a emergência do movimento lacaniano, com sua proposta de redefinição da psicanálise, em uma
nova ortodoxia sustentada nas formulações do psicanalista
francês e o seu mote de um ‘retorno à Freud’. Essa ortodoxia
surge como um modo de legitimar a formação em psicanálise,
fora do âmbito da IPA, uma vez que Lacan havia sido desligado
dessa entidade, em 1964, devido a sua heterodoxia e suas ousadas concepções sobre a ‘técnica’ psicanalítica, consideradas
então inadequadas e mesmo subversivas.
184
O movimento psicanalítico no Rio de Janeiro dos anos 70: a psicanálise dos psicólogos
Embora, até os anos 80, apenas dois grupos se definam
como lacanianos, o movimento se instaura ao longo da década
de 1990 e vai paulatinamente se afirmando como a única possibilidade de se fazer psicanálise. Seu crescimento, no entanto,
se dá de maneira eclética, desde a mera curiosidade intelectual
de alguns psicanalistas, em função da sofisticação teórica que
Lacan apresenta, passando pelas instituições já estabelecidas,
as quais incluem a teoria lacaniana em seus seminários e palestras, até propostas mais radicais, de reestruturar a própria instituição a partir do modelo de escola proposto por Lacan. De
qualquer modo, o recurso a Lacan torna-se imperativo a partir
desse período até os dias de hoje, atravessando a primeira década do século XXI. Hoje temos várias instituições de maior ou
menor porte sustentando a filiação a Lacan e seus seguidores.6
Historicamente, as formulações de Lacan foram introduzidas no Rio de Janeiro no início dos anos 70, por intermédio
dos psicanalistas Hórus Vital Brazil e M. D. Magno. O movimento propriamente dito se configura apenas no final da década de 1970 e início dos anos 80, tendo obtido um avanço significativo a partir dos anos 90. As tendências da psicanálise nos
anos 70 oscilavam entre a abordagem da escola inglesa, com
Melanie Klein como referência maior, mas também Winnicott
e outros, como Ferenczi, e a psicologia do ego, que proliferou
na formação estadunidense. A virada lacaniana traz uma série
de desdobramentos no cenário da psicanálise brasileira, principalmente no Rio de Janeiro, favorecendo a descentralização da
formação e contribuindo substancialmente para a desestabilização da SPRJ–IPA, instituição que mais patrocinou a primeiro
período do movimento dos psicólogos sem, contudo, autorizar
ou legitimar sua formação. Veremos a seguir o surgimento dos
novos grupos de formação e, em linhas gerais, o ‘caso’ da SPRJ.
6. A partir dos anos 90 e, mais recentemente, na última década, proliferam novas
instituições de formação em psicanálise orientadas pela escola de Lacan. No Rio de
Janeiro, surgiram cerca de dez instituições lacanianas de diferentes portes, organizadas
em torno de um mestre ou fundador que se encarrega de transmitir sua leitura da
obra de Lacan.
185
Clio-Psyché: Instituições, História, Psicologia
As novas instituições de formação psicanalítica
Entre 1976 e 1981, surgem seis grupos de formação em
psicanálise com diferentes propostas institucionais, tanto do
ponto de vista administrativo como acadêmico, além daqueles
já existentes na primeira metade da década. São eles: IBRAPSI,
IFP, SEPLA, Terra-Clínica Escola, Colégio Freudiano do Rio
de Janeiro e Letra Freudiana. Muitos dos psicólogos envolvidos com alguma dessas instituições são egressos do CESAC e/
ou da APPIA.
O dilema inicial desses novos grupos era como instituir
uma formação que se caracterizasse por uma luta política contra a hegemonia das sociedades atreladas à IPA e seu modelo de
funcionamento e formação, ao mesmo tempo em que necessitavam de algum modo mais efetivo de legitimação. Cada grupo
vai tentar resolver essa contradição, presente desde a fundação
da SPC, no início dos anos 70, e agravada pela ambiguidade
dos próprios psicanalistas.
O IBRAPSI e o IFP resultam do esfacelamento de um
grupo precursor, o Núcleo de Estudos e Formação Freudiana
(NEFF), que não se sustentou, permanecendo dividido entre
fazer política e definir a formação psicanalítica, senso estrito,
até sua extinção.
Em 1978, surge o Instituto Brasileiro de Psicanálise, Grupos e Instituições (IBRAPSI), fundado pelo argentino Gregório
Baremblitt (egresso da APA e membro do grupo Plataforma),
juntamente com dois psicanalistas brasileiros, Luiz Fernando
de Mello Campos e Chaim Samuel Katz; este último se desliga
no mesmo ano e, nos anos 90, funda outra instituição, intitulada Formação Freudiana. O IBRAPSI visava reproduzir o
projeto político-assistencial da CDI argentina e da Escola de
Psicologia Freudiana e Socioanálise (EPSO), organizada por
Baremblitt, dentro da CDI, em 1973. Com forte ideologia marxista, passou a ser a primeira instituição a oferecer formação
psicanalítica aliada a um projeto político expansionista, mas
que se perde na teia da chamada interdisciplinaridade, nas propostas grupais e na perspectiva intervencionista e preventivista
186
O movimento psicanalítico no Rio de Janeiro dos anos 70: a psicanálise dos psicólogos
dos TSM, deixando a formação em psicanálise propriamente
dita em segundo plano.
Ainda em 1978, ocorre o I Simpósio Internacional de Psicanálise, Grupos e Instituições, no suntuoso Copacabana Palace Hotel, no Rio de Janeiro, um importante evento que congregou nomes célebres no cenário da reforma psiquiátrica (Franco
Basaglia, Armando Bauleo, Thomas Szaz e outros), da intelectualidade (Felix Guattari, Erving Goffman, Robert Castel, Shere Hite) e expoentes do iniciante movimento lacaniano brasileiro (M. D. Magno e Betty Milan). Os salões do Copacabana
Palace exibiam as mais polêmicas discussões sobre temas que
variavam da psicanálise à política institucional, da psiquiatria
às controvérsias sobre a sexualidade feminina, em um espetáculo que atraiu cerca de mil pessoas, em sua maioria, profissionais
‘psi’. Esta foi a primeira e última vez que se assistiu a tamanha
concentração de celebridades de campos tão diversos.
O IBRAPSI teve seu período mais próspero entre 1978 e
1982, contando com cerca de 160 alunos e uma média anual
de 500 pacientes atendidos. O programa de formação preparava psicanalistas e socioanalistas, na vertente da análise institucional. Em 1983, houve uma ‘crise’ por motivos políticos,
convergindo para uma crítica à excessiva centralização da administração, nas mãos de apenas uma ou duas pessoas. Aproximadamente 50 membros se desligaram, fundando o Núcleo de
Psicanálise e Análise Institucional. A partir de então, o IBRAPSI muda a sua razão social, tornando-se uma sociedade com 60
cotistas. Logo depois, no entanto, há uma nova cisão e um grupo de cotistas se retira, criaando o Centro de Estudos Sociopsicanalíticos (CESOP). Nenhum desses novos grupos conseguiu
se manter por muito tempo e o IBRAPSI fecha suas portas na
primeira metade dos anos 90. Nessa época, o movimento lacaniano ganha expressão, atraindo muitos adeptos.
Em 1979, é fundado o Instituto Freudiano de Psicanálise
(IFP). Sua proposta é promover uma formação em regime de
autogestão, com base em dois pontos fundamentais: 1) com relação à estrutura administrativa: assembleia geral, com direito
187
Clio-Psyché: Instituições, História, Psicologia
a voz e voto para todos os membros; rotatividade nos cargos;
e 2) com relação à estrutura acadêmica: a análise didática é a
própria análise pessoal. A leitura de Freud é feita a partir da
escola francesa, via Lacan e seus discípulos na época, embora os membros do IFP não se intitulem ‘lacanianos’. Adotam,
posteriormente, o modelo dos cartéis proposto por Lacan, em
substituição aos cursos regulares por turmas. Um terceiro ponto a ser destacado é o fato de os membros conceberem o IFP
como uma “instituição feminina por excelência” (Mello, 1982),
formada em sua grande maioria por mulheres, originalmente
psicólogas, onde os homens e geral “ocupam o lugar de professor, juntamente com algumas mulheres”. Uma delas é a médica
psicanalista argentina Stella Jimenez, já radicada no Brasil. O
IFP encerra suas atividades em 1992, tendo a maioria de seus
membros migrado para as novas instituições de formação lacanianas, criadas nos anos 90.
Em 1978, surge a Sociedade de Estudos Psicanalíticos
Latino-americanos (SEPLA), fundada por ex-membros do CESAC, de onde trazem uma forte influência. A proposta inicial
era organizar uma formação psicanalítica baseada na articulação das disciplinas ‘humanísticas’ — antropologia, filosofia,
história, mitologia –, aliada a uma psicanálise mais eclética que
incluía a psicologia junguiana e a gestalt-terapia. Entre seus
membros havia um grupo mais interessado no movimento lacaniano ligado ao psicanalista argentino Eduardo Vidal, que
ministrava aulas, organizava grupos de estudo com base em
textos de Lacan e, posteriormente, funda a Letra Freudiana. Essas diferenças geram tensões insuperáveis e a SEPLA encerrou
suas atividades no início dos anos 90.
O grupo que funda a Terra — Clínica Escola surge a partir
do trabalho em orientação vocacional, baseado nas propostas
do psicólogo e psicanalista argentino Rodolpho Bohoslavsky e
em parceria com o psicanalista Lourival Coimbra, originalmente da SBPRJ e, naquela época, membro da SEPLA. Em 1979,
dão início ao atendimento terapêutico e criam a instituição.
No ano seguinte, iniciam a formação em psicanálise, de acor188
O movimento psicanalítico no Rio de Janeiro dos anos 70: a psicanálise dos psicólogos
do com o modelo de grupos operativos de autogestão; a base
teórica é fornecida pela escola inglesa, principalmente Wilfred
Bion (grupos operativos), pelo psiquiatra e psicanalista argentino José Bleger, de formação marxista, e pela antipsiquiatria de
Cooper e Laing. A base do funcionamento institucional era a
ideologia grupalista em pequena escala, tendo os grupos como
alicerce da instituição. Entretanto, sua atuação no cenário psicanalítico não foi expressiva nem durou muito, não chegando
aos anos 90.
Os outros dois grupos mencionados acima — Colégio
Freudiano do Rio de Janeiro e Letra Freudiana –, apesar de se
autointitularem freudianos, foram explicitamente organizados
a partir de um objetivo comum, visando a promoção e ratificação das teorias de Jacques Lacan em seu “retorno a Freud”.
O Colégio Freudiano foi fundado em 1976, por Betty Milan e
Magno Machado Dias (conhecido como M. D. Magno), que se
autorizavam representantes e cultores do pensamento lacaniano no país, após terem trabalhado como assistentes de Lacan,
na Universidade de Paris. Mas só em 1981, ano da morte de
Lacan e também da fundação da Letra Freudiana, iniciam uma
formação sistemática, com a criação do Instituto Jacques Lacan.
A Letra Freudiana foi fundada sob a liderança de Eduardo Vidal, já referido acima. Pretendia inicialmente veicular as
teorias de Lacan sem qualquer proposta de formação de psicanalistas, estando aberta a qualquer categoria profissional. Em
1983, seus membros assumem a criação do que denominam de
‘formação permanente’ em psicanálise.
Em suma, essas instituições se organizaram em torno de
dois eixos principais, visando sustentar o seu próprio funcionamento e organizar a formação de novos profissionais, a saber:
o projeto assistencial, que privilegia o atendimento clínico (e.g.,
IBRAPSI e Clínica Terra); e o projeto teórico, em torno do estudo e divulgação, principalmente da escola lacaniana (e.g., Colégio Freudiano e Letra Freudiana). Cabe ressaltar que esses dois
eixos surgem como tendências que dão origem a novas instituições. No primeiro caso, surgem clínicas que funcionam como
189
Clio-Psyché: Instituições, História, Psicologia
uma espécie de cooperativas, com o objetivo de arregimentar
uma clientela que não pode pagar pelo tratamento psicanalítico. Essas clínicas em geral oferecem psicoterapias ‘de base analítica’, individuais ou em grupos, para crianças, adolescentes e
adultos, além da orientação de pais e de terapias para casais e
famílias. A maioria delas também oferece cursos e palestras com
temas psicanalíticos, incluindo as novas tendências lacanianas.
No Conselho Regional de Psicologia (CRP/RJ) há registros, nessa época, de mais de 15 clínicas, incluindo as seguintes:
Casa — Espaço Coletivo para o Crescimento; Centro de Estudos e Atendimento Psicanalítico (CEAPSI); Centro de Estudos
Psicanalíticos e Psicologia Aplicada (CENEP); Grupo de Estudos e Atendimento Psicológico (GEAP); Grupo Petropolitano
de Estudos Psicanalíticos (GREPSI); Terapêutica e Estudo da
Criança, do Adulto e da Família (GRUPSI); Instituto do Desenvolvimento da Personalidade (IDP); e Instituto de Psicologia
Clínica (IPC). Entre essas, o GPEPSI e o IPC oferecem explicitamente cursos de formação em psicanálise. Constitui-se, assim,
uma legião de ‘psicólogos psicanalíticos’ em busca de uma formação reconhecida em psicanálise, agora não mais restrita às
sociedades ligadas à IPA. Curiosamente, a partir dos anos 80,
estas últimas passam a aceitar psicólogos em seus quadros, os
quais representam hoje a grande maioria dos psicanalistas e
dos candidatos em seus institutos de formação.
O ‘caso’ da SPRJ: a revolução francesa e a
abertura aos psicólogos
No final da década de 1970, uma série de episódios caracterizaram o que ficou conhecido com a ‘crise’ da SPRJ (Cunha,
1980; Mello, 1980; Cerqueira, 1982). Destacamos aqui a denúncia de cumplicidade de alguns de seus membros analistas
didatas com a tortura de presos políticos, durante a ditadura
brasileira, sendo que os acusados eram influentes opositores
do movimento argentino que marcou psicólogos e psicanalistas no Rio de Janeiaro desde o início. Essa crise se dá em um
190
O movimento psicanalítico no Rio de Janeiro dos anos 70: a psicanálise dos psicólogos
cenário onde a difusão da psicanálise já é fato consumado e
os critérios de elegibilidade e reconhecimento dos psicanalistas
não estão mais exclusivamente sob controle das sociedades da
IPA. A situação da SPRJ torna-se visivelmente anacrônica com
relação ao movimento psicanalítico da época. Esse anacronismo transparece na manutenção de modelos de gestão administrativa e acadêmica considerados obsoletos e antidemocráticos:
concentração de poder nas mãos de uns poucos membros, os
quais se revezavam nos cargos há muitos anos; entrave ao desenvolvimento do processo de formação, com reduzido número de analistas didatas, pouco incentivo à produção teórica e
inflexibilidade, no que diz respeito às transformações teóricas
e técnicas em curso na psicanálise. Além disso, os detonadores
da ‘crise’ estavam entre os membros mais progressistas da entidade, aqueles que patrocinaram a expansão da psicanálise para
além dos muros da SPRJ e da formação médica, abrindo campo
para os psicólogos.
A ‘crise’ pode ser traduzida então como uma tentativa de
recolocar a própria entidade a serviço da atualização no campo psicanalítico, visando recuperar seu prestígio e seu poder
centralizador. Portanto, não se tratava de romper com a SPRJ,
embora alguns psicanalistas o tenham feito, mas sim de romper
com o anacronismo que tornava a entidade desacreditada e politicamente enfraquecida perante seus membros, candidatos e a
própria IPA. A comissão de sindicância da IPA, inclusive, chegou
a fazer algumas visitas, com a finalidade de esclarecer as denúncias e retificar o rumo da instituição. O psicanalista (Amilcar
Lobo) que comprovadamente colaborou com a ditadura, como
médico, avaliando o estado físico e mental dos torturados, foi
desligado. Dois dos líderes do movimento progressista (Hélio
Pellegrino e Eduardo Mascarenhas), que ganhou corpo no final
da década, também foram desligados, sendo, contudo, readmitidos um ano após o veredicto da comissão da IPA.
O já referido ‘retorno a Freud’, promovido por Lacan e
seus seguidores, se apresenta como o novo mote para a atualização, desde que sua apropriação diluísse as posições mais
191
Clio-Psyché: Instituições, História, Psicologia
radicais dos lacanianos, como a estrutura e frequência das sessões e a proposta de formação nos moldes da escola fundada
por Lacan. A apropriação desse mote entre nós caracterizou
a chamada ‘revolução francesa’ na SPRJ. Procede-se assim a
um raciocínio por analogia, levando à construção das seguintes
séries que se opõem:
Democracia (cidadão) — Lei (castração simbólica) — Ordem
do Discurso (reificação do discurso lacaniano)
x
Autoritarismo (súdito) — Fragilidade da Lei (pai arcaico
onipotente/mãe fálica) — Ordem da Força (apropriação
do discurso kleiniano)
A analogia está ancorada na seguinte derivação lógica: 1)
a imediata reificação do discurso lacaniano como a única psicanálise possível; 2) a compatibilização desse discurso com os
princípios igualitários da democracia e da noção de cidadão; 3)
a ideia de que o discurso kleiniano se presta a uma utilização
autoritária, ainda que seja uma apropriação indevida; e 4) a
ideia de que é preciso restaurar, em uma ‘política da psicanálise’, tanto a democracia como a verdadeira psicanálise (i.e., a
essência do pensamento freudiano, tendo como suporte o discurso lacaniano).
Em outras palavras, o ‘retorno a Freud’ aspira a eficácia de uma nova ortodoxia, a qual deve ser colocada acima de
qualquer suspeita. A lógica do cidadão (daí a metáfora de ‘revolução francesa’) frente à lógica do tirano parece se constituir
em uma requintada estratégia de poder do grupo progressista,
atingindo diretamente os setores mais conservadores da sociedade (apelidados na época de ‘barões da psicanálise’) e sendo
até certo ponto compatível com a avaliação da comissão da
IPA. Convém lembrar que Lacan já havia sido considerado persona non grata, tendo se desligado da IPA em um processo que
ele próprio denominou de ‘excomunhão’.
O movimento lacaniano no Rio de Janeiro, portanto, com
192
O movimento psicanalítico no Rio de Janeiro dos anos 70: a psicanálise dos psicólogos
sua proposta de uma psicanálise ‘subversiva’, seu apelo para
o rompimento com o modelo médico e o discurso universitário, tornou-se especialmente atraente — atraente aos olhos de
um número cada vez maior de psicólogos que ainda não conseguiam se definir como psicanalistas, de jovens pacientes até
certo ponto familiarizados com a experiência e de psicanalistas
engajados na modernização da área, visando prescrever outro
tipo de controle sobre sua posição teórica, política e social.
Para concluir
Fixando como cenário principal a década de 1970, apresentamos neste capítulo como os psicólogos paulatinamente se
apropriam da psicanálise, constituindo uma ‘psicologia psicanalítica’ e forçando a criação de novos grupos de formação, os
quais vão se legitimando a partir da ‘vaga argentina’ e da ortodoxia lacaniana. Esta última coloca a psicanálise em um novo
patamar, oferecendo uma resposta eficaz a essa demanda e permitindo a consolidação de uma ‘psicanálise dos psicólogos’.
Atualmente, as sociedades da IPA têm uma maioria de psicólogos em seus quadros; o movimento lacaniano deu origem a
inúmeras instituições de formação, as quais pretendem se organizar no modelo da escola de Lacan; e, fora do campo psicanalítico, outras tendências da psicologia clínica se debatem pelo reconhecimento. A ortodoxia lacaniana parece resolver de modo
emblemático o problema da eterna divisão entre a politização,
entendida como esquerdização, do movimento psicanalítico e o
rigor que concerne à formação profissional propriamente dita.
As já consagradas oposições entre individual e grupal, privado
e público, esquerda e direita se fundem no caráter subversivo
das formulações lacanianas. Estas se caracterizam pela necessidade de um complexo trabalho intelectual, ao mesmo tempo
em que promovem uma espécie de deselitização de sua prática (e.g., frequência variável, acesso facilitado ao tratamento),
disseminada mais recentemente, inclusive na saúde pública,
principalmente nos ambulatórios e outros serviços de saúde
193
Clio-Psyché: Instituições, História, Psicologia
mental. A dissidência hoje se aloja nas propostas grupalistas
da análise institucional e nas tendências, não tão instituídas, da
esquizoanálise, que atraem muitos psicólogos que se colocam
mais ‘à esquerda’ do movimento lacaniano. Esse, contudo, já
é outro capítulo a ser contado acerca da história da psicologia
clínica no Brasil.
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***
195
Comentários sobre os capítulos 7 e 8
“O psciólogo como psicanalista: os casos da França e da Argentina em
perspectiva histórica”, de Alejandro Dagfal, e “O movimento psicanalítico no Rio de Janeiro dos anos 70: a psicanálise dos psicólogos”,
de Ana Cristina Figueiredo.
Jane Araújo Russo
Os textos dos capítulos 7 e 8 lidam, de modos bastante distintos, com as relações entre a psicologia e a psicanálise.
Enquanto Alejandro escolhe o caminho da reflexão teórica e
epistemológica, Ana Cristina analisa o tema de um ponto de
vista político-institucional.
Nos dois casos, estamos lidando com áreas de saber e práticas essencialmente distintas. Enquanto a psicologia pode ser
definida como um campo plural, difuso, com uma multiplicidade de abordagens, enfoques e técnicas (ou, como uma vez
afirmou Luiz Alfredo Garcia Rosa, um “espaço de dispersão do
saber”), a psicanálise, apesar de se dividir em inúmeras “escolas” que apontam para possibilidades de leitura e intervenções
às vezes divergentes, é um campo mais coeso, com fronteiras
mais claras a defini-lo.
Na psicanálise, apesar da distância que separa, por exemplo, a leitura kleiniana da lacaniana, para citarmos duas abordagens bem difundidas entre nós, determinados temas de fundo
permanecem como tópicos de controvérsias teóricas: quer sejam
determinados conceitos de base, como o inconsciente, quer seja o
peso relativo que se dá aos diferentes textos canônicos de Freud.
Além da própria atividade clínica, que é a marca do campo.
Já a psicologia surge de forma inteiramente distinta, como
um ramo específico das ciências humanas, sem referência a
qualquer pai fundador ou a conceitos-chave que a sustentem,
ancorada na exigência da produção de um saber científico a
respeito do ser humano.
A psicanálise, como bem o caracteriza Alejandro Dagfal,
além de um “método de exploração do inconsciente”, era tam196
bém um movimento “como a igreja ou o exército”, incluindo
“um ideal de afiliação e uma referência de identidade”. Tudo
isso é profundamente estranho ao funcionamento da psicologia como ciência, tal como ela existia no momento em que
Freud estruturou sua nova doutrina. Até porque, ao contrário
da psicologia, a psicanálise surgiu e floresceu fora da academia,
longe do locus de produção científica. E assim permanece até
hoje, como sabemos. Embora esteja presente na universidade,
seja nos cursos de graduação de psicologia, seja em pós-graduações específicas, o “fazer psicanalítico” fundamental não está
na universidade, e tanto a política institucional como a fonte
de legitimidade do campo se localizam em outros espaços — as
sociedades de formação –, que não a universidade.
Cabe então a pergunta: como e por que a psicologia e
a psicanálise se enredaram numa relação ora conflituosa, ora
colaborativa, marcando os momentos e lugares analisados nos
artigos de Alejandro e Ana Cristina?
Acho que a primeira tentativa de resposta a esta pergunta
está no reconhecimento de que a psicanálise, enquanto “método de exploração do inconsciente” transformou-se, no decorrer
de boa parte do século XX e no conjunto de países ditos ‘ocidentais’, em uma poderosa weltanschauung. E, enquanto uma
weltanschauung, difundiu-se não apenas no senso comum, mas
também nas chamadas ciências humanas. A antropologia e a
sociologia, por exemplo, foram atravessadas pela psicanálise
(ver, sobretudo, o movimento ‘cultura e personalidade’; as discussões de Malinowski com a teoria freudiana; as tentativas de
articulação de Talcott Parsons e, mais recentemente, de Norbert Elias e, apesar de seus protestos, de Lévi-Strauss). Nesse
contexto, a psicologia foi necessariamente afetada. Mas de um
modo diferente, já que a sua situação era bem diferente daquelas das ciências da sociedade. Enquanto para estas a psicanálise
poderia trazer subsídios, contribuições e bons insights, já que
eram campos de saber paralelos, um que dizia respeito ao coletivo e outro que se debruçava sobre o indivíduo (por mais que
essa separação seja mais complicada do que posso desenvolver
197
Clio-Psyché: Instituições, História, Psicologia
aqui), para a psicologia tratava-se de disputar o mesmo objeto — a mente do indivíduo, seu funcionamento e seus disfuncionamentos. Ou seja, talvez se possa dizer que os campos que iam
sendo constituídos pela psicologia e pela psicanálise tendiam a
se sobrepor, e, por isso, a competir. Ou, então, pode-se pensar
que para a psicologia científica, de laboratório, a psicanálise
nada tinha a dizer, já que o seu modus operandi se distanciava
tanto do fazer psicanalítico. Todavia, não se tratava exatamente de uma indiferença, já que a tendência da psicologia científica era a acirrada crítica à psicanálise.
O que quero dizer é que a relação entre a psicologia e a
psicanálise não é obvia, não está dada, é algo a ser feito. É sobre isso que tratam os dois textos aqui apresentados.
Alejandro Dagfal discute a trajetória de dois intelectuais
(que oportunamente se tornarão psicanalistas) na constituição
de uma relação entre a psicologia e a psicanálise. Daniel Lagache, maître de conférences de psicologia, em Estrasburgo, e
depois professor de psicologia geral, na Sorbonne, é, ao mesmo
tempo, membro da Sociedade Psicanalítica de Paris. No campo
heterogêneo e multifacetado da psicologia, ele busca uma síntese teórica que inclua a psicanálise. Sua proposta, portanto, é
de inclusão, englobamento de uma (psicanálise) por outra (psicologia) Seu objetivo era não propriamente unificar a psicologia, mas ordenar sua multiplicidade, de modo a transformar a
difusão e a dispersão em um conjunto inteligível. Também do
ponto de vista da clínica, Lagache situava a psicanálise como
um ramo da psicologia clínica. Segundo Dagfal, duas importantes consequências do projeto de Lagache foram: de um lado,
dar início a uma tradição de “psicólogos-psicanalistas”, e, de
outro, legitimar o “projeto de expansão da psicanálise na universidade”.
O outro intelectual apresentado é José Bleger, psicanalista
argentino e professor de psicologia, como Lagache. Distinguiuse deste último por sua aproximação com a teoria marxista. Tal
aproximação o levou à tentativa de transformar a psicanálise,
com o intuito de fundar uma “psicologia materialista e dialéti198
Comentários sobre os capítulos 7 e 8
ca”. Teve uma atuação política bastante importante como incentivador do trabalho psicológico no campo social e institucional.
Referindo-se à França e à Argentina, Dagfal finaliza o capítulo afirmando que “a identidade profissional do psicólogo,
nos dois países, passou a se ligar (e continua atualmente) a uma
matriz psicanalítica, implantada pelos respectivos projetos de
Bleger e de Lagache”. É possível dizer o mesmo em relação ao
Brasil, e a relação entre a identidade profissional do psicólogo
e a “matriz psicanalítica” é justamente o tema do trabalho de
Ana Cristina Figueiredo. Certamente, não é possível debitar a
conta dessa relação tão somente nos projetos de Bleger e Lagache, ou de outro teórico qualquer. Há uma história político-institucional que, entremeada por discussões teóricas e divergênias
teóricas e técnicas, deve ser recuperada, sendo este o objetivo
do trabalho de Ana Cristina.
