GÊNEROS TEXTUAIS, LETRAMENTO E AFASIA
Helo‫ي‬sa de Oliveira Macedo (Doutora em Lingü‫ي‬stica, Instituto de Estudos da Linguagem
(IEL), UNICAMP; [email protected]
RESUMO: Este trabalho insere-se no campo dos estudos sociocognitivos do conhecimento
humano. Nosso objetivo é mostrar que no texto escrito no gênero relato de vida, o fato da
linguagem escrita proporcionar ao escrevente a possibilidade de refletir, rever, organizar o
que pensa, evidencia ção entre linguagem, memória e cognição que se presentifica nas marcas
de letramento em seu texto. Entendendo que o letramento exerce influência fundamental na
interação social (Bazerman, 2007, p. 20, 21), escolhemos identificar as marcas de letramento
nos relatos de vida de sujeitos afásicos. Para tanto, analisamos aspectos de referenciação no
texto de um afásico salientando as características do gênero relato de vida e suas marcas,
entendendo tais processos na progressão textual. Como conclusão, podemos afirmar que as
marcas de letramento do afásico nos fornecem elementos fundamentais no percurso de sua
reabilitação e que sua competência em relação ao gênero analisado não está perdida, mas
transformada.
PALAVRAS-CHAVE: letramento, afasia, referenciação, gêneros textuais
ABSTRACT: This work is inserted in the field of social-cognitive studies of human behavior.
Our goal is demonstrate that written texts on the genre life report which allow the writer the
possibility to rewrite, to organize his thoughts, show the relation between language, memory
and cognition. This can be observed in these texts by the presence of marks of literacy. We
believe the literacy has a significant role in social interaction and we decided to identify the
literacy marks present in the texts. To do so, we analyzed some aspects of text reference
produced by an aphasic person, highlighting the characteristics of the specific text genre
mentioned above and its marks, as being part of text progression. We can affirm that the
literacy marks can reveal extremely important elements to help with the recovery process,
also indicating that the competence to produce that textual genre is not lost, but was
transformed.
KEYWORDS: literacy, aphasia, reference, textual genre
1. INTRODUÇÃO
No campo dos estudos das afasias, vimos desenvolvendo vários trabalhos que se preocupam
em identificar nas práticas de letramento aspectos evidenciadores das relações entre
linguagem, interação e cognição. Tais trabalhos inserem-se no campo dos estudos
sociocognitivos do conhecimento humano, conforme os apresentam Morato, Salomão, Koch,
Marcuschi, Mondada, entre outros. Nosso objetivo, neste trabalho especificamente, é mostrar
que o fato da linguagem escrita proporcionar ao escrevente a possibilidade de refletir, rever,
organizar o que pensa, evidencia a relação entre linguagem, memória e cognição que se
presentifica nas marcas de letramento em seu texto, como por exemplo, na maneira como o
sujeito realiza uma progressão referencial.
Concordando com Bazerman (2007, p. 20/21) que o letramento exerce influência fundamental
na interação social, escolhemos identificar as marcas de letramento nos relatos de vida de
sujeitos afásicos porque este gênero textual, o relato de vida, salienta os domínios sociais de
comunicação que envolvem documentação e memorização das ações humanas, pressupondo a
capacidade de relatar através da representação pelo discurso de experiências vividas, situadas
no tempo (Dolz e Schneuwly, 1996 / 2004, p. 60). Além disso, consideramos que a produção
do texto escrito por alguém com uma alteração na maneira de se expressar pela linguagem em
decorrência de uma lesão cerebral, o afásico, destacam aspectos da cognição, como os
processos de referenciação. Estes processos, por sua vez, compreendidos como os sentidos
implícitos e explícitos, contexto, intertextualidade, multimodalidade, por exemplo,
evidenciam traços de letramento que nos interessam na compreensão das afasias e sua
reabilitação.
Para mostrar os aspectos acima elencados, analisamos os processos de referenciaç‫م‬o presentes
no texto de um af‫ل‬sico, sob a perspectiva sociocognitiva, salientando as caracter‫ي‬sticas do
gênero em quest‫م‬o e suas marcas, entendendo tais processos na progress‫م‬o textual.
