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TRABALHO, TEMPO LIVRE E LAZER: UMA COMPREENSÃO
ACERCA DAS VIVÊNCIAS COTIDIANAS DE TRABALHADORES
TERCEIRIZADOS DA INDÚSTRIA CALÇADISTA.1
Suzi Mara Freitas (Uni-FACEF)
Profª. Drª. Daniela de Figueiredo Ribeiro (Uni-FACEF)
1.
REFERÊNCIAL TEÓRICO
De acordo com Padilha (2000), o lazer pode ser entendido a partir de
duas vertentes, sendo estas o tempo e a atitude. Em relação ao tempo, é
possível caracteriza-lo como uma liberação das obrigações diárias, tal como já
foi descrito anteriormente. Quanto à atitude, pode ser descrita como uma
relação entre o sujeito e a prática vivenciada, dessa forma, até o trabalho pode
ser considerado como uma atividade de lazer.
Em adição, Gusella (1994) cita que o lazer como atitude seria a
satisfação pelo envolvimento com a atividade, salientado também que as
atividades que envolvem o trabalho podem ser consideradas como lazer, ou
semi-lazer, já que possibilitam o contato com os componentes de satisfação
pessoal. Entretanto, atualmente as ocupações profissionais normalmente
possuem enraizado o caráter de obrigatoriedade social e moral.
Sue (1991) apud Padilha (2000), garante que a sociedade se compõe
em “tempos sociais”, sendo estes, o tempo de trabalho, tempo livre, tempo
familiar, tempo de educação, entre outros tempos. Esses tempos se alternam,
de modo a fazer com que um tempo deixe de ser dominante para dar lugar a
outro. Essa autora denomina o fenômeno como “lei de sucessão dos tempos
dominantes”.
Dessa forma, Codina, 2002; Cunha, 1987; e Martinez, Santi, Toledo,
Zamora,1995 (apud Sarriera, Paradiso, Mousequer, Marques, Hermel e
Coelho, 2007) entendem que o tempo livre pode ser um espaço onde o
indivíduo dá vazão às suas expectativas, podendo assim escolher as atividades
na qual deseja realizar. O modo como o indivíduo desfruta o tempo livre está
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ligado à conjuntura social, cultural, econômica, ideológica e física na qual está
inserido, incluindo variáveis psicológicas individuais.
Entretanto, para Portuguez (2001), o tempo livre cada vez mais é
substituído e transformado em tempo de consumo. O tempo em que muitas
vezes era dedicado a atividades que ofereciam a satisfação pessoal foi
substituído por atividades que vinculam diversão e consumo, levando as
pessoas a procurar opções de divertimento em lugares onde recreação e lojas
se misturam.
Oliveira (2004) em seu artigo cita que a indústria do entretenimento,
considerada para muitos como sinônimo de lazer, está sendo reduzida e
sugestionada pelos meios de comunicação em massa, de maneira a
condicionar o público ao consumo de toda a espécie de bens e/ ou serviços.
Assim, “(...) a fabricação em série, a venda a crédito, abrem as portas
para os bens industriais, para a limpeza do lar com aparelhos eletrodomésticos,
para os fins de semana motorizados” (MORIN, 1967, p.72). Essas formas de
consumo deixam explicito que o lazer não é mais sinônimo de repouso,
recuperação física e nervosa, ou então participação coletiva em festas e
atividades, mas sim sinônimo de uma vida consumidora, onde o homem busca
constantemente uma auto-afirmação enquanto indivíduo privado.
Marcellino (1983), no entanto, observa aqui a preponderância do TER
em detrimento do SER. Nessa perspectiva, ele afirma que o lazer passa a ser
um elemento de reforço e não de reação contra a alienação do homem
contemporâneo, e, mais ainda, como uma rentável fonte de bens de serviço a
serem consumidos para alimentarem a lógica do mercado, passando a ser
nada mais que uma necessidade do sistema econômico.
