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Erro médico: “Pré-conceito”?
Henrique Josef*
*
Mestre e Doutor em Reumatologia - Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (SP).
Perito Judicial.
Longe vão, infelizmente, os tempos em que a relação
médico-paciente se constituía num elo “sagrado” e que
prevalecia acima de qualquer outra prioridade,
tornando tal vínculo algo indestrutível, permanente e
gratificante para ambos. O médico era um amigo do
paciente, conhecia sua vida e, muitas vezes, era seu
conselheiro e confidente.
Com o advento de “novos tempos” para a Medicina,
esse binômio foi ficando cada vez mais frouxo e
negligenciado, o paciente deixou de se relacionar
diretamente com “o seu médico” e ficou pertencendo
à instituição que o atendia e, nestas condições, a
sublimidade do ato médico tornou-se pálida e
quebradiça...
Surgiram os planos de saúde, os convênios médicos,
as seguradoras e, por fim, “a indústria das
indenizações” (muitas vezes fomentadas por advogados
inescrupulosos, para dizer o mínimo) e o exercício da
Medicina converteu-se, em muitas ocasiões, numa
relação impessoal, fria, desumana, quando não de
desconfiança recíproca.
Lamentavelmente, o número de ações na Justiça
Cível envolvendo médicos ou hospitais vem crescendo
de forma assustadora; embora todas as especialidades
médicas possam ser alvo de processos judiciais, são as
especialidades cirúrgicas as que mais freqüentemente
são acionadas. Em particular, ortopedistas,
neurocirurgiões, cirurgiões plásticos e os ginecoobstetras são os mais visados por pacientes que, por
não se sentirem satisfeitos com os resultados de uma
cirurgia efetuada, tentam obter, na Justiça, uma
indenização que repararia, financeiramente, o malogro
de uma expectativa por eles almejada.
Foi criada a instituição do assim chamado erro
médico que, preliminarmente, deve ser criticada, pois
tal denominação, por si só, já configura uma
impropriedade, uma vez que pressupõe, a priori, ter
havido uma falha técnica do médico na execução de
um procedimento executado por um profissional
devidamente habilitado para tal. Com freqüência, não
são levadas em consideração as circunstâncias
desfavoráveis em que o ato médico foi executado:
inadequadas condições materiais e ambientais do local
einstein. 2004; 2(3):228
onde tal procedimento foi efetuado, urgência do ato
a ser praticado, insatisfação do indivíduo (paciente)
com os resultados que ele esperava obter do ato médico
por ele sofrido (mesmo que tal procedimento tenha
sido executado de forma técnica correta), etc.
É certo, por outro lado, que, por vezes, o profissional
não tem o suficiente preparo técnico para o ato médico por
ele realizado; outras vezes, no entanto, existe a
imprevisibilidade de uma reação anômala do organismo
frente a um determinado procedimento (por exemplo,
idiossincrasia do paciente a um medicamento administrado).
Na esteira dessa situação desconfortável e indesejável,
as companhias de seguro não perderam tempo e, no afã
de obterem maiores lucros, vêm tentando, com crescente
ímpeto, a venda de seguros de responsabilidade civil aos
médicos que, acuados no desempenho do seu exercício
profissional, não raramente acabam por se render a tais
investidas. Esses seguros - em geral, muito onerosos podem dar aos médicos que a eles aderem uma falsa
sensação de segurança que, na prática, nem sempre
corresponde à realidade dos fatos.
Em inúmeros países da União Européia e na
América do Norte (Estados Unidos e Canadá) esses
seguros de responsabilidade civil têm sido vendidos em
número crescente, ante as demandas judiciais que por
lá proliferam. Como conseqüência óbvia, além da
desconfiança com que os médicos encaram seus
pacientes, surge o desalento com a carreira médica
escolhida, fazendo com que inúmeros médicos, não
raramente, desistam da profissão, outrora gratificante
e enobrecedora. Além disso, como o custo de tais
apólices de seguro é alto, encarece, evidentemente, o
valor dos honorários profissionais que esses médicos
são obrigados a praticar.
Em nosso país, por ora, tais ações judiciais ainda são
em relativo pequeno número e os próprios juízes ainda
não estão adequadamente preparados para decidir, de
forma inquestionável, quanto ao mérito da demanda
judicial; mesmo os valores em jogo não costumam ser muito
elevados. No entanto, com o crescente número de ações
que têm sido impetradas e com seus valores sendo
progressivamente maiores, a tendência é que tal cenário
vá se tornando progressivamente desfavorável aos médicos.
