ENTRE A CASA E A ESCOLA: O CAMINHO PELO OLHAR DE CRIANÇAS DE AREA RURAL NA DÉCADA DE 60 Resumo O artigo apresenta resultados parciais de uma pesquisa acerca dos sentidos de corpo para estudantes de uma escola multisseriada, na área rural da cidade de Rodeio – SC na década de 1960. A geração de dados ocorreu por meio de entrevistas, a partir de um roteiro semi‐estruturado. Desta entrevista, o presente trabalho é um recorte, atendo‐
se a uma das perguntas: como era o caminho de casa para a escola e da escola para casa? O objetivo do artigo é compreender os sentidos atribuídos pelos estudantes ao caminho entre a casa e a escola. Trabalha‐se, portanto, com memória e história oral, buscando compreender os sentidos atribuídos, nos dias atuais, à experiência do caminho entre a casa e a escola, vivida há 50 anos. Dos relatos se podem discutir também as formas de interação entre as crianças, a constituição de sua subjetividade, bem como a dinâmica da própria memória. Inicia‐se o estudo com a contextualização histórica do município, bem como da escola em questão. Em seguida são analisadas as falas dos estudantes acerca do caminho entre a casa e a escola. Palavras‐chave: Escola multisseriada; Caminho; Memória; Sentidos. Luciana Fiamoncini Universidade Regional de Blumenau [email protected] Celso Kraemer Universidade Regional de Blumenau [email protected] X ANPED SUL, Florianópolis, outubro de 2014. p.1
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ENTRE A CASA E A ESCOLA: O CAMINHO PELO OLHAR DE CRIANÇAS DE AREA RURAL NA DÉCADA DE 60 Luciana Fiamoncini ‐ Celso Kraemer 1. Introdução Pensar no que se passa no caminho de casa para a escola e da escola para casa, em nossos dias, pode parecer algo banal. Porém, para crianças que viveram em área rural e frequentaram a escola num tempo e em uma região em que não havia transporte escolar, tudo era feito à pé, em meio à lama, a chuva, a poeira e muita marta ainda virgem, o caminho para a escola poderia ser uma aventura. Este é o caso das crianças hoje pessoas na faixa de 60 anos, que, na década de 1960, estudaram em uma pequena escola multisseriada no bairro Diamante, em Rodeio – SC. Esta experiência, relatada nas entrevistas, a partir de suas memórias, está carregada de emoções e boas recordações. Este artigo, elaborado a partir dos dados gerados para uma dissertação de mestrado mostra que, apesar de o caminho ser longo, este não parecia ser um problema para eles. É no caminho que eles libertam sua infância, que insiste em ser aprisionada pela disciplina, pela ordem, pelo trabalho. Ir à escola é um caminho que pode acarretar inúmeros sentimentos: a angústia, a alegria, o medo, a tristeza, a preguiça, a ansiedade. Para muitos, é uma oportunidade. No caminho, conforme já mencionado, a infância aflora, longe dos olhos dos pais, longe dos olhos dos professores. Ali as crianças têm a oportunidade de brincar, de expor suas peraltices. A geração dos dados foi realizada a partir da aplicação de uma entrevista semiestruturada com onze sujeitos que estudaram na Escola Isolada Diamante I, em área rural do município de Rodeio‐SC, na década de 1960. A seleção dos sujeitos para a pesquisa foi feita a partir dos seguintes critérios: ter estudado naquela escola durante a década de 1960 e ainda residir na cidade de Rodeio. As entrevistas foram realizadas na casa dos sujeitos, em dias e horários escolhidos por eles. Para a identificação dos sujeitos, foi escolhida a sigla E1, que se refere a estudante 1, E2, E3 e assim por diante, para cada um dos entrevistados. As entrevistas foram gravadas em meio digital e transcritas em meio digital para viabilizar a análise. Dentre as vinte questões, aplicadas, havia uma especificamente que levantava a temática acerca do caminho: “Como era o caminho de casa para a escola e da escola para X ANPED SUL, Florianópolis, outubro de 2014. p.2
