228 Erro médico: “Pré-conceito”? Henrique Josef* * Mestre e Doutor em Reumatologia - Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (SP). Perito Judicial. Longe vão, infelizmente, os tempos em que a relação médico-paciente se constituía num elo “sagrado” e que prevalecia acima de qualquer outra prioridade, tornando tal vínculo algo indestrutível, permanente e gratificante para ambos. O médico era um amigo do paciente, conhecia sua vida e, muitas vezes, era seu conselheiro e confidente. Com o advento de “novos tempos” para a Medicina, esse binômio foi ficando cada vez mais frouxo e negligenciado, o paciente deixou de se relacionar diretamente com “o seu médico” e ficou pertencendo à instituição que o atendia e, nestas condições, a sublimidade do ato médico tornou-se pálida e quebradiça... Surgiram os planos de saúde, os convênios médicos, as seguradoras e, por fim, “a indústria das indenizações” (muitas vezes fomentadas por advogados inescrupulosos, para dizer o mínimo) e o exercício da Medicina converteu-se, em muitas ocasiões, numa relação impessoal, fria, desumana, quando não de desconfiança recíproca. Lamentavelmente, o número de ações na Justiça Cível envolvendo médicos ou hospitais vem crescendo de forma assustadora; embora todas as especialidades médicas possam ser alvo de processos judiciais, são as especialidades cirúrgicas as que mais freqüentemente são acionadas. Em particular, ortopedistas, neurocirurgiões, cirurgiões plásticos e os ginecoobstetras são os mais visados por pacientes que, por não se sentirem satisfeitos com os resultados de uma cirurgia efetuada, tentam obter, na Justiça, uma indenização que repararia, financeiramente, o malogro de uma expectativa por eles almejada. Foi criada a instituição do assim chamado erro médico que, preliminarmente, deve ser criticada, pois tal denominação, por si só, já configura uma impropriedade, uma vez que pressupõe, a priori, ter havido uma falha técnica do médico na execução de um procedimento executado por um profissional devidamente habilitado para tal. Com freqüência, não são levadas em consideração as circunstâncias desfavoráveis em que o ato médico foi executado: inadequadas condições materiais e ambientais do local einstein. 2004; 2(3):228 onde tal procedimento foi efetuado, urgência do ato a ser praticado, insatisfação do indivíduo (paciente) com os resultados que ele esperava obter do ato médico por ele sofrido (mesmo que tal procedimento tenha sido executado de forma técnica correta), etc. É certo, por outro lado, que, por vezes, o profissional não tem o suficiente preparo técnico para o ato médico por ele realizado; outras vezes, no entanto, existe a imprevisibilidade de uma reação anômala do organismo frente a um determinado procedimento (por exemplo, idiossincrasia do paciente a um medicamento administrado). Na esteira dessa situação desconfortável e indesejável, as companhias de seguro não perderam tempo e, no afã de obterem maiores lucros, vêm tentando, com crescente ímpeto, a venda de seguros de responsabilidade civil aos médicos que, acuados no desempenho do seu exercício profissional, não raramente acabam por se render a tais investidas. Esses seguros - em geral, muito onerosos podem dar aos médicos que a eles aderem uma falsa sensação de segurança que, na prática, nem sempre corresponde à realidade dos fatos. Em inúmeros países da União Européia e na América do Norte (Estados Unidos e Canadá) esses seguros de responsabilidade civil têm sido vendidos em número crescente, ante as demandas judiciais que por lá proliferam. Como conseqüência óbvia, além da desconfiança com que os médicos encaram seus pacientes, surge o desalento com a carreira médica escolhida, fazendo com que inúmeros médicos, não raramente, desistam da profissão, outrora gratificante e enobrecedora. Além disso, como o custo de tais apólices de seguro é alto, encarece, evidentemente, o valor dos honorários profissionais que esses médicos são obrigados a praticar. Em nosso país, por ora, tais ações judiciais ainda são em relativo pequeno número e os próprios juízes ainda não estão adequadamente preparados para decidir, de forma inquestionável, quanto ao mérito da demanda judicial; mesmo os valores em jogo não costumam ser muito elevados. No entanto, com o crescente número de ações que têm sido impetradas e com seus valores sendo progressivamente maiores, a tendência é que tal cenário vá se tornando progressivamente desfavorável aos médicos. É evidente que um médico, em circunstâncias habituais, não pode