A ANÁLISE DE UMA CRIANÇA: A PERSONIFICAÇÃO POR MEIO DO BRINCAR
Raquel Abrantes de Oliveira(1)
Profa. Msc. Denise Machado Duran Gutierrez(2)
Departamento de Psicologia
RESUMO: O objetivo deste trabalho é o de analisar o desenvolvimento do processo
terapêutico de uma criança. Trata-se de um estudo de caso que utiliza o método
clínico-qualitativo, apoiando-se em autores e textos de orientação psicoterapêutica,
em especial, da psicanálise kleiniana. Discute-se e analisam-se o material clínico
proveniente da história de vida da criança e da psicoterapia lúdica realizada duas
vezes por semana, por um período de seis meses, em uma clínica-escola. No
presente estudo, é relatado o caso de uma criança do sexo feminino, de seis anos
de idade com queixa de idéias de morte, comportamentos agressivos e um
rendimento escolar inadequado. Segundo a mãe, a criança começou a apresentar
tais sintomas desde a separação recente e definitiva dos pais. Ana (nome fictício) é
filha única e mora com a mãe. A gravidez não foi desejada e a mãe passou por
alguns problemas de saúde, chegando a quase perder a criança. Embora estejam
separados, os pais são vizinhos, o que possibilita à Ana um contato freqüente com o
pai. Ana tem manifestado curiosidades sexuais, já chegou a beijar duas crianças do
mesmo sexo. Para se alimentar, Ana pede ajuda da mãe, que lhe dá a comida na
boca. Ana dorme no mesmo quarto da mãe, atualmente em uma cama ao lado da
cama da mãe. A mãe diz que Ana não suporta que falem dela e não gosta que dêem
ordens para ela, esconde quando faz algo errado, negando até as ultimas
conseqüências e quando assume, tenta se defender de qualquer forma para aliviar
sua culpa. Dentre os recursos utilizados, foram aplicados os testes do Desenho
Livre, do Desenho da Família, do Desenho da Figura Humana e o teste de
Maturidade Grafo-Perceptiva (Teste de Bender), que obtiveram indicadores de um
sentimento de inferioridade, dificuldades de trocas afetivas, agressividade, possíveis
conflitos de identidade sexual e sentimentos de culpa e auto-punição por tais
dúvidas, além de uma necessidade de afirmação de sua identidade feminina.
Apresenta também um sentimento de identificação forte com o sexo oposto,
impulsividade, teimosia, comando, sentimento de inferioridade e desejo de não ouvir
críticas. Não houve indicadores de possibilidade de lesão cerebral. Foi observado
que o brincar propicia à criança uma personificação, uma realização de desejos,
uma transformação de materiais que outrora estavam inconscientes e causavam
ansiedade em materiais elaborados, ressignificados, o que leva a criança a um alívio
dessa ansiedade e conseqüente enriquecimento do seu mundo psíquico. No
processo de psicoterapia lúdica, foram adaptados ao contexto institucional os
fundamentos da técnica psicanalítica descrita por Melanie Klein. Ofereceu-se à
criança uma caixa com brinquedos e materiais gráficos, que poderiam ser usados
livremente durante as sessões. A caixa é individual e constitui, desde o primeiro
momento, o símbolo do segredo profissional: o sigilo. A essência do jogo é
entendida como uma repetição de algum fato marcante: a brincadeira é a linguagem
infantil, considerada por Klein como a associação livre no adulto. A criança, ao
brincar com jogos, atribui papéis ao analista e a si, assumindo, frequentemente, o
papel do adulto. Expressa, assim, não apenas o desejo de reverter os papéis,
expressando, também, como sente que os adultos se comportam em relação a ela,
ou deveriam se comportar. É através da interpretação que aquilo que está reprimido
se torna consciente. Nos jogos que envolvem a personificação, é observável a
quantidade de ansiedade que é liberada logo após uma interpretação, o que gera
um aparente alívio na criança e uma mudança no conteúdo de seu brincar e também
de sua atitude para com a terapeuta. Na análise com Ana, a relação transferencial
foi logo estabelecida e em seus jogos ela era, na maioria das vezes, a detentora do
poder, a adulta, a professora, a médica, a mãe, como numa tentativa de dominar seu
medo de não ter o controle da situação, devido à fragilidade de seu ambiente
externo, refletindo, assim, o seu desejo de ser cuidada e a sua ansiedade por sentirse responsável pela manutenção do equilíbrio no seu ambiente. A agressividade de
Ana é, algumas vezes, expressa através de jogos em que ela representa a mãe ou a
professora, com uma atitude sádica em relação à criança, representada pela
analista. Klein ressalta que é essencial permitir à criança trazer á luz sua
agressividade, mas o mais importante é compreender por que nesse momento
particular da situação transferencial aparecem os impulsos destrutivos, e observar