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ENTRE A CASA E A ESCOLA: O CAMINHO PELO OLHAR DE CRIANÇAS DE AREA RURAL NA DÉCADA DE 60 Luciana Fiamoncini ‐ Celso Kraemer casa?” As demais perguntas fazem referência a outros aspectos da vida na roça e à experiência escolar em uma escola multisseriada e serão destinadas para a elaboração da pesquisa de mestrado. A partir das narrativas realizadas pelos sujeitos, construiu‐se este estudo, cujo objetivo é compreender de que forma os sentidos atribuídos à experiência do caminho entre a casa e a escola, vivida há mais de 50 anos, em área rural, por crianças que frequentaram uma escola multisseriada. Discute‐se também as formas de interação entre as crianças, a dinâmica da memória e possíveis influências dessa experiência na constituição da subjetividade destas pessoas. Estas crianças, no caminho para a escola, sentiam‐se livres? Ou havia nelas, mesmo sem a vigilância constante dos pais e professores, o sentimento de obediência e responsabilidade como se estivessem sendo vigiados? Deve‐se levar em conta que se trata do relato de pessoas adultas, acerca de sua experiência vivida enquanto crianças. Em seus relatos deve‐se levar em conta a dinâmica da memória, no processo de contínua ressignificação da própria experiência. Para Ricoeur (2010), a memória tem na narrativa seu ponto fundamental de produção, pois a própria experiência só se completa na narrativa. Existe uma dimensão social e política de trabalhar as memórias, para fazer parte da história, para se afirmar positivamente no mundo. Nesse mesmo sentido, pode‐se trazer Bosi (1994), que afirma que a memória individual sempre dependerá do social. Assim, a memória através da narrativa só existe a partir de um compartilhamento de informações, que pode ser oral ou escrito. 2. De onde vinham? O contexto histórico da cidade na década de 1960. Rodeio é uma cidade pequena, com aproximadamente 10.922 habitantes (dados do IBGE – 2010) situada no Vale do Itajaí. O município de Rodeio foi emancipado no ano de 1937, sendo que antes desta data pertencia à cidade de Timbó. Rodeio faz divisa com as cidades de Timbó, Indaial, Benedito Novo e Rio dos Cedros. A indústria têxtil, a indústria madeireira e a agricultura são as fontes econômicas mais presentes no município. X ANPED SUL, Florianópolis, outubro de 2014. p.3
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ENTRE A CASA E A ESCOLA: O CAMINHO PELO OLHAR DE CRIANÇAS DE AREA RURAL NA DÉCADA DE 60 Luciana Fiamoncini ‐ Celso Kraemer A vida na cidade de Rodeio, especialmente no ambiente rural, é influenciada pela tradição deixada pelas famílias italianas que colonizaram a cidade. Muitas das cidades catarinenses colonizadas por italianos têm suas raízes no norte da Itália, mais especificamente em Tirol Trento, cidade predominantemente agrícola. De lá vieram as famílias que colonizaram o que hoje é a cidade de Rodeio, em busca de uma vida melhor. Aproximadamente trezentas foram as famílias que saíram da Itália no ano de 1875. Iniciaram suas viagens em navios. Ao aportarem, o transporte via terrestre era realizado de carroças, cavalos e até mesmo a pé (Berri, 1993). Destas famílias, vinte delas iniciaram a construção da Picada de Rodeio, pequena trilha que deu início à cidade. De acordo com Berri (1993), estas vinte famílias formaram inicialmente a comunidade de Rodeio 12 ou Santo Antônio, bairro que atualmente faz divisa com as cidades de Timbó e Benedito Novo. A Picada de Rodeio foi a primeira estrada aberta com golpes de facão pela mata, na época densa e fechada. Esta Picada constituiu o caminho sobre o qual se constituiu a cidade que ali se formava. Ela ia de Timbó até o lugar que depois formou o que se chama, atualmente, o Diamante, bairro no qual se localiza a escola, objeto do presente estudo. Cani afirma que a Picada de Rodeio era “um caminho estreito, tortuoso, ladeado de capoeirões” (2011, p. 148). Inúmeras foram as dificuldades enfrentadas pelos colonizadores. Além da mata fechada, também tiveram de enfrentar animais