Lidando com o movimento psicanalítico no Rio de Janeiro,
nos anos 70, a autora vai tratar de um fenômeno que ocorreu
também na França e na Argentina: a intensa difusão da psicanálise no meio profissional, tanto psiquiátrico como psicológico. A
história que ela nos conta, da passagem de uma “psicologia psicanalítica” para uma “psicanálise dos psicólogos”, é uma espécie
de epopéia em que a luta pelo monopólio da transmissão do título de “psicanalista” foi central, tendo de um lado os psicanalistas
(médicos) certificados pelas sociedades “oficiais” (filiadas à IPA)
e, de outro, os psicólogos, analisados e atraídos por esses psicanalistas, mas impedidos de ascender a uma formação “oficial”.
Muito específica do Rio de Janeiro, essa epopéia teve dois
momentos importantes: a invasão argentina e a revolução francesa. Nos dois casos, tratava-se da importação de fortes aliados
na luta dos psicólogos contra o monopólio daqueles profissionais certificados pela IPA. Os ‘invasores’ argentinos trouxeram
modos de trabalhar que desafiavam a ortodoxia ‘oficial’, se
apresentando como fonte de legitimação aos psicólogos que
queriam praticar a psicanálise. A ‘revolução francesa’ foi produzida pela chegada da teoria lacaniana, com tudo que ela implicou de crítica à psicanálise ‘oficial’.
199
Clio-Psyché: Instituições, História, Psicologia
Ana Cristina vai mostrando, no decorrer do capítulo, o
entrelaçamento entre as querelas político-institucionais e as
proposições teóricas das diferentes escolas, deixando entrever a
impossibilidade de se dissociar o interesse propriamente político (de monopolização, dominação de um campo etc.) do (des)
interesse conceitual e teórico.
As duas histórias, a contada por Alejandro e a contada por
Ana Cristina, falando de um mesmo movimento por ângulos
distintos, nos levam a refletir sobre o peso político das querelas
teóricas — i.e., sobre como a teoria não apenas se produz em
determinado contexto político-institucional, mas transforma e
molda esse contexto no decorrer de sua produção.
***
200
9
Uma instituição transmissora de saberes
antropológicos e psicológicos no Brasil colonial:
a Companhia de Jesus
Marina Massimi
Introdução
Este capítulo aborda a transmissão de saberes antropológicos e psicológicos realizada no Brasil colonial por uma instituição religiosa caracterizada por uma organização própria e
original: a Companhia de Jesus. Sabe-se que a presença dessa
instituição, no extenso território brasileiro, ao longo de quase
três séculos (de 1549 a 1760), foi decisiva para a história da
sociedade e da cultura nacional. Quando, em 1759, o primeiro-ministro de Portugal, Sebastião José de Carvalho, conhecido
como Marquês de Pombal, ordenou a expulsão em massa dos
jesuítas de todas as colônias portuguesas, os religiosos possuíam trinta e seis missões, vinte e cinco residências e dezessete
colégios e seminários espalhados pelo país.
Premissa metodológica
Ao abordar o quadro sócio-cultural do Brasil do período
colonial, observa-se que este se caracteriza pela predominância de culturas orais: em contextos desta natureza, o universo
das práticas (de natureza social, religiosa, cultural) assume a
função de transmitir também o específico universo do pensável,
conforme Michel de Certeau (2000 [1975]) evidencia na discussão acerca dos métodos apropriados para a reconstrução da
história cultural da Idade Moderna.
Segundo o historiador francês, existem na historiografia
contemporânea dois métodos tradicionalmente distintos: um
se baseia na reconstrução histórica das idéias a partir de documentos expressivos do universo filosófico e literário de uma de201
Clio-Psyché: Instituições, História, Psicologia
terminada época; outro, sociológico, que funda a reconstrução
histórica em documentos de arquivo expressivos das instituições e da realidade política e social daquele período. Segundo
De Certeau (2000 [1975]), porém, a separação tradicional entre
história das idéias e história sociológica é insustentável, pois de
fato os dois sistemas estão imbricados. Ao mesmo tempo, estes
dois modelos historiográficos não podem ser reduzidos um ao
outro: fazê-lo significaria, inclusive, desconsiderar a mudança
dos sistemas de referência em função dos quais as sociedades e
culturas reorganizam a si mesmas ao longo do tempo, de modo
que as suas ações e ideias passam a ocupar lugares próprios,
conforme o tipo de organização escolhida. O mesmo autor cita
como exemplo a mudança de sistema de referência ocorrida na
passagem entre Idade Média (onde a organização sociocultural
era norteada por uma visão teocêntrica do mundo) e a Idade
Moderna (onde os critérios econômicos de organização começaram a sobressair).
Portanto, o nexo entre história conceitual e história das
práticas não pode ser pensado de modo unívoco: o nexo entre as duas dimensões do pensável e das práticas se estrutura,
em diferentes períodos históricos, segundo modos próprios. De
Certeau (2000 [1975]) cita o exemplo de que, na Europa, ao
longo da Idade Média e ainda no século XVI, vigorava um “sistema que fazia das crenças o quadro de referência das práticas”,
mas que ao longo do século XVII esse sistema desmoronou e,
no século XVIII, ocorreram profundas mutações. Mais precisamente, deu-se o processo pelo qual “ao sistema que fazia da
crença o quadro de referência da prática, se substituiu uma ética social que formula uma ordem das práticas sociais e relativiza as crenças religiosas como um objeto a utilizar” (De Certeau,
2000 [1975], p. 153). Assim, na Europa, mudou totalmente a
própria concepção do que é a instituição, sua função, seus poderes e limites. A dissociação entre os dois universos tornou-se
funcional ao controle e ao uso do poder político, na medida em
que as práticas puderam ser utilizadas independentemente de
sua significação conceitual de origem.
202
Uma instituição transmissora de saberes antropológicos e psicológicos no Brasil colonial
O historiador francês propõe o modelo de uma evolução
histórica pluridimensional, o que permite conceber estas duas
dimensões como sendo articuladas e complementares, obedecendo, porém, a lógicas próprias e a diferentes ritmos de
crescimento; como sistemas distintos e combinados, expressivos de determinada experiência humana em um contexto espaço-temporal específico. Isto implica também na necessidade
da intersubjetividade ao empreender a pesquisa historiográfica, sendo quase que impossível a um único historiador abarcar
ambas as dimensões.
Considerando a história dos saberes psicológicos
na instituição Antiga Companhia de Jesus no
Brasil
Assumindo a perspectiva sugerida por De Certeau, devemos levar em conta que também o objeto de nosso estudo
(i.e., os saberes psicológicos) são transmitidos e apreendidos
pela participação nas práticas sociais, em suas formas culturais
(civis e religiosas) estruturadas em instituições. Entre os sujeitos proponentes e atores da transmissão e da elaboração destes
saberes e práticas, destacamos os que pertenceram a uma instituição religiosa cuja presença foi marcante no Brasil: a Companhia de Jesus. Seguindo a lógica de De Certeau, deve-se atentar
para o fato de que a epopéia da antiga Companhia de Jesus
no Brasil teve seu ponto final justamente em meados do século
XVIII: marco histórico este da mudança ocorrida no Ocidente,
de um sistema social norteado pela unidade entre crenças religiosas, moral, política e cultura, para um sistema que sanciona a rigorosa divisão entre estes domínios. Neste período, “o
fortalecimento do Estado altera as antigas estruturas mentais”
(De Certeau, 2000, p. 159) e a “razão de Estado” se torna soberana; a tal ponto que a instituição da Companhia se torna
ameaçadora para o Estado, o que leva o poder estatal (encarnado pela atuação política do Marques de Pombal) a decretar a
expulsão violenta e a extinção completa de sua presença, com
203
Clio-Psyché: Instituições, História, Psicologia
a abolição ou destruição das práticas e das obras empreendidas pelos jesuítas nas áreas da pedagogia, da cultura, da arte
e da economia. Todavia, mesmo depois disso, continuaram a
ser utilizadas, no âmbito do poder político, algumas práticas
criadas pela Companhia, não sem antes remover delas a significação conceitual e política originária. Uma documentação
deste tipo de operação se encontra no Projeto de civilização
dos índios bravos do Brasil (1823), de José Bonifácio de Andrada e Silva, texto apresentado para discussão na Assembléia
Constituinte: citando o trabalho dos missionários, especialmente das Missões do Paraguay, apesar de defini-lo como sendo
inspirado “numa teocracia absurda e interessada”, Bonifacio
comenta que os jesuítas conheciam a “facilidade de domesticar
os índios” com “presentes, promessas e razões sãs e claras”. Ao
registrar a situação de abandono e destruição do trabalho de
aldeamentos realizado pela Companhia, Bonifacio afirma que
é preciso “imitar e aperfeiçoar os métodos que usaram os jesuítas” (p. 21), métodos que ele descreve no seu projeto. Refere-se
especialmente ao sistema de organização das aldeias criado pelos padres missionários e propõe a figura de um “missionário”
como membro integrante da composição das bandeiras. As
funções desse missionário seriam basicamente voltadas a auxiliar o controle do Império, assumindo assim o religioso, papel
de funcionário régio. De modo semelhante ao sistema dos jesuítas, José Bonifácio propõe que cada um desses missionários
deva elaborar na aldeia sob sua responsabilidade “uma lista
nominal, por famílias e idade, de todos os índios ali estabelecidos, notando nela o seu caráter, industria e aptidão” (p. 24). O
destaque nesta prática de registro é interessante por nos remeter
a um exemplo que discutiremos a seguir.
Deste modo, repete-se no Brasil o mesmo processo que De
Certeau relata na historia européia: sob as novas condições que
se instauram no século XVIII, quando o Estado assume papel
preponderante de domínio e administração da sociedade, ocorre uma inversão da relação entre moral e religião, assim como
da relação que a prática mantém com a teoria; entre outras
204
Uma instituição transmissora de saberes antropológicos e psicológicos no Brasil colonial
consequências, dá-se uma “nova formalidade das práticas” que
vêm a ser “reempregadas com outro funcionamento” (p. 160) e
uma “retomada das estruturas religiosas, mas em outro regime”
(p. 161), em “função de uma ordem que elas não mais determinam”. Assim, o Projeto de José Bonifacio ilustra um processo mais amplo, no qual “as instituições políticas utilizam as
instituições religiosas, infiltram nelas seus critérios, dominamnas com sua proteção, destinam-nas aos seus objetivos” (idem).
Apesar de o universo do pensável aparentemente permanecer o
mesmo, “é a prática que de agora em diante faz a religião funcionar a serviço de uma política da ordem”. A esse preço, “as
mesmas instituições podem se perpetuar, no momento em que
mudam de significação social” (ibidem).
Nesse sentido, a história dos jesuítas no Brasil é um terreno privilegiado para analisar tais mutações; e, ao mesmo tempo,
como assinalado acima por De Certeau, deve nos alertar acerca
do fato de que não podemos tomar o conceito de instituição e
de história institucional de maneira unívoca, já que os sentidos
que se configuram na interseção entre pensamentos e práticas
mudaram ao longo do período sob nossa investigação. Desse
modo, não podemos chegar a conclusões fáceis e óbvias, pois
em todo processo de transição há uma complexidade que só
com muito esforço poderá ser esclarecida.
Proporemos a seguir uma breve síntese descritiva de ambos os universos do pensável e das práticas, na Companhia de
Jesus no Brasil. Daremos ainda um exemplo do entrelaçamento
entre os dois universos em uma documentação produzida no
âmbito da Companhia, como instrumento de gestão institucional e, ao mesmo tempo, transmissor de determinado universo
conceitual: os Catálogos trienais.
Universo do pensável e universo das práticas na
instituição jesuítica do Brasil colonial
Na perspectiva dos autores da Companhia de Jesus que
atuaram no contexto luso-brasileiro da Idade Moderna, a par205
Clio-Psyché: Instituições, História, Psicologia
tir de 1549, os processos psicológicos são tomados como dimensões da experiência humana. Por experiência, entendem
uma forma de conhecimento adquirido após o agir (modum
operandi) e o precedente (e/ou consecutivo) pensar (modum
cogitandi) envolvimento de todas as potências anímicas e
cujo objetivo é conduzir à verdade e ao bem. Esta definição
implica que o entrelaçamento entre universos conceituais e universos das práticas foi uma característica própria da atuação
missionária da Companhia.
Analisaremos a seguir ambos os universos do modo como
foram tematizados e transmitidos aos brasileiros da Idade Moderna.
No que diz respeito ao universo conceitual elaborado e difundido pelos jesuítas (incluindo-se a concepção antropológica
e do dinamismo psíquico), eles se utilizaram principalmente de
recursos culturais formulados no Colégio das Artes de Coimbra. Entre eles, destacam-se os assim chamados Comentários
conimbricences, tratados redigidos pelos professores do referido colégio e que foram utilizados em instituições da Companhia no Brasil. Os tratados são comentários dos textos gregos
de Aristóteles. No caso do estudo antropológico e psicológico,
evidenciam-se os seguintes textos: o comentário ao tratado De
Anima (Sobre a Alma; Góis, 1602), o comentário ao tratado
Parva Naturalia (Pequenas coisas naturais; Góis, 1593a), o comentário ao tratado Ética a Nicomaco (Gois, 1593b), o comentário ao De Generatione et Corruptione (Sobre a geração e a
corrupção; Góis, 1607).
Já no Brasil, vários textos foram produzidos pelos jesuítas
com o objetivo de transmitir a visão antropológica que embasava seus saberes e suas práticas: o Diálogo do Padre Nóbrega
sobre a conversão do gentio, no qual o jesuíta Manuel de Nóbrega aplica os conceitos aristotélicos-tomistas de pessoa, de
alma humana e de potências psíquicas (a saber, o entendimento,
a memória e a vontade) para justificar a humanidade e a convertibilidade do índio, na medida da “melhor criação” (Nóbrega, 1989 [1551]; a novela História do predestinado peregrino
206
Uma instituição transmissora de saberes antropológicos e psicológicos no Brasil colonial
e de seu irmão Precito (1682), obra de um expoente da Companhia de Jesus no Brasil, padre Alexandre de Gusmão, baiano,
diretor do Colégio do Menino Jesus de Belém, em Cachoeira do Campo, local próximo a Salvador (BA). Trata-se de um
compêndio dos saberes acerca da pessoa e de seu dinamismo
psíquico (Massimi, 2012). Outra obra importante do mesmo
autor é Arte de criar bem os filhos na idade da puerícia (1685),
dedicada a pais e mestres.
Dentre as práticas, os jesuítas utilizam especialmente o
ensino e a pregação. O empenho pedagógico leva-os ao emprego de diversos recursos culturais disponíveis na época: teatro, música, canto, poesia e narrativa. A prática da pregação era muito frequente, sendo utilizada por missionários de
várias instituições religiosas, além dos jesuítas; assumiu uma
função importantíssima de transmissão cultural de conceitos,
práticas e crenças da tradição clássica, medieval e renascentista ocidental, visando a mudança de hábitos e mentalidade
de indivíduos e grupos sociais por meio da força da palavra
(Massimi, 2005).
Além disso, os jesuítas criam práticas propriamente religiosas, como procissões, rituais e formas próprias de oração,
práticas essas que marcarão profundamente a sociedade colonial (Massimi, 2008d, 2009b).
O exemplo dos catálogos trienais
Os catálogos trienais são instrumentos produzidos por
uma prática administrativa da instituição Companhia de Jesus
e, ao mesmo tempo, nos remetem a saberes que os inspiram e
que eles próprios retransmitem. Com efeito, as categorias utilizadas para compilar os catálogos são expressivas do universo
do pensável de que a Companhia dispunha naquele período,
visando classificar seus membros em função de necessidades intrínsecas e extrínsecas ao seu âmbito.
207
Clio-Psyché: Instituições, História, Psicologia
Os catálogos como instrumento da prática
institucional da Companhia
As Constituições da Companhia (Loyola, 1982 [século
XVI]) atribuem ao Padre Geral a tarefa de distribuir as funções
de maior responsabilidade, conforme os “talentos” de cada um
dos membros. Quando o superior percebe que um dos membros tem talento para o governo, deve cuidar especialmente de
sua formação, notificando-o ao Padre Geral (Institutum, II; ver
Loyola, 1982 [século XVI]). A nona parte das Constituições
descreve também as atribuições e qualidades especificas exigidas para o exercício de cada ministério.
Desse modo, ordenada conforme uma estrutura hierárquica de funções — desde o Padre Geral ao cozinheiro e ao enfermeiro — a Companhia de Jesus se constitui em um organismo material, anímico e espiritual, isto é, um corpo, no sentido
pleno e integral do termo. Desse corpo anímico e espiritual, os
Catálogos são registros e, ao mesmo tempo, instrumento, expressão e articulação, representação e modo de composição.
Com efeito, esse tipo de documentação surgiu em função
da necessidade institucional de conhecer as características de
cada sujeito, de cada residência e âmbito de presença, diante
da rápida e extensa expansão da Companhia, tanto na Europa como nas terras de missão. Os catálogos deviam ser redigidos por cada Provincial, sendo endereçados ao Padre Geral da
Companhia, em Roma. Desde 1556, eram elaboradas “listas”
dos membros da Companhia em missão nas Províncias, conforme a normativa da Ordem. A partir de 1598, por disposição
do Padre Geral, os termos de elaboração da lista tornaram-se
mais complexos e detalhados1. Os exemplares estão deposita1. In: Institutum Societatais Iesu, Volumem tertium Florentiae, (ed. 1893, p 45): “(32).
In primo describantur omnes, quin suis Domibus vel Collegiis ac missionibus sunt, in
quo contineatur uniuscumque nomen, cognomen, patria, aetas, vires, tempus Societatis
studiorum, et ministeriorum quae exercuit, et gradus in litteris, si quos habet, et an
Professus, vel Coadiutor sit etc., et a quo tempore. (33). In secundo catalogo dotes et
qualitates uniuscuiusque describantur, videlicet: ingenium, iudicium, prudentia, experientia rerum, profectus in litteris, naturalis complexio et ad quae Societatis ministeria
talentum habeat; quae omnia diligenter, et Deo prius commendata, et mature conside-
208
Uma instituição transmissora de saberes antropológicos e psicológicos no Brasil colonial
dos atualmente no Arquivo da Cúria Geral da Companhia de
Jesus, em Roma.
Os Catálogos organizam-se em três partes: o Catálogo
Primeiro, fornecendo informações acerca de cada jesuíta: nome,
sobrenome, naturalidade, idade, estado de saúde, tempo de
vida religiosa na Companhia, formação intelectual realizada,
antes e depois do ingresso na Companhia, ministérios desenvolvidos e sua duração, graus obtidos e data dos votos definitivos.
A cada jesuíta é atribuído um número, correspondente ao nome.
O Catálogo Segundo, de leitura reservada apenas ao Provincial e ao Padre Geral, avalia o perfil psicossomático e as aptidões de cada um; é organizado por número, sendo omitidos os
nomes correspondentes, devido ao caráter reservado do documento. Fornece informações acerca do perfil de cada jesuíta, de
tal modo que, em linguagem atual, poderíamos defini-lo como
uma espécie de perfil psicossomático dos membros da Ordem.
Com efeito, refere-se a vários aspectos psicológicos e comportamentais: o “engenho”, o “juízo”, a “prudência”, a “experiência”, o “talento” e a “compleição” ou “complexio”. Este último termo, de acordo com a cultura da época, define o conjunto
de características somáticas e disposições psíquicas do sujeito,
conforme o referencial da tradicional teoria dos humores (Massimi, 2010b). Apesar de ter a assinatura do Padre Provincial,
normalmente era redigido pelo superior local do Colégio.
O Catálogo Terceiro refere-se à situação material (numérica, econômica etc.) das casas ou colégios da Companhia
nas diversas Províncias.
As normas para a redação desses catálogos são fornecidas
pela Formula scribendi, inserida já a partir de 1580 nas Regras
da Companhia e que pode ser encontrada no Livro Terceiro dos
Institutum, coletânea dos textos oficiais da Companhia de Jesus
(ver Loyola, 1982 [século XVI]).
rata, et omni privato affectu semoto, sincere et breviter perstringenda erunt. Et utrumque catalogum ad suum Provincialem mittant.”
209
Clio-Psyché: Instituições, História, Psicologia
Os catálogos tinham então importante função institucional, pois as informações contidas neles proporcionavam um
periódico e sistemático conhecimento da situação concreta da
Ordem, ao longo do tempo e em todos os lugares onde atuava.
Com base nisso, podia-se planejar e organizar a distribuição,
ou redistribuição, dos membros da Companhia, no tempo e no
espaço, segundo determinados critérios de interesse (e.g., demandas e carências de diferentes lugares).
A utilidade institucional destas informações é conclamada
pelas Constituições: a distribuição dos ofícios entre os membros
da Companhia deve ser realizada levando em conta e respeitando a constituição do “corpo”, entendido tanto como unidade
psicossomática pessoal quanto como unidade mística entre os
participantes. A realização desse objetivo se sustenta nos alicerces de um saber que abarca conhecimentos antropológicos de
tradição ocidental, notadamente a teoria dos temperamentos e
as categorias psicológicas da filosofia aristotélico-tomista.
Emprego de categorias derivadas da teoria dos
temperamentos e das categorias derivadas da
antropologia filosófica aristotélico-tomista, nos
Catálogos Segundos
Nos Catálogos Segundos, cada indivíduo pertencente à
Ordem é qualificado com base em categorias e avaliado, em
uma escada que vai de “ótimo” a “medíocre”. A compreensão
do significado e da utilização dessas categorias pode ser obtida
por estudos quantitativos que evidenciam a frequência, a variação e a distribuição, em diversas áreas geográficas e períodos
temporais, tanto por pesquisas qualitativas acerca de fontes
produzidas no âmbito da Companhia como também no universo cultural mais amplo da época.
Observa-se a descrição dos sujeitos por algumas categorias: de fato, com a instituição dos Catálogos Segundos e a institucionalização da sua redação pela formula scribendi, o uso
das categorias descritivas das características individuais dos
210
Uma instituição transmissora de saberes antropológicos e psicológicos no Brasil colonial
“sócios” é derivado de conhecimentos antropológicos de base
médica e aristotélico-tomista, assim como disponibilizados
pelo universo cultural dos séculos XVI e XVII. Vejamos cada
uma dessas categorias:
1. A compleição, ou temperamento, dos sujeitos: coléricos;
melancólicos, flegmáticos, sanguíneos. Cada temperamento
corresponde a características individuais somáticas e psíquicas, e a aptidões especificas para ofícios (Massimi, 2000a,
b, 2010b). Assim como a boa distribuição dos humores no
corpo humano é, sob determinadas circunstâncias ambientais, condição de saúde, algo semelhante deve ocorrer no
“corpo” social que é a Companhia, sob o contexto específico
de cada missão. Desse modo, é conveniente, ao bem-estar e
à acomodação missionária ao contexto, uma distribuição
dos temperamentos na qual prevaleçam aqueles cujas características são mais adequados às circunstâncias; cabe ainda
manter um controle constante dessa distribuição, de modo
a manter o equilíbrio.
Os Catálogos Trienais referentes ao Brasil (Rodrigues, 15561660) relatam que, na província da Bahia, além do colégio
de Salvador, existiam várias “residências” de jesuítas em
aldeias indígenas. Nessas circunstâncias, seria importante
dispor de sujeitos que demonstrem talentum ad linguas, ou
seja, boa capacidade para falar e pregar no idioma dos índios, e talentum ad concionatum, ou seja, boa disposição
para o ministério da pregação. De fato, dos 163 jesuítas
residentes no Brasil, em 1598, de acordo com o Secundus
Catalogus elaborado pelo provincial Pedro Rodrigues, observa-se, no que diz respeito à compleição ou temperamento,
que há uma prevalência significativa de “coléricos”2. Quadro semelhante é encontrado em outros Catálogos — i.e., os
2. Cento e três são classificados como “coléricos”; três como “coléricos adustos”;
dezoito como “colérico-sanguíneos”; dezoito como “colérico-melancólicos”; um como
“melancólico”; dez como “flegmáticos”; dez não receberam classificação, ou por serem
muito velhos em idade, ou por serem noviços recém-chegados na Companhia e, portanto, ainda pouco conhecidos pelos superiores.
211
Clio-Psyché: Instituições, História, Psicologia
de 1607, 1610, 1613, 1631, 1642, 1646, 1654, 1657 e de
1660. Há uma evidente constância na presença de sujeitos
coléricos. O que isto significa? Por que os coléricos seriam
tão numerosos? E qual era a significação desta categorização na cultura da época e, mais especificamente, na cultura
jesuítica? Com base em quais critérios e a partir de que tipo
de conhecimento foram elaboradas tais classificações?
A descrição que o médico Levinio Lemnio (1505-1568), ou
Liévin Lemmens, oferece acerca dos temperamentos pode
nos ajudar a responder tais questões. Lemnio (1561) retoma
a teoria de Galeno, segundo a qual os indivíduos de temperamento sanguíneo são inconstantes e volúveis e, por conseguinte, pouco aptos para a vida religiosa; ao passo que a
perseverança e a diligência do animo procedem do humor
bilioso, sendo este o humor que determina a velocidade, o
ímpeto e a inquietação, bem como a fluência no discurso.
A constância e a firmeza são conseqüências do humor melancólico, combinado com um calor moderado. O indivíduo fleumático não é apto para obras de entendimento e
memória nem para os estudos, pois o calor que estimula o
engenho é, nesse temperamento, inibido ou diminuído pela
presença da qualidade úmida. A partir desse ponto de vista, pode-se entender o motivo dos temperamentos definidos
como colérico-melancólico, colérico-sanguíneo ou simplesmente colérico serem considerados mais aptos para a atividade missionária: os portadores são dotados daquele ímpeto, capacidade de comunicação e inteligência, necessários
para empreender ações em um contexto (social e natural)
árduo e novo. Na organização da Companhia, os indivíduos
fleumáticos são destinados aos ofícios domésticos; os melancólicos, em pequena quantidade, trabalham nos colégios,
como professores, e desenvolvem atividades intelectuais.
2. O ingenium (correspondente ao termo castelhano entendimiento), freqüentemente utilizado por Inácio em seus textos, designa, conforme o glossário dos Exercícios espirituais
(1958), de Calveras, a faculdade de pensar e de julgar. A
212
Uma instituição transmissora de saberes antropológicos e psicológicos no Brasil colonial
capacidade de pensar, ou potência intelectiva, na linguagem aristotélico-tomista, assume um papel fundamental nos
Exercícios, seja por permitir a compreensão e o reconhecimento da verdade, uma vez que foi iluminada pela graça
divina, seja por determinar a ação com a colaboração do
livre-arbítrio, seja por ser a causa da consolação e permitir a
formulação de propósitos e planos, inspirados pela mesma
graça divina. Trata-se de uma qualidade importantíssima,
mas que deve ser formada virtuosamente. A atenção à qualidade do engenho, na perspectiva da formação do modus
vivendi jesuítico é evidente nas Constituições. Na distribuição das funções do “corpo” da Companhia, o engenho é
reconhecido entre as características necessárias para os que
devem assumir a administração interno da Ordem e também para os professores e pregadores.
Em Commentarii Conimbricensis De anima Aristotelis Stagiratae, redigido pelo filósofo jesuíta português Manuel de
Góis (Góis, 1602), o engenho depende da fantasia do sujeito, podendo ser definido como “facilidade e prontidão da
mente”.