sua conseqüência na mente da criança. No caso de Ana, em seguida, aos seus
ataques agressivos ocorre uma tentativa de reparação que, segundo Klein pode
estar relacionada não apenas à culpa, mas à ansiedade persecutória conseqüente
de seus impulsos destrutivos, fazendo com que a criança tema a retaliação. Essa
raiva reprimida oriunda de frustrações do passado e do presente apareceu com
muita força na situação de transferência. Ana passou a enxergar na terapeuta sua
rival na disputa do amor pelo pai, devido ao comportamento sedutor do pai em
relação à terapeuta. Segundo Klein, ao frustrar a criança é despertado o seu ódio e
ela acredita, inconscientemente, que atacou este objeto, no caso a terapeuta,
passando a temer retaliações. Nesse momento, a terapeuta se transformou em uma
figura hostil e vingativa. Klein ressalta que há no inconsciente um medo do
aniquilamento da vida, que se trata do trabalho interno da pulsão de morte. Uma vez
que a luta entre as pulsões de vida e de morte persiste a vida inteira, essa fonte de
ansiedade jamais é eliminada. Ana apresenta, constantemente, essa luta, ora
introjetando objetos bons por meio de jogos de alimentação, que reflete sua
necessidade afetiva, ora fantasiando ser detentora de objetos maus, de ter uma
doença grave, de estar sendo invadida. A mãe traz uma queixa de que Ana tem
idéias de morte. Porém, não foi observado nenhum indicador de ideais suicidas no
decorrer da análise. Entretanto, observou-se em Ana uma influência muito forte da
pulsão de morte, ou seja, há um medo de aniquilamento da vida, há uma ansiedade
persecutória intensa de ter danificado o objeto e de estar sendo perseguida por ele.
Pelo fato de Ana ter sido fruto de uma gravidez indesejada e repleta de dificuldades,
essa idéia de morte pode estar relacionada a essa rejeição sofrida. Isso foi
observado quando Ana tentou encaixar um bebê grande em um carrinho de bebê
pequeno, ao insistir acabou quebrando-o. Foi interpretado que Ana se sentia como
aquele bebê inadaptado, desajustado, não acolhido pela mãe. E, ao mesmo tempo,
sentiu-se culpada por ter quebrado essa mãe e tentava reparar o dano causado a
ela. A culpa e o desejo de reparar podem seguir-se logo após um ato de agressão e
torna-se aparente a ternura para com o objeto real, alvo da agressão em fantasia.
Isso foi observado quando após a sessão Ana correu e abraçou sua mãe. Segundo
Klein, frustrações e experiências dolorosas reforçam a agressão e a ansiedade
persecutória. Ana, frequentemente, desiste de atividades onde ela pode fracassar,
demonstrando, assim, uma intolerância à frustração, que é uma defesa maníaca
contra a ansiedade despertada por ela. Ao interpretar essa observação para Ana,
houve uma mudança de estratégia de defesa, ela passou a usar a terapeuta como
ego auxiliar, na tentativa de uma confirmação de que sua atividade estava perfeita.
O fato de Ana não assumir que sua atividade estava incompleta está relacionado ao
conflito entre pulsão de vida e de morte que gera uma cisão do ego, ou seja, Ana
não suporta a idéia de que seus objetos estejam cindidos. A defesa maníaca é
utilizada quando a ansiedade depressiva é muito intensa, o que acaba levando a
criança de volta a posição esquizo-paranóide. Em outra situação semelhante, em
uma sessão posterior, fiz a mesma interpretação e houve uma tentativa de mudança
de atitude por parte de Ana, que reconheceu que seu objeto estava incompleto. Ana
é frequentemente guiada pelo princípio do prazer, que segundo Freud é a busca de
um alívio imediato de qualquer tensão, sem levar em conta os limites da realidade, e
para isso, recorre à onipotência, à alucinação ou à descarga motora. Com o
desenvolvimento psíquico, a criança encontra novas formas de lidar com as tensões,
desenvolvendo para isso o pensamento, passando então a operar pelo princípio da
realidade. Foi observado que Ana encontra-se em processo de transição de um
estado esquizo-paranóide, caracterizado pela ansiedade persecutória e processos
de cisão, para uma posição depressiva, caracterizada pela ansiedade depressiva e
tendências reparatórias. Para Klein, os mecanismos de cisão e projeção são fatores
básicos da tendência de personificação no jogo, de forma que o conflito intrapsíquico
se torne menos violento e pode ser deslocado para o mundo externo. As ansiedades
envolvidas nesses processos podem sofrer uma grande redução, o que aumenta o
prazer obtido durante o brincar. Ou seja, muito alívio é experimentado no brincar, e
este é um dos fatores que o tornam tão essencial para a criança.
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(1)
Acadêmica de Psicologia
(2)
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