ferozes, escassez de alimentos e o medo do desconhecido. Os traumas psicológicos foram as principais marcas deixadas nos desbravadores pelo árduo processo de colonização (Berri, 1993). As famílias aos poucos foram se instalando, formando seus lotes e construindo suas choupanas. As famílias que se instalaram no Diamante, com o tempo, também foram se alojando em habitações melhores. Os terrenos nos quais se construíram as habitações ficavam perto de ribeirões, porque a água era um elemento importante para a plantação que predominava na época: o arroz. A lavoura que produzia os principais mantimentos das famílias também era cultivada pelos colonos. As choupanas eram casas pequenas, X ANPED SUL, Florianópolis, outubro de 2014. p.4
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ENTRE A CASA E A ESCOLA: O CAMINHO PELO OLHAR DE CRIANÇAS DE AREA RURAL NA DÉCADA DE 60 Luciana Fiamoncini ‐ Celso Kraemer construídas com tábuas de madeira ou bambu e cobertas com folhas de palmeiras ou coqueiros para abrigar as famílias (Berri, 1993). A vida no Diamante, como nas demais localidades na região a ser desbravada, não era fácil, pois nem todos os produtos necessários para o sustento da família podiam ser cultivados ou produzidos nas pequenas propriedades. O açúcar, o sal e a farinha, por exemplo, não eram produzidos por eles no princípio da colônia. Para que as famílias pudessem ter acesso a estes produtos alimentícios, os colonos tinham de andar a pé ou a cavalo entre de dez a trinta quilômetros, dependendo de sua localização, pelas pecadas mata adentro, para chegar a Timbó ou Indaial, que eram as cidades mais próximas que já dispunham de pequenas mercearias (CANI, 2011). Na década de 1960, a tradição que veio das famílias italianas permanecia ainda forte. O café da manhã, sempre reforçado, geralmente tinha o mesmo alimento como base: a polenta feita no fogão à lenha. O café, feito dos grãos colhidos e preparados em casa mesmo, não poderia faltar. Raras vezes as famílias dispunham do queijo. Quando tinha, era repartido por igual entre as crianças e os adultos: “E5 – O café era polenta e café. Mas era o café de grão. Nem se compara ao café do mercado, é outro gosto. A mãe fazia a polenta e a gente comia um pedacinho de queijo quando tinha. E ai de quem tirasse uma fatia um pouquinho maior.” Santa Apolônia, a padroeira do bairro, também é herança da colonização italiana. Ela foi homenageada devido às preces que os imigrantes faziam a ela pedindo proteção em suas empreitadas. Em agradecimento, a capela do bairro foi batizada de Capela Santa Apolônia e foi construída pelos próprios moradores do bairro. A Escola Mista Estadual Diamante I, posteriormente chamada de Escola Isolada Diamante I foi criada somente anos depois. A missa, na época, era uma das maiores celebrações da época, para a qual a família se reunia e iam a pé para a celebração, com suas melhores roupas. X ANPED SUL, Florianópolis, outubro de 2014. p.5
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ENTRE A CASA E A ESCOLA: O CAMINHO PELO OLHAR DE CRIANÇAS DE AREA RURAL NA DÉCADA DE 60 Luciana Fiamoncini ‐ Celso Kraemer Qvortup (2012) afirma que as crianças não estão isentas de sofrerem impactos em suas vidas a partir das transformações e das forças econômicas, sociais e das decisões políticas. Estas atividades não somente se relacionam ao mundo adulto que, embora mais diretamente, sofrem seus impactos, mas também as crianças. Levando‐se em conta, então que o trabalho em casa era bastante árduo, as famílias, que tinham muitos filhos, não poupavam as crianças de determinadas funções ou tarefas, às quais seu porte físico era apto a realizar. Cuidar do gado e da plantação exigia das famílias uma longa jornada de trabalho, que começava cedo pela manhã e terminava à noite, ao pôr do sol. E2 – A, uns nove anos. Não ia trabalhar no pesado, mas acompanhava o pai. Se ele ia buscar lenha ou nas arrozeiras a gente sempre acompanhava. E3 – Com dez