Conforme lembra Battistini (2000), a potência psíquica do
engenho é especialmente valorizada na cultura da Idade
Moderna, pela sua qualidade de criar relações novas entre
as coisas que transcendam as já conhecidas e habituais, qualidade indispensável em uma época marcada pela instabilidade e pela introdução de muitos elementos de novidade no
universo mental e cultural do Ocidente.
3. Já a categoria do juízo, usada nas Constituições da Companhia de Jesus e também na correspondência epistolar e nos
escritos jesuíticos, assume diversas significações: o juízo é
associado ao julgamento universal no fim dos tempos, sendo ainda entendido como a apreciação que o indivíduo faz
de si próprio ou como a avaliação que a comunidade faz a
respeito dele (Calveras, 1958). O juízo individual, tomado
como movimento interior de acusação, ou de defesa, é especialmente influenciado pela condição psicossomática.
213
Clio-Psyché: Instituições, História, Psicologia
4. A prudência é a quarta categoria presente nos Catálogos.
Assume grande importância na literatura jesuítica, assim
como, de um modo geral, na literatura da primeira Idade
Moderna, implicando na retomada renascentista do ideal
aristotélico da moderação e do equilíbrio. A biografia de
Inácio elaborada por Valtrino, afirma que ele “teve prudência e habilidade admirável no trato com os homens e na condução de todos os negócios” (Valtrino, 1591-3, p. 340; tradução nossa). A prudência é enfatizada pelas Constituições
como a virtude indispensável a quem exerce responsabilidades na Ordem, sendo todo excesso considerado perigoso.
No volume dos Comentários Conimbricenses que trata da
ética aristotélica, Manuel de Góis dedica um capítulo inteiro (“Disputatio VIII”) à prudência, considerada como a
mais importante das virtudes morais, seja por pertencer ao
entendimento, que é uma potência superior, seja por dirigir
as demais virtudes. Góis retoma a definição aristotélica de
prudência: “o hábito de praticar ações verdadeiras segundo o que é razoável acerca do que é o bem ou o mal para
o homem” (apud Andrade, 1957, p. 255). É a virtude que
ensina “o modo de bem viver” (idem, p. 257), indicando o
que deve ser evitado e o que deve ser procurado. A prudência pressupõe a boa inclinação da razão e da vontade. Desde
a conceituação aristotélica, a prudência está, enquanto virtude da moderação no plano da conduta regida pela razão,
profundamente associada com a noção de equilíbrio.
Considerando a unidade psicossomática do ser humano, a
conduta prudente depende e, ao mesmo tempo, garante o
equilíbrio (parcial) na composição humoral do indivíduo.
5. Outra categoria utilizada é a da “experiência das coisas”.
Ribadaneira, no capítulo da biografia de Inácio referente ao
governo dos noviços, insiste acerca da importância que a
qualidade da experiência das coisas assume aos olhos dele:
“Dizia que quem não era bom para o mundo tampouco seria
bom para a Companhia” (Ribadaneira, 1610, p. 611; tradução nossa).
214
Uma instituição transmissora de saberes antropológicos e psicológicos no Brasil colonial
6. A última categoria que aparece é os Officia et talenta: uma
tarefa é apropriada ao indivíduo que possui disposições e
capacidades para realizá-la; sendo portanto, o conhecimento do indivíduo condição para um melhor gerenciamento
do corpo institucional.
Voltando à Companhia de Jesus enquanto
instituição
Em síntese, os Catálogos trienais dos jesuítas, documentos
para uso administrativo no âmbito de uma instituição religiosa, atuante ao longo dos séculos XVI e XVII, representam um
exemplo do entrelaçamento entre os dois universos, do pensável e das práticas: de um lado, os saberes antropológicos e psicológicos que vigoravam na Companhia, derivados do universo
conceitual (médico e filosófico) então disponível; de outro, as
práticas, visando organização, previsão e administração da societas em suas relações com o mundo social ao redor. Retomando as sugestões metodológicas de De Certeau, estas nos alertam
acerca do fato de que a modalidade de gerenciamento de uma
dada instituição deve ser apreendida por um enfoque historiográfico, atento ao entendimento próprio que atores e usuários
daquela instituição tinham dela no período histórico considerado. Ao considerarmos o significado que a instituição assume,
na concepção da Antiga Companhia de Jesus, devemos entendê-lo como expressão da teoria política corporativista vigente
na época: cada grupo, ou comunidade, era considerado parte
do grande corpo social da cristandade. Tal concepção, por sua
vez, fundamentava-se na doutrina tradicional do “corpo místico”, o qual, a partir da matriz platônica (visão do homem
como microcosmo), da teoria aristotélica da polis e da teologia
cristã da encarnação do Verbo divino, concebera o corpo como
unidade individual, social, cósmica e espiritual. Significa dizer
que a pessoa humana não pode ser considerada separadamente
da sociedade, dos seus semelhantes e da relação de pertença do
seu Criador. A arte, inclusive a arte do governo das almas e dos
215
Clio-Psyché: Instituições, História, Psicologia
corpos, deve imitar a natureza (Giard & Vaucelles, 1996; Buzzi,
2000; Pacheco & Massimi, 2009).
A instituição é concebida assim como um corpo dotado de
todas as dimensões acima referidas, tendo sua estrutura e funcionamento regidos por uma finalidade própria, para cuja realização cada uma das partes, hierarquicamente ordenadas e dispostas, colabora na diversidade das funções de cada uma. Na
perspectiva dessa “fisiologia do corpo místico”, cada função
colabora com a abrangência do organismo inteiro. Na Idade
Moderna, o corpo místico inteiro — social e religioso — assume
essa polivalência de funções. O fato de que cada característica
do “organismo” tenha valor e função própria dentro do plano
da Providência divina que regula o mundo, funda a importância de conhecer o seu dinamismo e as normas para regrá-lo.
Em suma, os Catálogos jesuítas se inserem nessa ordem
providencial do cosmos, que se constitui também no modelo
para conceber e moldar a ordem intrínseca da Companhia de
Jesus enquanto instituição.
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***
219
10
Institucionalização da psicologia na Argentina:
das sociedades científicas às associações
profissionais
Hugo Klappenbach
Introdução
A história da psicologia na Argentina, capaz de interrogar historicamenteos diferentes aspectos, processos e objetos
de estudo que se encaixam nela, é uma tarefa extremamente
complexa. Em primeiro lugar, uma história da psicologia inclui,
ao menos os seguintes aspectos (Klappenbach, 2006):
1. Uma história das teorias e conceitos científicos
relacionados à psicologia.
2. Uma história das personalidades que contribuíram para o
desenvolvimento da psicologia, muitos dos quais oriundos
de áreas de conhecimento muito diversas.
3. Uma história de técnicas psicológicas, incluindo procedimentos simples, como anamnese, entrevistas ou inquéritos,
os chamados testes mentais ou inventários de personalidade, técnicas envolvidas em dispositivos ou situações clínicas, evidências experimentais para registrar eventos como
atenção, memória, habilidades motoras, entre outros, ou
desenhos mais elaborados para o estudo de fenômenos sociais, como os experimentos clássicos de obediência devida
ou prisão simulada de Stanford.
4. Uma história das práticas e intervenções psicológicas, nos
mais variados campos de aplicação.
5. Uma história das instituições psicológicas, incluindo sociedades científicas e profissionais, laboratórios, instituições de
formação universitária (cursos de graduação e pós-graduação), outras instituições de ensino, publicações científicas e
profissionais, editoras de livros, livros-textos, legislação e
disposições legais etc.
220
Cada um destes diferentes tipos de história, mesmo quando reconhecem as arestas comuns, necessitam de um levantamento e análise de fontes documentais ou testemunhais também diferentes. Enquanto uma história das teorias psicológicas
pode ser limitada a livros e artigos de revistas, uma história
de personalidades ou instituições exige o levantamento de correspondência, documentos de arquivo, resoluções ministeriais
ou universitárias, entre outros. Por sua parte, uma história das
práticas requer um levantamento de registros clínicos ou outros
tipos de registros de intervenções psicológicas e até mesmo de
cobertura e publicidade em meios de comunicação.
De todo jeito, a sobreposição e a articulação entre esses
tipos de histórias não podem ser ignorados ou minimizados.
Além disso, cada um deles pode ser abordado a partir de diferentes matrizes ou perspectivas teóricas. Se alguma coisa tem caracterizado a pesquisa histórica é a diversidade e a
pluralidade de abordagens.
O trabalho descrito neste capítulo trata apenas de um desses objetos de estudo, as instituições, ou, mais especificamente,
de um único tipo de instituição, as sociedades científicas. Concentra-se, além disso, em um único problema: como foi possível
que, em pouco mais de 60 anos, as sociedades científicas argentinas praticamente desapareceram, dando lugar ao surgimento
das chamadas associações profissionais?
A história institucional da psicologia na Argentina, apesar
de ser relativamente recente, tem gerado um grande número
de publicações. No entanto, nem todas as instituições têm despertado o mesmo interesse. Em primeiro lugar, poucos estudos abordaram vários tipos de instituições (Litvinoff & Gomel,
1975; Ardila, 1986; Alonso, 1993, 2005; Klappenbach, & Pavesi, 1994; Klappenbach, 2000; Vezzetti, 2004; Alonso et al.,
2009; Dagfal, 2009; Rossi et al., 2012). Por sua vez, os estudos
também têm se limitado muito a congressos (Gentile, 1997; Borinsky, no prelo), instituições legais (Cruz, 2012) ou livros-textos (Gomez et al., 2011). Com relação a esta última questão, há
poucos estudos sobre os editores (Klappenbach, 2001, 2007;
221
Clio-Psyché: Instituições, História, Psicologia
Vezzetti, 2008). Recentemente, cresceu o interesse pela história
das instituições de cuidados de internamento (Navarlaz, 2011;
Farías-Carracedo & Muñoz, 2012; Rodríguez-Stural & Kirsch,
2012).
Ainda, a história relacionada às instituições de ensino
(cursos de psicologia ou seus antecessores) tem recebido maior
atenção (Klappenbach, 1995; Edelmuth, 1997; Falcone, 2003;
Kirsch et al., 2005; Altamirano et al., 2007; di Doménico et
al., 2007; Piñeda, 2007a, b, 2009; Dagfal, 2008; Miceli et al.,
2011; Calabresi, 2012). O estudo de periódicos também tem
atraído interesse. Mesmo sem um desenvolvimento semelhante ao alcançado na Espanha (Carpintero & Peiró, 1981), as
revistas científicas têm sido a principal instituição pesquisada
(Klappenbach et al., 1999; Rodríguez-Sturla, 2004; Rossi, 2004,
2005, 2006, 2007, 2008; Vezzetti, 2004, 2006; Ynoub, 2004;
Falcone & Amil, 2005; Kirsch, 2005; Miceli, 2005; Rojas-Breu,
2005; Jardón, 2006; Rojas-Breu, & Jardón, 2006; Castillo
& Rojas-Breu, 2007; Rodríguez Sturla, & Fernández, 2007;
González, 2008, 2012; Kirsch et al., 2008; Navarlaz, 2008;
Klappenbach, 2009; Mariñelarena-Dondena, & Klappenbach, 2010; Klappenbach, & Arrigoni, 2011; Briolotti & Lubo,
2012; Ventura, 2012).
A questão que nos interessa aqui, a história das sociedades científicas e profissionais, tem sido pouco analisada
(Klappenbach, 1998; Ríos & Talak, 1999; Vezzetti, 2004; Ostrovsky, 2008; Kees, 2012, Kierbel, 2012). Buscamos analisar
por que as primeiras sociedades científicas no país foram extintas ou foram substituídas por associações profissionais.
Como se trata de uma investgação inicial, a análise se limitou exclusivament às sociedades de alcance nacional. Cabe
ainda notar que o trabalho abranje apenas instituições no campo psicológico – i.e., estabelecidas sob o domínio epistêmico da
psicologia ou formadas por psicólogos profissionais.
Essa restrição deixou de fora várias instituições psicanalíticas, tanto àquelas relacionadas à IPA (Associação Psicanalítica Argentina e Associação Psicanalítica de Buenos Aires) como
222
Institucionalização da psicologia na Argentina
as relacionadas com a Associação Mundial de Psicanálise ou
com a Convergência: Movimento Lacaniano para a Psicanálise
Freudiana. Embora muitos psicólogos participem dessas associações, elas próprias se consideram como parte do campo psicanalítico, o qual é reconhecidamente independente do campo
psicológico. Mesmo sob certas orientações, a psicanálise pode
ser considerada como radicalmente diferente da psicologia. Na
obra Seminário 2, Lacan rejeitou “a ênfase maior, tentar uma
nova fusão da psicanálise na psicologia geral” (Lacan, 1983
[1954], p. 28).
Também ficaram de fora deste estudo, numerosas instituições de assistência e formação, pois, por várias razões, não é
comum que elas próprias se vejam como sociedades científicas.
Sociedades científicas (1908-1968)
Em 27/11/1908, surgiu a Sociedade de Psicologia, a primeira sociedade científica, no âmbito da psicologia, criada na
Agentina. Entre os seus criadores estavam alguns dos nomes
mais notáveis da psicologia da época, totalizando 39 homens
(e.g., José Ingenieros, Horacio Piñero, Francisco de Veyga,
Victor Mercante) e uma mulher (Clotilde Guillén) (Ostrovsky,
2008).
Vários artigos dos estatutos dão uma ideia do alcance da
instituição:
“Artigo 1: A Sociedade de Psicologia tem como objetivo estudar essa ciência e da divulgação e aplicação
prática dos seus princípios.
Artigo 2: Para o cumprimento de suas finalidades a
Sociedade deverá realizar reuniões regulares, realizar
trabalho experimental, conferências públicas e privadas e editado uma revista.
Artigo 4: A Sociedade é composta por quatro partes:
Psicologia normal. Psicologia anormal. Psicologia
educacional. Psicologia social.
223
Clio-Psyché: Instituições, História, Psicologia
Artigo 10: As reuniões científicas da Sociedade serão
regulares.
Artigo 11: As sessões científicas serão preparadas e
executadas cada vez por um presidente ad-hoc, chamado “Presidente da Sessão” (Sociedad de Psicologia, 1909, p. 351-3).
Os artigos 12, 13 e 14 regulam o funcionamento das sessões científicas. Além de reuniões privadas, destinadas apenas
para a eleição de novos membros, os estatutos, com apenas 15
itens, não estabeleciam outro tipo de sessão.
A nova instituição – a primeira do seu tipo na América Latina – tinha, portanto, ao menos inicialmente, apenas propósitos
científicos. Na análise que Kohn Loncarica fez da sociedade, esboçou a hipótese de que “o objetivo era fundar uma academia
da psicologia em anos posteriores” (Kohn Loncarica, 1973, p.
924).
O surgimento da Sociedade de Psicologia pode ser considerado como o resultado de um processo político, cultural e
cientifico que teve início na Argentina no final do século XIX.
Tal processo, dominado por ideias positivistas ou, como Oscar
Teran renomeau, em uma obra de sua maturidade, por uma
cultura científica, visando a articulação entre certos domínios
científicos e os ideais de modernização cultural (Terán, 2000).
Nesse contexto, a psicologia que surgiu na Argentina estava
apoiada em um tripé institucional: ensino (cátedra e laboratório), publicação (Anales de Psicología) e sociedade científica,
complementado pela imprensa (Klappenbach, 1998; Ríos &
Talak, 1999). Depois do centenário, o clima de ideias que favoreceu o surgimento dessa psicologia desapareceu e com ele também a Sociedade de Psicologia deixou de existir (Klappenbach,
1999, 2006).
Com características semelhantes, mas em um contexto
bem diferente, foi criada a Sociedade de Psicologia de Buenos
Aires, em 1930. Seus objetivos eram “fortalecer os laços, a pesquisa científica, criar um melhor ambiente para o cultivo de
224
Institucionalização da psicologia na Argentina
psicologia, promover a recolha de reuniões científicas da especialidade, publicar um anuário e organizar eventos públicos
para disseminar o conhecimento” (Sociedad de Psicología de
Buenos Aires, 1933, p. 7). Os seus membros, como no caso
anterior, eram figuras reconhecidas no meio acadêmico da época (Alberini e Mouchet), na criminologia (Loudet), na psiquiatria (Arturo Ameghino) e na educação (Víctor Mercante). Assim, três décadas após o início dos estudos em psicologia no
país, o campo ainda se sobrepunha a outras áreas cientificas,
indicando que a configuração de um campo própria ainda era
algo relativamente instável.
A Sociedade de Psicologia de Buenos Aires teve um desenvolvimento irregular: foi ativa até 1945, quando quase foi
extinta; foi novamente reorganizada a partir de 1956, sempre
sob a direção de Enrique Mouchet. Sobreviveu até a década
de 1970, mantendo sempre as características originais de uma
instituição científica. Os recém-formados em cursos de psicologia começaram a participar como sócios. A lista de integrantes
revela que, em 1968, a psicologia ainda era vista pela própria
entidade como um campo onde podiam se reunir personalidades que vinham da psiquiatria, da criminologia, da psicanálise
(e.g., Bleger, Pichon Rivière, Angel Garma), além, claro, dos organizadores de cursos universitários (e.g., Plácido Horas, Oscar
Oñativia, Fernanda Monasterio, Jaime Bernstein).
Nessa época, o desenvolvimento da psicologia era baseado no mesmo tripé institucional referido no caso anterior:
ensino, publicações e sociedade científica, reiterando assim a
circulação dos mesmos nomes.
Na verdade, os membros da sociedade eram os professores
das duas disciplinas de psicologia (Enrique Mouchet, professor
de Psicologia Experimental e Fisiológica, e Coriolano Alberini,
de Psicologia II) e também indivíduos que mais tarde fariam
parte do Instituto de Psicologia, organizado na Faculdade de
Filosofia da Universidade de Buenos Aires, em 1931. O instituto era dirigido pelo mesmo Enrique Mouchet e os diretores das
diversas seções eram Coriolano Alberini (Filosofia e Psicologia),
225
Clio-Psyché: Instituições, História, Psicologia
Juan Ramon Beltran (Psicologia Patológica), Osvaldo Loudet
(Caracterologia e Criminologia), José Luis Alberti (Psicometria) e Leon Jachesky (Psicologia Fisiológica).
A sociedade teve três publicações. O Boletín de la Sociedad de Psicología de Buenos Aires, que editou um único volume, sob a direção de Enrique Mouchet e Osvaldo Loudet, em
1933. Em 1935, sob a direção de Loudet, foi publicado o único
volume dos Anales de la Sociedad de Psicología de Buenos Aires. Finalmente, em 1945, sob direção de Mouchet, foi publicado o volume dos Temas actuales de Psicología normal y patológica. Poderíamos ainda acrescentar os Anales del Instituto
de Psicología, também dirigidos por Mouchet e que editou três
volumes, em 1935, 1938 e 1941.
O surgimento de um novo profissional em
psicologia e as novas instituições profissionais
Nas décadas de 1960 e 1970, a paisagem institucional
mudou completamente. Como um fenômeno novo, é necessário sublinhar o surgimento dos primeiros profissionais graduados em cursos de psicologia, criados em universidades federais,
entre 1954 e 1959, em universidades privadas, entre 1959 e
1964, e também em universidades ou instituições de ensino superior estaduais, entre 1960 e 1963.
O fenômeno envolvia uma mudança de psicologia para o
psicólogo ou a psicóloga. O debate sobre a identidade ou papel
desses profissionais e sobre as condições de trabalho modelaram as instituições profissionais que surgiram naqueles anos.
Por sua parte, o contexto social mais amplo foi dominado por
um processo político que, na década de 1960 e especialmente
depois de 1969, começou a absorver os ventos da mudança revolucionária, tão característicos daqueles anos em muitos paises de América Latina (Terán, 1991).
Nesse sentido, as novas instituições tinham duas características principais. Primeiro, a natureza fechada da afiliação,
limitada apenas a graduados de cursos de psicologia, ou seja,
226
Institucionalização da psicologia na Argentina
aqueles que foram capazes de apresentar um diploma em psicologia. Isso implicou na reivindicação do amplo alcance desse
título, principalmente em relação ao trabalho profissional. Em
segundo lugar, como conseqüência do exposto, a referida zona
de reivindicação gerava necessariamente conflitos com profissionais de áreas afins. A partir de 1960, graduados em psicologia começaram a afirmar sua hegemonia no domínio do conhecimento psicológico. Cabe notar que, até então, a psicologia
estava dissolvida em uma ampla gama de profissões, de médico
a educador. A reivindicação de que somente os portadores de
um diploma de graduação em psicologia seriam capazes de praticar o ofício de psicólogo(a) introduziu mudanças drásticas em
uma situação que perdurava há mais de 50 anos.
Surgiram novas instituições a partir das reivindicações dos
novos grupos de profissionais. A definição do papel e da identidade do psicólogo envolvia a necessidade de diferenciação em
relação ao papel do psiquiatra, do psicanalista, do higienista,
ainda que fosse possível reconhecer muitos pontos de contato
entre todas essas profissões (Klappenbach, 2006).
A reivindicação de uma identidade profissional não excluía, contudo, a possibilidade de zonas de cooperação com
profissionais de áreas vizinhas. O desenvolvimento efêmero,
mas importante, da Coordinadora de Trabajadores de Salud
Mental, compreendendo a Federação Argentina de Psiquiatras,
a Associação de Psicólogos de Buenos Aires, a Associação de
Picopedagogos, a Associação de Assistentes Sociais e o Centro
de Ensino e Pesquisa (CDI) mostra o conflito interno entre diferentes profissionais que, embora não tenha desaparecido, migrou para o segundo plano. Tal novidade permite ainda esboçar
a hipótese de que a consolidação do campo da saúde mental só
se tornou possível, entre outras coisas, após a redefinição da
especificidade da atividade do psicologo:
“Obviamente, naquele tempo foram agrupados objetivos de psiquiatras e psicólogos. No entanto, foi
essencial manter a autonomia das linhas. Iniciar um
227
Clio-Psyché: Instituições, História, Psicologia
tempo para psicólogos, sem dúvida, difíceis, mas eu
chamaria de glorioso, heróico. O grêmio sabia gerar
uma política cada vez mais clara no sentido de se
defender um destino separado, fortalecido” (Isabel
Lucioni, apud Gamondi, 1992, p.16).
Cabe notar que psicólogos e psicólogas participaram da
delimitação do campo da saúde mental, o qual foi remodelado de modo contraditório: bem definido, em termos sociais e
profissionais, porém debilmente conceituado do ponto de vista teórico. Todavia, como Guillermo Vidal, fundador e diretor do periódico Acta Psiquiátrica e Psicológica do América
Latina, chamou a atenção “o termo saúde mental, tornou-se
um sucesso sem que os médicos psiquiatras soubessem muito bem do que se trata” (Vidal, 1995, p. 617). Em todo caso,
na constituição de um campo de saúde mental, psicólogas e
psicólogos reivindicavam os mesmos direitos e condições de
trabalho dos psiquiatras.
Nesse contexto, duas instituições se destacaram. A primeira foi a Associação de Psicólogos de Buenos Aires (APBA), que
era uma espécie de associação civil de adesão voluntária. Criada em novembro de 1962, de sua fundação participaram os primeiros 24 graduados do curso de Psicologia, da Universidade
de Buenos Aires, além de oito estudantes (APBA, 1962). Embora limitada à cidade de Buenos Aires, seu alcance extrapolou os
seus limites jurisdicionais. Seus objetivos estavam focados na
regulamentação profissional, na preocupação com o ensino de
graduação e pós-graduação e na integração com a comunidade
(APBA, 1962; Knoll et al., 1992). A vida da instituição foi, portanto, fortemente focada na legalização da prática profissional,
em um contexto de acentuada politização e permanente confrontação político-ideológica, tanto em relação às políticas governamentais como entre diferentes correntes de opinião dentro
da própria APBA (Anônimo, 1986; Klappenbach, 1998).
A segunda instituição de destaque foi a Confederación de
Psicólogos de la República Argentina (COPRA), reunindo, por
228
Institucionalização da psicologia na Argentina
sua vez, associações e conselhos de psicólogos de diferentes estados (províncias) do país, incluindo a APBA. Note-se que os
conselhos profissionais adotaram a terminologia dos conselhos
médicos, embora as afiliações fossem voluntárias. Tal situação difere da de outros conselhos, que apareceriam mais tarde,
quando a afiliação (ou, em sentido estrito, o licenciamento) se
tornaria um requisito obrigatório para a obtenção da licença e
do exercício profissional.
Levando em conta a forma jurídica de organização, a base
de comparação de COPRA já não era nenhuma outra instituição científica ou acadêmica, mas sim instituições sindicais
ou empresariais, ou, em todo caso, instituições civis sem fins
lucrativos. A COPRA foi definida como uma organização de
segundo nível, ou seja, uma instituição que reúne outras instituições, e não indivíduos, de modo semelhante às federações de
trabalhadores. E, do mesmo modo, as reivindicações profissionais se enquadravam na situação política nacional.
Nesse sentido, a Declaração de Princípios da COPRA, de
novembro de 1971, dizia que “a atividade de profissionais psicólogos não pode ser isolada da realidade cultural, social, política e econômica da Argentina” (COPRA, 1973, p. 193).
Esses princípios colocavam a Confederação no meio dos
conflitos da época. Ao mesmo tempo, refletiam a autoconsciência do psicólogos e psicólogas na Argentina naqueles anos, em
relação às dimensões complexas que atravessavam a prática
profissional do psicólogo:
“Artigo 4 - São seus objetivos [da COPRA]”.
a) defender os interesses científicos, éticos, sociais e
sindicais de psicólogos, associado às confederações;
b) promover o espírito de sindicalização e de solidariedade entre eles, e cuidar da manutenção da capacidade profissional, (...)
d) favorecer a que institua, conheça e aperfeiçoe com
uniformidade em todo o território da República, as
normas de ética profissional, a carreira do psicológo
229
Clio-Psyché: Instituições, História, Psicologia
sobre as bases do concurso, a hierarquia administrativa e a estabilidade...” (Confederación de Psicólogos
de la República Argentina, 1973; ênfase minha).
De qualquer modo, ainda que, devido ao seu perfil sindical, a COPRA buscasse melhorias nas condições de trabalho,
também fixou como objetivo a colaboração com instituições
públicas no estudo de problemas psicológicos. O contexto geral leva a Confederação a assumir explicitamente “um compromisso científico-ideológico” com as “correntes progressistas”.
A repressão política, após a morte de Perón, em 1/7/1974,
o surgimento de grupos paramilitares e a organização de extrema direita conhecida como Triplo A (Associação Anticomunista Argentina), e, acima de tudo, o estabelecimento da ditadura
militar, a partir de março 1976, provocou a extinção da COPRA. Um total de 34 psicólogos desapareceu durante a ditadura militar, incluindo Beatriz Perosio, então presidente da Associação de Psicólogos de Buenos Aires (APBA) e da Federação
dos Psicólogos da Argentina (FePRA) (Espacios y Propuestas,
1985). No entanto, o número de psicólogos que foram forçados
ao exílio nesse período foi consideravelmente maior.
Em 1977, algumas instituições regionais que reuniam psicólogos propuseram uma “reorganização nacional dos psicólogos” (Perosio, 1977). Como resultado disso, foi criada a Federación de Psicológos de la República Argentina (FePRA), que,
mesmo sem o discurso combativo, caracteríostico do início da
década de 1970, manteve, profissionalmente, metas e objetivos
semelhantes à COPRA, assumindo como sua herdeira:
“Artigo 6: Os objectivos da FePRA são:
A) Assegurar uma regulação adequada de prática
profissional. Para este efeito, ela pode:
1) Colaborar na estruturação jurídica
da prática profissional.