2. OS GÊNEROS TEXTUAIS ESCRITOS NA RELAÇÃO ORALIDADE E
LETRAMENTO
Para tratar sobre os gêneros textuais pressupomos uma relação de continuum entre oralidade e
letramento, de acordo com Marcuschi (2000, 2002) e Koch (2002). Isso significa assumir que
fala e escrita não mais referem tipos de texto dicotomicamente antagônicos (como numa visão
mais tradicional e estruturalista de linguagem), mas sim identificam gêneros de textos
configurados por um conjunto de características que os leva a serem concebidos como textos
falados ou escritos, em maior ou menor grau. Ou seja, a relação oralidade e escrita (ou como
diz Marcuschi, 2000: oralidade e letramento) é estabelecida no contexto do efetivo uso
lingüístico, o qual se realiza na produção textual. Nesta perspectiva, as diferenças entre fala e
escrita se concebem num continuum tipológico de gêneros de textos, determinado pela
correlação entre ambas, que não se identificam, por serem heterogêneas, bem como não
deixam de se encontrarem, já que entendemos a relação como dialética.
Na perspectiva adotada é preciso considerar as práticas sociais em que um sujeito de
linguagem está imerso. Ao tratarmos de questões relativas à linguagem escrita, devemos ter a
preocupação com a qualificação do ambiente de produção do texto, entendendo por isso todo
o entorno e as relações que envolvem tal ação. Isso significa, que a depender do gênero
textual escolhido, teremos todo um contexto de produção que nos encaminhará para uma
determinada análise a respeito do sujeito escrevente e de seus processos de referenciação.
Neste trabalho, destacamos o gênero relato de vida. Tal gênero, como já anunciamos,
corresponde ao domínio social de comunicação de dção e memorização das ações humanas,
cujo aspecto tipológico é o relato. Este, por sua vez, demanda umacapacidade de linguagem
dominante de representaç‫م‬o pelo discurso de experiências vividas, situadas no tempo (Dolz e
Schneuwly (2004)).
No caso das afasias, a produção de um texto escrito no gênero relato de vida mostra-se
bastante profícua, uma vez que o sujeito é instado a produzir um texto cujo conteúdo ele
domina mais que seu interlocutor. Isto porque, apesar de nas afasias a linguagem escrita estar
sempre alterada (cf. Santana, 2002) e o afásico necessitar da colaboração (no sentido atribuído
por Tomasello, 2003) de alguém que ele considere dominar melhor a condição de escrevente,
no momento mesmo da produção do texto escrito, o conteúdo deste já está previamente
formulado: o afásico escreve a respeito de um assunto sobre o qual tem pleno domínio.
Descrever e explicar gêneros discursivos relativamente às representações, relações sociais e
identidades neles embutidas serve para evidenciar que, no discurso e através dele, os
indivíduos produzem, reproduzem, ou desafiam as estruturas e as práticas sociais onde se
inserem. Para tanto, é necessário conhecer as condições de letramento dos escreventes e o
gênero discursivo escolhido, o que significa considerar a cultura escrita como responsável
pelos aspectos discursivos escritos praticados pelos sujeitos investigados. A partir disto, é que
se pode identificar regularidades que aparecem nas escritas destes sujeitos, como por
exemplo, a forma como passam do gênero de relato oral para o gênero narrativo (cristalizado
pela relação leitura/escrita) ou relato escrito.
Segundo Dolz e Schneuwly (2004, p.51), “as práticas de linguagem são consideradas
aquisições acumuladas pelos grupos sociais no curso da história”, ou seja, nessa perspectiva,
os gêneros textuais formam-se nos processos interativos, sociais, pelas mediações
comunicativas e propiciam as diferentes significações e re-significações sociais. Eles
constituem o instrumento de mediação na construção da textualidade. Para esses autores,
gênero é um “instrumento para agir em situações de linguagem” (op.cit., p.52), sendo
constitutivo dessas situações.
Além das características (ou das dimensões dos gêneros, como assim definem os autores
citados), devemos, segundo eles, considerar:
as capacidades de linguagem requeridas do aprendiz para a produção de um gênero numa situação de interação
determinada: adaptar-se às características do contexto e do referente (capacidades de ação); mobilizar modelos
discursivos (capacidades discursivas); dominar as operações psicolingüísticas e as unidades lingüísticas
(capacidades lingüístico-discursivas) (DOLZ e SCHNEUWLY, 2004, p.52).