anos eu já puxava o boi na arrozeira. Não no plantio, mas eu ajudava a puxar o boi pra virar a terra né naquela época. E4 – Até me lembro que com sete, oito anos a gente capinava e se cortava um pé de aipim a gente apanhava. E8 – Sete anos. Com sete anos eu arava a arrozeira eu e meu irmão. Hoje, é difícil pensar uma criança tão, pequena, trabalhando em serviços desta categoria. Em nossos dias, os pais são passíveis de punições judiciais caso isso ocorra. Mas isso não quer dizer que a criança não trabalhe. De acordo com Qvortrup (2012), do ponto de vista da sociologia da infância, pode‐se dizer que o trabalho apenas mudou seu sentido. Com a vinda da sociedade moderna, que dá ênfase ao conhecimento, percebe‐se que não se pode afirmar que a criança não trabalha mais, mas sim que seu trabalho passou de braçal a intelectual. O modo de produção da criança passou, portanto, de ajudar os pais no plantio, que era o sustento da família na época, para a produção de conhecimento nos bancos das escolas. Na época, o trabalho em casa era mais valorizado do que a permanência na X ANPED SUL, Florianópolis, outubro de 2014. p.6
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ENTRE A CASA E A ESCOLA: O CAMINHO PELO OLHAR DE CRIANÇAS DE AREA RURAL NA DÉCADA DE 60 Luciana Fiamoncini ‐ Celso Kraemer escola. Para alguns pais a escola era importante, para outros, o trabalho doméstico prevalecia. Observa‐se nesta fala que algumas famílias optavam por deixar seus filhos faltarem à escola para poderem ajudar em casa: E8 – O trabalho era desde criança. Sete anos arávamos arrozeiras eu e meu irmão. Sete anos. Quando eu comecei na aula inclusive ficava em casa da aula pra ajudar na arrozeira. Sete anos. Enquanto outras famílias da mesma época, com os mesmos afazeres, apoiavam seus filhos a estudarem e os incentivavam a irem à escola regularmente. E7 ‐ A gente já compreendia né a importância do estudo na época. Sabia que era alguma coisa fundamental. Já sabia né que, pro futuro, né, o nosso futuro iria depender muito desses primeiros anos. Já tinha essa consciência de que tinha que estudar. Era importante estudar. Era imprescindível. Os pais, pelo menos a nossa família tinha isso né, todos acredito também porque que eu me lembro todos aqui estudavam. A escola, portanto, para estas crianças era vista como uma forma de fugir do trabalho de casa. Embora fosse para o sustento da família, o trabalho é para a criança uma forma de responsabilidade, a qual eles não estão prontos para ter. Na escola, eles gozavam da liberdade de aprender, no caminho de casa para a escola podiam fazer o que gostavam e podiam brincar com seus colegas de classe. Permanecer as quatro horas sentados em cadeiras, portanto, não os incomodava. Pelo contrário, eles se conformavam em passar este tempo sentados para poder gozar de um breve período de brincadeiras: o recreio e o caminho para a escola. Observa‐se nas falas a seguir. E2: Ficar as quatro horas sentado? Era, era bom por causa que, a gente fugia das tarefas de casa. E9: Olha, eu gostava de ir pra escola, gostava de ir pra escola porque a gente tinha que dosar né, a parte de estudo e a parte do trabalho de ajudar em casa né. X ANPED SUL, Florianópolis, outubro de 2014. p.7
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ENTRE A CASA E A ESCOLA: O CAMINHO PELO OLHAR DE CRIANÇAS DE AREA RURAL NA DÉCADA DE 60 Luciana Fiamoncini ‐ Celso Kraemer E11: Acho que era bom porque se a gente vinha pra casa tinha que ir na roça e se a gente ficava na escola era melhor né. A fala dos sujeitos entrevistados nos remete ao passado, porém a análise feita por eles é com olhar de adultos. A percepção deles hoje acerca de como se sentiam com relação à escola na época nos faz perceber que viam ali a possibilidade de extravasar, de poder brincar e serem verdadeiramente crianças, e não “mini adultos”, com as responsabilidades do trabalho impostas sobre eles. Algumas famílias tinham por hábito incentivar as crianças a estudar, o que era importante para não ter que depender do trabalho na roça a vida inteira. 