Curitiba, Vol. 3, nº 4, jan.-­‐jun. 2015 ISSN: 2318-­‐1028 REVISTA VERSALETE RETRATOS DE UMA VIDA: AS CARTAS DE CRUZ E SOUSA PORTRAITS OF A LIFE: CRUZ E SOUSA’S LETTERS Jéssika de Aredes Miranda1 Nathália Izabela Rodrigues Dias2 RESUMO: A partir da análise das correspondências de Cruz e Sousa, este trabalho explora a forma como as cartas do autor retratam sua vida. As missivas cruzsousianas mostram outra face do escritor na qual percebemos uma vida marcada por desilusões, dificuldades financeiras e rejeição étnico-­‐
social. Além das misérias vividas, questões estéticas e a relação com a amada Gavita são igualmente exploradas. Dessa forma, mostramos como o poeta das evocações de elementos transcendentais é, também, o homem apaixonado tomado pelo desespero de uma vida pautada pela angústia e o insucesso. Palavras-­‐chave: Cruz e Sousa; correspondência; vida. ABSTRACT: Starting from the analysis of Cruz e Sousa’s correspondence, this paper explores how his letters portray his life. The missives show another facet of the writer in which we perceive a life marked by disappointments, financial difficulties and ethnic-­‐social rejection. In addition to the extreme poverty aspect, aesthetic issues and the relationship with his beloved wife, Gavita, are also explored. Thus, we show how the poet of evocations of transcendental elements is also a passionate man dominated by despair while living a life ruled by misery and failure. Keywords: Cruz e Sousa; correspondence; life. “Quando mesmo Cruz e Sousa não deixasse escrita uma linha sequer, bastava unicamente a sua vida para fornecer uma das mais curiosas monografias humanas”. Nestor Vítor A carta é um gênero de feição múltipla, de naturezas diversas — administrativa, social, comercial ou pessoal —, e diferentes tipos — familiar, amorosa, política, autobiográfica, diplomática, etc. Principal meio de contato entre interlocutores 1Graduanda em Letras, FALE/UFMG. 2Graduanda em Letras, FALE/UFMG. Miranda, J. A. et DIAS, N. I. R. Retratos de uma vida... 193 Curitiba, Vol. 3, nº 4, jan.-­‐jun. 2015 ISSN: 2318-­‐1028 REVISTA VERSALETE distantes até o século XIX e boa parte do século XX, escrever cartas era a forma de manter a interação entre os missivistas e de sustentar um relacionamento à distância. Grande parte dos escritores, por meio de missivas de caráter pessoal, correspondia-­‐se regularmente, seja para o envio de notícias triviais, seja para discutir atividades literárias. Por meio desse diálogo epistolar têm-­‐se registros socioculturais que revelam características e hábitos de uma época, e uma vez que se constitui num momento espaço-­‐temporal específico, a carta atua como reflexo da vivência do indivíduo em determinado tempo histórico, chegando a constituir-­‐se, muitas vezes, como objeto autônomo. A leitura de cartas de escritores/intelectuais tem mostrado que o gênero epistolar presta-­‐se ao conhecimento do cenário literário e cultural de determinado período, ou como gênese do processo de composição/criação de um texto. Além disso, seu caráter biográfico pode revelar características, intenções e ideias que auxiliem a compreensão do escritor. Ler uma correspondência não significa conhecer um autor como ele de fato foi, mas formar uma imagem acrescida de outros tons e enriquecida por certos ângulos. Não se trata de criar um retrato definitivo, mas entrever gestos e traços que relampejam em um momento de ansiedade, de dúvida ou de bem-­‐estar. De fato, uma correspondência intelectualmente afinada com seu tempo, percorre caminhos acidentados e descontínuos. Não é a história de uma vida, com começo e fim determinados. É um processo aberto, sujeito às vicissitudes do tempo e às influências do cotidiano [...]