ser acusado de ter agido com dolo (deliberada intenção de prejudicar a outrem), em relação a um determinado paciente. No entanto, um aspecto judicial freqüentemente abordado nas ações movidas por pacientes insatisfeitos com seus respectivos médicos e que costuma ser realçado pelos advogados 229 constituídos por esses pacientes é o que se refere à aplicação dos critérios de imperícia, imprudência e negligência, que, supostamente, teriam sido cometidas pelos médicos acusados nessas demandas jurídicas. A rigor, a caracterização da existência de uma ou mais dessas falhas técnicas deveria ser uma prerrogativa dos Conselhos Regionais de Medicina; porém, com uma certa freqüência, diferentes ações judiciais insistem que a atribuição de tais características poderia ser delegada aos juízes ou até mesmo aos peritos judiciais. Outro aspecto extremamente controverso e que cada vez mais vem crescendo em importância é o que se refere ao denominado dano moral. Embora sua conceituação ainda seja um pouco vaga e imprecisa, particularmente em nosso país, sua aplicação em diferentes tribunais vem sendo feita com crescente freqüência (em geral, em detrimento do médico acusado no processo). Com isso, o montante dos valores envolvidos cresce de forma extraordinária, contribuindo, ainda mais, para o aumento da demanda a esses recursos processuais. Quais seriam, portanto, as conclusões práticas que nós, médicos, poderíamos obter das considerações anteriormente expostas, dentro do cenário desalentador que se nos oferece? Apesar das crescentes dificuldades que enfrentamos para o livre desempenho de nossa (nobre) profissão, diferentes lições poderiam ser extraídas desses comentários, a saber: 1. Torna-se cada vez mais importante o interrelacionamento franco e amistoso entre nós, médicos, e nossos pacientes. É imperioso que resgatemos o sentimento de confiança que durante muitos séculos imperou nessa relação, com óbvias vantagens para ambas as partes envolvidas. Um paciente que confia e acredita na capacidade profissional e na sinceridade do médico que o assiste dificilmente irá acioná-lo judicialmente, em caso de insucesso de um tratamento ou procedimento instituído. 2. Cada médico deve informar ao paciente (e a seus familiares), com bastante clareza, o tipo de procedimento diagnóstico ou terapêutico a ser estabelecido, as vantagens e os riscos inerentes; assim, de forma razoável, o paciente estará habilitado para aceitar ou recusar tais medidas. Isto constitui o denominado consentimento informado e que deve ser descrito no prontuário do paciente, formalizando estar ele ciente das circunstâncias que envolvem a medida médica a ser adotada. Alguns médicos, impropriamente, exigem que tal consentimento seja assinado pelo paciente, na suposição de que tal assinatura poderá eximi-los de responsabilidade, em caso de eventuais demandas judiciais; tal exigência, além de antipática, é de pouco valor junto aos tribunais, pois pode ser interpretada como sendo uma medida de constrangimento, na eventualidade da recusa da assinatura. 3. Embora os Conselhos Regionais de Medicina sejam freqüentemente acusados pela mídia leiga como “entidades corporativistas”, é importante que prestigiemos essas Instituições, pois são elas que, de fato, defendem nossos direitos, especialmente em casos de acusações infundadas e levianas. 4. É necessário, também, que combatamos, junto com nossos Conselhos Regionais e demais Entidades Médicas, a crescente, lucrativa e injusta “indústria das indenizações”, através das quais indivíduos inescrupulosos tentam obter vantagens e “enriquecimento ilícito”, por meio de ameaças, constrangimentos ou ações judiciais contra médicos que, no afã de melhor atender seus pacientes, dando a eles o melhor de seus esforços profissionais, não percebem, ingenuamente, que estão sendo vítimas de manobras torpes e mentirosas, visando ao lucro fácil e desonesto. A simples observação das medidas anteriormente expostas - embora, infelizmente, nem sempre exeqüível na prática diária - poderá trazer inúmeras vantagens e satisfações no desempenho cotidiano da nossa profissão e, oxalá, trazer de volta, a nós, médicos, e aos nossos pacientes, a alegria e o reconhecimento pelo exercício de uma das mais augustas profissões que o ser humano pode escolher: a Medicina! Referências 1. Código Civil Brasileiro: Lei 10.406. Art.186. 2002; jan 10. 2. Conselho Federal de Medicina: Resolução nº 1.617. DOU, nº 136, Seção 1, 16/05/2001, p.21. 3. Superior Tribunal de Justiça: Súmula 37. einstein. 2004; 2(3):229