3. Para onde iam? A Escola Isolada Diamante I. Inicialmente, faz‐se necessário compreender o que era uma escola multisseriada na década de 1960. Imaginemos uma escola com uma única sala, um (a) único (a) professor (a) e quatro séries. A escola multisseriada é um espaço no qual uma sala de aula comporta alunos de diferentes idades e de quatro diferentes séries. Fora da sala de aula, mas também no espaço da escola multisseriada, havia uma cozinha, que servia de refeitório e um pequeno banheiro, há alguns metros de distância da escola. A merenda era preparada pela própria professora ou mesmo pelas alunas, que tinham que se organizar por entre o horário das aulas. Além da responsabilidade de preparar a merenda, tinham também que limpar a cozinha e, após a saída dos alunos, a sala de aula. A divisão das atividades referentes aos conteúdos a serem passadas para as turmas ficava a critério da professora, que dividia os alunos da forma como acreditava ser a melhor para que todos pudessem abstrair o máximo de aprendizado possível. Geralmente, uma linha de risca de giz dividia no quadro os assuntos para cada uma das séries. Enquanto a professora explicava para uma turma, a outra copiava, e assim por diante. Os alunos de séries mais avançadas geralmente eram responsabilizados por auxiliar os alunos de séries menos avançadas. X ANPED SUL, Florianópolis, outubro de 2014. p.8
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ENTRE A CASA E A ESCOLA: O CAMINHO PELO OLHAR DE CRIANÇAS DE AREA RURAL NA DÉCADA DE 60 Luciana Fiamoncini ‐ Celso Kraemer A rotina destas escolas multisseriadas era sempre a mesma: aula, lanche e aula. Raras vezes eram feitas homenagens ou saídas. Quando ocorriam, geralmente eram relacionadas a algum evento promovido pela Igreja, na época muito influente na educação escolar. A horta também era cultivada pela professora e pelas alunas. Em seguida, iam para casa, seguindo seus caminhos. A pé, pois na época não havia ônibus ou carros para levá‐los e buscá‐los. E é justamente este caminho que nos interessa nesta pesquisa. O bairro Diamante, na cidade de Rodeio, é um bairro predominantemente agrícola, cujo arroz é seu principal plantio. Em 1960, não havia fácil acesso ao centro da cidade, o que fazia com que as crianças do bairro estudassem unicamente nesta escola. Ela era a única forma de proporcionar aos filhos dos agricultores o acesso ao estudo. O meio de transporte mais comum eram as carroças, cavalos e máquinas agrícolas. Embora fosse a única escola do bairro, a Escola Isolada Diamante I era considerada boa. Fonseca (1989) afirma que a escola multisseriada é considerada uma imitação da escola, e não a escola propriamente dita. Hoje, considera‐se comum este tipo de julgamento, pois o modelo considerado ideal para a educação é o da escola urbana. A escola à qual nos referimos não possuía muros nem cercas. Os alunos eram livres para ir e vir, na certeza de que retornariam à sala de aula. O campo de futebol, que se constituía de um gramado em frente à escola, era o local no qual as crianças se divertiam antes das aulas e durante o recreio. Era um local de livre acesso. O banheiro, localizado a metros de distância da escola, era também liberado para que as crianças fossem sozinhas. Não havia a preocupação com o fato de alguma criança fugir da escola. Hoje, o que mais chama a atenção nas construções escolares é a altura dos muros que as cercam. Em muitas localidades, além da altura que chama a atenção, o topo do muro é revestido de arame farpado. Uma verdadeira prisão. Talvez esta diferença ocorra porque a escola era o local no qual as crianças se sentissem livres. Livres das atividades de casa, livres para aprender o que gostavam, livres para brincar. A liberdade, naquela época, apresentava outro conceito. Em casa, o dever do trabalho era mais dolorido do que o fato de irem à escola. Eles tinham o prazer de ir X ANPED SUL, Florianópolis, outubro de 2014. p.9