2) Lutando para que as licenças profissionais sejam concedidos por entidades profissionais dos
230
Institucionalização da psicologia na Argentina
psicólogos em cada jurisdição.
3) Definir princípios e sistematizar os mais altos
padrões éticos no exercício daprofissão, neste
sentido deve desenvolver um Código de Ética.
B) Oferecer formação profissional, programação
científica, técnica e cultural, de modo a permitir a
atualização de conhecimento dos graduados e sua
disseminação no ambiente social.
E) Projete um programa de acção profissional dos
psicólogos em consonância com a realidade do país.”
(Federación de Psicólogos de la República Argentina,
1977, p. 2-4).
O FePRA também foi uma organização de segundo nível,
a qual, por sua vez, estava incluída em uma organização de
terceiro nível, a Confederación General de Profesionales de la
República Argentina (CGP). O nome desta última, composta
por instituições das profissões mais diversas, revela novamente
a analogia com as instituições sindicais e as instituições do campo empresarial, que reservam uma instituição de terceiro nível,
por exemplo, a Confederación General del Trabajo (CGT) e da
Confederación General Económica (CGE) ou também a Unión
Industrial Argentina (UIA).
Após o retorno à democracia, em 1983, e a legalização
gradual da prática da psicologia, surgiram outras instituições, responsáveis por conceder a licença profissional, exercer o controle sobre a profissão e garantir a implementação
do código de ética da profissão. Assim foram formadas os
chamados Colégios de Psicólogos, como em Tucumán e Santa Fé, e os Conselhos Profissionais de Psicólogos, como no
caso de Córdoba.
Tais instituições estão intimamente ligadas à regulação da
legislação profissional. Assim, o projeto de lei sobre a prática
da psicologia, que impulsionou o Colégio de Psicólogos de San
Juan, sendo adotado como modelo pela FePRA, dizia o seguinte:
231
Clio-Psyché: Instituições, História, Psicologia
“Artigo 11: Organize-se como uma entidade jurídica de direito público e independência funcional dos
poderes do Estado, do Conselho Profissional de Psicólogos de San Juan, para os objectivos de interesse
geral, conforme especificado nesta lei”.
Artigo 12: Todos os psicólogos que obtiveram licença profissional, inscritos no cadastro e exercem
a atividade profissional, constituem o Conselho
Profissional dos Psicólogos.
Artigo 13: As atribuições do Conselho Profissional
dos Psicólogos são:
a) o governo da licença profissional;
b) o poder disciplinar sobre os profissionais de
psicologia... sem prejuízo das competências que
se enquadram no âmbito do Serviço Provincial
de Saúde e do Poder Judiciário;
Artigo 14: O Conselho Profissional de Psicólogos
será regido pelos seguintes órgãos:
a) as Assembléias;
b) a Diretoria
c) o Tribunal Disciplinar” (Federación de Psicólogos de la República Argentina, 1978, p. 3).
Em outras palavras, esses conselhos profissionais não
são instituições de associação voluntária, sendo criados por
intermédio de uma lei que regulamenta o seu funcionamento.
Por esta razão, os conselhos profissionais devem ser distinguidos de outras instituições profissionais em que a associação
ainda é voluntária.
Pode ser apropriado um esclarecimento adicional para
diferenciar entre os dois tipos de instituições profissionais.
Uma nação, do ponto de vista legal, é formada pelo Estado e pelos indivíduos que constituem a sociedade civil. Associações voluntárias de psicólogos são formas espontâneas
de organização da sociedade civil e, portanto, a associação
é voluntária. Em vez disso, conselhos profissionais são cria232
Institucionalização da psicologia na Argentina
dos por lei e são instituições de direito público, mas não do
Estado, mesmo quando criadas para exercer um poder que,
na verdade, é uma responsabilidade do Estado e este a delega
aos conselhos profissionais.
A base para essa delegação de poder do Estado a organizações intermediárias é que são os mesmos profissionais de
psicologia aqueles que são mais capazes de controlar as normas estabelecidas pelo Estado para o exercício da profissão:
licenciamento profissional, atualizar o conhecimento, seguir o
Código de Ética etc.
Porém, como exercem um poder delegado pelo Estado,
longe de serem voluntárias, são entidades que se constituem
por um ato legal do Estado, ou seja, uma lei.
Em qualquer caso, ambas as associações profissionais
e conselhos profissionais são instituições profissionais. Que
aconteceu nesse meio tempo com as sociedades científicas?
Primeiro, pode-se notar que, embora as sociedades cientificas analisadas na segunda secção deste trabalho tenham desaparecido, surgiu, em 1987, uma sociedade científica. Foi a Asociación Argentina de Ciencias del Comportamiento (AACC),
organizada com o propósito de reunir pessoas interessadas na
investigação psicológica, mesmo quando envolve pesquisadores de outras disciplinas. A Primeira Reunião Anual ocorreu em
San Luis, em 1988, e foi predidida por Claribel Morales de Barbenza. A importância da AACC é que, desde abril de 1994, a
entidade foi aceita, representando a Argentina, como membro
(National Member) da União Internacional de Ciência Psicológica (International Union of Psychological Science, IUPsyS)
(Sacchi, 1996). A IUPsyS se organizou formalmente em 1951,
sob os auspícios da UNESCO, por ocasião do XIII Congresso
Internacional de Psicologia, ocorrido em Estocolmo (Suécia),
reunindo instituições científicas, não indivíduos. Seu principal
objetivo é “promover o desenvolvimento da ciência psicológica,
seja biológica ou social, normal ou anormal, pura ou aplicada”
(International Union of Psychological Science, 1996, p. xv). Em
2012, a IUPSys abrigava 73 membros nacionais e 18 organi233
Clio-Psyché: Instituições, História, Psicologia
zações internacionais, incluindo a Sociedad Interamericana de
Psicología (SIP) (Pawlik, 2012).
Também em 2005, uma nova sociedade científica, a Associação para o Avanço da Ciência Psicológica (AACP) foi
organizada. A nova sociedade tem atualmente representação
nacional em cinco sedes: Buenos Aires, Córdoba, San Luis, Mar
del Plata e Mendoza e seus membros, críticos da psicologia tradicional, estão interessados em novas perspectivas teóricas, em
novas áreas de aplicação etc.
Por sua vez, a SIP, reúne psicólogos e psicólogas de todo
o continente americano. Nos últimos anos, tem experimentado
um crescimento notável de sócios argentinos, tornando-se em
1995 o país com o maior número de associados (170) (Sociedad
Interamericana de Psicología, 1995). No entanto, embora o capítulo argentino da SIP tenha chegado a editar uma publicação,
El Psicólogo Argentino, dirigida por Raúl Serroni-Copello, que
foi descontinuada, não é uma instituição autónoma.
Em qualquer caso, as sociedades exclusivamente científicas na Argentina mantêm um número muito pequeno de associados. Isso decorre, como regra geral, do fato de as instituições
profissionais também adotarem objetivos científicos.
A paisagem institucional internacional oferece modelos
institucionais razoavelmente bem definidos, ou seja, instituições científicas e profissionais, como a American Psychological
Association ou a Sociedade Interamericana de Psicologia; instituições puramente profissionais, como o International Council
of Psychologists, ou puramente científicas, como a Association
for Psychological Science, anteriormente American Psychological Society. Na Argentina, por sua vez, associações profissionais têm procurado manter este perfil duplo, profissional
e científico, ao mesmo tempo, sem alcançá-lo plenamente. De
qualquer maneira, isso tem dificultado a formação de sociedades científicas fortes depois de 1970, com exceção da AACC e
AACP, já mencionadas.
O que é interessante é que o ponto de vista histórico nos
permite ver que, enquanto as antigas sociedades científicas, des234
Institucionalização da psicologia na Argentina
de o início do século XX até por volta da década de 1960, se
organizavam em torno de sessões científicas, durantes as quais
eram expostos e discutidos artigos científicos, as novas associações profissionais se organizam em torno da reivindicação
de condições de trabalho, mesmo quando abraçam objetivos
científicos e podem organizar reuniões ou congressos científicos
ou publicar revistas científicas.
Nesse sentido, podemos ver que o tripé que formava as
sociedades científicas (ensino, publicações e sociedades científicas) também desapareceu. Embora as associações profissionais
tenham mantido a produção de publicações, o caráter científico
delas é discutível. Em março de 2013, apenas quatro periódicos
de psicologia estvam indexados no SciELO Argentina: Anuario
de Psicología (Universidade de Buenos Aires), Interdisciplinaria. Revista de Psicología y Ciencias Afines (Conselho Nacional
de Pesquisas Científicas e Técnicas, CONICET), Orientación
y sociedad (Universidade Nacional de La Plata) y Subjetividad
y Procesos Cognitivos (Universidad de Ciencias de Empresas
e Sociais). Isto é, nenhuma publicada por instituições profissionais. Por sua vez, a relação com o ensino está muito mais
distante do que parecia estar no início do século XX.
Pode-se resumir esse processo observando que, em um período de quase 80 anos, a psicologia na Argentina tornou-se
principalmente uma profissão.
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***
243
Parte III
A Psicologia na Argentina
11
Genealogia de instituições a partir das práticas
psicológicas e áreas profissionais.
Sua história na Argentina1
Lucía A. Rossi
Introdução
O significado social e político e a função conferida a
uma instituição podem ser inferidos a partir da leitura de indicadores, tais como: dependência institucional, alcance, destinatários e agentes, espaço atribuído e, em especial, às suas
fontes de financiamento.
O hospital, como primeira instituição, surgiu ainda na
época da colônia: o Hospital de Hombres, originalmente criado para atender os militares e os casos mais graves. Financiado
pela Coroa, combina a atenção de cirurgiões ou práticos com
as ordens religiosas. Os jesuítas consideram o hospital como
parte da função missionária, educacional e assistencial. Sob a
jurisdição desses religiosos, são introduzidos nos hospitais os
critérios e o vocabulário da medicina grega, além de seus quadros psicopatológicos: mania, melancolia e histeria, conforme
pode ser visto nos casos clínicos. Consideram a doença mental como própria da condição humana, com critérios unicistas
aristotélicos, tratável pela teoria do justo meio e a prática médica indicada no Pharmacon, de Dioscórides, enriquecida por
novas espécies vegetais encontradas no Novo Mundo.
Nesse contexto, se apresenta uma diferenciação entre patologia e loucura: surge um setor especial e separado, chamado “quadro de dementes”, dedicado a quadros psicopatológicos crônicos. A estes se acrescenta uma nova diferenciação:
funciona em contraposição ao quadro prevalente de pacientes
agudos. A diferenciação entre melancolia (internável, contí1. Tradução do espanhol para o português realizada por Bethania Guerra de Lemos.
247
Clio-Psyché: Instituições, História, Psicologia
vel e tratável) e mania, com sua periculosidade social, mostra
outra diferenciação precoce: a primeira concernente ao hospital, por ser contível e tratável; a segunda, por sua violência
e periculosidade, de contenção disciplinadora, corresponde
à função policial do Conselho e sua prisão. A criminalidade é remetida ao âmbito municipal e de contenção física: o
cárcere. Os relatórios clínicos da época permitem apreciar a
circulação de pacientes: por exemplo, o caso de um escravo
furioso recluso na prisão do Conselho. Quando sua crise maníaca diminui, ele é encaminhado ao hospital dos betlemitas
− sucessores dos jesuítas −, que o atendem durante a depressão.
Já recuperado, começa a colaborar como ajudante de enfermaria e de cozinha, momento em que se considera curado e a
família o reclama.
A estas diferenciações, somam-se outras: novos espaços
intermediários, nem agudos, nem crônicos, destinados a convalescentes, como “la Residencia”, contemplam atividades de
colaboração e produção, em prédios destinados pela Coroa
para o sustento e financiamento dessas instituições. O fato de o
paciente trabalhar é indício de remissão e alta iminente.
As diferenças institucionais produzidas pela classificação
de pacientes em agudos, crônicos e convalescentes, levam também a diferenças no tratamento. Aplica-se a modalidade de
contenção para tratar os maníacos, os quais, por sua periculosidade, mostram tendências que os aproximam dos agudos e da
criminalidade, e, portanto, requerem contenção drástica: a prisão do Conselho. Por sua vez, os tratáveis clinicamente — apresentando melancolias, histerias e delírios — são levados em primeira instância ao hospital, para diagnóstico e assistência, e ao
hospício se, depois do período de convalescença, o quadro não
melhora e se torna crônico.
Ambas as situações compartilham, entretanto, o caráter
de contenção. Por um lado, a clínica provê assistência e “tratamento”, e, por outro, a prisão disciplina e tenta reeducar.
Essa complementariedade esboça a diferença entre instituições
clínicas e criminológicas.
248
Genealogia de instituições a partir das práticas psicológicas e áreas profissionais
Com a emancipação política e a revolução de maio de
1810, os hospitais e hospícios conservam as suas sedes, mas dependem administrativamente do Estado, do erário público e da
Sociedade de Beneficência de Buenos Aires. Nessa época, as ordens religiosas se retiram e os pacientes são atendidos por protomédicos. Ao perderem a função inicialmente atribuída, sem
uma redefinição clara, e estando fora das prioridades do estado
provincial, as instituições entram em decadência. Até que o visionário Buenaventura Bosch (1814-1871) ganha a confiança
oficial e funda o Hospicio de Mujeres e, a seguir, o Hospicio de
Hombres, em contínua pujança e crescimento.
A Organização Nacional atribui a eles uma função chave:
conter a disfunção da grande imigração europeia. Os hospitais
crescem em tamanho, transformando-se em instituições modelo de higiene pública, por suas instalações. A eficiência na
função estratégica de controle social leva a sua nacionalização,
complementando o sistema penitenciário, em um exercício de
diferenciação entre o clínico e o criminológico. A ligação com
a universidade, a presença de cursos universitários e a documentação das práticas em relatórios clínicos dão testemunho
do uso de taxonomias psicopatológicas europeias. Embora a
função predominante desses hospitais seja a de diagnóstico e
contenção de pacientes crônicos, são detectadas salas de clinoterapia, mostrando iniciativas de práticas de tratamento e acompanhamento. Em consonância com esse fato, itens
como “tratamento e prognóstico” se apresentam atenuados ou
ausentes dos relatórios.
A preocupação com a reabilitação e a reinserção social
ressurge no começo do século XX. Uma nova instituição, a colônia, propõe como estratégia o trabalho do interno. O cultivo
da terra, em seus extensos terrenos, chega a torná-las unidades econômicas autossustentáveis, como a prisão de Ushuaia,
da mesma época. A reabilitação se estrutura como assistência,
educação e laborterapia, três práticas psico-assistenciais que
apostam para um sujeito integrável à sociedade pela via do trabalho. As colônias cumprem uma função de transição: em parte
249
Clio-Psyché: Instituições, História, Psicologia
como contenção, por causa da superlotação dos hospícios; mas
também apontam decididamente para a reabilitação, procurando resgatar o sujeito, fazê-lo ativo e útil à sociedade. A colônia
é um acerto que se expande como modelo aplicável até mesmo
aos menores internados em instituições totais: colônias para
menores retardados [sic] (Cabred) ou crianças cegas (Piñero).
Essas colônias, caracterizadas pela atenção a deficientes, constituem uma resposta à falta de assistência especializada para os
menores em risco ou em situações problemáticas, e às grandes
dificuldades de detecção diagnóstica, encaminhamento e assistência institucional da infância, como testemunham algumas
teses acadêmicas que denunciam a existência de crianças internadas em hospitais e prisões. A diferenciação entre deficientes e
oligofrênicos é um avanço.
II
Ao mesmo tempo, uma vez mais o hospital público é fonte
de descobertas assistenciais, em resposta às novas demandas,
iniciando uma segunda linha genealógica com o Hospital de Caridad San Roque. Esta instituição surge inicialmente como um
leprosário e hospital de doenças infecciosas — o mais importante de Buenos Aires –, em uma época de grandes epidemias. No
começo do século XX, o prestigioso médico Ramos Mejía funda uma instituição mista, funcionando como ponte entre o âmbito clínico e o criminológico: o Observatorio del Deposito de
la Polícia Federal (semelhante ao Depot de G., de Clerambault,
em Paris), articulado academicamente com as disciplinas de
Criminologia e de Psicologia e contando com professores como
De Veyga e Ingenieros, das faculdades de Direito e Medicina.
Das observações mistas, clínicas e criminológicas, surgem as primeiras publicações: os Archivos de Criminología,
dirigidos por José Ingenieros. Em 1904, surge o Servicio de
Enfermidades Nerviosas, seguindo proposta de Charcot, com
consultórios que oferecem os primeiros esboços de psicoterapia. As novas práticas ganham novos espaços no hospital: os
250
Genealogia de instituições a partir das práticas psicológicas e áreas profissionais
consultórios externos, presentes em todos os hospitais públicos
na década de 1920, e que abrigarão as primeiras práticas de
psicoterapia. As casas de saúde se abrem ao grande público,
retomando uma função social. O Hospital Ramos Mejía, vanguarda da proposta, servirá de sede para a Assistência Pública,
e com a democracia ampliada, de 1918 a 1930, será visto como
um modelo. Os hospitais, agora públicos e gratuitos, se preocupam com a saúde da população ativa, trabalhando com a agilidade de consultórios abertos e ambulatórios em áreas carentes,
fornecendo assistência e difundindo medidas preventivas de higiene social nos bairros populares. O hospital ultrapassa suas
portas para oferecer atenção in situ.
O foco muda: orientados à prevenção e à conservação da
saúde populacional, os hospitais atendem às doenças sociais,
como a tuberculose e o alcoolismo. Uma nova concepção de doença mental transfere a atenção para doenças leves, incipientes
e em seu período inicial, mostrando que as doenças terminais
ou crônicas perdem centralidade, com a previsível decadência
de hospícios e colônias, florescentes no período conservador. A
higienização pública é seguida pela social: as Ligas detectam as
enfermidades sociais e o seu possível impacto futuro na população. As doenças venéreas e o alcoolismo são agora o foco; são
feitas várias campanhas para a detecção precoce e a prevenção.
Surge a Liga de Higiene Social, liderada por médicos higienistas,
que competem com a Sociedade de Beneficência e com a igreja
no cuidado da população trabalhadora e dos pobres, os quaisagora frequentam livremente o hospital público, pois desde 1917
já não é mais requerido o humilhante certificado de pobreza.
O alcoolismo, avaliado estatisticamente, e as doenças venéreas são mensuráveis de acordo com o impacto populacional
nas gerações vindouras. O inquietante problema do trabalho
de crianças e mulheres gera uma nova legislação trabalhista reguladora, na qual a infância ganha protagonismo. A higiene
social, por sua vez, desemboca na higiene mental, e a doença mental se relaciona com as condições sociais. Desse modo,
perde entidade, organizando-se de acordo com síndromes de
251
Clio-Psyché: Instituições, História, Psicologia
autonomia funcional, substituindo o fixismo naturalista das
taxonomias hereditárias irreversíveis.
A higiene mental requer novas práticas, com sede nos consultórios externos e ambulatórios nos bairros populares, visando à atenção in situ dos problemas sanitários, e a tarefa de
prevenção e educação para a saúde. As visitadoras de higiene
social e mental, as enfermeiras e os assistentes sociais são os
novos agentes de saúde.
III
As instituições da Colônia, como a Casa de Niños Expósitos (que abriga e busca adotandes para crianças rejeitadas pelos pais, a cargo das Irmãs de Caridade) e a Casa Cuna (“casa
berço”), convertem-se em hospitais para crianças, funcionando
de modo emancipado e com um novo ente administrador, a
Sociedade de Beneficência.
Em 1904, o estado conservador em auge provê as primeiras instituições totais. Essas instituições são lugares de
residência e trabalho, onde indivíduos isolados da sociedade
convivem por determinado período, compartilhando seu confinamento em uma rotina diária administrada formalmente
(Goffman, 2001 [1961]). Algumas delas: Colonia Nacional de
Varones Marcos Paz, a Colonia de Niños Ciegos (idealizada
por Horacio Piñero, para atender crianças com essa deficiência) e o Asilo Colonia Regional Mixto de Retardados Torres
(idealizado por Cabred, para atender à deficiência mental). Ou
ainda o Asilo Colonia para Crianzas Abandonadas de Olivera,
na província de Buenos Aires. No caso de crianças internadas,
as práticas se mostram atentas aos diagnósticos de periculosidade e educabilidade, pela necessidade de reintegrar social e
laboralmente as crianças.
Desde 1915, o serviço médico-legal da Divisão Judicial
determina a criação de um espaço destinado a “menores”, nas
dependências da Polícia Federal. Essa instituição, à qual nos referimos antes, tem vigência até 1930 e sua função é a de relevar
252
Genealogia de instituições a partir das práticas psicológicas e áreas profissionais
os casos. Com a Lei Agote, de 1918, confere-se um marco legal
ao patronato da infância (os pais que não se ocupam dos menores perdem o pátrio poder, que o Estado retoma, na figura do
juiz) e as instituições totais passam a ser Institutos de Menores.
Em 1924, Gianfranco Ciampi, discípulo de De Sanctis,
cria a disciplina de Psiquiatria Pediátrica, com sede no Hospital Neuropsiquiátrico, em Rosário, dependente da Faculdade
de Medicina da Universidad del Litoral e do Hospicio Neuropsiquiátrico; em 1929, funda, com Gonzalo Bosch, a Liga
Argentina de Higiene Mental. Ciampi e Bosch criam as bases
da higiene mental: propõem diferenciar os casos agudos curáveis dos crônicos. Os curáveis seriam encaminhados a institutos psiquiátricos na zona urbana, enquando os casos crônicos
iriam para asilos na zona rural. Também mudam a lógica das
colônias de reabilitação, propondo diferenciar a criminalidade
da loucura. Tratam alcoólatras e crianças retardadas [sic] com
ortopedia mental e psicopedagogia corretiva. Apostam ainda
na detecção precoce e no acompanhamento.
Em 1927, o Tribunal de Menores, da Seção de Psicologia implanta a “ficha psicológica”, de modo a assegurar que o
encaminhamento institucional e o respectivo tratamento sejam
apropriados. Em 1934, Telma Reca cria o Primer Dispensario
de Higiene Mental Infantil, no Hospital de Clínicas da Universidad de Buenos Aires, onde, trabalhando ao lado de Carolina
Tobar García, aplica critérios de higiene mental infantil e escolar para deficientes. Em 1952, surge a Escuela de Psicoterapia
Cultural de la Infancia de la OSE, dirigida por B. Serebrinsky;
em 1958, o Hospital Infanto-Juvenil; na mesma época, Goldemberg inicia sua experiência no Hospital de Lanús (conhecido também como “Evita”).
IV
A partir do estudo das instituições que, na Argentina,
aplicaram noções psicológicas à área trabalhista (Ibarra, 2012),
podem ser estabelecidas duas grandes linhas genealógicas:
253
Clio-Psyché: Instituições, História, Psicologia
1. A primeira é a do Laboratório de Psicologia Experimental, da
Faculdade de Filosofia e Letras da UBA, fundado em 1901.
Tal laboratório foi a “mãe” de várias outras instituições
criadas na década de 20 e que com ele mantiveram vínculos
conceituais: o Gabinete Psicofisiológico, em El Palomar; o
Instituto de Psicofisiología, da Universidad de La Plata; o
Laboratório de Psicologia Experimental, da Faculdade de
Ciências Econômicas; o Gabinete da Base Naval, em Punta
Índio. Todas compartilham os fundamentos teóricos, muitos dos aparelhos utilizados e vários membros das equipes.
O trabalho aqui relatado, exploratório e descritivo, permitirá que no futuro seja possível examinar mais de perto os
elementos de ligação entre essas instituições. Tais elementos
se constituem em denominadores comuns — e.g., dentro do
que se pode generalizar como fundamento teórico, podemos
dizer que todos os casos mencionados se atribuem à tradição daquilo que Rossi (2001) descreve como clínica patológica com fundamentação fisiológica, enquanto Klappenbach (2006) descreve como psicologia clínica e experimental.
Ambos os autores se referem ao “afrancesamento” com que
a Argentina tinge a psicologia alemã.
Entre os aparelhos utilizados, o cronoscópio de Hipp e o ergógrafo aparecem em quase todas as instituições. O mesmo
ocorre com alguns integrantes, como é o caso de Alberti e
de Julio D’ Oliveira Estéves, que atuam em várias ou mesmo
em todas as instituições.
2. A segunda linha conceitual teve início em 1904, com a criação dos institutos para professores, em Buenos Aires e no
Paraná. Em ambos os casos, aparece a figura dos professores
alemães contratados. Esses docentes chegam com a pura tradição germânica, sem a “peneira” francesa, que caracteriza
o “matiz diferencial” da Argentina. Segundo Rossi (2001),
trata-se de uma tradição filosófico-estruturalista, cujos traçados integrais remetem às ideias do krausismo, em voga na
Argentina naquele momento. De acordo com Klappenbach
(2007), a psicotécnica derivou da psicologia experimental
254
Genealogia de instituições a partir das práticas psicológicas e áreas profissionais
de laboratório, modificando seus objetivos primários: se
na Alemanha ainda se encontrava próxima da filosofia e
do problema do conhecimento, o seu trânsito pelos Estados
Unidos (com atores como Munsterberg) produziria a virada
em direção ao mundo do trabalho, da educação e da saúde.
Conclusões
1. Do hospital ao hospício: no marco das instituições clínicas e do hospital geral, esboça-se um espaço para quadros
psicopatológicos, iniciado quando os jesuítas unem as nosografias clássicas ao seu tratamento. Um setor, o quadro
de dementes, é transformado em instituição: o hospício. As
diferenças entre pacientes agudos e crônicos, e seus respectivos tratamentos criam espaços de transição: as residências
para convalescentes, as quais desde cedo incluem o trabalho como terapia. Por sua vez, a periculosidade em potencial das crises maníacas agudas, fronteiriça à criminalidade,
traça destinos diferentes de acordo com a intencionalidade
da contenção: um desses destinos é o de âmbito policial. A
clínica e a criminologia se sobrepõem, aproximam-se e se
diferenciam. Com a organização nacional, os hospícios se
massificam, transformando-se em grandes instituições: o
diagnóstico, central na diferenciação entre saúde e doença,
aplica-se para atender problemas gerados pela grande imigração europeia do final do século XIX.
2. Do hospício à colônia: a preocupação pela reintegração social e a “reabilitação”, no começo do século XX, desembocam em uma nova estrutura institucional, a colônia. A
recuperação pelo trabalho assegura a autonomia financeira;
critérios progressistas garantem a expansão desse projeto
baseado na laborterapia.
3. A volta ao hospital geral público: na década de 1920, a democracia ampliada focaliza sua atenção na população ativa.
A ampliação do atendimento hospitar, os consultórios externos e os ambulatórios respondem ao cuidado e à prevenção
255
Clio-Psyché: Instituições, História, Psicologia
da saúde de forma massiva, levando profissionais de saúde
aos lugares mais necessitados. As doenças leves, as neuroses
e as doenças nervosas são abordadas em seus períodos iniciais e tratadas com psicoterapia.
A profilaxia social e suas perguntas prospectivas sobre o futuro populacional empurram a problemática para a higiene mental, que relaciona a doença mental com o entorno
social, entendendo-o como possível fator etiopatogênico.