Como todas as atividades de lazer implicam um gasto financeiro,
Gusella (1994) pontua que o impedimento de grande parte da população no
seu desfrute é, sem dúvida, os gastos envolvidos com transporte, ingressos,
além dos constrangimentos por parte de famílias carentes que levam seus
filhos ao parque e não estão preparadas financeiramente para comprarem as
guloseimas que seus filhos pedem. Assim, muitas famílias preferem ficar em
casa ou fazer visitas à parentes, que sair para um passeio ao ar livre. As
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crianças acabam tendo contato apenas com o ambiente doméstico e não
usufruem os benefícios culturais do lazer.
Para Camargo (1999), devido à carência de serviços públicos, o principal
instrumento de lazer é o espaço doméstico, uma vez que a maior parte do
tempo livre ou disponível das pessoas é utilizado no espaço da própria casa.
De acordo com seu ponto de vista “(...) toda política urbana de lazer deve
iniciar-se por uma política habitacional justa, que respeite as necessidades de
um espaço social íntimo e externo das residências” (CAMRGO, 1992, p. 62).
Portuguez (2001) acrescenta que o modelo pós-moderno de vida urbana
causou nas classes menos favorecidas uma preocupação em buscar, durante
as horas livres para o lazer, uma complementação de renda através de meios
informais, enquanto as classes mais privilegiadas desfrutam do tempo de não
trabalho. Devido a isso, muitas vezes a residência acaba deixando de ser o
cenário ideal para o refúgio seguro ou para a convivência familiar e assume
funções distintas como ser o local adequado para a execução dos negócios.
2.
CONTEXTUALIZAÇÃO
A cidade de Franca, um importante pólo calçadista brasileiro, vem
sendo, ao longo dos últimos dez anos, o cenário de constantes mudanças
como falência de inúmeras fábricas e a transferência de algumas delas para
outras localidades, resultando em um número significativo de desemprego.
Essas mudanças deram origem a propostas de terceirização, por parte
de empresas de grande, médio e pequeno porte, que passaram a solicitar
serviços domiciliares àqueles trabalhadores desempregados que tinham
alguma experiência no setor, dando origem, assim, às bancas de pesponto,
como foram popularmente chamadas. Antes disso, todo o processo de
fabricação do produto era realizado na própria empresa. Atualmente, as
empresas transferem uma ou mais fases do processo produtivo para as tais
bancas de pesponto, que são instaladas em locais improvisados ou adaptados,
na moradia do trabalhador.
De acordo com Navarro (2003), existem as pequenas bancas de
pesponto, que muitas vezes contam com a ajuda de uma ou mais pessoas da
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família, para a execução do trabalho; as de porte médio, que empregam cerca
de 20 trabalhadores; e as grandes bancas de pesponto, que dispõe de
instalações onde trabalham centenas de funcionários subcontratados.
Na maioria das vezes, as pequenas bancas de pesponto funcionam de
maneira informal, pois muitos de seus trabalhadores não possuem carteira
assinada e, portanto, não usufruem dos mesmos direitos que os trabalhadores
considerados formais. Para as empresas, essa forma de prestação de serviço
gera uma maior parcela de lucros, pois não há preocupação com os registros
dos funcionários, e a mão de obra é considerada mais barata.
Assim, pode-se observar que setor informal de prestação de serviço tem
influenciado não só na produção calçadista, como também na maneira de viver
das pessoas que presenciam essa realidade, pois, como afirma Barbosa e
Mendes (2003), em inúmeros casos não é possível distinguir onde começa a
oficina ou termina a casa.
Nestes locais, geralmente não há nem tempo para as atividades de lazer
e nem leis para assegurar esse direito. No entanto, seria relevante investigar,
através da atual pesquisa, como as famílias em estudo utilizam as
possibilidades que estão ao seu alcance para desfrutar e vivenciar
concretamente o tempo livre e de lazer. Diante do novo cenário de trabalho,
como estas atividades estão ocorrendo no cotidiano dos trabalhadores? Eles
de fato tem a possibilidade de dedicar-se a si mesmos através do descanso
físico e ou psicológico?
2.
MÉTODO
Para a realização do presente estudo, foi utilizada a proposta qualitativa
e a abordagem etnográfica. Segundo Minayo (1996), a proposta qualitativa
baseia-se
em
buscar diferentes
significados
de
experiências
vividas,
proporcionando uma fiel compreensão do indivíduo em seu contexto, e a
abordagem etnográfica procura desvendar os significados expressos pela
linguagem, ações e eventos que os sujeitos ou grupos pesquisados usam para
organizar seus comportamentos, como pontua André (2001).
