O VINHO E A FARINHA, “ZONAS DE SOMBRA” NA ECONOMIA ATLÂNTICA NO SÉCULO XVII
dioca no Recôncavo Baiano. A fazenda é propriedade da Santa Casa de Misericórdia, fornecendo farinha e outros produtos para o hospital, para outras instituições e para venda. Quanto era destinado à venda, através de que circuitos
comerciais essa farinha era distribuída não fica claro63. Em artigo sobre o crédito e a circulação monetária na capitania do Rio de Janeiro, Jucá de Sampaio
coloca a questão da farinha. O autor argumenta sobre a escassez de moeda
metálica no Rio de Janeiro, na segunda metade do século XVII64, mostrando
que ela fez surgirem “moedas substitutas”, ou seja, produtos de grande circulação que, na falta de dinheiro, entravam no circuito comercial no lugar do
dinheiro sonante65. Segundo ele dentre as moedas substitutas a mais importante
era o açúcar e, em menor escala, os tecidos de algodão66. Não há menção ao
vinho como moeda embora pelo menos em Angola, foi possível verificar que o
vinho foi fartamente utilizado na compra de escravos, especialmente até 1640.
Ainda segundo Jucá de Sampaio, a farinha e a cachaça foram utilizadas como
moeda substituta no comércio atlântico, mas alega não ter encontrado seu uso
como meio de pagamento na capitania do Rio de Janeiro67.
Não é difícil entender que aquilo que muitos produziam não pudesse ser
transformado em moeda substituta. Ao que parece, a distância na procedência
de certos produtos ou a dificuldade de acesso a eles, combinada a uma ampla
demanda, faz de certos produtos moedas substitutas. O açúcar produzido por
poucos e os panos vindos de fora melhor aplicavam-se à essa demanda. Assim,
não é de estranhar que a farinha e a cachaça fossem moeda no Atlântico e não
no Recôncavo da Guanabara, onde eram fartamente produzidas e de fácil
acesso. Cabe aqui pensar em que medida até meados do século XVII o vinho
português teria sido uma das moedas substitutas e, se o foi, porque teria ele
pedido terreno para a farinha e a cachaça. A resposta para isso pode estar justamente nas características desses três produtos. Enquanto o vinho tinha uma
durabilidade reduzida, azedando com freqüência devido ao calor e às más condições de transporte e armazenagem, a cachaça e a farinha eram produtos de
grande durabilidade e fácil estocagem.
Voltando à hierarquia das pessoas e dos produtos a que me referi no início
deste capítulo, havia em relação à farinha um visível desprestígio, fazendo com
que homens de maior distinção não quisessem ver-se associados a um produto
tão baixo. Partindo do princípio de que o que não se vê parece não existir, não
apenas o consumo da farinha, mas a sua produção e circulação ficaram encobertas por um véu de silêncio tanto na documentação quanto, em decorrência
disso, em análises posteriores. Brandônio foi um daqueles que rompeu o silêncio, mas à sua fala junta-se um comentário de Alviano, o segundo interlocutor:
“quando querem vituperar o Brasil, a principal coisa que lhe opõem de mau é
que nele come-se farinha de pau”. Assim, a farinha ainda mais que o vinho
barato parece estar associada ao que de mais baixo se encontra na hierarquia
dos produtos comerciais atlânticos, tornando-se por isso uma das “zonas de
sombra”68 do comércio colonial que precisam ser clareadas por novas pesqui227
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