Classicamente, as afasias são definidas como perda da capacidade metalingüística. No
entanto, vários dados que temos observado de sujeitos afásicos mostram que eles preservam
uma condição de sujeitos de linguagem que lhes permite, por exemplo, produzir textos, orais
e escritos, repletos de metalinguagem. A relação entre oralidade e letramento se presentifica
também nos textos produzidos por estes sujeitos que sofreram uma alteração em suas
condições de produção e compreensão de linguagem, que é irreversível à forma anterior ao
episódio neurológico, já que a perda é física e novas relações se estabelecem a partir daquele
momento. No entanto, a depender da condição oferecida ao afásico para produzir,
compreender, fazer uso da sua linguagem, há uma recuperação de uma determinada
capacidade que é capaz de tirá-lo do rol dos deficientes em que muitas vezes é colocado
(Morato, 2000).
Para o desenvolvimento desta condição de sujeito de linguagem, a promoção do gênero relato
de vida pode ser uma condição bem interessante.Vale lembrar, como afirma Bakhtin (2000),
que
o valor biográfico pode ser o princípio organizador da narrativa que conta a vida do outro, mas também pode ser
o princípio organizador do que eu mesmo tiver vivido, da narrativa que conta minha própria vida, e pode dar
forma à consciência, à visão, ao discurso, que terei sobre a minha própria vida. (Bakhtin, M., 2000,
p.166).Assim, o gênero escolhido para an‫ل‬lise neste artigo, traz em si uma condiç‫م‬o de
rememoraç‫م‬o para os escreventes, em sua recontagem, j‫ ل‬que os elementos escolhidos
remontam aos fatos de seu cotidiano. seja, ao escreverem e reescreverem histórias, as pessoas
colocam uma nova roupagem nessas histórias, em suas vidas e no significado daquilo que já
viveram. A partir daí, entendemos que a rememoração visa, de certa forma, uma
transformação do presente. Nesse movimento de leitura, escrita e reescrita observamos a
relação entre linguagem, memória e cognição pela refacção: possibilidade que a linguagem
escrita proporciona ao escrevente de refletir, rever, organizar o que pensa – daí a visibilidade
das marcas de letramento (Macedo, 2005).
No desenvolvimento do texto escrito podemos também observar a representaç‫م‬o da instância
do locutor e do interlocutor e, nesta representaç‫م‬o, quanto mais letrado o locutor, menos
marcas de oralidade no texto escrito aparecer‫م‬o, mesmo no gênero narrativo pessoal.
3. AS MARCAS DE LETRAMENTO NOS PROCESSOS DE REFERENCIAÇÃO
Para análise da saliência das marcas de letramento no texto escrito, escolhemos identificar os
processos de referenciação, entendendo estes como aspectos importantes, discursivos,
linguístico-cognitivos, que podem dar mostras da seleção lexical, da estrutura de língua
utilizada entre outros elementos de letramento. Mais especificamente, relacionados à
referenciação, procuramos observar como os aspectos relativos ao contexto, aos sentidos
implícitos e explícitos, à intertextualidade e à multimodalidade, se presentificam no texto
produzido no gênero relato de vida, desenvolvido por uma afásico.
Vale destacar que a posição que assumimos é a de que a referenciação constitui uma atividade
discursiva, ou seja, como destaca Koch (2004, p.61) “os processos de referenciação são
escolhas do sujeito em função de um querer-dizer. Os objetos-de-discurso não se confundem
com a realidade extra-lingüística, mas (re)constroem-na no próprio processo de interação”.
Com Marcuschi (2007) consideramos que os referentes não são etiquetas do mundo, mas são
fabricados na interação, ou seja, os referentes criam-se na interação, através de uma cognição
situada, o que faz com que se fale em referenciação, ao invés de referência: há uma relação
intersubjetiva e social que coloca a referenciação como o objeto do discurso, e não mais o
referente. Nesse sentido, os referentes são construídos linguisticamente, através de uma
capacidade metalinguística, em que a referência seria uma categoria lingüística. Ou seja,
quando tratamos de referenciação, ao invés de referência, estamos salientando que esta é uma
ação lingüístico-discursiva, daí falarmos em objetos de discurso. Entendemos, então, que a
referenciação corresponde à atividade do sujeito quando ele cria objetos dos discurso,
construindo e reconstruindo “objetos do discurso”, como um processo essencialmente
atencional e interacional, e não como uma simples operação lingüística ou pragmática
(Apothelóz (2001) e Mondada e Dubois (2003)).