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A coleta de dados aconteceu em duas fases: Fase exploratória; e fase
focalizada.
Na fase exploratórias, foram realizadas observações participantes em
residências onde funcionam, concomitantemente, as bancas de pesponto, e
também em sete residências onde havia apenas costura manual. Ocorreram
ainda conversas informais com várias pessoas que fazem parte deste
cotidiano, além de participações nas atividades habituais, o que levou à
percepção de sentimentos expressos quanto ao trabalho, à família, a educação
dos filhos, às horas de descanso, entre outros itens que poderiam não ser
notados apenas com a realização de uma observação distante da realidade
habitual dos sujeitos em estudo. Os dados obtidos foram registrados em diário
de campo após o término de cada sessão de observação.
Ao todo, cinqüenta e quatro pessoas participaram da primeira etapa de
coleta de dados, sendo vinte e sete do sexo feminino e vinte e sete do sexo
masculino.
Segundo Minayo (1996) a observação participante consiste na relação e
participação do observador com os observados, a fim de colher dados que não
podem ser obtidos apenas através de perguntas ou documentos quantitativos.
O pesquisador deve colocar-se no mundo do grupo pesquisado, buscando
entender os princípios gerais da cultura, para assim compreender as atitudes e
comportamentos das pessoas pertencentes ao grupo.
Já na fase focalizada, foram realizadas entrevistas individuais, semiestruturadas, com os trabalhadores já identificados. As entrevistas foram
gravadas e transcritas na íntegra para posterior análise. O roteiro de entrevista
consistiu na investigação sobre as concepções e vivências relativas ao lazer.
Os participantes dessa etapa se caracterizam por ser três trabalhadores
da banca de pesponto, sendo uma do sexo feminino e dois do sexo masculino,
e ainda duas pessoas que trabalham respectivamente com costura manual e
dobração do calçado em suas próprias residências, por ocasião da
terceirização dos serviços das bancas de pesponto, ambas do sexo feminino.
As entrevistas individuais foram analisadas através da abordagem
hermenêutica-dialética, que segundo Minayo (1996), o objeto de análise é a
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práxis social, e o sentido que se busca é a afirmação ético-política do
pensamento. Enquanto a hermenêutica penetra no seu tempo e através da
compreensão procurando atingir o sentido do texto, a crítica dialética se dirige
contra o seu tempo. Ela enfatiza a diferença, o contraste, o dissenso, e a
ruptura de sentido. A hermenêutica destaca a mediação, o acordo e a unidade
de sentido. Assim, a hermenêutica-dialética apresenta-se como momentos
necessários na produção da racionalidade.
3.
RESULTADOS
A-) Trabalho
Três entrevistados descreveram suas rotinas de trabalho.
Renato2, falou do tempo a mais que geralmente trabalha na banca,
salientando que, devido a isso, não tem muito tempo para o lazer durante a
semana. Mais adiante, ele faz uma comparação entre trabalhar em casa e
trabalhar na fábrica, salientando que, ainda que desenvolva seu trabalho em
casa, é preciso cumprir uma rotina cujos limites muitas vezes é excedido, pois
seu salário depende da quantidade de produção, como ilustra sua fala:
“(...) em casa, cê tem que trabalhá como se tivesse numa firma, né? Por que se toda
hora cê for lá dentro, aí cê vai lá, cê tá cansado, cê senta pra ver um poquim de
televisão, cê toma um refrigerante, cê come alguma coisa, depois cê volta de novo,
então aí cê vai se comprometê, né? (...) a gente trabalha por peça, então quanto mais
cê faz, mais cê ganha. Na fábrica ocê já tem um salário fixo até cinco horas, cinco e
meia. Em casa, às vezes o serviço não sai durante o dia, né? a gente tem que pagá as
pessoas, então você tem que ficá a noite pra tentá recuperar, pra não ter um prejuízo,
né?” (Renato).