Novas práticas e novas nosografias atendem à autonomia
funcional do “eu flexível”, em certa medida reversível, em
oposição às taxonomias fixas. Presta-se especial atenção ao
encaminhamento, ao tratamento indicado, ao acompanhamento da evolução e ao prognóstico do paciente.
4. A última derivação da higiene mental é a higiene mental infantil, que renova as antigas instituições vice-reais. As instituições com estrutura de lares e residências se convertem em
hospitais, nos quais surgem os ambulatórios. O diagnóstico
é a chave para calibrar as variáveis de educabilidade e periculosidade, assegurando assim o tratamento adequado.
5. As seções de psicologia se inserem em instituições educacionais para diagnóstico e tratamento da deficiência, como
mostram as fichas diagnósticas ambientais, situacionais
e psicológicas, divulgados pelos laboratórios e institutos
como estudos psicológicos. Na área do trabalho, essas fichas registram competências, psicotécnica ou testes, para
funcionalizar a orientação e aperfeiçoar a incorporação e
o desempenho laboral.
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***
258
12
A família como sistema:
recepção da Teoria da Comunicação Humana na
Argentina dos anos 601
Florencia Adriana Macchioli
Introdução
Podem ser rastreados na Argentina vários modos de abordar o grupo familiar como objeto de intervenção psi,2 entre eles
a família entendida como sistema. Essa acepção começou a circular nos âmbitos portenhos, assim como em outros países, no
começo dos anos 60, a partir dos estudos desenvolvidos pelo
Mental Research Institute (MRI), também conhecido como a
Escuela de Palo Alto. O foco do presente capítulo consiste em
averiguar as vias de implantação de ditas pesquisas estadunidenses na Argentina. Tal recepção apresenta certas características locais que farão com que se vincule, em seus inícios, a
referida teoria com a terapia familiar e o “Lanús”, um dos mais
renomados serviços de psicopatologia de hospitais gerais durante o período estudado, ambos encarnados principalmente
na figura de Carlos Sluzki (ver Macchioli, 2012b).
Com esse objetivo, apresentaremos resumidamente a recepção como instrumento metodológico, para depois dar lugar
ao percurso dos momentos de produção, difusão, recepção e
apropriação da teoria da comunicação humana, entre os Estados Unidos e a Argentina. Nosso interesse é, em parte, observar
de que maneira essa teoria encontrou na Acta Psiquiátrica y
Psicológica de América Latina3 o seu principal veículo de difu1. Tradução do espanhol ao português realizada por Bethania Guerra de Lemos.
2. Termo usado em alusão ao campo psicológico em sentido amplo, incluindo saberes
e práticas psiquiátricas, psicanalíticas e psicológicas.
3. Esse periódico, fundado e dirigido, entre outubro de 1954 e 1962, por Guillermo
Vidal, intitulou-se Acta Neuropsiquiátrica Argentina. Em 1961, as áreas neurológica
e psiquiátrica foram separadas, sendo a revista rebatizada como Acta Psiquiátrica
259
Clio-Psyché: Instituições, História, Psicologia
são no terreno meridional. As páginas dessa publicação foram
particularmente usadas, do ano de sua fundação (1954) até
meados dos anos 60, como vitrine de várias propostas inovadoras em saúde mental, revelando-se como um dos principais
órgãos de difusão da psiquiatria reformista dos anos 50 e 60
(ver Klappenbach et al. 1999). O presente trabalho se insere
no marco da história intelectual. Em particular, serão apresentados alguns aspectos dos estudos sobre recepção como ferramenta historiográfica, imprescindíveis no desenvolvimento
argentino nessa área, caracterizado por dialogar com contribuições e tradições do hemisfério Norte (sejam europeias ou
estadunidenses).
A recepção como ferramenta historiográfica
O desenvolvimento argentino nesse campo se centra no
modo de apropriação, mediação e implantação de leituras e
traduções, determinantes para o âmbito cultural argentino, no
qual a imigração, a recepção de saberes e usos e um olhar orientado sempre ao Norte, imprimem um selo definitivo não só na
esfera disciplinar mas também na social, política e cultural. A
recepção se situa como a prática ativa que modifica tudo aquilo
em que se aplica. O foco aqui se transfere, portanto, do autor
aos modos de circulação e produção da obra, situando-se em
uma trama de conexões e condições que operam na produção,
difusão, práticas de leitura e público ao qual se dirige. E assim,
como não é transparente a relação do autor com sua obra, tampouco o é a relação da obra com seu tempo, ideias e representações (Vezzetti, 2007, p. 11).
No caso da Argentina, foram realizados, nas últimas
duas décadas, vários estudos sobre a recepção da psicanálise
Argentina e, um ano depois, Acta Psiquiátrica y Psicológica Argentina. A partir de
1964, passou a se chamar Acta Psiquiátrica y Psicológica de América Latina, nome
que conserva até hoje. A partir de 1966, foi criada a Fundación Acta, Fondo para la
Salud Mental, composta pela revista, um instituto médico-psiquiátrico e uma escola de
psiquiatria (Weissmann, 1999).
260
A família como sistema
ou de figuras significativas, como Freud e Marx, entre outros
(e.g., Vezzetti, 1989, 1996; Dagfal, 2004; Dotti et al., 2008;
Tarcus, 2007). Para a presente pesquisa, serão considerados os
processos de recepção intelectual propostos por Tarcus (2007).
Para ele, o conceito de “recepção” remete a um processo mais
amplo de produção e difusão intelectual, no qual é necessário
distinguir entre os produtores, os difusores, os receptores e os
consumidores das ideias, embora, na prática, esses diferentes
processos muitas vezes se sobreponham ou são assumidos por
um mesmo sujeito.
Para abordar o processo global de produção e circulação de ideias, Tarcus propõe distinguir quatro momentos, não
necessariamente sucessivos. São eles: 1) o momento da “produção” de uma teoria, a partir dos chamados “intelectuais
conceptivos”; 2) o momento da “difusão” de um conjunto de
ideias, a partir da edição de um livro, revistas, cursos, debates,
traduções etc.; 3) o momento da “recepção”, o qual pressupõe
a difusão de um corpo de ideias em um campo de produção diferente do original, a partir da perspectiva do receptor, processo que se refere a uma função ativa pela qual alguns grupos sociais se veem interpelados por certas teorias traçadas em outro
campo de produção, tentando “recepcioná-las” em seu próprio
campo; e 4) o momento de “apropriação”, que corresponde ao
consumo do corpo de ideias por parte de um suposto “leitor final”. Não obstante, supor um “leitor final” só é possível com o
objetivo de formalizar o modelo, já que nunca há um realmente
um “leitor final”, pois este logo se transforma em um novo difusor, receptor ou produtor.
Gestação da teoria da comunicação humana
Os momentos de produção e difusão do que se chamou,
em meados dos anos 1960, de “teoria da comunicação humana” encontram seus alicerces nos Estados Unidos. Em meados
do século XX, surgiram, em meio aos esforços promovidos pela
Segunda Guerra Mundial, inúmeros avanços científicos e tec261
Clio-Psyché: Instituições, História, Psicologia
nológicos de grande impacto social e cultural. Entre os avanços
científicos, surgiram alguns modelos no campo da cibernética
e da teoria dos sistemas que permitiram olhar para os grupos
humanos, incluindo as famílias, de um modo absolutamente
inovador. O encontro dessas inovações com as ciências sociais,
incluídas as diversas vertentes da psicanálise pós-freudiana,
possibilitou o traçado de um campo extremamente heterogêneo.
O biólogo e antropólogo estadunidense Gregory Bateson
(1904-1980) foi um dos personagens destacados dessa conjuntura. Nos anos 30, ele havia concebido a relação entre a sociedade e o indivíduo de um modo circular e recíproco. No final
dos anos 40, utilizou os conceitos de feedback (= retroação, retroalimentação) negativa e homeostase, então já de uso corrente nas ciências naturais, como modelos explicativos de fenômenos sociais. De fato, alguns estudos históricos situam as origens
da cibernética nas conferências interdisciplinares denominadas
Macy Conferences, patrocinadas pela Fundação Josiah Macy,
dirigida por McCullock (1898-1969). Em 1946, um ano após o
término da Segunda Guerra Mundial, começaram as palestras,
a partir de um trabalho interdisciplinar do qual participam, entre outros, Gregory Bateson e Margaret Mead (antropólogos),
Lawrence Frank (economista), Warren McCullock (neurofisiologista), Walter Pitts (lógico e matemático), John von Neumann
e Norbert Wiener (matemáticos), William Bigelow (engenheiro
eletrônico), Heinz von Foerster (engenheiro e teórico de sistemas) e Kurt Lewin (psicólogo).4
Pode-se afirmar que “as Macy Conferences criam, portanto, os fundamentos de uma ciência interdisciplinar da comunicação e da informação” (Bertrando & Toffanetti, 2004,
p. 61). Wiener e Von Neumann, dois dos matemáticos mais
eminentes da época, embora antagônicos em alguns aspectos,
4. Entre as contribuições mais significativas desses profissionais, caberia aqui registrar
os de McCulloch & Pitts (1943), que postularam a teoria das redes nervosas; as pesquisas de Von Neumann e Wiener, sobre sistemas de controle automático e computação.
Para detalhes e comentários adicionais sobre as Macy Conferences, ver Heims, S. J.
1991. The cybernetics group. Cambridge: MIT Press.
262
A família como sistema
em muito contribuíram para a criação da cibernética com um
caráter dual (i.e., ao mesmo tempo uma ciência da auto-organização e do controle), embora o termo “cibernética”, proposto
por Wiener, em 1948, no marco das palestras, tenha sido o que
se adotou oficialmente. Segundo a sua própria definição, a cibernética é “o estudo do controle e da comunicação no animal
e na máquina”. Ele formula ainda o conceito de “feedback”
(Wiener, 1958, p. 16), referente ao fato de que as unidades que
formam um sistema cibernético dão e recebem respostas que se
relacionam permanentemente, de tal modo que cada mensagem
recebida modifica não só o receptor mas também o emissor.
Cabe aqui distinguir um “feedback positivo” (movimento que
aumenta a instabilidade) de um “feedback negativo” (que leva
o sistema à estabilidade); este último resulta em uma “casualidade circular”.
Não obstante, Bateson e Mead serão os autores que utilizarão o desenvolvimento dos estudos sobre feedback negativo e
homeostase como modelo explicativo dos fenômenos sociais. A
partir desse deslocamento, a cibernética fará com que seja possível interpretar as relações humanas a partir de uma concepção que emerge em um âmbito alheio à psicanálise freudiana.
Em 1952, seguindo seu interesse pela comunicação, Bateson dirigiu um projeto de pesquisa sobre esquizofrenia e família, do qual participava um grupo heterogêneo de profissionais
integrado por John Weakland, Jay Haley e William Fry.5 Uma
vez delineada a teoria da comunicação esquizofrênica (como
um tipo de comunicação que transgredia as distinções entre
níveis lógicos), Bateson e o grupo começaram a analisar o contexto de aprendizagem que possibilitava a transgressão, postulando a noção de deuteroaprendizagem.6 Por volta de 1954,
5. Nesse período, ocuparam-se da comunicação ambígua, que localizava o receptor
em una posição paradoxal. A esquizofrenia, sobretudo, evidenciava rapidamente uma
comunicação rica em confusões de níveis e paradoxos, na qual não se distinguiam as
metamensagens que determinam o contexto e na qual também se consideravam as metáforas de forma literal e os fatos reais como metáforas.
6.
O termo se refere à aprendizagem que se adquire da própria situação na
263
Clio-Psyché: Instituições, História, Psicologia
coincidindo com certas dificuldades para conseguir subsídios
para manter a pesquisa em andamento, Bateson conhece Don
Jackson (1920-1968) − já um psiquiatra e psicanalista de renome −, em uma palestra sobre homeostase familiar. A partir
de então, Jackson se incorporou à equipe, que se inclinou definitivamente pela clínica. O ano de 1956 fixa um dos marcos
que nos interessa destacar: a publicação do artigo “Toward a
theory of schizophrenia”, amplamente citado em psiquiatria e
considerado como ponto de partida da concepção sistêmica sobre a esquizofrenia e interação familiar. Pode-se encontrar aqui
um tipo de enlace entre os níveis lógicos de Bateson e a relação
entre esquizofrenia e tipos lógicos de Haley, que aquele estende
ao duplo vínculo; assim como as ideias de homeostase familiar, que correspondem a Jackson, e as analogias entre hipnose
e esquizofrenia, atribuídas a Weakland e Haley (Bertrando &
Toffanetti, 2004). Não obstante, o conceito de “duplo vínculo”
foi o mais popularizado.7 A partir dali, o grupo se desagregaria, principalmente pelas divergências de interesses: os de Haley,
Weakland e Jackson eram basicamente clínicos, enquanto os de
Bateson eram nitidamente teóricos.8
Em 1959, Jackson fundou o Mental Research Institute
(MRI), na Califórnia (EUA). O instituto começou como uma
pequena associação privada, tendo por objetivo formalizar um
método de terapia familiar, a partir do patrimônio terapêutico
acumulado pelo grupo dirigido por Bateson. Em 1961, Watzlawick se une ao MRI; em 1962, foi a vez de J. Haley e J. Weakland, quando então o instituto começa a receber subsídios
para pesquisa e formação. O primeiro argentino a viajar até o
MRI, a fim de realizar um treinamento em terapia familiar, foi
qual se aprende.
7. Em poucas palavras, a situação de duplo vínculo supõe que quem cresce em contextos onde são recebidas mensagens intrinsecamente contraditórias termina sendo
castigado tanto quando faz algo como quando nada faz, dando lugar a uma situação
paradoxal e sem saída.
8. Os membros do grupo publicaram 63 artigos, embora apenas dois fossem coletivos,
justamente o primeiro (1956) e o último (1963).
264
A família como sistema
Carlos Sluzki, em 1965.9 De fato, na década de 60, o MRI se
transformou na meca da terapia familiar, sendo reconhecido
como um importante centro de pesquisas a partir das suas diferentes publicações, entre as quais se encontra o livro Pragmatics of human communication (Watzlawick et al. 1967),10 que
será o texto princeps na formação de diferentes gerações de
terapeutas sistêmicos. Tem-se afirmado que o livro foi produto
fundamentalmente do trabalho de Watzlawick, que, além de
sua própria versão a respeito do duplo vínculo, ocupou-se de
organizar as teorias sistêmicas.11 Isso fez com que Watzlawick,
Beavin e Jackson fossem considerados os fundadores da primeira teoria terapêutica de orientação sistêmica, de sorte que quando os terapeutas familiares se referissem a Bateson, estivessem
se referindo na verdade à síntese do primeiro de seus coautores
(Bertrando & Toffanetti, 2004).
No momento de difusão descrito (fenômeno gerado principalmente a partir do volume de 1967), entretanto, faltaria
localizar a figura de Sluzki, uma questão pouco explorada até a
atualidade. A presença do psiquiatra argentino em Pragmatics
of human communication foi mais que significativa. Já na introdução da obra, escrita em março de 1966, os autores faziam
um agradecimento a Sluzki, entre outros membros da instituição. Além disso, nas quase duzentas entrevistas bibliográficas,
o único argentino mencionado é o psiquiatra lanusino.12
9. Naquela época, apenas duas instituições ofereciam treinamento em terapia familiar,
o MRI e o The Family Institute, fundado por N. Ackerman, em 1960.
10. A reação de Bateson ante tal obra foi particularmente severa: muitas das ideias ali
contidas − em especial a de duplo vínculo — pertenciam a ele; além disso, considerava
que as suas ideias originais haviam sido deturpadas, de modo tal que julgou a leitura
dos autores simplesmente como um modo de ajustá-las para fins psiquiátricos e terapêuticos. A partir de então publicará numerosos artigos em defesa do duplo vínculo,
deixando claro que ele não a interpreta como una teoria causal da esquizofrenia (ver
Bertrando & Toffanetti, 2004).
11. Em 1963, Watzlawick recompilou, junto a Beavin, vários casos de comunicação
verbal extraídos do arquivo de gravações do MRI; a partir daí, Pragmatics of human
communication surgiu, quatro anos mais tarde, como síntese do trabalho do grupo de
Bateson e das primeiras experiências do MRI.
12. Também há referências de pé de página que remetem ao desenvolvimento dos
265
Clio-Psyché: Instituições, História, Psicologia
Entre algumas das consequências suscitadas por esse contato, podemos citar: as visitas de Beavin à Argentina (em 1965,
ele apresentou um trabalho com Sluzki no colóquio “Família
e Doença Mental”); a palestra de Watzlawick, no Lanús, em
1969; a palestra de Haley, no marco do 1º Congresso Argentino
de Patologia e Terapêutica do Grupo Familiar; as referências a
Sluzki em importantes publicações estadunidenses; e as pesquisas conjuntas entre o Lanús e diversos hospitais dos EUA.
Em suma, à luz das categorias de recepção propostas por
Tarcus, esses progressos permitiriam estabelecer o momento de
produção ao redor do artigo de Bateson et al. (1956), no qual
pela primeira vez se conceitualiza o “duplo vínculo”, articulando-o com uma teoria da esquizofrenia baseada na comunicação humana e na interação familiar. Por sua vez, o momento
de difusão desse conjunto de ideias estaria localizado em Watzlawick et al. (1967), no marco do MRI. O papel de Jackson,
o único dos autores do livro que assinou também o artigo de
1956, sobreporia os momentos de “produção” e “difusão”.
Recepção da teoria da comunicação humana na
Argentina
Existem vários modos de pensar e abordar a recepção. As
portas de entrada podem ser os eventos científicos, as publicações, as instituições, os autores etc. Não obstante, em alguns
casos, esses âmbitos se sobrepõem em umas poucas figuras, o
que permite revelar certos personagens mais proeminentes que
outros, por uma posição mais estratégica no campo disciplinar,
social ou cultural. E é nesse contexto que se delineia a silhueta de
Carlos Sluzki, figura que aparece em meio a uma trama bastante peculiar, colocando-o virtualmente como o principal receptor
e difusor da teoria da comunicação humana na Argentina.
estudos de Sluzki sobre duplo vínculo (Watzlawick, et al., 2002 [1967]). E Sluzki é
mencionado ainda ao lado de colegas estadunidenses em outros títulos emblemáticos da
corrente sistêmica daqueles anos (Watzlawick et al., 1999 [1974]; Simon et al., 2002;
Bertrando & Toffanetti, 2004).
266
A família como sistema
Desde o fim da Segunda Guerra, um grupo de psiquiatras
reformistas, instruídos em várias instituições asilares, procurava modificar esse estado “manicomial” da psiquiatria local, a
partir das novas linhas da saúde mental. Nutriam interesses
heterogêneos e abrangiam diferentes disciplinas. Graças a esta
conjuntura, em outubro de 1957, foi fundado o Instituto Nacional de Saúde Mental (INSM). Esse movimento gerou, entre
outras questões, a criação dos serviços da psicopatologia em
hospitais gerais, sendo um dos mais visíveis o de Lanús; algumas universidades, no fim da década de 1950, modernizaram
os seus planos de estudo e criaram novas disciplinas, como Psicologia, Antropologia e Sociologia; e foram fundadas associações profissionais como a Federação Argentina de Psiquiatras
(FAP), em 1959, e a Associação de Psicólogos de Buenos Aires
(APBA), em 1962.
Nesse contexto, uma zona específica de problemas começa a ser delimitada ao redor da família como objeto de intervenção terapêutica, algo que teve início nos anos 50. Por volta
dos anos 60, os estudos permitem organizar quatro modelos
a nível local: a família entendida como grupo, a família como
sistema, a família como estrutura e a família como comunidade,
representados respectiva e fundamentalmente por Pichon-Rivière, Carlos Sluzki, Isidoro Berenstein e Jorge García Badaracco (Macchioli, 2010). Como pode ser visto a partir das páginas
tanto de Acta como da Fundación Acta, esses saberes e práticas
iniciaram o seu desenvolvimento e expansão a partir dos primeiros eventos científicos na Argentina sobre a especialidade.
Em 1965, foi organizado o colóquio “Família e Doença
Mental”, contando com a presença de nomes locais (Berenstein,
Bleger, Sluzki, Verón e Vidal) e internacionais (Ackerman e Beavin). Em junho de 1970, ocorreu o 1º Congresso de Patologia
e Terapêutica do Grupo Familiar, cujo comitê organizador era
formado por Berenstein, Sluzki, H. Bleichmar e I. Maldonado.
Este evento inscreve um primeiro ponto de articulação na incipiente especialidade. Naqueles dias de inverno, Pichon redige
o seu último artigo sobre o grupo familiar; ao mesmo tempo,
267
Clio-Psyché: Instituições, História, Psicologia
aquele espaço se apresenta como idôneo para a inauguração
das ideias de Berenstein sobre estrutura familiar inconsciente;
por sua vez, também entra em cena García Badaracco, juntamente com a sua equipe, ao expor o modelo sobre comunidade
terapêutica psicanalítica de estrutura multifamiliar (monopolizando, é bom que se diga, a área sobre “grupo familiar com
membros psicóticos”); e Carlos Sluzki faz uma de suas últimas
apresentações antes de emigrar para os Estados Unidos.
Antes de continuarmos, cabem aqui algumas palavras sobre o Lanús. Esse serviço, em particular, se estabeleceu em torno
do mito sobre o qual se assentaria a renovação da saúde mental
na Argentina.13 Seu diretor, Mauricio Goldenberg (1916-2006),
foi um dos principais promotores da passagem de hospitais monovalentes (hospícios) a hospitais gerais, os quais passaram a
contar com recursos avançados, como consultórios externos,
internação, interconsulta, regime de hospital-dia, psicoterapias
breves, grupais e familiares (Sluzki, 2006). Uma das estratégias
que Goldenberg implementou, visando aumentar o pessoal, foi
se cercar de jovens profissionais, os quais, em troca da formação, trabalhavam ad honorem, entre eles Carlos Sluzki.
Alguns dos objetivos de Goldenberg se pautavam em tornar público o serviço do Lanús, o que foi conseguido em poucos anos, graças, em parte, a Acta, que, desde meados dos anos
1960, contava com H. Kesselmann e C. Sluzki no comitê de
redação. De fato, as pesquisas de Sluzki eram conduzidas no
Lanús e publicadas na Acta. Isso deu uma grande visibilidade
ao serviço, atraindo não apenas a população de outros lugares,
mas também estudantes e profissionais com a intenção de se
13. A policlínica de Lanús, localizada no centro industrial da província de Buenos
Aires, foi inaugurada em 1952, no marco dos hospitais fundados por Ramón Carrillo.
O seu nome original, “Hospital Interzonal de Agudos ‘Evita’”, foi modificado para o
de “Policlínica Dr. Gregorio Araoz Alfaro”, atendendo ao antiperonismo que vigorou
nos anos 1956-1973 e 1976-1987 (Visacovsky, 2002). Nesse sentido, a denominação
do hospital (primeiro “Evita”, depois “Aráoz Alfaro”) como simplesmente “Lanús”
elude as oscilações que representavam cada um dos nomes, aceitando, por um lado, a
rejeição ao peronismo, mas, por outro, não reconhecendo a denominação imposta pela
ditadura militar (Visacovsky, 2002).
268
A família como sistema
submeterem à psicoterapia psicanalítica, mas que eram carentes dos recursos econômicos necessários. Dessa maneira, o prestígio do Lanús chegou a setores da classe média.
Voltando a falar de Carlos Sluzki, cabe mencionar que ele
nasceu em Buenos Aires, na Argentina. Estudou na UBA, onde
se formou em Medicina, em 1960. Já em 1957, ainda estudante,
integrou-se à equipe do Lanús, dirigido então por Goldenberg,
ocupando diferentes funções, até se tornar, em 1967, diretor do
Centro de Pesquisas Psiquiátricas e diretor associado do Departamento de Psicopatologia, do Hospital “Aráoz Alfaro”. Paralelamente, ingressou também, no começo da década de 1960,
em uma equipe de pesquisa dirigida por Eliseo Verón.14 Este
último vínculo inaugurou uma interseção muito particular e
prolífica, nos anos subsequentes entre psiquiatria e sociologia
(Macchioli, 2010). A relação com Verón e o encontro casual
de Sluzki com o artigo “Toward a theory of schizophrenia”,
no marco do projeto dirigido pelo sociólogo, incitou no psiquiatra argentino a leitura dos autores de Palo Alto (EUA) e o
contato com Jackson, diretor da instituição. A partir de 1965,
alternaria trabalhos nos Estados Unidos e na Argentina e, tal
como foi dito, manteria vínculos estreitos com os membros do
MRI, incluindo os autores de Pragmatics of human communication (Sluzki, 1993). Assim como a posição de Sluzki ganhou
relevo no âmbito psiquiátrico em razão da introdução da teoria
sistêmica no país, a de Verón se distinguiu pelo seu papel na
difusão do estruturalismo francês, fundamentalmente as ideias
de Lévi-Strauss, no meio acadêmico argentino (Verón, 1963,
1964; Verón et al., 1963; Sluzki et al., 1966a, b). Sluzki obteve
14. Prestigioso semiólogo argentino, graduado em Filosofia (UBA), com doutorado
em Letras e Ciências Humanas (Universidade de Paris 8); obteve posteriormente uma
bolsa do CONICET (Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas), indo
estudar no Laboratório de Antropologia Social, do Collège de France, ao lado de Claude Lévi-Strauss. Em 1962, a partir de um seminário com Roland Barthes, entrou em
contato com a semiologia saussuriana. Entre outros trabalhos, foi o encarregado e o
redator do prólogo da primeira tradução para o espanhol de Antropología estructural
(1968); foi professor do Departamento de Sociologia (UBA) e diretor (1967-8) do Centro de Pesquisas Sociais, do Instituto Di Tella (Argentina).
269
Clio-Psyché: Instituições, História, Psicologia
formação e treinamento psicanalítico, concluídos em 1967, na
Associação Psicanalítica Argentina (APA); em 1965, ingressou
no comitê de redação da Acta. Em 1971, coincidindo com o
desmantelamento do Lanús, migrou para os Estados Unidos
(Carpintero & Vainer, 2005). Entre as suas numerosas publicações, metade foi publicada em seu país natal, antes de 1975.
Não obstante, quais foram os caminhos, na Argentina,
de Pragmatics of human communication (1967), produzido
e difundido nos Estados Unidos? Para responder, é necessário
observar as condições locais de publicação. Nesse aspecto o
psiquiatra lanusino se posiciona como um dos protagonistas do
processo de implantação, que se deu por meio de diferentes vias.
A primeira edição em língua espanhola é apresentada, fiscalizada e revisada tecnicamente por Sluzki. Com o título de
Teoria de la comunicación humana, o livro foi publicado pela
editora Tiempo Contemporáneo, em 1971. O prefácio da segunda edição (1973), escrito por Sluzki, foi mantido nas edições posteriores da obra, inclusive quando passou a ser editado,
a partir de 1981, pela editora espanhola Herder.
Por sua vez, independente do modo como Sluzki entrou em
contato com o MRI, sua relação com a obra e os modos de recepção da teoria sistêmica na Argentina − na qual a compilação Interação familiar (1971) ocupa um lugar privilegiado, por apresentar alguns dos autores estadunidenses mais importantes na área −,
é necessário acrescentar que ele iniciou esse trabalho alguns anos
antes, ainda nas páginas de Acta. De fato, assim que voltou da
primeira incursão a Palo Alto e enquanto ainda ocupava o posto
de chefe do Departamento de Pesquisas de Lanús, ele ingressou
no comitê de redação da Acta. Desde 1965, as ideias da teoria da
comunicação humana são amplamente difundidas no meio local.