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ENTRE A CASA E A ESCOLA: O CAMINHO PELO OLHAR DE CRIANÇAS DE AREA RURAL NA DÉCADA DE 60 Luciana Fiamoncini ‐ Celso Kraemer para a escola e viam lá uma oportunidade de se expressarem como crianças, enquanto em casa, eram mini adultos, trabalhadores. 4. As memórias dos caminhos percorridos. A cada entrevista realizada com os sujeitos, a nítida expressão da saudade se estampa nos seus rostos. Onze foram os sujeitos entrevistados para a realização da pesquisa. Os critérios para a escolha dos onze sujeitos entrevistados foi, inicialmente, ter estudado na Escola Isolada Diamante I, durante a década de 1960. Em seguida, ainda residir em Rodeio e ter condições de realizar a entrevista. Foram entrevistados oito homens e três mulheres. O mais novo, um homem com 51 anos e a mais velha, uma mulher com 60. No total, vinte foram as questões realizadas acerca da vida no campo, da escola e da rotina diária. Destas vinte questões, uma foi a escolhida para ser analisada e dar corpo a este artigo. A pergunta refere‐se a como era o caminho de casa para a escola e da escola para casa. Era ali que eles faziam suas peraltices, o fato de estarem por um momento, por si sós, sem os olhares disciplinadores dos pais e dos professores. Quando se trata do sistema de ensino do nosso país, naquele bairro na década de 60, a escola multisseriada era a única oportunidade para que aquelas crianças estudassem. Não tinham meios de transporte adequados e disponíveis para levá‐los a uma escola na cidade. Portanto, a pé, seguiam seus caminhos. Aos poucos, o grupo ia crescendo conforme iam se encontrando pela estrada afora, até chegarem à escola. E3 – A gente ia sempre sozinhos, mas entre os colegas nós se esperava na saída das ruas, daí nós ia junto e voltava junto, sempre de a pé. E5 – A, a gente ia em tropas né. Eu, o Paulo, o Marcos, o Carlos. Que tinha mais ou menos a minha idade. X ANPED SUL, Florianópolis, outubro de 2014. p.10
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ENTRE A CASA E A ESCOLA: O CAMINHO PELO OLHAR DE CRIANÇAS DE AREA RURAL NA DÉCADA DE 60 Luciana Fiamoncini ‐ Celso Kraemer As crianças aparentemente, em suas falas atuais, não se importavam com o fato de não terem transporte para irem à escola. De pés no chão, seguiam, sem reclamar, de casa até a escola. As condições de vida nem sempre oferecia o suficiente para terem vestimentas adequadas para ir à escola; tinham que andar de chinelos, fosse frio ou calor, não importava o clima; material escolar precário, etc. E4 ‐ A gente ia a pé, com chinelinho, mas a gente não reclamava. Às vezes quando era frio, geada, a gente de chinelo de dedo e saiínha curta porque tu pensa que nós tinha essas coisas de meia essas coisas que nem tem hoje em dia? Tênis, nada. Nós tinha só um chinelinho, uma blusinha. Bolsa nós não tinha, mochila nós não sabia nem o que era. As bolsas quem fazia era a mãe, de pano, ela costurava, botava um fecho em cima e enfiava os cadernos ali e ia embora. Outro fator a ser analisado na fala dos sujeitos é o fato de que no caminho, encontravam possibilidades de fazer suas traquinagens longe dos olhos vigilantes e punitivos dos adultos. Na escola, o castigo por aprontarem se configurava em perda do horário de lanche, ou ter que escrever muitas vezes a mesma frase no caderno. Em casa, o castigo era mais severos: os castigos físicos, surras com o cinto e ter de ficar ajoelhados no milho são alguns exemplos. E1 – Se aprontasse a professora brigava, mas em casa era bem pior. O pai não perdoava. Era ficar de joelho no milho. E5 – Em casa era bem pior do que na escola. Lá ainda a professora ficava com pena e deixava nós sem o lanche, mas em casa era a cinta mesmo. E8 – Se aprontasse na escola e a professora falasse pro pai? Uh, era uma surra na certa. E daquelas de tirar o couro. Em casa a gente não brincava não. O pai era ali ó. Quando chegavam à escola, faziam suas brincadeiras até a hora que a professora tocasse o sino para que entrassem em sala de aula. De acordo com Fernandes & Molina (2005), o campo é repleto de possibilidades. As particularidades e matrizes culturais do campo possibilitam às escolas multisseriadas discutir acerca destas diferenças existentes X ANPED SUL, Florianópolis, outubro de 2014. p.11