Divina declarou que trabalha todos os dias, até à noite, e Pereira relatou
como transcorre sua rotina de trabalho, fazendo com que seja possível
observar que em vários momentos, intercala-se trabalho e atividades
familiares, tanto durante a semana como em dias pouco comuns para se
trabalhar, como aos sábados, assim como é apontado em sua narração:
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“(...) eu começo as sete, das sete as cinco da tarde, né? Mas, pará uma meia hora,
vamu supô, tempo livre de uma hora, meia hora né? É pouco, né? Tem dia que tem
que trabalhá até mais tarde, nove, dez horas. Dia de sábado cê tem que trabalhá o dia
inteiro, né? No domingo não procuro.” (Pereira).
Quanto
aos
aspectos
positivos
do
trabalho
domiciliar,
quatro
entrevistados apontaram características desse tipo de trabalho.
Benedita e Pereira acreditam que o ponto positivo de trabalhar em casa
está na chance que possuem para ficar mais tempo perto da família, e Renato
citou como outro aspecto positivo, a liberdade que possui para usar uma roupa
que se sinta à vontade para trabalhar, assim como é visto em sua fala:
“Então a liberdade que cê tem é mais assim, igual, tem lugar que cê tem que usar
guardapó, aqui cê pode ficar de short, às vezes cê fica sem camisa, cê fica descalço,
né?” (Renato).
Neuza e Renato mostraram valorizar a flexibilidade de tempo para a
realização do trabalho, assim como é ilustrado pela fala de Neuza:
“Acho que favorece, igual, eu tô em casa, o dia que eu não posso pegar serviço, eu
aviso. Pra mim não tem problema, né? Eu posso parar aqui na hora que eu quiser,
quando eu tenho alguma coisa pra fazê, aí eu pego menos serviço né?” (Neuza).
Com relação aos aspectos negativos do trabalho domiciliar, Benedita
fala do trabalho excessivo, os diferentes modelos de calçado, e os gastos
extras no orçamento da família, podendo este aspecto ser exemplificado por
seu discurso:
“É, e lado negativo aí é você trabalhá dentro de casa, você trabalha muito, sabe?
Come, trabalha, cê tem que entregar uma produção, aí cê tem que trabalhá mais,
porque conforme o serviço você trabalha mais, cê corre, corre contra o relógio, o
relógio é meu maior inimigo aqui dentro. Por que varia os modelo (de sapato), tem
modelo que é uma benção, tem modelo que dá um trabalho, tem modelo que, sabe?
Tem que corre atrás. Então, você mesmo já viu, cê mesmo já participô. E tem outra
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coisa também, a gente gasta mais, a gente gasta no dia-a-dia, no orçamento, se a
gente sai de manhã pra trabalhá, e só volta de tarde, cê gasta menos, cê não tá
gastando água, não tá gastando energia, telefone, nada” (Benedita).
Divina apontou como aspecto negativo o fato de ser a responsável pela
entrega do trabalho, sofrendo assim, constantes pressões que causam o
estresse e o cansaço, como é verificado em sua fala:
“Igual, cê tem o compromisso, né? Como cê que é o responsável né? Então, cê tem
que se virá e fazê, né? E isso às vezes até, deixa a gente estressado, ou tem hora que
você deixa de fazê um passeio, alguma coisa assim, justamente por causa desse
estresse, desse cansaço que a gente passa durante o dia” (Divina).
Ainda, para Renato, Pereira e Divina, o lado negativo do trabalho
domiciliar se manifesta por meio da flexibilidade de dias e horários, já que são
freqüentes as situações em que o serviço atrasa e é preciso trabalhar em um
outro horário para recupera-lo, fazendo com que muitas das atividades de lazer
sejam prejudicadas. Renato acrescenta como aspecto negativo a incerteza de
quando terá ou não trabalho na banca de pesponto, e o fato de que
atualmente, o sapato ficou mais difícil para ser montando, e em termos de
preço, não houve atualizações.
B-) Tempo Livre
Falando em termos de tempo livre, somente um entrevistado revelou sua
percepção sobre esse conceito. Pereira observa que as pessoas são as
responsáveis pela distribuição do tempo, e por isso todos podem desfrutar dos
benefícios do tempo livre, mas não são todos os que conseguem, como pode
ser observado em seu relato:
“A gente que não faz o tempo, né? Por que tempo tem bastante, mas a gente que não,
que não faz esse tempo pra podê curti” (Pereira).