Considerando-se, como já apontamos, que tradicionalmente as afasias são tomadas como um
problema essencialmente metalingüístico, quando mostramos os processos de referenciação
presentes nos enunciados discursivos (orais e escritos) dos sujeitos afásicos, estamos
colocando em xeque tal posição e caminhando no sentido de comprovar a preservação de
uma determinada competência lingüístico-pragmática, ou sociocognitiva.
Para ilustrar nossas considerações, escolhemos mostrar um texto produzido por um afásico
(LM) que corresponde ao relato de um episódio marcante em sua vida: o Acidente Vascular
Cerebral (AVC) que o acometeu durante um dia normal de trabalho. Neste relato, destacamos
aspectos que salientam os processos de referenciação a que LM lança mão para significar o
AVC. Realizar a análise de aspectos linguístico-discursivos presentes na escrita de um afásico
significa destacar a preservação de uma competência linguística que muitas vezes não lhe é
atribuída, o que também ajuda o sujeito a sair do lugar de deficiente em que muitas vezes é
colocado.
4. O CASO DE LM, AFÁSICO
LM é um homem de 51 anos que sofreu um Acidente Vascular Cerebral (AVC) aos 28 anos.
LM estudou até a 8ª. série (atual nono ano do ensino Fundamental) e conta que gostava de ler
jornais e revistas eventualmente. Em seu trabalho antes do AVC, escrevia relatórios diários de
atividades, os quais correspondiam ao trajeto feito como motorista da empresa. Ele freqüenta
o Centro de Convivência de Afásicos (CCA) 1 , local onde realiza atividades de leitura e
escrita, além de outras práticas sociais comunicacionais que são desenvolvidas a cada
encontro, como parte da metodologia de trabalho do CCA.
Por estar incluída em um projeto de pesquisa supervisionado pela professora Dra. Edwiges
Morato 2 , as coletas dos dados têm sido vídeo-gravadas e registradas sob forma de diário,
entrevistas individuais realizadas por HM, pesquisadora-fonoaudióloga, com LM, em seu
consultório eno CCA. Para os fins deste trabalho, foi selecionado o texto que LM produziu
em sua casa, após solicitação de HM, de que escrevesse sobre o que acontecera com ele
quando teve o AVC que o deixou afásico.
O fato de produzir o texto em sua casa (e não durante a entrevista) foi justificado por LM,
cujo quadro afásico interfere mais em sua produção de linguagem do que em sua
compreensão, de que como escreve d e maneira muito lenta, preferia fazê-lo com mais tempo.
Mostrou uma preocupação em ocupar o tempo de HM, além de parecer mais constrangido de
que esta o ficasse aguardando e observando enquanto escrevia, o que é uma preocupação
bastante natural para qualquer escrevente. De qualquer maneira, LM disse a HM que
escrevera sozinho, sem auxilio de ninguém, e que o texto entregue a mesma era o original,
que não fizera um rascunho e depois passara “a limpo”.
Para fins da análise pertinente a este trabalho, procedemos ao destaque dos processos de
referenciação salientados no texto produzido, mais especificamente em relação ao episódio
neurológico. Além disso, procuramos identificar quais aspectos destes processos, quando
equivocados, podem ser relacionados à afasia e quais correspondem muito mais ao processo
de letramento de LM. A seguir mostramos o texto de LM, digitado por HM respeitando a
grafia e a organização de LM em seu texto manuscrito.
Campinas, um de setembro de dois mil e oito.
Dra. Ló, você dis prami contar começo ite oijé do terráme.
Em mil nevecento e oitenta e seis no dia cinco de maio, o bantido do terrame surgiu em minha vida.