A difusão seria tão importante que, a partir de 1966,
podem ser encontrados na revista Acta diferentes e variadas
maneiras de divulgação das ideias estadunidenses. Em primeiro lugar, além das ideias que vinha citando em seus próprios
artigos, Sluzki publicou também resenhas sobre eventos internacionais dos quais participou. Foi o caso, por exemplo, do
270
A família como sistema
resumo sobre o seminário de metacomunicação, realizado em
janeiro e fevereiro de 1966, no MRI, e publicado na Acta no
mesmo ano. Entre os principais participantes desse seminário
se encontravam Beavin, Haley, Watzlawick e Weakland, Verón
e Sluzki. Em 1967, publicou ainda duas resenhas, a propósito da “Conferência sobre a transmissão da esquizofrenia”, nas
quais faz uma síntese de um simpósio que houve em Porto Rico
em junho daquele ano e do qual participaram 60 investigadores de oito países. Também se ocupou de incluir nos obituários,
como Sluzki (1968), no qual comunica a morte prematura de D.
Johnson, em fevereiro de 1968. Mais tarde, o psiquiatra argentino traduziria dois textos de Jackson, incluídos no já referido
volume Interação familiar (1971).
Em terceiro lugar, Sluzki divulgou alguns estudos específicos de autores estadunidenses sobre a teoria da comunicação humana, como os metálogos15 de Bateson. Em junho de
1966, escreveu uma breve introdução e traduziu três metálogos,
publicados no mesmo ano, a saber: “Por qué los franceses”,
“Acerca de los juegos y la seriedad” y “Papá, ¿cuánto sabes?”.
Mais tarde publicou os Metálogos (1969), na coleção Biblioteca de Ciências Sociais (dirigida por Verón), da editora Tiempo
Contemporáneo, para a qual prefaciou e editou seis metálogos,
seis anos antes de eles serem compilados em língua inglesa.16
Por último, a seção “Enciclopédia”, da revista Acta, tratava de explicar alguns conceitos-chave do vocabulário psi da
época. Foi ali que Hugo Bleichmar se encarregou de escrever
a respeito de dois conceitos centrais para a teoria da comunicação humana, o “duplo vínculo” e a “homeostase familiar”
(Bleichmar, 1969a, b).17
15. A palavra “metálogo”, cunhada por Bateson, é uma combinação entre a metacomunicação e os diálogos.
16. Os metálogos seriam compilados e editados em inglês em Steps to an ecology of
mind (1972), no qual que se incluem seus sete metálogos. O único que não aparece na compilação de Sluzki é “¿Por qué se revuelven las cosas?”, escrito em 1948 e
inédito até 1972.
17. Sluzki e Bleichmar se conheceram na universidade e participaram do diretório
271
Clio-Psyché: Instituições, História, Psicologia
Considerações finais
A partir do percurso exposto, pode-se concluir que Sluzki
foi um dos principais atores na recepção da teoria da comunicação humana na Argentina. Por intermédio de Verón, encontrou, no começo da década de 1960, o artigo “Toward a
theory of schizophrenia”, a partir do qual entrou em contato
direto com o grupo do MRI em Palo Alto, transformando-se
em um dos mais notáveis divulgadores das ideias do grupo.
Os interesses de Sluzki, tanto no que diz respeito ao vínculo
indivíduo-sociedade (tendo a família como o principal elo entre ambos) como em relação ao seu profundo questionamento
à psiquiatria, de acordo com o movimento da saúde mental,
encontram nas ideias de autores estadunidenses respostas que
ele abraçaria e difundiria rapidamente. Entre a diversidade de
papéis que exerceu, poderíamos citar as de profissional, cientista, intelectual, tradutor, editor, chefe de redação, compilador,
intérprete e divulgador.
Muitas foram as vias a partir das quais Sluzki ocupou um
lugar privilegiado de divulgador no âmbito portenho daquilo
que passaria a se chamar “terapia sistêmica”. Algumas delas
são as páginas de Acta; as traduções das obras de Bateson (em
artigos e livros); o prefácio de Teoria de la comunicación humana (1971); a compilação de diversos artigos estadunidenses em
Interacción familiar (1971), incluído em uma coleção dirigida
por ele; as várias palestras nas quais apresentou suas ideias (e.g.,
o colóquio “Família e doença mental”, em 1965, e a abertura
e as palestras do 1º Congresso de Patologia e Terapêutica do
Grupo Familiar, em 1970); o seu trabalho clínico; a formação
de profissionais e as pesquisas no Lanús.
Podemos destacar, por último, certas características do
momento de apropriação, por parte de alguns “leitores finais”
que, como foi dito no início deste capítulo, muitas vezes se transformam em novos fenômenos de produção, difusão e recepção.
acadêmico de estudantes. Mais tarde, trabalharam juntos tanto no Centro de Pesquisas
Psiquiátricas do Lanús como na revista Acta.
272
A família como sistema
Entre eles, dois casos servem para evidenciar a multiplicidade e
a diversificação das ideias estadunidense no contexto local. O
primeiro é o de Isidoro Berenstein, formado com Pichon-Rivière e apresentando uma importante influência kleiniana, de
acordo com a APA; antes de ler Lévi-Strauss, em 1970, a partir
da recepção de Verón, já citava os textos dos autores do MRI e
de Sluzki, visando se aprofundar no processo psicoterapêutico
e no enquadramento do grupo familiar (ver Berenstein, 1968).
O segundo é o peculiar caso de Cloë Madanes Sojit. Nascida
em Buenos Aires, formou-se em Psicologia (UBA), em 1965.
Ainda estudante, conheceu Sluzki e, pouco depois, foi se especializar em “Community Mental Health”, no Departamento de
Higiene Mental, da Califórnia (EUA). Por intermédio de Sluzki,
entrou em contato com o MRI, onde foi pesquisadora associada, de janeiro de 1967 a novembro de 1968. Um ano depois,
colaborou com Minuchin e Haley na Philadelphia Child Guidance Clinic. Nesse período, ajudou a difundir a teoria da comunicação humana na Argentina, por meio de publicações em
revistas como Acta e a Revista Argentina de Psicología (Madanés Sojit, 1968, 1970a, b); então, em 1975, casou-se com Haley
e juntos se estabeleceram em Washington, onde fundaram o
Family Therapy Institute.
Por fim, não podemos deixar de mencionar o Lanús como
um importante contexto de formação de profissionais que possuíam uma clara orientação psicanalítica e que foram partícipes das ideias estadunidenses, durante os anos 1960 e 1970, a
partir de vários espaços, como as palestras extraordinárias dos
autores do MRI, o trabalho clínico com famílias de pacientes
internos e externos ou as diversas pesquisas sobre casais e famílias. Os anos 80 não fizeram mais do que incrementar a presença da psicoterapia sistêmica, a partir do caminho iniciado por
Sluzki. Muitos profissionais iniciaram seus treinamentos no
MRI, no Ackerman Institute, de Nova York, ou na Philadelphia
Child Guidance Clinic (Weissmann, 1999). Enquanto isso, a
Acta se ocupava de publicar os boletins, editais de cursos e chamadas para congressos nacionais e internacionais, assim como
273
Clio-Psyché: Instituições, História, Psicologia
as diversas experiências e contribuições que se promoviam do
modelo estadunidense. Não obstante, o campo disciplinar denotava maior heterogeneidade, ao serem implantadas as contribuições europeias em terapia familiar, com suas próprias redes
de implantação, entre elas a Terapia Familiar, revista fundada
na Argentina, em 1978, e primeira publicação em língua espanhola sobre a especialidade. Desse modo, embora, no final dos
anos 70, mudem os atores, as instituições, as publicações e os
contextos de formação, daquilo que já nos 80 era expressamente uma especialidade, os caminhos da implantação não deixam
de nos acompanhar até os dias atuais.
Referências
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schizophrenia. Behavioral Science 1: 254-64. [Em castelhano:
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Berenstein, I. 1968. El grupo familiar. Proceso psicoterapéutico y encuadre. Acta Psiquiátrica y Psicológica de América Latina 15:
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Bertrando, P. & Toffanetti, D. 2004 [2000]. Historia de la terapia
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13
Modelos de psicologia e perfis de psicólogos
na UBA e na UNLP.
Incidência de publicações e editoras em cursos
introdutórios à psicologia: 1957-19821
María Andrea Pineda
Introdução
Em estudos anteriores, problematizamos a formação do
psicólogo na Argentina, nas etapas iniciais do processo de profissionalização nas universidades (Piñeda, 2012a, b). Destacamos as dificuldades políticas das primeiras três décadas, após a
criação dos primeiros cursos, assim como as limitações econômicas e de recursos humanos capacitados, de modo a projetar
socialmente um papel de psicólogo científico e profissional que
fosse sólido, coerente e eficaz em resposta às demandas sociais.
Nesse sentido, registramos evidências de certo viés clínico, predominantemente psicanalítico, no traçado dos primeiros planos de estudo das faculdades de psicologia, o que deixava importantes áreas vagas para o exercício profissional e a pesquisa
científica (Hereford, 1966; Chaparro, 1969; Saforcada, 1969;
Azcoaga, 1970; Barrionuevo & García Marcos, 1975; Knobel,
1975; Ardila, 1979; Horas, 1981). Do mesmo modo, demonstramos que nas épocas de maior crise política e institucional,
as políticas universitárias para a pesquisa e as publicações no
campo da psicologia se viram mais debilitadas. No primeiro
quarto de século das faculdades de psicologia, a produção científica de seus docentes era escassa e apresentava baixa repercus-
1. Tradução do espanhol ao português realizada por Bethania Guerra de Lemos. Fontes de financiamento: Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas (CONICET) / Secretaría de Ciencia y Técnica de la Universidad Nacional de San Luis
(UNSL): Projeto de Pesquisa “Incidencia de publicaciones periódicas y colecciones editoriales de psicología en la formación del psicólogo en Argentina: 1954-1984”, dirigido
pelo Dr. Hugo Klappenbach (Pesquisador Principal do CONICET).
279
Clio-Psyché: Instituições, História, Psicologia
são internacional. Publicava-se predominantemente em meios
locais (órgãos de universidades e associações profissionais), reforçando o referido modelo orientado à clínica (Piñeda, 2012a).
Nesse contexto, interessa-nos analisar o processo de recepção e de construção de modelos de psicologia e perfis de
psicólogo nas universidades argentinas. Estudaremos especificamente dois dos cursos de psicologia que mais produzem psicólogos diplomados: o da Universidad Nacional de La Plata
(UNLP) e o da Universidad de Buenos Aires (UBA), ao longo do
período inicial compreendido entre 1957 e 1982. Indagaremos
a incidência de publicações e de coleções editoriais no estabelecimento de conteúdos dos cursos introdutórios à psicologia.
Método
Trabalharemos a partir de uma perspectiva historiográfica, de inspiração sociobibliométrica, na qual combinamos uma
análise quantitativa e uma qualitativa. Como fonte primária
principal, utiliza-se uma amostra não probabilística de programas de cursos introdutórios à psicologia da UBA e da UNLP, no
período 1957-1982. Os programas da UBA foram publicados
na página eletrônica da Faculdade de Psicologia (“Arquivo de
programas anteriores”, desde 1967). Infelizmente não dispomos dos primeiros programas para inclui-los na amostra, embora conheçamos trabalhos sobre esses cursos, em tal período
(Rossi et al., 2001; Leibovich de Duarte, 2008). Os programas
da UNLP foram entregues pela secretaria acadêmica da Faculdade de Psicologia. Incluem-se todos os programas encontrados.
280
Modelos de psicologia e perfis de psicólogos na UBA e na UNLP
Tabela 13.1. Resumos das amostras analisadas das disciplinas
Introdução à Psicologia, Psicologia Geral e Psicologia I e II, na
UNLP e na UBA, entre 1957 e 1982.
UNLP
12 programas encontrados; 11
com referências bibliográficas.
Anos: 1959;1964;1967-72; 1975;
1977-8; 1980.
UBA
13 programas encontrados com
referências bibliográficas.
Anos: 1967, 1970-3, 1975-82.
8 Docentes encarregados dos cursos:
11 Docentes encarregados dos cursos:
1959 e 1964: Luis María Ravagnan
1967: Virginia Cornalba
1967-8: Luis Felipe García de Onrubia
1970 e 1972: Friedrich Kauffman
1969, 1978 e 1980: Armando Delucchi
1971: Francisco González Ríos
1970-1: Mario Golder
1972: Irma Morosini de Tryssac
1972: Nilda Pérez de Pastorino
1973: Antonio Caparrós
1975: Celia Paladino
1975: Guillermo Stefah
1977: Francisco González Ríos
1976: Mariano Castex
1976-7: Daniel Gómez Dupertuis
1978: Marta Kitay
1979-82: Martha Ulla
1980: Humberto Bono
Para a análise sociobibliométrica, as referências bibliográficas foram previamente armazenadas em uma matriz de dados
(programa Excel 2003, do Microsoft Office), processados posteriormente com ajuda do programa SPSS Statistics 17.0, comumente utilizado nesse tipo de análise. Foi feita uma relação
dos autores, obras e editoras de maior incidência nos cursos, de
modo a explorar as perspectivas teóricas privilegiadas no período, assim como o papel de diversas editoras na divulgação de
obras originais e traduções.
Resultados
Em primeiro lugar, em termos puramente descritivos, destacamos que a amostra de programas analisados da UNLP so281
Clio-Psyché: Instituições, História, Psicologia
mava 515 referências, 186 autores, 257 obras e 106 editoras.
Por sua vez, a amostra da UBA alcançava 622 referências, 233
autores, 354 obras e 104 editoras.
Nas duas amostras, foram encontradas obras predominantemente em espanhol (UNLP: 94%; UBA: 93%). Na UNLP,
o francês foi o segundo idioma mais comum (5%), seguido do
inglês (1%); registrou-se uma única obra em alemão e outra,
em latim (0,2% cada). Com relação à origem das obras, 50%
foram publicadas na Argentina; a metade restante correpondia
a originais e traduções procedentes da Espanha (24%), México (15%), França (6%), EUA (2%), Uruguai (2%), Inglaterra
(1%) e Cuba (0,2%).
Na UBA, o inglês foi o segundo idioma mais comum (5%),
seguido do francês (2%); registrou-se um único título em alemão (0,2%). Com relação à origem das obras, 62% foram publicadas na Argentina; o restante correspondia a obras procedentes da Espanha (18%), México (11%), França e EUA (4%
cada), Inglaterra (1%), Uruguai (1%) e Alemanha (0,2%).
A maioria das obras citadas nas duas universidades era
de traduções (UNLP: 83%; UBA: 78%). Em percentuais menores estavam as obras escritas no idioma original dos autores
(UNLP: 10,6%; UBA: 13,8%), além de materiais mimeografados (UNLP: 2,3%; UBA: 6,4%).
Salta aos olhos uma primeira conclusão. A Argentina era,
nesse período, um país “consumidor”, mais do que “produtor”
de conhecimento científico psicológico. Ao mesmo tempo, o público consumidor argentino consideraria a Espanha e o México
em uma posição similar, por seu papel na difusão de traduções.
Tais países orientavam seu interesse para a psicologia produzida na Europa (França, Alemanha, Rússia [ex-URSS], Inglaterra) e nos Estados Unidos, como analisaremos mais adiante.
282
Modelos de psicologia e perfis de psicólogos na UBA e na UNLP
Tabela 13.2. Variação no percentual de obras traduzidas, segundo o país de origem.
Procedência
Argentina
México
Espanha
Outros
UNLP
55,14%
14,01%
24,29%
6,51%
UBA
59,47%
19,66%
18,48%
2,30%
Assim, metade das obras citadas nas duas universidades
era de procedência estrangeira. No cômputo total, cerca de
80% das obras eram traduções. Estudos prévios indicam uma
baixa produção nacional em psicologia, por parte de quem
ocupava cadeiras nas faculdades de psicologia desse período
(Piñeda, 2012a); desse modo, também podemos concluir que a
produção nacional em psicologia tinha uma incidência relativa
baixa nos cursos de graduação.
Notamos, portanto, que os autores locais foram citados
muito escassamente. Menor ainda foi a incidência de autores
docentes em disciplinas de psicologia produzindo obras no contexto universitário (projetos de pesquisa, institutos, editoras
universitárias etc.) (Piñeda, 2012a). Em todo caso, o próprio
docente encarregado da disciplina recorria com frequência à
autocitação, não raras vezes, de fichas de aula mimeografadas.
Entre os docentes que escapavam da autocitação estavam José
Bleger, David Liberman e Nuria Cortada de Kohan (Rossi et. al.,
2001), ou, em alguns casos, Luis María Ravagnan (Klappenbach, 2009), todos autores de obras muito difundidas.
283
Clio-Psyché: Instituições, História, Psicologia
Tabela 13.3. Docentes que são também autores de obras usadas
em disciplinas de psicologia.
UNLP
José Bleger
Berta Braslavsky
Felipe García de Onrubia
Ricardo Musso
Armando Delucchi
UBA
José Bleger
David Liberman
Luis M. Ravagnan
Nuria Cortada de Kohan
Antonio Caparrós
Friedrich Kaufmann
Marta Ulla
Francisco González Ríos
Irma Morosini
Algumas editoras nacionais e outras estrangeiras se destacam pela incidência de obras referenciadas nos programas.
Nesse aspecto, as amostras da UNLP e da UBA se comportaram
de maneira diferente. Ainda que em ambos os casos a editora
de maior incidência tenha sido a mesma (Paidós), o percentual
variou bastante: 35,84% na UBA, 18,4% na UNLP. Cabe ressaltar que um dos proprietários da Paidós, Jaime Bernstein, foi
docente e diretor do departamento de Psicologia da UBA, além
de autor, editor e autor dos prólogos de um grande número
de obras de outros docentes da mesma universidade. Sabemos
ainda que a Paidós conseguiu desbancar a Kapelusz, seu principal concorrente no mercado editorial no campo da psicologia
(Klappenbach, 2001). Sendo assim, sua incidência na seleção
de obras merece particular atenção.
Por sua vez, enquanto a editoria da UNLP incidia com
apenas 2,2% das obras utilizadas na UNLP; na UBA, a segunda
maior incidência (22%) foi justamente da editora da própria
universidade (Eudeba, além de outras dependências administrativas). Sob a direção de Boris Spivacow, professor de matemática com larga experiência na indústria editorial, a Eudeba
se caracterizou , entre a sua fundação (1958) e a intervenção
284
Modelos de psicologia e perfis de psicólogos na UBA e na UNLP
militar nas universidades (1966), por uma prolífica política editorial, o que sem dúvida em muito contribuiu na formação de
psicólogos. É bom registrar que a Eudeba tinha como missão
a renovação bibliográfica no âmbito acadêmico, priorizando
a produção e a circulação científica nacional, a tradução de
obras estrangeiras e a divulgação científica. Na UNLP, as obras
da Eudeba representaram 4,3% das referências, com destaque
para o livro La personalidad, de Filloux (1962; reeditado em
1964, 1971, 1972, 1977), cuja leitura era quase obrigatória. O
autor, reconhecido filósofo e pedagogo francês, esteve várias
vezes na Argentina. A primeira foi em 1968, quando participou
do conturbado 3º Congresso Argentino de Psicologia, celebrado em Rosario (Ovide Menin, comunicação pessoal, em junho
de 2010).
As demais editoras nacionais e estrangeiras exibiram uma
distribuição parecida nas duas universidades. As nacionais oscilaram entre 2,7% e 3,9%, na UNLP; e entre 1,4% e 4,8%,
na UBA; tratando-se, em ambos os casos, das mesmas editoras
(Kapelusz e Proteo, respectivamente). A incidência de editoras
estrangeiras variou de 3,5% a 6,6%, na UNLP; e de 4,44% a
8,51%, na UBA.
Ao observar os temas das obras citadas, é possível estabelecer dois grandes grupos. O primeiro, em geral editado por importantes editoras espanholas (Aliança, Aguilar; Gredos, Herder, Labor, Morata), francesas (Presses Universitaires de France,
PUF) e mexicanas (CECSA, Diana, Grijalbo, Interamericana,
Trillas), é constituído de livros-texto (e.g., os manuais de David
Katz, David Kretch, Richard Crutchfield, Joseph Nuttin, Sergey
Leonidovich Rubinstein, James Whittaker etc.) e coleções sobre
escolas psicológicas (e.g., as Obras completas de Freud). O segundo grupo, editado principalmente por editoras argentinas
(Paidós, Eudeba, Proteo), uruguaias (Pueblos Unidos) e uma
mexicana (Fondo de Cultura Económica, FCE), é constituído
de obras voltadas para temas ou processos psicológicos específicos (e.g., Rubinstein, 1960; Anzieu, 1961; Nuttin, Piéron,
Buytendijk, 1965; Anastasi, 1970 etc.). Neste último grupo,
285
Clio-Psyché: Instituições, História, Psicologia
são frequentes as referências a títulos da Paidós (e.g., Dufrenne,
1959; Allport, 1961) e da Kapelusz (e.g., Nuttin, 1968) relacionados a problemas de personalidade, um conceito de grande
interesse como tema unificador da psicologia.
Tabela 13.4. Editoras de maior incidência, de acordo com o percentual de obras usadas em disciplinas introdutórias de psicologia.
Editoras
Nacionais
Estrangeiras
UNLP
Paidós (18,4%)
Eudeba (4,3%)
Kapelusz (3,9%)
Proteo (2,7%)
UNLP (2,2%)
UBA
Paidós (35,84%)
DP/DPP/DPFL (13,16%)
Eudeba (7,84%)
Proteo (4,8%)
Kapelusz (3,36%)
Psiqué (2,52%)
Ateneo (1,4%)
Amorrortu (1,4%)
PUF (6,6%)
Grijalbo (5,4%)
FCE (4,8%)
Morata (4,1%)
Herder (3,5%)
FCE (8,51%)
Interamericana (8,51%)
Biblioteca Nueva (6,39%)
PUF (5,55%)
Scientia (4,81%)
Morata (4,44%)
Mostraremos separadamente a incidência de autores estrangeiros e linhas temáticas na UBA e na UNLP, ressaltando
os aspectos comuns e os traços que as diferenciam.
O caso da UNLP
No caso da UNLP, as evidências indicam que, no período analisado, houve preferência em favor de autores franceses,
francófonos ou procedentes de países que, na primeira metade
do século XX, estiveram sob a influência cultural francesa (Bél286
Modelos de psicologia e perfis de psicólogos na UBA e na UNLP
gica e Suíça). Esse resultado não é estranho, dado que, no referido período, a leitura de textos francófonos era comum. Por sua
vez, esses autores podem ser arranjados em três grandes grupos.
Em primeiro lugar, dois autores do campo da filosofia:
Bergson (1925, 1944, 1953; citado por Ravagnan) e Sartre
(1938, 1959; citado por Ravagnan, Delucchi e Pérez Pastorina).
Em segundo lugar, alguns autores do campo da clínica, quase
todos citados por Ravagnan e em alguns casos por Delucchi e
Paladino. Por exemplo, o clássico Janet (1889; 1948), além de
alguns psicanalistas, como Lagache (1959; e fichas do Departamento de Psicologia da UNLP), Anzieu (1961) e Laplanche
(1968).
Em terceiro lugar, um grupo maior de autores identificados com uma psicologia experimental, ligados ao estudo da
personalidade; em alguns casos, com abordagens psicotécnicas,
em outros, com enfoques socioculturais e também com estudos
comparados. Alguns consideram que essa tradição teve início
com Henri Piéron (Gondra, 1999). Outros a identificam com
“Paris V”, em contraposição a “Paris VII”, de orientação clínica,
pela polarização de temas de pesquisa e autores que se encontraram nessas duas faculdades da Universidade de Sorbonne
(Eisenbruch & Eisenbruch, 2000).
O comportamentalismo francês também foi citado, assim
como o estudo da conduta à francesa (Dagfal, 2002). Entre eles,
destacamos Piéron (1948, 1960, 1962), autor referenciado por
quase todos os docentes. Jean Piaget, que em 1919 estudou problemas da inteligência com Piéron, foi introduzido por Golder,
em 1971 (Piaget, 1966, 1971), sendo a partir de então citado
por todos os demais docentes. A leitura de trabalhos de Paul
Fraisse (Fraisse & Piaget, 1963) − discípulo de Albert Michotte,
no Laboratório de Psicologia Experimental da Universidade de
Louvain, colaborador e posteriormente sucessor de Pieron, no
Instituto de Psicologia da Universidade de Paris − foi recomendada ao longo de todo o período em estudo. Paul Guillaume
(1937, 1949, 1951, 1959, 1966), formado nessa mesma escola,
foi citado por quase todos os docentes da amostra da UNLP, tan287
Clio-Psyché: Instituições, História, Psicologia
to por seu legado no campo da psicologia social, assunto sobre
o qual lecionou na Sorbonne, como pelo seu papel como introdutor da Gestalt e seus aportes a respeito de psicologia animal.
Como uma referência no campo da psicotécnica e da avaliação da personalidade, encontramos o texto de Pichot (1960)
sobre os testes mentais, talvez tão difundido como o de Piéron
(Klappenbach, 2001), embora só tenha sido citado por Ravagnan, e o livro Manual de psicología, de Delay & Pichot (1966),
citado por três professores.
Também registramos outros autores belgas, próximos
a Piéron, e, ao mesmo tempo, vinculados ao movimento no
entorno da Universidade da Louvain, de perspectiva holística
e experimental (Piñeda, 2005a, b), como é o caso de Nuttin
(1951, 1965, 1968) e Dwelshauvers (1934) (Siguan & Kirchner,
2001). O francês Chauchard (1963), também vinculado à Louvain, foi citado por Ravagnan e por González Ríos.
Outros autores franceses contribuíram, a partir de diferentes perspectivas no estudo da personalidade, nos cursos da
UNLP. Um deles foi Filloux, citado por Ravagnan, em 1964, e
que, após o referido congresso de Rosario, em 1968, passou a
ser citado por outros docentes. Por último, dois autores identificados com a dialética materialista: Wallon (1947, 1965; Rubinstein et al., 1965) e Zazzo (Teplov et al., 1968).
Além dos franceses, registramos um grande grupo de autores estadunidenses que tiveram um relativo peso nos cursos.
Dos clássicos representantes do funcionalismo, como James
(1947; citado por Ravagnan, Delucchi e Pérez Pastorino), até
o seu contraponto, com autores identificados como adversários, como o inglês Titchener (1963). O condutismo de Watson
(1955) foi citado por quase todos. No entanto, autores neocondutistas foram citados apenas por uns poucos professores.
Skinner (1970) foi referenciado por Delucchi e Tolman (1932),
apenas por Ravagnan. Por sua vez, encontramos representantes
da Terceira Força como Allport (1968), incluído nos conteúdos
por quase todos os docentes, enquanto Maslow (1967) só foi
levado em conta por Ravagnan. Do mesmo modo, Ravagnan,
288
Modelos de psicologia e perfis de psicólogos na UBA e na UNLP
González Rios e Deluchi incluíram o canadense Otto Klineberg
(1957, 1969).
Além de franceses e anglo-saxões, registramos, do final dos
anos 1950 até o início dos anos 1970, a recepção de psicologias russo-soviéticas, a partir das quais se abordava o estudo de
processos psíquicos superiores, como pensamento e linguagem,
com perspectivas dialéticas. Já em 1959 e 1964, observamos
entrevistas a Pavlov (1932) e Rubinstein (1963) por Ravagnan.