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ENTRE A CASA E A ESCOLA: O CAMINHO PELO OLHAR DE CRIANÇAS DE AREA RURAL NA DÉCADA DE 60 Luciana Fiamoncini ‐ Celso Kraemer entre o campo e a cidade problematizando, não apenas colocando a cidade como superior ao espaço rural. Para aquelas crianças, o campo era seu melhor espaço. Na cidade, sentiam‐se diferentes dos demais. Fora de espaço em que eram acostumados a viver, sentiam‐se desconfortáveis. As comparações entre as pessoas da cidade e as pessoas do campo são evidentes nas falas dos sujeitos. Eles constantemente ressaltam a vergonha que sentiam e a sensação de inferioridade. E3 ‐ E eles iam tudo bem vestidos, e a gente se sentia mal. Mal por ter que se apresentar talvez com uma roupa mais simples, e eles naquela época o pai deles tinha Fusca. Levavam eles pra aula, e eu e o Gilmar nós chegava de bicicleta, e a gente se sentia mal, se sentia inferior, bem inferior. E4 – Quando a gente ia pra Rodeio com o pai, a gente até se sentia mal, porque a gente gostava era de andar descalço, correr. Lá tinha que ficar grudado no pai pra não se perder. Sabe né, a gente era acostumado só ali, nunca viu gente. Pode‐se inferir, portanto, que a imagem corporal influencia no comportamento de alguns dos sujeitos entrevistados. Eles, na época crianças, por se sentirem inferiores quando fora de seu espaço, agiam de forma tímida e contraída, inibindo os movimentos que normalmente teriam quando no espaço da roça. Percebe‐se, portanto, que há aqui relações de poder em funcionamento. As relações que se estabelecem com o corpo e, paralelamente, a concepção de saúde que se estrutura nesse período, apresentam fortes marcas de uma ordem econômica tão diversa quanto a do capitalismo... O corpo do indivíduo é a concretização da força do trabalho, mercadoria fundamental nesta nova ordem; o corpo social é a garantia desta nova ordem (SILVA, 1999, p. 42). Assim, o capitalismo dita as regras do jogo: quem se veste melhor, quem tem mais bens, pode dominar e inibir quem tem menos condições financeiras. O corpo mostra quem é mais forte, quem domina e quem é dominado. E não é necessário ser adulto para compreender esta relação: as crianças já percebiam esta diferenciação em suas vivências. X ANPED SUL, Florianópolis, outubro de 2014. p.12
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ENTRE A CASA E A ESCOLA: O CAMINHO PELO OLHAR DE CRIANÇAS DE AREA RURAL NA DÉCADA DE 60 Luciana Fiamoncini ‐ Celso Kraemer No caminho para a escola, estavam entre seus iguais, ou seja, todos viviam com as mesmas condições. Embora uns tivessem melhor poder aquisitivo, ou maior posse de terra que os outros, o estilo de vida era muito parecido. Portanto, não havia diferença estabelecida entre eles. Sentiam‐se, portanto, à vontade, não discriminados. 5. Conclusões A criança é um ser construído social e historicamente. De acordo com Luz (2010), ela é socialmente determinada, ou seja, o mundo adulto decide como ela deve agir, de que forma deve se comportar, com base nos parâmetros estabelecidos pelas aspirações adultas. Assim, a criança acaba por ter moldada sua forma de ser. Na concepção moderna, iluminista, a criança deve ser educada, de acordo com Kant (1996), para a solidariedade, para o cuidado, que são necessárias para que, enquanto ser humano se diferencie dos demais animais. Ela também é educada para ser controlada e governada, limitando seus movimentos e atribuindo à peraltice natural da infância o conceito de falta de educação. Assim, podemos concluir que a ida e a vinda pelos caminhos de casa para a escola e vice‐verso são uma forma de a criança poder manifestar sua singularidade de criança. A estrada para a escola era um espaço fundamental para ela experimentar a inf?