561
Três entrevistados afirmaram desfrutar do tempo livre e duas
entrevistadas relatam que é difícil ter este momento.
Neide, Renato e Pereira afirmaram ter tempo livre, no entanto, cada um
o utiliza de uma forma diferente. Quando tem tempo livre, ou sobra, Neide
brinca com seus filhos, como pode ser observado em seu relato:
“A gente tira um tempo livre. Tira assim, brincando com as crianças né? Eu tenho que
tirar um tempo pra eles. É, tira, às vezes sobra, né? Por exemplo, se eu acabo o
serviço antes, e a mulher demora buscar né? Aí tem um tempo” (Neide).
C-) Lazer
Os entrevistados relataram vivenciar diversas modalidades de atividades
de lazer.
Todos os entrevistados relataram fazer visitas familiares, entendendo-as
como atividades de lazer, podendo tal aspecto ser verificado através da fala
citada abaixo:
“(...) fim de semana agente tem lugar pra ir, às vezes sábado à noite, minha mãe é
sagrado” (Benedita).
Benedita e Pereira relataram que costumam fazer caminhadas, Neuza e
Divina vão ao shopping, já Renato descreve que gosta de jogar futebol e
pescar, apontando estas atividades como idealizadas para seu lazer, sendo
tais aspectos verificados em sua fala:
“(...) os locais assim que eu acho que pra mim, quando eu esqueço dos meus
problemas, do meu serviço, às vezes até de problema de casa, é quando eu tô jogando
futebol ou pescando, que é onde eu assim, consigo desligar, né?” (Renato).
Pereira fala também das idas a clubes. Benedita e Neuza afirmaram
brincar com seus filhos, como atividades de lazer, o que pode ser
exemplificado pela fala de Neuza:
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“(...) brincando com eles né? (...) pula corda, às vezes a gente bate a corda pra elas
né? Às vezes elas fica me chamando pra mim ir lá né? Pulá elástico, pra mim isso é um
lazer né?” (Neuza).
Benedita e Renato apontaram as amizades como importantes nas
atividades de lazer, sendo que Benedita reúne os amigos em sua casa e
Renato os visita, como pode ser observado em seu relato:
“Ás vezes a gente assim, vai na casa de amigo né? Agora tem assim, uns dois ou três
amigos que às vezes a gente sai só pra bate papo mesmo, não tem nada, né?
(...) a gente escolhe tá conversando, por que é uma maneira da gente tá, assim, é,
demonstrando a amizade que a gente tem, às vezes assim, até agradecendo alguma
coisa que um faz pelo outro, então é nesses momentos que a gente acha que é o mais
apropriado, por que durante o serviço, quando eles vêm, não tem muito tempo, né? É
muito corrido” (Renato).
Benedita deixa explícito a importância dada aos momentos em que pode
dedicar-se a si mesma e aos programas de lazer doméstico, que muitas vezes
são ignorados pela sociedade atual, podendo este aspecto ser observado em
seu discurso:
“(...) agora eu, enquanto eles vai jogar bola, aí, eu quero sentar um poquim lá no meu
sofá, eles sai, eu tô sozinha, aí, graças a Deus. O que eu vô fazer? Eu sento no meu
sofá, vô fazer minha unha né? De vez enquanto eu e minha vizinha, nóis vai fazê uns
bolo. (...) e é muito bom, cê podê assim, saí, mas quando a gente não pode, a gente
rebenta uma pipoquinha, né? Põe um DVD, aí faz a festa. Ficando em casa, sabendo
concilia dá até uma diversão boa, né? Dá até pra namorá um poquim, né?” (Benedita).
Dois entrevistados relataram que exercem atividades religiosas como
forma de lazer. Nos momentos de tempo livre, Renato ajuda na preparação da
missa, como pode ser verificado a seguir:
563
“(...) eu to ajudando nas coisas da igreja, né? A gente tá na nossa comunidade, então
no sábado três e meia a gente vai, é, arruma, que é uma garagem onde a gente
celebra, então a gente coloca as cadeiras, os bancos, monta o altar, faz o ensaio,
então assim, é um momento que, eu assim, é um compromisso que eu assumi, que me
faz muito bem, que pra mim acaba se tornando um lazer” (Renato).