Em 1971, o professor Mario Golder citava Leontiev Smirnov
(1960) e Rubinstein (1959, 1963, 1965, 1967). Golder foi filiado ao Partido Comunista Argentino e era um estudioso sistemático dessa vertente psicológica. A professora Pérez Pastorino,
sua sucessora no curso, foi a primeira a ali introduzir Vygotsky
(1964), em 1972. Nesse aspecto, é preciso destacar o papel de
quatro editoras: Proteo e Lautaro, argentinas; Pueblos Unidos,
uruguaia; e Grijalbo, mexicana. Embora apenas duas delas
(Lautaro e Pueblos Unidos) fossem vinculadas a partidos políticos, as outras duas (Proteo e Grijalbo) tinham uma linha editorial francamente marxista.2 Definitivamente, essas quatro editoras promoveram a difusão de autores marxistas ou associados a
uma visão dialética, cujas referências encontramos na amostra.
Nesse sentido, Lautaro também editou trabalhos de franceses já
mencionados, Wallon e Zazzo, e os referidos de Piaget.
A incidência nos cursos da UNLP de obras de autores de
origem alemã-austríaca foi menor. Assim, Freud, ainda que não
pudesse estar ausente dos conteúdos de uma faculdade de psicologia em uma universidade argentina, obteve um baixo número
de citações na amostra. Embora às vezes as Obras completas
fossem referenciadas de modo geral, na versão editada pela
Biblioteca Nueva, em 1959, poucos textos específicos foram
2. Juan Grijalbo, exilado no México por causa da Guerra Civil espanhola, especializou-se na publicação de traduções de obras originalmente publicadas pela Academia
de Ciências da União Soviética, o que lhe renderia várias complicações políticas — ver
matéria “Muere a los 91 años Juan Grijalbo, editor de ‘best sellers’ y textos marxistas” http://elpais.com/diario/2002/11/23/cultura/1038006004_850215.html, de Xavier
Moret, publicada pelo El País, em 23/11/2002 (acesso em 18/7/2014.).
289
Clio-Psyché: Instituições, História, Psicologia
citados no curso introdutório à psicologia, incluindo Esquema de psicanálisis (Ravagnan, em 1959 e 1964; Paladino, em
1975; Delucchi, em 1978 e 1980); Lo inconciente (Ravagnan,
em 1959 e 1964; Delucchi, em 1969); El yo y el ello (Delucchi,
em 1969; Pérez Pastorina, em 1972; Paladino, em 1975); e La
Metapsicología (Pérez Pastorina, em 1972; Público, em 1975).
Ao mesmo tempo, os professores Ravagnan, Delucchi, González Ríos e Pérez Pastorino utilizaram um conjunto de fontes
secundárias para introduzir o pensamento freudiano — e.g.,
Thompson (1950), Lagache (1959), Hall (1964), Valmer (1966)
e Laplanche & Pontalis (1968). Também foram feitas citações a
obras de representantes de outras escolas psicanalíticas, como
Adler (1947, 1955), Jung (1935), Fromm (1961), além dos
franceses já mencionados. Entre os psicanalistas locais, apenas
García da Onrubia e Golder incluíram La psicología de la conduta, de Bleger, ao qual nos referiremos mais adiante.
O alemão Wundt, entretanto, grande “mito de origem da
psicologia moderna”, parecia ser mais conhecido pela versão
dos manuais, já que o seu trabalho original (Compendio de
psicología) só foi citado uma vez, por Pérez Pastorino, em 1972.
De modo semelhante, uma corrente tão reconhecida na
Argentina como a Gestalt foi mais difundida pela obra do francês Guillaume (1937, 1951; citado por Ravagnan, em 1959, e
por Delucchi, em 1969) do que pelos seus formuladores originais. Destes últimos, só registramos algumas referências a Wolfgang Köhler (1948) e a Kurt Koffka (1953), por Ravagnan,
Delucchi e Pérez Pastorino. Contribuindo com uma perspectiva
holística da personalidade, esse grupo de docentes também se
referiu a Lewin (1936) e a Stern (1957).
Quanto às psicologias inglesas, só mencionaremos dois
autores. O primeiro, Charles Spearman, cuja obra Las habilidades del hombre (publicada pela Paidós, em 1955) era recomendada por González Ríos. Este mesmo docente também se
referia ao comentário da obra de Spearman feito por García
de Onrubia (1949), Ensayo sobre la teoría de la inteligencia de
Spearman, que apareceu como uma publicação do Instituto de
290
Modelos de psicologia e perfis de psicólogos na UBA e na UNLP
Filosofia de Buenos Aires, da UBA. O segundo, Hans Eysenck,
cuja obra Estudio científico de la personalidad (Paidós, 1959)
foi referido em 1971 e 1972 por Golder e Pérez Pastorino.
Mais tarde, Golder destacou as contribuições de Eysenck para
os estudos da personalidade, sua ampla difusão na América
Latina e a polêmica despertada por sua visita a Buenos Aires,
onde suas teorias contrastavam agudamente com “o estereótipo psicológico na moda em nosso país” (Golder, 1984, p. 7).
Na Argentina, o pensamento de Eysenck foi introduzido em
meados dos anos 60, por Eva Mikusinski, a acadêmica local coordenadora da conferência citada por Golder (Piñeda, 2012b).
Em síntese, para explicar a incidência desse complexo grupo de autores na UNLP e o significado que adquire sua recepção na configuração de um modelo de psicologia e um perfil
de psicólogo, seria necessário retroceder meio século antes do
início das faculdades de psicologia. Se pudéssemos, como os arqueólogos, visualizar as diversas “camadas” de tradições, práticas e modelos psicológicos que tiveram vigência na Argentina
naquelas décadas, comprovaríamos superposições, fraturas e
continuidades. Encontraríamos, em primeiro lugar, a óbvia, embora tímida, conexão com a clínica e a psicopatologia francesas,
acolhidas na Argentina no começo do século XX (Klappenbach,
2006). Dessa mesma época datam os laboratórios de psicologia experimental, símbolo do prestígio e do rigor científico dos
laboratórios europeus. Essas práticas passaram pela peneira da
reação antipositivista das décadas de 1920 e 1930, com suas
grandes propostas sobre a natureza e a existência da pessoa
humana e a unidade e integridade da psicologia, nutridas de
correntes neokantianas, fenomenológicas, existencialistas, neotomistas e neosuaristas. Mais tarde, como uma síntese dialética,
registramos uma sólida tradição psicotécnica no estudo científico da personalidade, como matriz disciplinar independente da
filosofia e da medicina. Esta tradição teve a sua maior difusão
na década de 1940, tendo sido, em grande medida, uma porta
de entrada para a profissionalização da psicologia. Todas essas
tradições parecem ter composto a formação dos primeiros pro291
Clio-Psyché: Instituições, História, Psicologia
fessores dos cursos da UNLP. Em consequência, com a profissionalização da psicologia, nesse grupo de cursos parecia estar
sendo exposta uma psicologia concebida como o estudo científico da personalidade e inclusive do comportamento − em sentido integral e amplo −, que podia valer-se de recursos clínicos,
psicotécnicos ou de experimentos com controle de variáveis.
O caso da UBA
Por sua vez, a UBA mostrava um grande ecletismo e descontinuidade nos modelos de psicologia e nos perfis de psicólogo. Tais alterações pareciam ser sensíveis às transformações
político-institucionais e não parece ter havido muita unidade
entre o projeto educativo e a mudança docente ocorrida no
período em estudo.
Registramos, assim, durante a década de 1960, uma pluralidade teórica, a exemplo da UNLP. Estavam presentes os mesmo modelos experimentais-comportamentais, de raiz francesa,
descritos na UNLP, citando basicamente os mesmos autores:
Pieron, Guillaume, Fraisse, Piaget e Filloux, do qual se conheceram mais obras (Filloux, 1951, 1955, 1969). Em 1970, nessa
mesma vertente, foram acrescentados outros nomes: Wallon,
Nuttin, Michotte (Michotte et al., 1955) e Dumas (1948).
Dos autores da tradição clínica francesa, registrados na
UNLP, só se repete na UBA: Lagache. Ele e Bleger são os dois
autores psicanalistas citados em 1970; este último já havia sido
citado em 1967, como único autor psicanalista. José Bleger,
médico psiquiatra, membro da Associação Psicanalítica Argentina e ex-membro do Partido Comunista, foi o primeiro a
dar um curso de psicanálise em uma faculdade de psicologia
argentina, em Rosário, em 1959. Sua aula inaugural (Bleger,
1962) expunha várias ideias que talvez tenham servido de fundamento para uma longa tradição na formação de psicólogos.
Analisaremos duas delas.
A primeira tem a ver com a relação entre psicologia e psicanálise, e o estatuto epistemológico da psicologia. Para Bleger,
292
Modelos de psicologia e perfis de psicólogos na UBA e na UNLP
a psicologia é um ofício cujo fundamento pode ser a psicanálise,
já que o pensamento dinâmico pode se aplicar e explicar toda
realidade humana. A segunda se refere às funções do psicólogo,
seus alcances e os limites em relação ao campo médico. Ao
diferenciar a psicanálise clínica da aplicada, Bleger deixa bem
claro que a primeira − na qual se articulam teoria, prática e
técnica, e, portanto, é fonte de investigação e de conhecimento
− é competência dos médicos. Nessa hierarquia, os psicólogos
ficam com o segundo lugar, que é o de subordinação: a psicanálise aplicada. Depois da publicação de sua obra consagradora, Psicología de la conducta (1963), que se transformou em
um texto canônico, tornou-se o docente mais reconhecido da
UBA. Entre 1959 e 1961, ministrou a disciplina Introdução à
Psicologia, a qual infelizmente não pudemos incluir em nossa
amostra, pois o seu programa não foi conservado; mais tarde,
ministrou também as disciplinas Psicologia da Personalidade
e Higiene Mental (Rossi, et. al. 2001; Del Cueto & Scholten,
2004). Ainda assim, sabemos que a disciplina Introdução à Psicologia era ensinada basicamente de acordo com o esquema de
Psicología de la conducta (Bleger, 1961). Essa obra foi entendida como uma tentativa de síntese eclética. A partir da psicanálise e da dialética materialista, integrava visões psicológicas tão
díspares como o condutismo, o neoconductismo e a versão do
comportamento de Janet e Piéron. Citava tanto Merleau-Ponty
e o primeiro Foucault, como Skinner e Bergson, Sartre, Piaget
e Fromm. (Dagfal, 2000). Nos cursos que estamos analisando, o peso dessa obra foi superior ao da do próprio Freud, já
que foi citada por todos os docentes, chegando, em um dos casos (Stefah, em 1975) a ser o único livro-texto utilizado como
introdução à psicologia.
Em 1970 e entre 1976 e 1978, encontram-se referências
à Terceira Força com menções a Allport (1962) e à Psicologia
Cultural de Brunner (1958).
Embora naqueles anos também fosse lido o Tratado de
psicología experimental (1963), de Fraisse & Piaget, o professor Kaufmann introduziu, em 1970, a leitura de uma obra espe293
Clio-Psyché: Instituições, História, Psicologia
cificamente piagetiana, Psicología de la inteligencia, da editora
Psyché. Piaget continuou sendo lido durante todo o restante
do período, especialmente em 1972, com a professora Tryssac,
que propôs a leitura de outras obras, além da já citada, a saber:
Introducción a la psicolingüística (Proteo), Los estadios de la
psicología en el niño (Lautaro), La formación del símbolo en
el niño (FCE), Psicología y epistemología (EMECE) e Seis estudios de la inteligencia (DPFyL UBA).
Kaufmann também adicionou autores à abordagem dialética da escola russo-soviética. Introduziu a obra de Leontiev, El
condicionamiento y el aprendizaje (na versão francesa da PUF),
e a de Vygotsky, Thought and language (na versão inglesa da
Wiley, de 1962), que assim foi lida um ano antes do curso homólogo da UNLP. Com relação ao estudo das aptidões e do
pensamento, destaque para os trabalhos de Spearman (1955,
1956) ambos editados pela Paidós.
A partir de 1971, com o professor González Ríos, também
se observa uma maior incidência e diversificação de modelos
psicanalíticos. Freud, Bleger ou Lagache não são citados. Ao
contrário, aparecem Klein (1960), Isaacs (1930) e Spitz (1972).
Em 1972, com a professora Tryssac, reapareceram Lagache e
Horney; entre os autores locais, aparece agora o nome de Libernan (1962, 1970).
Em 1973, com o professor Antonio Caparrós, os conteúdos se impregnaram de um discurso político nacionalista e
latinoamericanista, vinculado à assunção do destino histórico
e ao compromisso social da sua prédica marxista (Del Cueto
& Scholten, 2004). É significativo encontrar, entre as referências aos textos de psicologia, o discurso do presidente Juan Domingo Perón, “La hora de los Pueblos”, publicado pela editora
espanhola Norte, em 1968. Caparrós foi membro do Partido
Comunista Argentino, tendo integrado, mais tarde, os quadros
políticos técnicos da esquerda peronista. Fundamentado epistemologicamente na dialética materialista, ele citava Vygotsky,
Rubinstein e Wallon. Entre os aportes ao estudo da personalidade, estava Filloux, ao mesmo tempo em que citava psicolo294
Modelos de psicologia e perfis de psicólogos na UBA e na UNLP
gias filosóficas, como Merleau Ponty, e modelos personalistas,
como os de Allport, Binswanger e Frankl. Também incluía enfoques experimentais, ao modo de Fraisse, Piaget e Guillaume.
Entre as contribuições psicanalíticas incluídas, introduziu as
primeiras leituras ao texto freudiano nos cursos desta amostra
(Esquema de psicanálisis e o capítulo introdutório de Interpretación de los sueños). Citou ainda Klein, Horney, Laplanche
& Pontalis e Bleger. Deste último, além do seu texto canônico,
incluía uma obra da qual ele próprio era coautor, Ideología e
psicología concreta, publicado em dois números consecutivos
dos Cuadernos de Psicología Concreta, em 1969. Nesse curso,
Caparrós também ofereceu as primeiras referências à antipsiquiatria, um artigo de Grimson, “Bases para la transformación
de la psiquiatría” (1972), publicado na Revista Argentina de
Psicología, e uma ficha de leitura de sua autoria, denominada
“Antipsiquiatría”.
Entre meados dos anos 70 e início dos 80 — durante, portanto, a ditadura militar –, esse discurso político desapareceu.
Voltou-se a registrar o comportamentalismo francês (Guillaume, Fraisse, Piaget). Permanecem as citações a Freud e foram
incluídos novos trabalhos de Spitz (1968, 1974), lidos até o
início dos anos 80. Apareceu Garma (1970) e, em 1978, foi
registrada a primeira menção a Lacan, em uma ficha de Marta
Kitay, intitulada “La família”.
Já nos anos finais do período estudado, Martha Ulla e
Bono em geral mantiveram essas linhas, embora se observe um
aumento nas citações de autores no campo da filosofia (Ortega
y Gasset, Sartre, Brentano, Dilthey, Scheler).
Observamos, portanto, nas décadas de 1970 e 1980, uma
progressiva irrupção do discurso político e ideológico, tornado
explícito em 1973, mas que depois se oculta, durante a ditadura. Por sua vez, o aumento no número de citações filosóficas e o
maior impacto da psicanálise, sobretudo blegeriana, para quem
a psicologia é uma prática (ou praxis) fundamentada na psicanálise, vão relativizando o discurso científico dos primórdios
da faculdade. Observa-se, na configuração do papel do psicó295
Clio-Psyché: Instituições, História, Psicologia
logo, um contraponto entre “cientista” e “agente de mudança
social”, o que sugere o destaque de uma cultura “humanista”
em nome da modernidade, a assunção do destino histórico e
do compromisso social.
Há um significativo aumento no número de citações a
textos mimeografados (fichas de aula sobre obras de outros
autores ou manuscritos dos próprios docentes) e uma correspondente diminuição nas citações a obras impressas. Trata-se,
evidentemente, de um indicador a ser levado em conta, tanto
na análise da formação acadêmica e produção científica dos
docentes como da qualidade da formação dos novos psicólogos.
Conclusões
Em resumo, se procuramos manter uma visão de conjunto
das recepções teóricas e práticas associadas às abordagens registradas nos conteúdos, é possível chegar à conclusão de que
ao longo do período estudado, nos cursos introdutórios à psicologia da UNLP, procurou-se construir um modelo de psicologia
científica e plural, aberta à agenda internacional, especialmente
a europeia. Tal fato se relaciona com o modelo fundacional
da UNLP, concebida como uma universidade moderna e cosmopolita (Klappenbach, 2009). Nesse sentido, pode-se inferir
que nos conteúdos dos cursos se privilegiava a transmissão de
práticas vinculadas a modelos experimentais, psicotécnicos e
genéticos, mais do que clínicos. Tem-se a impressão de que o
objetivo era formar um psicólogo cujo papel é o de um cientista,
com um campo de ação que ultrapassa amplamente a clínica e
a área da saúde. Quando se registra a incidência da dialética
materialista, esta está associada a enfoques científicos que enfatizam o papel da cultura na configuração da personalidade e
da ciência que a estuda.
Por sua vez, a UBA também evidencia uma abertura ao
pluralismo teórico e prático nos cursos introdutórios. Sendo
assim, marca-se uma oscilação entre a tradição científica-experimental e uma cultura humanista. A segunda vai sendo acen296
Modelos de psicologia e perfis de psicólogos na UBA e na UNLP
tuada e, em alguns momentos, aparece associada a um discurso
político-ideológico de esquerda. Nesse contexto, a renovação e
a “modernidade” são interpretadas como a assunção do contexto histórico-cultural. A psicologia configura-se como uma
prática baseada no olhar clínico e dinâmico, a partir do qual se
abre a outros campos sociais.
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301
Parte IV
Depoimento
entrevista:
14
Celso Pereira de Sá
Entrevista realizada durante o X Encontro Clio-Psyché — Instituições,
História, Psicologia, em 19/10/2012. | Entrevistadores: Alexandre Trzan Ávila e Filipe Degani-Carneiro | Transcrição da entrevista: Anderson Araujo Souza e Luiz Eduardo Veras Lopes Pontes.
Filipe Degani-Carneiro — Bom dia a todos. Meu nome é
Filipe Degani e me cumpre fazer uma apresentação inicial do
nosso depoente convidado. O professor Celso Pereira de Sá é
psicólogo pela UERJ, mestre e doutor em psicologia pela Fundação Getúlio Vargas e se destaca na história do curso de Psicologia da UERJ, onde atuou como professor efetivo de 1977
a 2011, ou seja, durante 34 anos, e ainda colabora como professor visitante. Além de sua atuação no ensino do curso de
graduação em Psicologia e no programa de pós-graduação em
Psicologia Social, do qual foi o primeiro coordenador, Celso
Sá foi diretor do Instituto de Psicologia, diretor do Centro de
Educação e Humanidades e vice-reitor desta Universidade.
Alexandre Trzan — Bom dia. Meu nome é Alexandre Trzan. Dando continuidade à apresentação do professor Celso Sá,
cabe ressaltar que a sua experiência profissional acadêmica se
concentra nos campos da análise do comportamento social, das
representações sociais e da memória social. Ele tem conduzido
e orientado pesquisas sobre os temas do controle e contracontrole sociais; da socialização do conhecimento científico; das
representações sociais da escola pública; da economia; de religiões afro-brasileiras e da exclusão social; da memória social do
descobrimento do Brasil, de regimes políticos brasileiros recentes — a Era Vargas, os Anos Dourados e o Regime Militar — e de
políticas públicas. É com grande prazer e honra que convidamos
o professor Celso Sá a juntar-se a nós nesta mesa. Obrigado.
Filipe Degani — Bom, professor, vamos “começar do início”. Nesse sentido, gostaria que o senhor falasse sobre sua
entrada na então UEG, ainda como aluno de graduação, na
década de 1960, e sobre os primeiros momentos daquele curso.
305
Clio-Psyché: Instituições, História, Psicologia
Celso Sá — Bom dia. Antes de qualquer coisa, eu queria
agradecer à coordenação do programa Clio-Psyché, à professora Ana Jacó, pelo convite para fazer esse depoimento. Eu não
tenho participado muito das atividades do Clio-Psyché, mas,
desde que ele foi criado, tenho torcido bastante pelo seu sucesso e isso tem dado certo. A primeira pergunta feita foi sobre
o início da minha trajetória na psicologia. Comecei a estudar
psicologia um pouco tarde, já com 26 anos, que é a idade em
que hoje em dia já se está pelo menos começando a fazer o
doutorado. Como eu tinha uma profissão e emprego, só podia estudar à noite e a UEG, a então Universidade do Estado
da Guanabara, era a única que oferecia o curso noturno de
Psicologia, mais ou menos à mesma época em que a Universidade Gama Filho também começou a fazê-lo. Pelo que eu me
lembro, resolvi estudar psicologia porque, nos anos 60, havia
uma editora no Rio de Janeiro, a Zahar, que publicava muitas
traduções importantes nessa área e eu me vi bastante atraído
por elas. Lembro-me de que o primeiro autor que eu passei a
ler em sucessivas obras da Zahar foi Erich Fromm, ou seja, eu
me interessei pela psicologia a partir da psicanálise de Erich
Fromm, uma psicanálise social, vamos dizer assim, já que ele
pertenceu à Escola de Frankfurt. Foi desse interesse que nasceu
o propósito de ingressar num curso regular de psicologia, o
qual, por indicação de um colega de trabalho, e já estudante de
psicologia, Helmuth Krüger, terminou por ser o da UEG. Algo
que eu acho interessante ressaltar é que a UEG propiciou a
pessoas como nós, que cumpríamos expediente integral de trabalho, a realização ou diversificação dos estudos de graduação.
Filipe Degani — Durante a trajetória do curso, como foi
seu contato com alguns professores de destaque na psicologia
da época, como o professor Hanns Lippmann, o professor Antonio Gomes Penna e o professor Eliezer Schneider?
Celso Sá — Você citou justamente os três grandes nomes
da psicologia no [estado do] Rio de Janeiro àquela época. Lippmann foi criador do curso da UEG, além da UFRJ e, depois,
também de outros, como o da UCP, em Petrópolis. Penna e
306
entrevista:
Celso Pereira de Sá
Schneider eram também professores da UEG, além de na UFRJ
e depois ainda na Universidade Gama Filho e na Faculdade
de Humanidades Pedro II. Foram os três professores que exerceram a influência mais significativa na psicologia do Rio de
Janeiro. Meu contato com o professor Lippmann foi algo reduzido, até porque, como todos os colegas, eu tinha um pouco de
medo dele, principalmente nas aulas que ele designava com forte sotaque alemão de “tirroteio”. “Tirroteio” envolvia perguntas rápidas que ele fazia sobre a matéria estudada e que deviam
ser respondidas também prontamente. Numa dessas ocasiões,
eu me lembro de que os colegas, por medo ou desejo de passar o tempo de forma mais amena, resolveram não ir à aula e,
como eu era o representante da turma, fiquei com a atribuição
de dar ao Lippmann alguma explicação para isso. Eu inventei
qualquer coisa, esperando ser logo em seguida também dispensado, mas ele disse: “Vamos à aula, então!” O jeito foi sentar e
ficar prestando atenção, mas, em pouco tempo, ele me perguntou: “Não vai anotar?” E eu fiquei uma aula inteira, sozinho
na sala, anotando os seus ensinamentos, excelentes por sinal.
Ele gostava de fazer coisas desse tipo. O Penna era uma figura
de extrema erudição, que me parece ter ficado gravada em toda
a psicologia do Rio de Janeiro e do Brasil. Suas aulas eram
sempre discursivas, dadas com uma fluência e capacidade de
articulação impressionantes. Ele nem se incomodava muito se
os alunos não prestassem atenção ao que era dito, porque mais
do que falar à turma ele estava “conversando” com o tema
da aula, discutindo com os autores de diferentes perspectivas,
construindo enfim um conhecimento. Eu tinha uma admiração
muito grande tanto pelo Lippmann quanto pelo Penna, mas o
professor com que eu tive um contato mais intenso, próximo
e produtivo foi o Schneider. A professora Ana Jacó disse até
uma vez que eu era o aluno preferido dele e, de fato, desde o
curso de graduação nós desenvolvemos um apreço mútuo, que
se estendeu durante a orientação que dele recebi no mestrado
e no doutorado e até o longo tempo em que convivemos como
professores colegas. Tive oportunidade mais tarde de relembrar
307
Clio-Psyché: Instituições, História, Psicologia
detalhes e circunstâncias do meu débito para com o Schneider e
do afeto que nos unia num livro de memórias da psicologia editado pela professora Ana Jacó1. Mas acho que não contei que
tudo começou numa apresentação que eu fiz na disciplina de
Psicologia Social, ministrada pelo Schneider. A UEG naquele
tempo funcionava na rua Haddock Lobo, em instalações precárias, cedidas pelo Colégio Lafayette ou até mesmo improvisadas. Além disso, havia falta de professores, greves como sempre
e volta e meia um novo problema. Eu tinha me preparado para
fazer uma apresentação na aula do Schneider, mas ela acabou
ficando para a semana seguinte; preparei-me novamente, mas,
por outra razão, ela foi novamente adiada; pela terceira vez voltei a me preparar e a apresentação também não houve. Somente
na quarta vez, quando eu já estava mais do que preparado, fiz
a apresentação e me saí tão bem que Schneider a reconheceu
como tendo sido “uma aula mesmo, de professor”.
Filipe Degani — A partir da convivência com esses mestres, logo houve sua entrada também na docência em psicologia. Como foi esse processo?
Celso Sá — Bem, a docência em psicologia, eu comecei em
1971, ao final do qual eu me formaria como psicólogo, mas,
como ao final de 1970 eu já tinha a licenciatura, pude começar a dar aulas na Universidade Católica de Petrópolis, por
indicação do Helmuth Krüger, que começara a lecionar lá a
convite do Lippmann e já era também professor da UERJ. Os
três “grandes mestres” haviam começado a compor os corpos
docentes de várias instituições nessa época, que representou
um “boom” de surgimento de cursos de psicologia aqui no Rio
de Janeiro. Assim, em 1972, fui também para a Faculdade de
Humanidades Pedro II — FAHUPE, a convite do Schneider, e,
em 1975, ingressei na Universidade Gama Filho, para a qual
o Penna recrutava sistematicamente seus melhores alunos no
curso de mestrado da Fundação Getúlio Vargas. Na UERJ, naquela época, não havia ainda concursos para professores, que
1. Jacó-Vilela, A. M., org. 2001. Eliezer Schneider. Rio de Janeiro: Imago.
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entrevista:
Celso Pereira de Sá
ingressavam igualmente por convite dos diretores de unidades
e de outras autoridades universitárias, de modo que a endogenia era muito grande no corpo docente. Alunos que se destacavam eram chamados a atuar como professores logo em seguida,
porque o curso ia se expandindo. No meu caso, eu passei seis
anos fora, na FAHUPE e na Gama Filho, tendo sido convidado a ingressar na UERJ somente em 1977, pela professora
Yonne Moniz Reis, então diretora do Instituto de Psicologia
e Comunicação Social.
Alexandre Trzan –Segundo consta na história do Instituto
de Psicologia e Comunicação Social, o senhor ocupou o cargo
de diretor justamente quando se deu a separação entre as duas
áreas e o Instituto de Psicologia foi então constituído. Consta
também que depois, já como diretor do Centro de Educação
e Humanidades, o senhor desempenhou um papel importante
na criação de um curso de mestrado no IP, que deu origem ao
nosso atual programa de pós-graduação em Psicologia Social.