. É uma pluralidade de histórias, desprovidas de princípios rígidos e predeterminados, que permitem ver o curso de uma vida e traçar uma linha de acontecimentos. (SANTOS, 1998, p.287) Este trabalho pretende mostrar como a correspondência do escritor simbolista João da Cruz e Sousa (1861-­‐1898), filho de escravos, retrata a sua vida: as dificuldades, seu gênio poético, a relação com os amigos e a mulher; tudo aquilo que nos permita enriquecer as possibilidades interpretativas sobre a obra do poeta. As características de maior relevo do escritor — responsáveis pelo seu reconhecimento como principal nome do Simbolismo no Brasil — como a dicção Miranda, J. A. et DIAS, N. I. R. Retratos de uma vida... 194 Curitiba, Vol. 3, nº 4, jan.-­‐jun. 2015 ISSN: 2318-­‐1028 REVISTA VERSALETE poética pesada, o trabalho estético em busca da materialização do inefável, e o conflito causado pela consciência de impossibilidade de realização da experiência mística através da linguagem, não encontram ressonância em suas cartas. A correspondência cruzsousiana mostra outra face do poeta: as desilusões de uma vida marcada pela rejeição étnico-­‐social, os constantes pedidos de ajuda financeira aos amigos, as promessas de amor eterno à esposa Gavita, as discussões acerca de projetos literários e o prenúncio da morte. Estes elementos nos ajudam a construir uma imagem possível do homem que foi Cruz e Sousa. O ceticismo e a desesperança advindos de uma vida coberta de percalços e adversidades de toda sorte refletem-­‐se em uma escrita que se revela consciente de sua própria realidade. As missivas enviadas à Gavita evidenciam o amor profundo e o respeito do autor pela futura esposa. A mulher é idolatrada como ser divino ao qual ele promete amor puro e fidelidade. Ela é adorada como lugar único de felicidade possível. Além disso, a noiva é retratada como refúgio do mundo que o mirava com profundo desprezo, pois a pureza e bondade de “Vivi”, apelido carinhoso dado à sua companheira, são um reduto de proteção onde o poeta encontra alívio e conforto frente à sua marginalização na sociedade. [...] eu te tenho como o consolo maior da minha vida, a luz do meu coração, a esperança feliz da minha alma. [...] Amo-­‐te, amo-­‐te muito, com todo o meu sangue e com todo o meu orgulho e o meu desejo poderoso é unir-­‐me a ti, viver nos teus braços, protegido por tua bondade pura, pelas tuas graças que eu adoro, por teus olhos que eu vejo. [...] Eu te queria a ti, em pessoa, para te apertar de abraços, pedindo a Deus para abençoar o nosso amor. 3 (CRUZ e SOUZA, 2008). O sofrimento de Cruz e Sousa vai além da marginalização sofrida em decorrência de sua etnia e corrente estética; a enorme decadência de sua vida se reflete em algumas cartas que são verdadeiros gritos de desespero, já que ele não tinha recursos 3Carta a Gavita. Noite de terça-­‐feira, 20 de setembro, às 7 horas, p. 635. Todas as correspondências citadas estão disponíveis em: <http://fcc.sc.gov.br/cruzesousa/cruzesousa_vol2_prosa.pdf.>. Miranda, J. A. et DIAS, N. I. R. Retratos de uma vida... 195 Curitiba, Vol. 3, nº 4, jan.-­‐jun. 2015 ISSN: 2318-­‐1028 REVISTA VERSALETE financeiros para comprar nem o alimento de sua família. Os pedidos de ajuda aos amigos políticos e poetas vão desde a súplica por leite a passagens. Cruz e Sousa reclama a Nestor Vítor, figura intelectual e afetiva de maior expressão nos textos, não só ajuda com as finanças, mas, também, a presença do amigo, uma vez que a convivência com ele lhe é consoladora. [...] o pior, meu velho, é que estou numa indigência horrível sem vintém para remédios, para leite, para nada, para nada! Um horror! Minha mulher diz que sou um fantasma, que anda pela casa! Se pudesses vir hoje até cá, não só para me confortares com a tua presença, mas também para me orientares n’algum ponto desta terrível moléstia, será uma alegria para o meu espírito e uma paz para o meu coração. 