Enfim, falando de expectativas em relação ao lazer, cinco entrevistados
possuem expectativas não realizadas.
Neuza e Divina gostariam de viajar, já Benedita pontuou que gostaria de
freqüentar uma academia, como pode ser notado em sua fala:
“Eu gostaria de ir numa academia né? Só que aqui perto não tem nada né? Fazê uns
exercícios né? cê só fica sentada” (Benedita).
Renato e Pereira também falam de suas expectativas. Renato declarou
que gostaria de ir com mais freqüência ao pesque e pague, e Pereira
descreveu que gostaria de ir ao parque, circo e à praia.
4.
DISCUSSÃO DOS RESULTADOS
Três entrevistados descreveram suas rotinas de trabalho, sendo que um
relatou que durante a semana muitas vezes precisa trabalhar após o
expediente devido a questões financeiras. Para outro entrevistado, o trabalho
obrigatório, ainda que se intercale com as atividades familiares, não deixa de
fazer parte de sua rotina, até mesmo aos sábados; e outra entrevistada afirmou
trabalhar o dia inteiro, até a meia noite. Para que houvesse a compreensão do
trabalho na vida dessas pessoas, foi fundamental a realização das
observações participantes, que permitiram o contato direto com a realidade em
questão, possibilitando verificar que o trabalho tem como característica
marcante, ser precarizado, uma vez que ele é mal remunerado, tem o
intermediário, que muitas vezes fica com parte do dinheiro que essas pessoas
ganham, há uma explicita falta de vínculos com a fábrica, pois na hora em que
há trabalho, eles são obrigados a aceitar tudo devido a não garantia de que
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haverá serviço todos os dias. Ao longo do ano, foi possível notar que a
precarização do trabalho gera seu excesso, em alguns períodos, pois essas
pessoas são as responsáveis pela produtividade do trabalho e pela renda no
final do mês. Quando falta trabalho, mesmo que haja tempo livre, os
entrevistados mostraram não usufruí-lo por conta das preocupações financeiras
e instabilidade emocional decorrente da situação.
Quanto aos discursos apresentados pelos trabalhadores, verificam-se
afirmações voltadas para a satisfação com o modo informal de trabalho, já que
através dele, é possível uma maior aproximação familiar, além de relatarem
que se sentem mais á vontade para desenvolverem o trabalho; não encontram
dificuldades relacionadas ao transporte; é um ambiente agradável; e ainda
podem intercalar, no caso da costura nas residências, o trabalho com outras
atividades domésticas. Ao comparar os dados obtidos nas duas etapas da
pesquisa, observa-se a existência de dualidades, que são ressaltadas quando
os participantes da pesquisa falam acerca de aspectos positivos e negativos do
trabalho domiciliar, permitindo observar que trabalhar em casa é de fato uma
linha mais flexível, e neste ambiente existe mais flexibilidade do que a fábrica.
Assim, é possível considerar que esse tipo de trabalho acaba se tornando uma
“faca de dois gumes”, como se diz no popular, já que em alguns momentos
favorece uma linha de fuga flexível, e em outros momentos, o ser patrão de si
mesmo exige além da capacidade física e emocional dessas pessoas, trazendo
conseqüências que se manifestam até mesmo pela dificuldade do uso do
tempo livre, como foi descrito por um entrevistado, que relata que durante seu
período de folga, fica no ambiente da banca de pesponto procurando trabalho.
Dessa forma, durante a realização das entrevistas, o único participante
que fala de tempo livre dá uma conotação individual para tal conceito,
enfatizando a questão de que está nas mãos de cada pessoa conseguir este
tempo. Assim, é imprescindível considerar que a tese levantada por esse
participante faz completo sentido uma vez que ele está inserido em um
contexto onde, ele mesmo é seu patrão e, portanto, ele impõe o tempo. Em
uma realidade onde as pessoas são seus próprios patrões, aparentemente está
nas mãos delas a definição do tempo livre, pois elas estão situadas em um
contexto em que sua liberdade é relativa.