Como foram essas experiências, num momento histórico que
costuma ser tido como crucial para uma mudança de rumos da
UERJ no cenário acadêmico nacional?
Celso Sá — Fazendo um retrospecto sobre a UERJ, cabe
reconhecer que ela demorou a se tornar o que chamamos de
uma verdadeira universidade, com pesquisa e produção de conhecimento. Por muito tempo, ela se dedicou exclusivamente
à formação profissional, por convicção mesmo dos dirigentes
de então. Excelentes professores, cuja memória é ainda cultuada, proporcionavam cursos de formação de profissionais
de alta qualidade. Era como se esta fosse a vocação natural
da UERJ, presente inclusive na oferta de cursos noturnos, e,
por isso, ela demorou a dar o salto para um maior envolvimento com a pesquisa e o ensino de pós-graduação. Eu acho
que um fator importante para isso foi a criação da nossa associação de docentes, em 1979, ou seja, dois anos depois de
eu ter ingressado na UERJ como professor. Era uma época
em que começaram a surgir essas associações de docentes em
várias universidades. O movimento aqui na UERJ teve uma
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Clio-Psyché: Instituições, História, Psicologia
forte reação da reitoria, que impediu a criação da associação
dentro da universidade na data em que nós tínhamos combinado. Fomos então, noventa e quatro professores, seus sócios
fundadores, criá-la fora da UERJ, em um salão alugado da
ABI — Associação Brasileira de Imprensa, noite adentro. Aos
poucos, a ASDUERJ se fez mais e mais presente na influência
sobre os destinos da UERJ, constituindo-se como uma espécie
de campo político-acadêmico que se mostrou bem-sucedido na
produção de um corte entre a antiga orientação de “escolão”,
como a caracterizávamos, e os esforços por se tornar de fato
uma universidade. Entendíamos que o caminho para isso era
a democratização na escolha dos dirigentes, acompanhando o
processo de redemocratização do país que então se desenvolvia.
Uma primeira eleição para reitor, em 1983, foi frustrada, mas,
no caso da Psicologia [para diretor], por força de diferentes circunstâncias, eu, que fui o mais votado, acabei sendo escolhido.
Daí em diante, entretanto, quanto à reitoria, as administrações
seguintes provieram do campo político-acadêmico inaugurado
junto com a ASDUERJ: a de Ivo Barbieri (1988-1991), a de
Hésio Cordeiro (1992-1995), a de Antonio Celso Alves Pereira
(1996-1999) e a de Nilcéa Freire (2000-2003), da qual eu fui
vice-reitor. Na primeira parte desses doze anos, foram criados
diversos cursos de pós-graduação na UERJ, dentre os quais um
mestrado no Instituto de Psicologia, em 1991, quando a minha
gestão como diretor do Centro de Educação e Humanidades
estava findando. Tínhamos então sete doutores no IP, mas nem
todos muito dispostos a se engajar na aventura de criar um
mestrado. Na ocasião, entretanto, a Fundação Getúlio Vargas
extinguiu dois de seus órgãos — o IESAE — Instituto de Estudos Avançados em Educação e o ISOP — Instituto Superior de
Estudos e Pesquisas Psicossociais — e vários professores muito qualificados ficaram disponíveis. Nosso então sub-reitor de
Pós-graduação e Pesquisa, Reinaldo Guimarães, me deu então
o aval para recrutar três deles para a Psicologia da UERJ. O
mecanismo consistia em trazê-los como professores visitantes,
para, depois, eles se efetivarem por concurso. Somando-os aos
310
entrevista:
Celso Pereira de Sá
nossos sete doutores, chegamos assim a uma massa crítica para
a criação do mestrado, em 1991, e, numa continuidade natural, para a do Doutorado, em 2001, no nosso atual programa
de pós-graduação em Psicologia Social. Como este retrospecto trouxe inicialmente a foco o papel da ASDUERJ, creio ser
justo concluí-lo dizendo que o campo político-acadêmico de
que tenho participado deixou de ter relação com essa entidade
sindical já há um bom tempo e que muitos de nós, inclusive eu,
dela nos desassociamos.
Filipe Degani — Agora vamos abordar outro lado da
sua trajetória como pesquisador, ou seja, gostaríamos que
o senhor falasse da sua inserção em pesquisa, em termos da
sua titulação e produção, da sua perspectiva teórica e do
desenrolar dessa trajetória.
Celso Sá — Bem, como eu já disse, nem sempre houve na
UERJ esse espírito de produção do conhecimento. No Instituto
de Psicologia, já nos anos 80, somente dois professores, Pedro e
Marise Jurberg, faziam pesquisa, no campo do comportamento
animal e de forma muito ligada à Fiocruz. E foi nessa ocasião
que eu comecei a fazer pesquisa, porque estava cumprindo meu
doutorado na Fundação Getúlio Vargas e este exigia a realização de uma pesquisa experimental, além do que a tese de doutorado deveria também conter alguma forma de pesquisa. Perguntei então aos meus alunos de Psicologia Social se estariam
interessados em colaborar comigo nessas pesquisas e consegui
formar um grupo de cinco auxiliares, dois dos quais até hoje
fazem parte dos meus projetos de pesquisa, assim como eu dos
deles: o professor Ricardo Vieiralves, nosso reitor, e Renato
Möller. A Psicologia da UERJ era tão desligada do mundo da
pesquisa científica que a maioria dos professores nem sabia da
existência dos encontros anuais da Sociedade de Psicologia de
Ribeirão Preto, a qual se transformou depois na Sociedade Brasileira de Psicologia. A partir de então, entretanto, começamos
a ir regularmente a Ribeirão Preto, a apresentar trabalhos, e
essa prática passou a se difundir no instituto, embora ainda de
forma tímida. Foi com a implantação da pós-graduação, com
311
Clio-Psyché: Instituições, História, Psicologia
certeza, que nós passamos a atuar de forma mais sistemática
na produção do conhecimento. Com isso veio um maior reconhecimento acadêmico da Psicologia da UERJ, tendo sido
o nosso programa de pós-graduação bem avaliado até pouco
tempo atrás, quando, por um engano administrativo, perdemos
o conceito cinco2.
Alexandre Trzan — Professor Celso, na sua trajetória nós
já vimos mencionado o behaviorismo e seus estudos no campo
das representações sociais. Como o senhor avalia sua contribuição tanto para o estudo do behaviorismo, talvez desmistificando ou quebrando preconceitos, quanto para as representações
sociais, pensando nas relações que o senhor pode desenvolver
com outros pesquisadores, aqui no Brasil, nessas duas áreas, e
como foi essa passagem da dedicação de um a outro campo?
Celso Sá — Vamos começar com o behaviorismo, que era
pouco estudado no Rio de Janeiro e bastante mais em São Paulo, Brasília e outros centros. Não tínhamos sequer na UERJ um
laboratório especializado na análise experimental do comportamento, de B. F. Skinner, quando eu aqui estudei. Mais tarde,
ele foi montado, mas posteriormente, por falta generalizada de
interesse, se desistiu de mantê-lo. Assim, eu quase que fui um
autodidata no estudo da filosofia do behaviorismo radical aqui
no Rio. Meu orientador era o Eliezer Schneider, que tinha de
fato uma vinculação com o behaviorismo, mas se tratava de um
outro behaviorismo, chamado de mediacional, que, a partir do
estudo dos estímulos ambientais e das respostas a eles dadas,
procurava inferir constructos internos ao indivíduo, como o
impulso e a força do hábito, que considerava indispensáveis
para a explicação do comportamento. O behaviorismo que me
interessou foi o de Skinner, que é chamado de behaviorismo
radical, porque não apela para a teorização de entidades internas, mas toma como suficiente o estudo dos efeitos do comportamento sobre a própria possibilidade de sua emissão no
2. Em 2013, de acordo com a avaliação trienal divulgada pela Capes, o referido programa de pós-graduação voltou a obter o conceito 5.
312
entrevista:
Celso Pereira de Sá
futuro. Eu gostei tanto de proposições como essa que na minha
dissertação de mestrado, sobre aspectos psicológicos do controle social, eu busquei articular uma noção da sociologia, o
controle social, hoje não muito explorada, com a noção básica
de controle do comportamento devida ao behaviorismo skinneriano. A psicologia social que eu fiz então, e procurei continuar
sempre a fazer, foi nesse sentido de aliar os conhecimentos da
psicologia e de outras ciências humanas e sociais. Embora eu
concorde com colegas que dizem não ser possível fazer psicologia social apenas com a psicologia, acredito que também não
se possa fazê-la sem a psicologia, como se vê em algumas incursões contemporâneas que procuram dispensar essa dimensão
psicológica. O behaviorismo radical foi minha paixão durante
bastante tempo, pois no doutorado, após um estudo aprofundado da obra de Skinner (li quase tudo o que ele escreveu e
que sobre ele foi escrito de importante), eu inovei com a tentativa de demonstrar sua aplicabilidade socialmente relevante.
Produzi uma cartilha de contracontrole social, interpretando
várias questões de relações sociais — como, por exemplo, uma
greve de trabalhadores — em termos skinnerianos e as analisando como oposições ao controle aversivo, Essa cartilha foi
avaliada por duas dezenas de militantes de partidos políticos,
sindicatos, associações de moradores etc. Meu interesse pelas
representações sociais deriva diretamente da importância que
eu dava ao behaviorismo ligado às questões humanas. O que
Skinner trazia de importante ali era o comportamento verbal e
o comportamento governado por regras. Só que as nuances e situações mais complexas do relacionamento social, pessoal, institucional ou político dificultavam a articulação com essa base
comportamental, enquanto se podia facilmente fazê-la com as
representações sociais. E foi crucial para o meu interesse pela
teoria das representações sociais a afinidade que percebi entre
ela e o behaviorismo radical, no que se refere à gênese social do
pensamento, em contraste com o cognitivismo de natureza inatista. Por exemplo, para um linguista famoso, Noam Chomsky,
a linguagem humana seria devida a um mecanismo de aquisi313
Clio-Psyché: Instituições, História, Psicologia
ção de linguagem hipotético, com um papel mínimo atribuído
aos processos de socialização. Já para Moscovici, o pensamento
que ele chamou de representações sociais é construído através
da interação social entre os indivíduos e os grupos sociais. Essa
gênese social era o que eu encontrava também em Skinner, tanto na aquisição do comportamento verbal quanto na forma de
comportamentos governados por regras, que outros chamam
de pensamento. A teoria das representações sociais3 se tornou a
parte a que dediquei mais tempo na minha carreira e, de fato, eu
sou tido como um dos principais autores nesse campo no Brasil.
Análises bibliográficas mostram que após os de Serge Moscovici,
Jean-Claude Abric e Denise Jodelet, os meus trabalhos são os
mais citados. Destes, os que têm tido maior impacto são: um
capítulo de introdução teórico-conceitual, no primeiro livro
brasileiro sobre representações sociais, organizado em 1993
por Mary Jane Spink; um livro sobre abordagem estrutural das
representações sociais, que foi objeto da minha tese de concurso para professor titular, em 1996, e, publicado como livro, foi
responsável pela entrada no Brasil desta teoria complementar à
teoria geral das representações sociais; e, finalmente, um pequeno livro com o título de “A construção do objeto de pesquisa
em representações sociais”, elaborado no âmbito do Programa
de Apoio à Integração entre a Graduação e a Pós-Graduação,
da CAPES, que se tornou um best-seller da EdUERJ e uma
referência praticamente obrigatória em todos os cursos e programas que se dedicam à pesquisa nas representações sociais.
Alexandre Trzan — O que a gente pode perceber é que o
senhor foi um grande articulador entre profissionais e instituições no campo das representações sociais. Como o senhor percebe esse movimento de articulação, de contato e de troca? O
que isso tem contribuído para a expansão e o desenvolvimento
do campo no Brasil?
Celso Sá — A respeito da expansão, nós devemos muito
3. Sá, C. P. 1998. A construção do objeto de pesquisa em representações sociais. Rio
de Janeiro: EdUERJ.
314
entrevista:
Celso Pereira de Sá
ao Rio de Janeiro, ao fato do Rio ser o Rio. Eu participei da
primeira das chamadas Conferências Internacionais sobre Representações Sociais, que hoje estão em sua 11ª edição, tendo
se tornado um importante instrumento de intercâmbio e contato entre pesquisadores de todas as partes do mundo. A primeira, em 1992, foi em Ravello (Itália) e, ao seu final, deveria ser
anunciado onde se realizaria a segunda, dois anos mais tarde.
Denise Jodelet já tinha me sugerido oferecer o Rio de Janeiro,
mas era complicado, pois, àquela época, a inflação brasileira
era altíssima e desafiava o sucesso de qualquer iniciativa do
tipo. Enfim, na hora em que alguma coisa tinha que ser dita,
eu cedi às pressões e fiz a oferta do Rio, pelo que recebi uma
intensa e contínua salva de aplausos. Quem não quereria vir ao
Rio do Janeiro, afinal de contas? Por sorte, em 1994 a inflação
baixou, sob o controle do Plano Real, e a II Conferência foi
um sucesso, tornando-se um marco importante para o prosseguimento da série de eventos, que contribuiu muito para a
formação de vínculos internacionais por parte dos pesquisadores brasileiros. Tão importante quanto isso para o desenvolvimento da teoria e da pesquisa foi o fortalecimento de vínculos
regionais, através das Jornadas Internacionais que, desde 1998,
acontecem no Brasil. Outro fator catalisador do intercâmbio
nacional, de que as representações sociais se aproveitam, tem
sido a ANPEPP — Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Psicologia, com seus 64 grupos de trabalho sobre
variados campos de estudo na psicologia, dos quais dois deles
se dedicam atualmente às representações sociais.
Filipe Degani — Em continuidade à sua incursão no campo das representações sociais, por favor, fale sobre seus trabalhos mais recentes da linha de memória social e, em especial,
das memórias de regimes políticos brasileiros.
Celso Sá — Vários colegas das representações sociais começaram a estudar a memória em função de uma retomada de
interesse generalizada por ela nas ciências humanas e sociais.
As produções clássicas sobre a memória coletiva do início do
século passado, após um período de eclipse, acabaram por des315
Clio-Psyché: Instituições, História, Psicologia
pertar um novo interesse, nos anos 80, por parte da sociologia.
Na psicologia social isso também aconteceu, tendo a professora
Denise Jodelet conduzido, em 1992, uma pesquisa internacional sobre as comemorações dos eventos de 1492, um dos quais
fora a descoberta da América. Oito países europeus e cinco latino-americanos faziam parte desse grupo, que nós integramos
pelo Brasil. Coube a mim, Renato Möller e um colega português, Jorge Vala, fazer a análise dos dados que se referiam à atribuição de causalidade, no âmbito da qual descobrimos que as
respostas dos participantes portugueses discrepavam daquelas
do grupo europeu em seu conjunto, enquanto as respostas dos
brasileiros discrepavam das do grupo latino- americano. Isso
porque, achamos, para portugueses e brasileiros as datas comemorativas importantes eram outras que não 1492. Em Portugal, o que se comemora é 1498, com a descoberta do caminho
marítimo para as Índias por Vasco da Gama, e 1500, como nós
também, com o descobrimento do Brasil, por Pedro Álvares
Cabral. Resolvemos então realizar uma pesquisa somente com
uma equipe brasileira, da UERJ, e uma portuguesa, do Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa, sobre a
comemoração dos 500 anos do descobrimento do Brasil, no
ano 2000. A partir de então, nos engajamos mais intensamente
com o estudo da memória social e vimos desenvolvendo um
sistema de análise da memória em termos conceituais, teóricos e metodológicos no âmbito da psicologia social, que temos
aplicado a períodos históricos mais recentes, como a Era Vargas, os Anos Dourados e o Regime Militar. Nossas publicações,
nos últimos dez anos, têm sido principalmente sobre estas que
chamamos de “memórias históricas”, mas temos estudado também memórias de instituições e de eventos impactantes únicos,
como o caso polêmico de um crime e seu julgamento ocorridos
no Brasil Império.
Alexandre Trzan — Professor Celso, esse momento é muito oportuno porque estamos comemorando os 50 anos da regulamentação da profissão de psicólogo. Dada a sua trajetória
profissional e acadêmica, tão rica, aqui explorada um pouco
316
entrevista:
Celso Pereira de Sá
por nós, o que o senhor poderia dizer sobre o caminhar, a evolução da profissão, dos profissionais e da academia? Se quiser,
pode deixar um recado ou uma lembrança aqui para a gente.
Celso Sá — Pergunta difícil, esta última! Não sei dizer
muito sobre a profissão porque eu atuei como professor praticamente o tempo todo. Fiz poucas incursões breves e não
muito bem-sucedidas na prática profissional. Desde o princípio
ganhei a vida dando aulas e fui assim me consolidando como
professor. Quanto à academia, eu acho que, pelos comentários
que fizemos aqui sobre a ANPEPP e sobre a UERJ, nós tivemos
um avanço considerável no país. Há com frequência manifestações de descontentamento em relação à academia (discursos
recorrentes sobre o “sucateamento da universidade” etc. etc.).
Mas eu acho que houve um progresso bastante razoável. Seria
desejável mais, com certeza, mas o patamar em que nós nos
encontramos não corresponde de modo algum ao caos que se
costuma anunciar. Concluindo, acho que o “recado” que eu
posso deixar para vocês é o seguinte. O que eu pude observar
ao longo de 45 anos (do ingresso como aluno à aposentadoria
definitiva) é que a psicologia, pelo menos como área de conhecimento acadêmico, no âmbito do que tem sido chamado de
“ciência normal”, tem avançado continuamente no Brasil e na
UERJ. E que tal avanço tem efetivamente contribuido para que
o homem (e a mulher) e a sociedade se tornem cada vez mais
conscientes de si mesmas. Isto não é pouca coisa.
Alexandre Trzan — Gostaria de agradecer sua entrevista
e sua disponibilidade de estar aqui e participar de X Encontro
Clio-Psyche e compartilhar de suas experiencias e conhecimentos com a gente e meu muito obrigado e de todo o Instituto.
Celso Sá — Sou eu que devo agradecer. Muito obrigado!
***
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Clio-Psyché: Instituições, História, Psicologia
Sobre os autores
Alexandre de Carvalho e Castro | É professor permanente
tanto do Programa de Pós-Graduação em Tecnologia quanto
do Programa de Pós-Graduação em Relações Etnicorraciais
do Cefet-RJ, possui doutorado em Psicologia Social (UERJ),
mestrado em Psicologia (UERJ) e mestrado em Tecnologia pelo
Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da
Fonseca. É membro do Grupo de Trabalho em História Social
da Psicologia, da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Psicologia (ANPEPP); e do grupo de pesquisadores
da Rede Ibero-americana de Pesquisadores em História da Psicologia.
Alejandro Dagfal | É psicólogo pela Universidade Nacional
de La Plata (UNLP), mestre e doutor em história (Universidade
de Paris VII) e pesquisador-associado do Consejo Nacional de
Investigaciones Científicas y Técnicas (Argentina). Foi professor-pesquisador de universidades francesas (Bretanha e Lyon),
professor convidado na École des Hautes Études en Sciences
Sociales e na UNLP. Atualmente é professor na Universidade
de Buenos Aires. É autor de artigos sobre história da psicologia,
da psicanálise e da psiquiatria no século XX, além de dois livros, Entre París y Buenos Aires (Paidós, 2009) e Psychanalyse
et psychologie (Campagne Première, 2011).
Alexandre Trzan-Ávila | É psicólogo clínico, com um mestrado em Psicologia Social (UERJ) e formação em psicoterapia
na abordagem centrada na pessoa. Professor da Universidade
Santa Úrsula e da Universidade Estácio de Sá. Conselheiro efetivo do Conselho Regional de Psicologia (RJ) e conselheiro da
Comissão Estadual de Defesa dos Direitos Humanos do Estado
do Rio de Janeiro.
Ana Cristina Figueiredo | É psicóloga e psicanalista, com
mestrado em Psicologia (PUC-RJ) e doutorado em Saúde Co318
Sobre os autores
letiva (UERJ). Professora associada do Instituto de Psiquiatria
(UFRJ) e pesquisadora do CNPq.
Ana Maria Jacó-Vilela | É graduada em Psicologia (UFMG),
com mestrado em Psicologia (Fundação Getúlio Vargas) e doutorado em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano
(USP), além de um pós-doutorado em História e Historiografia
da Psicologia (Universidade Autônoma de Barcelona). É professora associada da UERJ, onde coordena o Clio-Psyché, um
laboratório de pesquisa dedicado à investigação da história dos
saberes psi no Brasil. Coordena a Rede Ibero-Americana de
Pesquisadores em História da Psicologia. Integra a comissão
científica de diversos periódicos e é parecerista para agências de
fomento em âmbito estadual, nacional e internacional.
Ana Maria Talak | É licenciada em Psicologia (Universidade de Buenos Aires) e Filosofia (Universidad del Salvador), com
doutorado em História (UBA). Leciona filosofia, psicologia e
pedagogia (Escuela Normal “Rafael Obligado”). É também professora titular de psicologia (UNLP) e professora adjunta de história da psicologia (UBA). Tem orientado numerosos projetos de
pesquisa, tanto na UNLP como na UBA. Atualmente é responsável pelo projeto “Psicología y orden social: desarrollos académicos y usos sociales de la psicología en la Argentina (1890-1955)”
(UNLP). Sua principal área de interesse é a história da psicologia, a historiografia e as teorias e problemas epistemológicos
da psicologia, sobre as quais tem publicado artigos em revistas
especializadas. Participou de diversas obras coletivas, incluindo
Historia de la vida privada en la Argentina (Taurus, 1999); Problemas centrales para la formación académica y el entrenamiento profesional del psicólogo en las Américas (Sociedad Interamericana de Psicología, 2001); Darwinismo social y eugenesia en
el mundo latino (Siglo XXI, 2005); e Derivas de Darwin (Siglo
XXI, 2010). Mais recentemente, foi editora do livro Las explicaciones en psicología (Prometeo, 2014) e coautora de Psicología,
niño y familia en la Argentina, 1900-1970 (Biblos, 2014).
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Clio-Psyché: Instituições, História, Psicologia
Annette Mülberger | É professora de história da psicologia
da Faculdade de Psicologia e do programa de pós-graduação
em história da ciência da Universidade Autônoma de Barcelona. É coordenadora do Grupo de Investigação em História da
Ciência e integra a direção do Centro de História da Ciência.
É autora de vários artigos em revistas especializadas. Foi editora do número monográfico sobre a história das aplicações
dos testes de inteligência (History of Psychology, v. 17, 2014) e
coeditora do número monográfico sobre a crise da psicologia
(Studies in History and Philosophy of Biological and Biomedical Sciences, v. 43, 2012).
Celso Pereira de Sá | É doutor em Psicologia. Professor
titular aposentado (UERJ); professor do programa de pós-graduação em Psicologia Social e coordenador do Laboratório de
Memórias e Representações Sociais, ambos na UERJ, além de
editor científico da revista Psicologia e Saber Social.
Cristiana Facchinetti | É psicóloga, com mestrado e doutorado em Teoria Psicanalítica e um pós-doutorado em História
das Ciências e da Saúde. É pesquisadora adjunta e professora
permanente do programa de pós-graduação em História das
Ciências e da Saúde (Fiocruz). É membro do programa Clio
-Psyché; da ANPEPP; da SIP; da IAAP; da Sociedade Brasileira
de História da Psicologia; da Rede Ibero-Americana de Pesquisadores em História da Psicologia; da Rede Ibero-Americana
em História da Psiquiatria; da ANPUH; e da SBHC.
Cristiane de Sá Reis | É graduada em História (UFF) e estudante de Arquivologia (UFRJ). Foi bolsista de iniciação científica durante a graduação em História, trabalhando em projeto
coordenado por Cristiana Facchinetti. É professora de História
da rede estadual (RJ).
Filipe Degani-Carneiro | É doutorando em Psicologia Social
(UERJ), pesquisador do Clio-Psyché e professor da UNISUAM.
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Sobre os autores
Florencia Adriana Macchioli | É licenciada em Psicologia
(UBA), com especialização em Psicoterapia Familiar (Universidade Maimónides) e doutorado em Medicina (UBA), cursando
atualmente uma especialização em Clínica Sistêmica (Instituto
Argentino de Terapeutas Relacionales). É professora adjunta de
história da psicologia e de psicologia (UBA). É autora de diversos artigos técnicos e capítulos de livro, sendo atualmente
responsável pelo projeto de pesquisa “Conocimiento, prácticas
y valores en la historia de la psicología y del psicoanálisis en la
Argentina”.
Francisco Teixeira Portugal | É pesquisador do programa
de pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal do
Rio de Janeiro.
Hugo Klappenbach | É doutor em Psicologia. Professor
titular da Universidade Nacional de San Luis (Argentina), pesquisador principal do Consejo Nacional de Investigaciones
Científicas y Técnicas (Argentina) e presidente eleito da Sociedade Interamericana de Psicologia (2013-2015).
Jane Araújo Russo | É doutora em Antropologia Social
(UFRJ). Professora associada do programa de pós-graduação
em Saúde Coletiva (UERJ). Publicou O mundo Psi no Brasil
(Zahar, 2002) e Corpo contra a palavra (Ed. UFRJ, 1993), além
de ter sido uma das organizadoras das coletâneas Duzentos anos
de psiquiatria (Relume Dumará, 1993) e Psicologização no Brasil (Contra Capa, 2005). É coordenadora editorial do Centro
Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos (UERJ).
Lucía A. Rossi | É doutora em Psicologia e professora titular de História da Psicologia (UBA). Além de atual vice-diretora
da Faculdade de Psicologia (UBA), já assumiu diversas outras
responsabilidades administrativas. É autora de livros e artigos
científicos na área de história da psicologia.
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Clio-Psyché: Instituições, História, Psicologia
María Andrea Piñeda | É pesquisadora do Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas (Argentina) e
professora na Faculdade de Psicologia da Universidade Nacional de San Luis, onde também dirige o Museu de História
da Psicologia. Autora de publicações nos campos de história
da psicologia e formação do psicólogo, temas sobre os quais
também orienta ou co-orienta projetos de pesquisa, além de
monografias e teses.
Marina Massimi | É graduada em Psicologia (Universidade
de Pádua, Itália), com mestrado e doutorado em Psicologia Experimental (USP). É professora titular da Universidade de São
Paulo. Sua principal área de atuação é a história da psicologia.
É presidente da Sociedade Brasileira de História da Psicologia.
Rogério Centofanti | Bacharel em Psicologia e pesquisador
do programa Clio-Psyché (UERJ).
Saulo de Freitas Araujo | Professor de História e Filosofia
da Psicologia na Universidade Federal de Juiz de Fora, onde
também é diretor do Núcleo de Pesquisa em História e Filosofia
da Psicologia. Autor, entre outras obras, dos livros O projeto
de uma psicologia científica em Wilhelm Wundt (Editora da
UFJF, 2010); Psicologia e neurociência (Editora da UFJF, 2011)
e Ecos do passado (Editora da UFJF, 2013).
Teresa Sousa Machado | É doutora em Psicologia do Desenvolvimento (Universidade de Coimbra, Portugal). Professora auxiliar de História da Psicologia e de Psicologia da Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação (Universidade
de Coimbra), além de sua atual subdiretora. Já exerceu outros
cargos administrativos, como o de coordenadora do mestrado
em Psicologia do Desenvolvimento.
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Este livro foi composto em fonte Sabon, tamanho 11, entrelinha 15 e
impresso pela Armazém das Letras, para a editora Outras Letras, em
setembro de 2014.
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