4 (CRUZ e SOUZA, 2008). Nas correspondências o poeta não é aquele que sugere a evocação de elementos transcendentais e a reflexão sobre a limitação da linguagem, como em sua produção artística, e sim, alguém que se encontra em um profundo desespero — que não está ausente, também, da sua produção poética. Dessa forma, seu rogo é tomado pela angústia de ter como saída única os empréstimos e favores de seus conhecidos. A precariedade da situação em que se encontra o escritor é tão grande que, ao não receber respostas de seus pedidos desesperados, ele escreve por mais vezes às pessoas próximas pedindo quantias menores de dinheiro. Ilustre Poeta Amigo Com os cumprimentos de estima e consideração que lhe apresento, tomo novamente a liberdade de importuná-­‐lo com relação ao pedido que tive necessidade de fazer-­‐lhe por carta. Uma vez que se não dignou responder-­‐me, peço-­‐lhe ainda, apelando para os seus generosos sentimentos de homem, que me sirva, já não direi com a quantia de 300$000 reis, como lhe pedi, mas ao menos com a metade ou mesmo com 100$000 reis, pois é bem dolorosa a minha situação neste momento. Peço-­‐lhe, que mesmo em sentido negativo, resolva com urgência este bastante difícil pedido. 5 (CRUZ e SOUZA, 2008). 4Carta a Nestor Vítor. 27 de dezembro de 1897, p. 649. 5Carta a Luiz Delfino. 19 de novembro de 1893, p. 645. Miranda, J. A. et DIAS, N. I. R. Retratos de uma vida... 196 Curitiba, Vol. 3, nº 4, jan.-­‐jun. 2015 ISSN: 2318-­‐1028 REVISTA VERSALETE Mais que um simples papel marcado por tinta, a carta aproxima o remetente do destinatário. A foto de Gavita que o poeta possui, não é o bastante para acalmar a sua saudade da amada, a correspondência se faz necessária para suprir uma falta, representando o desejo de materialização da presença. Minha adorada Noiva Saudades, saudades, muitas saudades é o que eu sinto por ti. Escrevo-­‐te triste por não te ver e tenho, na hora em que te escrevo, o teu querido retrato diante de mim, entre os meus livros, companheiros dos meus sofrimentos.6 (CRUZ e Souza, 2008). Nestor Vítor foi o grande amigo de todas as horas do poeta catarinense, e as cartas a ele direcionadas são um misto de desabafo e pedidos de auxílio tanto financeiro quanto emocional. A ligação de amizade entre os dois parece ter sido tão forte que a presença física de Nestor é requisitada quase como um analgésico para a dor da tribulação. Frente à opressão do mundo e as tragédias íntimas, o consolo da presença é o amparo do desvalido. Meu Grande Amigo Peço-­‐te que venhas com máxima urgência a minha casa, pois minha mulher está acometida de uma exaltação nervosa, devido ao seu cérebro fraco que, apesar das minhas palavras enérgicas em sentido contrário e da minha atitude de fraqueza em tais casos acredita em malefícios e perseguições de toda a espécie. Cá te direi tudo. A tua presença me aclarará o alvitre que devo tomar. 7 (CRUZ e SOUZA, 2008). [...] Tenho tido grandes saudades de nossa convivência, tão consoladora e tão nobre. 8 (CRUZ e SOUZA, 2008). Cruz e Sousa mostra suas misérias pessoais sem fugir da realidade dos fatos e apresenta, ainda, certa consciência sobre a proximidade de sua morte, porém, sem perder a coragem. Tal meditação do autor sobre o fim da vida foi expressa 6Carta a Gavita. Noite de terça-­‐feira, 20 de setembro, às 7 horas, p. 635. 7Carta a Nestor Vítor. Rio, 18 de março de 1896, p. 647. 8Carta a Nestor Vítor. Rio, 2 de junho 1896, p. 648. Miranda, J. A. et DIAS, N. I. R. Retratos de uma vida... 197 Curitiba, Vol. 3, nº 4, jan.