Eu trabalhava com uma piruá da firma lefava os funcionario da qui do Barão o orario de eu sai de
casa era, seis horas da manhá, sai de casa tudo normal chegamos em Indaiatuba, era deis pra sete
horas, chegamos tudo normal, sete horas agente comesava trabalhiar , ite oito horas normal, das oito
horas indiantes eu comesoi pasa mal, mais mal mesmo, eu já berdi a força da maão e da perna, daí
na hora medéu, vondade de chupar laranja, parece que chupar laranja ia melhora, penso eu comigo.
Eu não consiguia a descacar a laranja afaca caia toda toda hora da maão, Já o pessoal não indendia
o que eu falava.
Ló, doença mais terrival, que é esa praso de quinze minuto eu não falava mais, não adava mais. Os
primeiro socorro foi hospital de Indaiatuba, minha pressão foi para vinte e oito de pressão, os médico
levaram treis dias para eles abachar minha pressão.
Quando eles consiguiram abacharem minha pressão, eles tranfiriram eu pra Campinas, para Casa de
saúde, lá eu passei senquenta dias. Quarenta dias eu passei cem vé, via não via, via não, via, via não,
não sabia sé era dinoite ou didia, as visita eu via, não via. Eles estava emvouta da minha cama.
Ló, nosso selebro faltou ele faltou tudo. Ve, não ve, ve não ve. Que coisa a minhas irmás e meu írmau
1
Grupo de pessoas afásicas e não afásicas que se encontra semanalmente no Instituto de Estudos da Linguagem,
na Universidade Estadual de Campinas, sob coordenação da profa. Dra. Edwiges M. Morato. Os encontros do
grupo são analisados pelo grupo de pesquisas da referida professora, “Interação, Cognição e Significação”, do
qual também faz parte a autora deste texto.
2
Projeto de pós-doutorado financiado pela Fapesp sob n. 06/60869-7
e tambem minha mãe, eles tudo ia medar comida na boca, eu não comia, agora quando, es mulher
dava comida eu comia tudo, as minha irmãs falava que quando a es ia embora eu ficava triste, não
soria, nessa épica eu amava muito a es mulher, mesmo com acabeça assi, ela era tudo pramim eu
tinha uma confiança nela, que com ela eu tava em casa. Ló, alho o que uma mulher fais na cabeça do
homem mesmo com cabeça assi via não via, via não via, não esqueso do amor que eu sentia por ela
Depois dos quarenta dias minha mente voltou rapido, com deis dias ela voudo normal.
Ló mais que disispero, que sendi naqueles quarenta dias, eu queria embora, í pra onde, não sei, não
sei, se tenho casa, au memso tempo, sí tenho casa, aonde não sei. Quei vé os médico fala, sofreu um
avese eles fala isso tranqüilo, não sabe que doença e terrível triste.
Os médico falou que eu ía anda só na cadeira de roda. Mais graça a Deus, não andei de cadeira de
roda ném um dia. Fala os médico não sabia se eu ia fala. os médico falava isso, Por que o terrame
que deu emí foi muito forte. Comesei a faze fisioterapia no hospital das Clinica, já fazia treis meses,
Endicaro a Dudu eu fui a trais. Dra Dudu miajodou muito, e ajuda. A a a u u u o o o e e e este os
emxismo que Dra Dudu dava. Agora tem você Dra Ló agora eu vou aprende mais com você, Ló você
dom legal, não sei que faço Para acardese você.
(assinatura dele)
5. ANÁLISE DO DADO: O RELATO DE VIDA
Na an‫ل‬lise do texto de LM podemos considerar que o texto é bom: responde ao que foi
solicitado, ao gênero pretendido (um relato de vida, mesmo que escrito sob a forma de carta
pessoal) e apresenta elementos cl‫ل‬ssicos de abertura e fechamento do mesmo. Podemos
creditar tais procedimentos a suas pr‫ل‬ticas de letramento. Observamos, por exemplo, que os
elementos do texto, especialmente a adequada progress‫م‬o tَpica, aparecem no mesmo como
marcas de seu letramento – j‫ ل‬lera e escrevera textos no gênero anteriormente e a afasia n‫م‬o
apagou isto.