É evidente que um médico, em circunstâncias
habituais, não pode ser acusado de ter agido com dolo
(deliberada intenção de prejudicar a outrem), em
relação a um determinado paciente. No entanto, um
aspecto judicial freqüentemente abordado nas ações
movidas por pacientes insatisfeitos com seus respectivos
médicos e que costuma ser realçado pelos advogados
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constituídos por esses pacientes é o que se refere à
aplicação dos critérios de imperícia, imprudência e
negligência, que, supostamente, teriam sido cometidas
pelos médicos acusados nessas demandas jurídicas.
A rigor, a caracterização da existência de uma ou
mais dessas falhas técnicas deveria ser uma prerrogativa
dos Conselhos Regionais de Medicina; porém, com uma
certa freqüência, diferentes ações judiciais insistem que
a atribuição de tais características poderia ser delegada
aos juízes ou até mesmo aos peritos judiciais.
Outro aspecto extremamente controverso e que cada
vez mais vem crescendo em importância é o que se
refere ao denominado dano moral. Embora sua
conceituação ainda seja um pouco vaga e imprecisa,
particularmente em nosso país, sua aplicação em
diferentes tribunais vem sendo feita com crescente
freqüência (em geral, em detrimento do médico
acusado no processo). Com isso, o montante dos valores
envolvidos cresce de forma extraordinária,
contribuindo, ainda mais, para o aumento da demanda
a esses recursos processuais.
Quais seriam, portanto, as conclusões práticas que
nós, médicos, poderíamos obter das considerações
anteriormente expostas, dentro do cenário desalentador
que se nos oferece? Apesar das crescentes dificuldades
que enfrentamos para o livre desempenho de nossa
(nobre) profissão, diferentes lições poderiam ser
extraídas desses comentários, a saber:
1. Torna-se cada vez mais importante o interrelacionamento franco e amistoso entre nós, médicos,
e nossos pacientes. É imperioso que resgatemos o
sentimento de confiança que durante muitos séculos
imperou nessa relação, com óbvias vantagens para
ambas as partes envolvidas. Um paciente que confia e
acredita na capacidade profissional e na sinceridade
do médico que o assiste dificilmente irá acioná-lo
judicialmente, em caso de insucesso de um tratamento
ou procedimento instituído.
2. Cada médico deve informar ao paciente (e a seus
familiares), com bastante clareza, o tipo de
procedimento diagnóstico ou terapêutico a ser
estabelecido, as vantagens e os riscos inerentes; assim,
de forma razoável, o paciente estará habilitado para
aceitar ou recusar tais medidas. Isto constitui o
denominado consentimento informado e que deve ser
descrito no prontuário do paciente, formalizando estar
ele ciente das circunstâncias que envolvem a medida
médica a ser adotada. Alguns médicos, impropriamente, exigem que tal consentimento seja assinado
pelo paciente, na suposição de que tal assinatura
poderá eximi-los de responsabilidade, em caso de
eventuais demandas judiciais; tal exigência, além de
antipática, é de pouco valor junto aos tribunais, pois
pode ser interpretada como sendo uma medida de
constrangimento, na eventualidade da recusa da
assinatura.
3. Embora os Conselhos Regionais de Medicina sejam
freqüentemente acusados pela mídia leiga como
“entidades corporativistas”, é importante que
prestigiemos essas Instituições, pois são elas que,
de fato, defendem nossos direitos, especialmente
em casos de acusações infundadas e levianas.
4. É necessário, também, que combatamos, junto com
nossos Conselhos Regionais e demais Entidades
Médicas, a crescente, lucrativa e injusta “indústria
das indenizações”, através das quais indivíduos
inescrupulosos tentam obter vantagens e
“enriquecimento ilícito”, por meio de ameaças,
constrangimentos ou ações judiciais contra médicos
que, no afã de melhor atender seus pacientes,
dando a eles o melhor de seus esforços profissionais,
não percebem, ingenuamente, que estão sendo
vítimas de manobras torpes e mentirosas, visando
ao lucro fácil e desonesto.
A simples observação das medidas anteriormente
expostas - embora, infelizmente, nem sempre exeqüível
na prática diária - poderá trazer inúmeras vantagens e
satisfações no desempenho cotidiano da nossa profissão
e, oxalá, trazer de volta, a nós, médicos, e aos nossos
pacientes, a alegria e o reconhecimento pelo exercício
de uma das mais augustas profissões que o ser humano
pode escolher: a Medicina!
Referências
1. Código Civil Brasileiro: Lei 10.406. Art.186. 2002; jan 10.
2. Conselho Federal de Medicina: Resolução nº 1.617. DOU, nº 136, Seção 1,
16/05/2001, p.21.
3. Superior Tribunal de Justiça: Súmula 37.
einstein. 2004; 2(3):229
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