-­‐jun. 2015 ISSN: 2318-­‐1028 REVISTA VERSALETE poeticamente em Últimos Sonetos, publicação póstuma de 1905, em que os poemas sugerem uma preparação do poeta para a morte e o desejo de percorrer o caminho transcendental da eternidade por meio da arte. Não nos estenderemos nos comentários sobre a obra anteriormente citada, pois, aqui, pretendemos nos dedicar às cartas cruzsousianas. Meu Nestor Não sei se estará chegando realmente o meu fim; — mas hoje pela manhã tive uma síncope tão longa que supus ser a morte. No entanto, ainda não perdi nem perco de todo a coragem. Há 15 dias tenho tido uma febre doida, devido, certamente, ao desarranjo intestinal em que ando. 9 (CRUZ e SOUZA, 2008). Meu Araújo Que os meus braços amigos te apertem bem de encontro ao meu coração, no momento em que receberes estas linhas saudosas. Mas escrevo-­‐tas, meu querido irmão, com a alma dilacerada de angústias, porque me vejo a morrer aos poucos, e quisera, pelo menos passar alguns dias contigo, antes que isso sucedesse, pois vejo em ti um grande e afetuoso amparo aos meus últimos desejos. Fala com teu amigo José Fernandes Martins, e arranja com ele uma condução no paquete Industrial, para mim, para a Gavita e para os meus quatro filhos. Se escapar da morte que, no entanto, julgo próxima, ajudar-­‐te-­‐ei no teu colégio, ouviste? Saudades. O teu pelo coração e pela arte, Cruz e Sousa. 10 (CRUZ e SOUZA, 2008). Em meio às cartas de amor e clamor, há alguns textos que apresentam opiniões e projetos literários do autor. Em uma epístola a Gonzaga Duque, notamos a exposição do plano de criação da Revista dos Novos. A missiva referida data de 1894, contudo, a ideia de fundação de tal veículo de propagação artística começou a circular no ano de 1891. O intento da revista era servir como instrumento de luta dos simbolistas na divulgação de sua estética, da mesma forma como dispunham os escritores tradicionais — parnasianos. Cruz e Sousa assume uma postura apostolar e cita claramente os poetas com os quais gostaria de contar no projeto. Além disso, é evidente o seu repúdio pelo teatro, o gênero não deve ser nem mesmo citado na 9Carta a Nestor Vítor. Rio, 27 de dezembro de 1897, p. 649. 10Carta a Araújo Figueiredo. Rio, janeiro de 1898, p. 651. Miranda, J. A. et DIAS, N. I. R. Retratos de uma vida... 198 Curitiba, Vol. 3, nº 4, jan.-­‐jun. 2015 ISSN: 2318-­‐1028 REVISTA VERSALETE revista — de acordo com a justificativa apresentada no texto, não existiria ligação entre as orientações estéticas do grupo e aquele gênero. Em razão da riqueza de elementos presentes na carta referida, optamos por reproduzi-­‐la aqui integralmente. Rio, 11 de abril de 1894. Na impossibilidade de falar-­‐te calmamente, escrevo-­‐te uma ligeira exposição sobre a Revista dos Novos. Penso que o grupo que deve naturalmente constituir os combatentes da Revista dos Novos tem de ser composto da tua individualidade, Emiliano Perneta, Oscar Rosas, Arthur de Miranda, Nestor Victor, B. Lopes, Emilio de Menezes, Lima Campos, Araújo Figueiredo, Virgílio Várzea, Santa Rita, Maurício Jubim, Cruz e Sousa e Gustavo Lacerda, simplesmente sendo que este último deverá dar escritos sintéticos, muito generalizados, sem personalismo, sobre política socialista. Penso assim porque esses foram sempre, mais ou menos de vários modos intelectuais, e em tese, os nossos companheiros, tendo cada um deles, na proporção de sua aptidão, na esfera de sua perfectibilidade, um sentimento homogêneo do sentimento comum na Arte do Pensamento escrito. Penso também que o único homem fora da nossa linha artística de seleção relativa possível, que deve ser simpaticamente admitido, para críticas científicas para artigos de caráter positivo moderno, é o dr. Gama Rosa, que podemos considerar, à parte toda a nossa independência e rebelião como um austero e curioso Patriarca do Pensamento novo. Os