ância como criança, com as brincadeiras e transgressões necessárias ao desenvolvimento. Durante o caminho as crianças, de certa forma, cuidavam umas das outras, experimentavam a solidariedade. Mas também exerciam a ética e a política na relação autônoma (sem a imposição da vigilância dos pais ou professora), fazendo brincadeiras umas com as outras, experimentando sua força, seus argumentos, sua liderança, tec. Iam e voltavam sozinhas, com a responsabilidade de chegarem, bem tanto em casa quando na escola. Para Kant (1996) a educação forma o ser humano por completo, e não se dá somente em casa ou na escola, se dá também entre os pares. Ainda para Kant (1996), o cuidado, a formação e a instrução são necessidades humanas para uma formação íntegra e pode‐se inferir que dar às crianças responsabilidades de se experimentarem, de transgredirem, de exercitarem o auto‐
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ENTRE A CASA E A ESCOLA: O CAMINHO PELO OLHAR DE CRIANÇAS DE AREA RURAL NA DÉCADA DE 60 Luciana Fiamoncini ‐ Celso Kraemer governo, faz com que elas compreendam que são capazes de cuidarem uns dos outros, mesmo sem a guarda dos pais ou de outros responsáveis. Portanto, o caminho que eles percorriam pode ser considerado um momento de aprendizado significativo, no qual aprendiam uns com os outros a conviver, a cuidarem uns dos outros. A criança deve ser olhada, de acordo com Luz (2010), como um todo, buscando identificar nela suas habilidades, potencialidades e limitações. A criança é, portanto, um ser capaz de interagir com o outro, de descobrir e, de alguma forma, transformar o mundo em que vive. O convívio entre elas faz com que aprendam coisas que não podem ser ensinadas nem em casa nem na escola. Referências Bibliográficas BERRI, Aléssio. Imigrantes italianos, criadores de riquezas. Blumenau: Fundação Casa Dr. Blumenau, 1993. BOSI, Ecléa. Memória e Sociedade: lembranças de velhos. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. BREDA, Bruna; GOMES, Lisandra Ogg. Entre a Sociologia, a infância e as crianças: uma conversa com o sociólogo Jens Qvortrup. Currículo sem Fronteiras, v. 12, n. 2, p. 499‐513, maio/ago. 2012 CANI, Iracema Maria Moser. Rodeio: histórias e memórias. Indaial: Uniasselvi, 2011. FERNANDES, MOLINA. As relações sociais na Escola e a Formação do trabalhador. In: BAUMAN, Z. Identidade. Rio de Janeiro: Zahar Ed. 2005. FONSECA, Maria Teresa Lousa de. Escolarização das populações rurais na nova LDB. Educação e Revista, Belo Horizonte, n. 9, p. 18‐21, 1989. IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Censo Populacional 2010 (29 de novembro de 2010). Acesso em 05 Abr 2014. KANT, Immanuel. Sobre a pedagogia. Tradução: Francisco Cock Fontanella. Piracicaba: Ed. UNIMEP, 1996. LUZ, Mônica Abud. Entendendo o que é ser criança. 2010. Disponível em <http://www.abpp.com.br/artigos/117.pdf> Acesso em 13 Abr 2014. X ANPED SUL, Florianópolis, outubro de 2014. p.14
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ENTRE A CASA E A ESCOLA: O CAMINHO PELO OLHAR DE CRIANÇAS DE AREA RURAL NA DÉCADA DE 60 Luciana Fiamoncini ‐ Celso Kraemer QVORTUP, Jens. Nove teses sobre a infância como um fenômeno social. 2010. Disponível em < http://www.scielo.br/pdf/pp/v22n1/15.pdf> Acesso em 15 Abr 2014. RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa: a intriga e a narrativa histórica. Trad. de Cláudia Berliner. São Paulo: Martins Fontes, 2010. SILVA, Ana Márcia. O corpo do mundo: reflexões acerca da expectativa de corpo na modernidade. Florianópolis, 1999. Tese (Doutorado Interdisciplinar em Ciências Humanas) ‐ Universidade Federal de Santa Catarina. X ANPED SUL, Florianópolis, outubro de 2014. p.15
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