No início do texto, LM realiza um metadiscurso para inserção do tópico inicial, marcado pela
utilização do tempo verbal no presente. O relato iniciado pela localização no tempo e a
identificação do tópico/ assunto abordado, – quando o derrame aconteceu –, são marcados
pelo tempo verbal passado. Outros fatos de seu letramento podem ser identificados no texto
como aquilo que, tradicionalmente é considerado erro, como uma inadequação de sinais de
pontuação, a redução do infinitivo verbal, entre outras marcas de oralidade no texto escrito.
São marcas culturais que, talvez, se LM não fosse afásico, ele poderia identificar no texto e
reformular. Neste caso, a afasia incidiu na dificuldade de percepção desta diferença entre o
como se fala e o que se escreve. Isso pode ser observado no texto de LM na repetição das
expressões: “sai de casa”, “oito horas”, as quais poderiam ser substituídas por elementos
anafóricos distintos. Já no caso das repetições das expressões: “tudo normal”, “mal mais mal
mesmo”, “via, não via” podemos dizer que a função destas foi de enfatizar sua situação, seu
sentimento, para o leitor, ou seja, um estilo de escrita, bastante condizente e adequado ao
gênero textual.
A respeito de outros aspectos do texto, como a falta de elementos de ligação que marquem o
tempo (advérbios), os quais substitui por outros marcadores, como o próprio tempo, que são
mais concretos; ou o uso de alguns elementos referenciais que não remetem o leitor ao texto
em si, mas a um contexto previamente partilhado, como o que o derrame provoca ao cérebro;
ou ainda o uso de concordância nominal e verbal e a escrita de elementos lexicais de acordo
com a forma prosódica, oral, como os erros de segmentação de palavras – podemos remeter
tais ocorrências às suas práticas de letramento e identificar as mesmas, mais uma vez, como
marcas de seu letramento.
Em relação aos processos de referenciação presentes no texto, salientamos aqueles
relacionados à construção do referente “AVC”, ou aquilo que o levou a tornar-se afásico. No
texto, destacamos os aspectos que nos interessam em negrito. Podemos observar uma
progressão na maneira como LM constrói esse referente tão fundamental para sua vida.
Vejamos, como ele faz: “terráme, bantido do derrame, pasa mal (berdi a força da maão e da
perna, o pessoal não endendia o que eu falava, doença mais terrival, nosso selebro faltou ele
faltou tudo, um avese, doença e terrivel e triste”.
LM inicia sua carta dizendo que respondia a uma solicitação para escrever sobre o que
aconteceu com ele “do derrame até hoje”, ou seja, ele já insere o leitor, seu interlocutor, no
tópico a que se refere o texto que se seguirá. Podemos dizer que ele nomeia esse tópico de
“história do derrame”. Dando seqüência, LM introduz diversos elementos referenciais para a
construção do tópico e especialmente do referente “derrame” que é central em seu texto.
O processo de referenciação que podemos observar no desenvolvimento do texto de LM
parece corresponder a um movimento em que o referente é construído anafórica e
cataforicamente. Ainda no início do texto, após anunciar sobre o que seria escrito, LM
recategoriza o referente inicial qualificando-o de maneira anafórica quando acrescenta
“bandido” ao derrame, ou seja, já nos diz que não é um evento qualquer, mas um “bandido”.
Tal elemento qualificador pressupõe que os interlocutores, escrevente e leitor, compartilhem
um conhecimento sobre o que seja “derrame” para que “bandido” possa ser interpretado como
um elemento metonímico de “derrame”. LM sabia que sua leitora, HM, conhecia bem o
assunto e compreenderia a dimensão do termo empregado. Vale ressaltar que a seleção
empreendida por LM quanto ao elemento lexical qualificador de “derrame” nos dá indícios de
seu letramento. Mesmo que não apresente um texto que respeite todas as normas gramaticais
(numa referência às gramaticas mais tradicionalistas), cometendo algumas “infrações” em que
se presentificam marcas de oralidade não desejadas na escrita, ou que deixe ver trocas
grafêmicas ou paragrafias que marcam sua afasia, LM é capaz de construir um texto cujo
estilo denota uma capacidade de uso da linguagem bastante eficiente, como a utilização de
metonímias, de repetições com função enfática, de retomadas e expansão de tópico, além da
adequada manutenção do mesmo, como já apontamos.