mais, seja quem for, que venham de fora, isto é, que se apresentem com trabalhos estéticos e de tal natureza alevantados e sérios que possam ser admitidos nas colunas nobres da grande “Revista”, para o que basta apenas uma análise severa, rigorosa, desses trabalhos. Enfim, apenas esse deve de ser o grupo fundador por excelência, deve constituir o corpo uno das Idéias da Revista nos seus elevados fundamentos gerais, à parte dos detalhes da compreensão de cada um em particular. Entre esses fundamentos gerais acho que deve ser um dos principais, o maior e mais firme radicalismo sobre teatro, não permitir seções, notícias, folhetins ou coisa que diga respeito a teatro que, por princípio e integração de Idéias, não deve existir para a nossa orientação d’Arte na Revista dos Novos. Teu. Cruz e Sousa. 11 (CRUZ e SOUZA, 2008). Ainda sobre a Revista dos Novos, Cruz e Sousa escreve em janeiro de 1897 a Araújo Figueiredo, convidando-­‐o para o projeto junto a Nestor Vítor e outros poetas. Os planos de propagação do grupo são grandes e o intento é produzir uma publicação expressiva, capaz de ganhar espaço no cenário tradicional literário. 11Carta a Gonzaga Duque. Rio, 11 de abril de 1894, p.645. Miranda, J. A. et DIAS, N. I. R. Retratos de uma vida... 199 Curitiba, Vol. 3, nº 4, jan.-­‐jun. 2015 ISSN: 2318-­‐1028 REVISTA VERSALETE Caríssimo Araújo Saudades e abraços. — Esta carta tem por fim somente convidar-­‐te para uma Revista de Arte que o Nestor Vítor, eu e outros vamos fundar. Será uma publicação vigorosa e alta nos seus fundamentos, trazendo o cunho superior de uma força espontânea e nobre. 12 (CRUZ e SOUZA, 2008). Em carta de 1889 a Virgílio Várzea, amigo de longa data com quem publicara o livro Tropos e Fantasia (1885), Cruz e Sousa manifesta todo o seu transtorno e revolta pela situação de miséria em que se encontrava: Adorado Virgílio Estou em maré de enjoo físico e mentalmente fatigado. Fatigado de tudo: de ver e ouvir tanto burro, de escutar tanta sandice e bestialidade e de esperar sem fim por acessos na vida, que nunca chegam. Estou fatalmente condenado à vida de miséria e sordidez, passando-­‐a numa indolência persa, bastante prejudicial à atividade do meu espírito e ao próprio organismo que fica depois amarrado para o trabalho. Não sei onde vai parar esta coisa. Estou profundamente mal, e só tenho a minha família, só te tenho a ti, a tua belíssima família, o Horácio e todos os outros nobres e bons amigos, que poucos são. Só dessa linda falange de afeições me aflige estar longe e morro, sim de saudades. Não imaginas o que se tem passado por meu ser, vendo a dificuldade tremendíssima, formidável em que está a vida no Rio de Janeiro. Perde-­‐se em vão tempo e nada se consegue. Tudo está furado, de um furo monstro. Não há por onde seguir. 13 (CRUZ e SOUZA, 2008). Ele reclama da indiferença e do desdém com que era tratado, a ponto de não obter um emprego14. Embora tivesse recebido pelo seu pai de criação — Guilherme Xavier de Sousa — uma educação formal, fosse um homem culto e admirado pelos amigos, Cruz e Sousa via-­‐se preso a uma “maldição social”: mesmo a sua capacidade intelectual e o alto nível de seus escritos não eram capazes de superar o fato de que era negro, num tempo em que opiniões racistas eram sustentadas por teorias acerca da desigualdade das raças. 12Carta a Araújo Figueiredo. Rio, 8 de janeiro de 1897, p.649.