565
As demais definições de tempo livre estão relacionadas às atividades
que os presentes participantes praticam no decorrer desse tempo, seja durante
ou no final de semana, tais como brincar com os filhos; ajudar na igreja;
descansar em casa; assistir desenhos; e cuidar da família. Diante destes
dados, pode-se notar que há uma confusão entre as definições de lazer e
tempo livre, uma vez que a concepção de tempo livre está ligada à conjuntura
social, cultural, econômica, ideológica e física na qual cada indivíduo está
inserido (Codina, 2002; Cunha, 1987; e Martinez, Santi, Toledo, Zamora,1995
apud Sarriera, Paradiso, Mousequer, Marques, Hermel e Coelho, 2007). É
possível considerar que, em um ambiente onde se fundem atividades lúdicas e
estratificadas; trabalho obrigatório e atividades domésticas; além da aparente
liberdade em determinar tempo para começar e parar o trabalho, tal confusão
expressa o jeito como aquela coletividade enxerga e caracteriza o tempo livre.
Os entrevistados trazem ainda uma grande variedade de atividades que
consideram como lazer, sendo que algumas estão ligadas a atividades de
consumo, tal como ir ao shopping, como foi descrito respectivamente por duas
entrevistadas, além de realizar passeios ao clube, como foi relatado por um
entrevistado. Entretanto, observa-se que a referente população executa outras
atividades de lazer, que possuem como principal característica, estarem
desvinculadas de um aspecto consumista podendo citar como exemplo, as
visitas realizadas em casa de parentes, amigos e o convívio social, que foram
descritos por todos os entrevistados; a realização de atividades esportivas,
citadas por três entrevistados; as práticas de atividades religiosas e lúdicas,
apontadas por dois entrevistados; e a realização de atividades de lazeres
domésticos, lembrada por uma participante da entrevista. Tais afirmações
contrapõem Morin (1967) e Portuguez (2001), que afirmam que a sociedade
moderna transformou o tempo livre em um tempo de consumo, fazendo com
que as pessoas deixassem de lado a família e o contato social com amigos e
vizinhos, e vem de encontro com o que diz Camargo (1999), que salienta que o
principal instrumento de lazer é o espaço doméstico, como foi observado neste
contexto brasileiro de trabalhadores informais.
É
interessante
notar
que,
apesar
de
todos
os
entrevistados
considerarem como lazer as atividades que não estão ligadas ao consumo,
566
quando relatam as expectativas em relação ao lazer, são manifestados desejos
de praticar atividades que envolvam gastos financeiros, tais como freqüentar
academia; realizar viagens; ir ao pesque e pague; praias; parques de
diversões; e circos. Desta forma, é possível observar que as idéias descritas no
parágrafo anterior aparecem de forma sutil e estão mais próximas da realidade
observada, entretanto, é também presente o ideal de um lazer baseado em
atividades de consumo, tal como é descrito por Morin (1967), Oliveira (2004), e
Portuguez (2001). As necessidades individuais são veiculadas pela mídia,
representada pelo rádio e TV, que estão excessivamente presentes na
realidade estudada.
5.
CONCLUSÃO
A partir da pesquisa realizada, é possível considerar que a camada
popular estudada traz definições de lazer ligadas ao tempo e ao dinheiro, que
são pilares do modo de vida capitalista, indicando que o lazer também é visto e
definido através da ideologia dominante, que perpassa todas as camadas
sociais. Entretanto, quando os participantes da pesquisa são levados a fazer
reflexões acerca de suas vivências e de seu cotidiano, eles conseguem
identificar momentos de lazer que foge desses ideais, tornando possível
detectar uma especificidade dessa população, já que conseguem escapar de
um lazer consumista, estereotipado pela sociedade como única forma de
divertimento e descontração.
Concluindo, é preciso esclarecer e atentar para a questão de que este é
um estudo preliminar, que proporcionou um contato inicial com uma limitada
amostra de trabalhadores da camada popular brasileira, portanto, recomendase a realização de novos estudos que visem ampliar, ou até mesmo aprofundar
os resultados obtidos na presente pesquisa.
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Psicologia Ciência e Profissão, v. 27, p. 718-729, 2007.
1
O presente trabalho recebeu apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo –
FAPESP.
2
Todos os nomes citados são fictícios.
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trabalho, tempo livre e lazer - Uni