Ainda nos referindo ao processo de referenciação em torno de “derrame”, podemos observar
que LM explica o porquê do derrame ser um bandido, indicando o que o mesmo lhe causara:
dificuldades nos movimentos das mãos, dos pés e na fala. O objeto “derrame” ativado no
texto inicialmente, é, nesse caso, reconstruído por intermédio de recursos lexicais. É só depois
de indicar o que o derrame causa que LM o nomeia como “doença terrível”, introduzindo
mais um item lexical que garante a manutenção e a progressão referencial, o que acontece até
o final de seu texto: ele destaca que mais ainda, se é uma doença que causa aquilo que ele
elencou, é porque ela está localizada no cérebro. E, ao final, após indicar vários elementos
para que seu interlocutor pudesse contruir o contexto do “derrame”, é que LM nos conta que é
“um AVC” e retoma de maneira ao mesmo tempo anafórica e catafórica o referente: “doença
terrível e triste”.
Podemos ressaltar no processo acima descrito, que LM, afásico, com poucos anos de estudo,
apresentou um texto com uma construção competente de linguagem, em que os elementos
tópicos foram construídos no decorrer do mesmo, de maneira progressiva e completa, de tal
modo que seu interlocutor, seu leitor, não precisaria, necessariamente, compartilhar com ele
pressupostos sobre o referente, pois este foi adequadamente construído.
Ou seja, a afasia não apagou sua condição de escrevente, sua possibilidade de perceber e
analisar sua condição como produtor de um texto adequado ao gênero solicitado e, mais
ainda, de manter uma adequada progressão textual, considerando os diversos elementos
linguístico-discursivos necessários para isso. Seu letramento, com certeza, presentifica-se
nessas marcas, pois apesar de poucos anos de estudo, nunca deixou de ler, escrever e buscar
conhecimentos diversos.
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Entendendo o gênero como um instrumento e, mais do que isso, como um instrumento
mediador, Schneuwly (2004) afirma ainda que para o instrumento tornar-se mediador ele
precisa ser apropriado pelo sujeito. Em suas palavras, “ele (o instrumento) não é eficaz senão
à medida que se constroem, por parte do sujeito, os esquemas de sua utilização”. (p.24). No
caso deste trabalho, então, compreendemos que a adequação do texto escrito produzido, em
relação ao gênero proposto, significa que o sujeito escrevente apropriou-se do objeto
mediador das diferentes práticas de linguagem em que se constituiu o gênero eleito.
Podemos afirmar que a constataç‫م‬o da co-ocorrência entre linguagem oral e letramento é
fundamental na compreens‫م‬o de fenômenos lingü‫ي‬stico-discursivos em processos de alteraç‫م‬o
de linguagem como o que ocorre nas afasias. Como afirma Morato (2006): enquanto
atividade discursiva reconhecidamente organizada, a referenciação tem a ver, entre outras
coisas, com uma postura meta-enunciativa dos sujeitos. Ou seja, ela releva de uma
reflexividade enunciativa posta em cena no decurso da própria ação e tendo em vista os
intuitos ou propósitos discursivos dos sujeitos em interação. Neste sentido, LM explicita em
seu texto, de maneira metadiscursiva, sua postura diante dos fatos que lhe acometeram,
especialmente, em relaç‫م‬o às suas dificuldades de linguagem. Ele fala que sabe que troca
algumas letras, mas tem dْvidas e n‫م‬o sabe como resolver – isso ele credita à afasia.
Morato (op.cit.) afirma ainda que “a referenciaç‫م‬o diz respeito a essa possibilidade que tem a
linguagem de n‫م‬o apenas construir o universo ao qual ela se refere como também mediar (na
presença de outras semioses, de outras pr‫ل‬ticas sociais) a relaç‫م‬o entre sujeito e realidade”. ‫ة‬
nesse processo, ent‫م‬o, que podemos identificar as marcas de letramento dos sujeitos para, com
isso, propormos açُes mais efetivas para o desenvolvimento de pr‫ل‬ticas ainda n‫م‬o adquiridas
ou na reformulaç‫م‬o e readequaç‫م‬o de pr‫ل‬ticas de linguagem que se apresentam deficit‫ل‬rias,
mesmo que temporariamente, devido à afasia, como no caso de LM.
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