13Carta a Virgílio Várzea. Corte, 8 de janeiro de 1889, p. 641. 14A convite de Oscar Rosas havia se estabelecido no Rio de Janeiro, mas em poucos meses retornou a Desterro, pois não conseguiu trabalho. Miranda, J. A. et DIAS, N. I. R. Retratos de uma vida... 200 Curitiba, Vol. 3, nº 4, jan.-­‐jun. 2015 ISSN: 2318-­‐1028 REVISTA VERSALETE Todas as portas e atalhos fechados ao caminho da vida, e, para mim, pobre artista ariano, ariano sim porque adquiri, por adoção sistemática, as qualidades altas dessa grande raça, para mim que sonho com a torre de luar da graça e da ilusão, tudo vi escarnecedoramente, diabolicamente, num tom grotesco de ópera bufa. Quem me mandou vir cá abaixo à terra arrastar a calceta da vida! Procurar ser elemento entre o espírito humano?! Para quê? Um triste negro, odiado pelas castas cultas, batido das sociedades, mas sempre batido, escorraçado de todo o leito, cuspido de todo o lar como um leproso sinistro! Pois como! Ser artista com esta cor! Vir pela hierarquia de Eça, ou de Zola, generalizar Spencer ou Gama Rosa, ter estesia artística e verve, com esta cor? Horrível! [...].15 (CRUZ e SOUZA, 2008). Ao dizer-­‐se ariano, Cruz e Sousa manifesta sua revolta face às injustiças da sociedade branca. O ariano de espírito depurado estava sempre em confronto com o africano “emparedado”16, uma vez que a educação, cultura e inteligência que possuía, esbarravam no que, naquele tempo, era sua característica definidora: a qualidade de negro. Embora não tenha vivido na senzala, Cruz e Sousa viveu as contradições da abolição que, rejeitando a escravidão, não deu condições de vida aos ex-­‐escravos e seus filhos. O escritor perturba-­‐se ao constatar que sua sensibilidade e aptidão de espírito eram-­‐lhe inúteis, pois não o capacitavam a ascender ao escol da sociedade e a tornar-­‐se como os grandes escritores, essa raça de “eleitos”. A vida na miséria, a marginalização e perseguição sofridas em um mundo “negro e duro” refletem-­‐se na obra do poeta que, aspirando ao transcendente, como em geral os simbolistas o fazem, não deixa de ligar-­‐se a aspectos e lutas referentes ao lugar social que ocupava como filho de ex-­‐escravos. Essa noção consciente da sua realidade perseguiu Cruz e Sousa até sua morte, de tuberculose, em 19 de março de 1898. Nas palavras de Andrade Muricy “os simbolistas julgavam poder viver dentro do seu sonho, na sua poesia [...].”17 (MURICY, 1987, p. 40). Talvez seja isso que Cruz e 15Carta a Virgílio Várzea. Corte, 8 de janeiro de 1889, p. 642. 16 Não nos referimos ao que Roger Bastide chama de nostalgia do branco, trata-­‐se apenas da constatação de um fato, em uma sociedade escravagista. Afinal, a Lei Áurea havia sido assinada no ano anterior (1888). Miranda, J. A. et DIAS, N. I. R. Retratos de uma vida... 201 Curitiba, Vol. 3, nº 4, jan.-­‐jun. 2015 ISSN: 2318-­‐1028 REVISTA VERSALETE Sousa tenha feito, como forma de sobrevivência em uma sociedade indiferente, numa vida assombrada constantemente pelo drama da raça. REFERÊNCIAS BASTIDE, R. Quatro Estudos sobre Cruz e Sousa. In: COUTINHO, Afrânio (Org.). Cruz e Sousa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979. (Coleção Fortuna Crítica). MURICY, A. Atualidade de Cruz e Sousa. In: CRUZ E SOUSA, João da. Obra Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2006. _________. Panorama do movimento simbolista brasileiro. São Paulo: Perspectiva, 1987, v.2, p. 10-­‐73. SANTOS, M. D. dos. Ao sol carta é farol: a correspondência de Mário de Andrade e outros missivistas. São Paulo: Annablume, 1998. SOUSA, J. da C. e. Correspondência. In:_____ Obra completa: prosa/João da Cruz e Sousa. Jaraguá do Sul: Avenida, 2008. v. 2, p. 633-­‐654. Disponível em: <http://fcc.sc.gov.br/cruzesousa/cruzesousa_vol2_prosa.pdf>. Acesso: 17 de jun. 2013. VITOR, N. Cruz e Sousa. In:_____. Obra Crítica. Coleção de Textos da Língua Portuguesa. Ministério da Educação e Cultura. Rio de Janeiro: Fundação Casa Rui Barbosa, 1969. Submetido em: 17/09/2014 Aceito em: 11/04/2015 Miranda, J. A. et DIAS, N. I. R. Retratos de uma vida... 202 
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