Um tempo para chamar de meu
Uma das jornalistas mais premiadas do País no ranking do Jornalistas&Cia e do Instituto Corda,
Eliane Brum, conhecida entre os colegas como a nossa grande historiadora do cotidiano, tirou
um tempo para chamar de seu. De duas a três vezes por semana, passa do meio da tarde até a
noite lendo na banheira. Chega a ficar cinco horas com metade do corpo submerso na água
morna – é o tempo de começar e terminar um livro inteiro. O ritual inclui vinho e chocolate. “É
um luxo a que eu me dou. Saio murcha, faceira e cheirosa. E este é meu único problema com
os e-books: não dá pra levar pra banheira. Assim que inventarem – se é que já não existe – um
jeito de levar computador pra banheira, nunca mais saio de lá”, brinca. Só em março ela leu
Bel-Ami (Guy de Maupassant), Tudo o que mãe diz é sagrado (Paula Corrêa), As virgens
suicidas (Jeffrey Eugenider), O professor do desejo (Philip Roth), A longa viagem de prazer
(Juan José Morosoli), e Groucho e eu, uma autobiografia (Groucho Marx). “Estou lendo
Oblómov, de Ivan Goncharov. É uma edição primorosa da Cosac Naify. Mas como é
emprestada, não posso levar pra banheira, o que faz com que demore muito mais pra ler”.
Essa doce rotina tornou-se possível quando ela deixou de dar expediente na redação da revista
Época, onde estava desde 2000 como repórter especial. Hoje, Eliane segue no time da
publicação da Editora Globo, mas agora com uma coluna semanal. Feita com a alma, a argúcia
e o aguerrimento da repórter, que nunca deixou ou deixará de ser. A decisão de tirar o pé do
acelerador foi tomada, porém, por motivos muito mais nobres do que simplesmente o cansaço
ou o estresse: “Quando deixei de ter emprego, uma das ideias era poder ter tempo para as
coisas do afeto, como o envelhecimento dos pais. Meu pai teve vários problemas de saúde em
2012 e eu tive o privilégio de poder ajudar a cuidar dele – ou só ficar por perto”.
Nessa nova fase, Eliane está retomando projetos de trabalho interrompidos no meio do
caminho: uma grande reportagem apurada no ano passado, o lançamento de um livro de
colunas (que sai ainda neste semestre) e a escrita de outro livro inédito. “Ando sempre cheia
de ideias, meu drama é que vai faltar vida para o tanto de coisas que eu quero experimentar.
Mas acho que esse é drama de todo mundo, né?”.
A rotina quando está em São Paulo é acordar cedo – por volta das 5h da manhã. Consegue a
façanha de fazer isso sem usar despertador (ela também não tem telefone celular). Assim que
sai da cama, começa a escrever. Como tem o hábito de “dormir com as galinhas”, sua vida
social é praticamente nula. Por isso, fica a dica: nunca tente marcar nada com Eliane Brum no
período da manhã.
Três vezes por semana ela faz pilates e quando viaja dá um jeito de fazer alongamento. “Se
não faço isso, minha coluna começa a me causar problemas. Quando vi as matérias sobre
Ricardo III descobri – finalmente – que havia algo de nobre em mim: minha coluna é igual a
dele”, diverte-se.
E, por falar nisso (com o perdão do trocadilho infame), nunca faz nada às 2as.feiras, no período
da tarde, porque está estropiada por causa da coluna que publica nesse dia no site de Época:
“Quem lê não consegue imaginar o trabalho que ela dá. Em geral, passo todo o final de
semana e cinco horas da 2ª.feira escrevendo e revisando. Aí, na 2ª de tarde, não volto a
escrever meu livro ou outras coisas de que preciso”. Além disso, ainda cozinha, lava e limpa a
casa, sempre em parceria com o marido João – ele também trabalha em casa.
Quando percebe uma janela na agenda, corre para seu sofá azul para assistir a alguma série
enlatada (de preferência Mad Men) ou vai para o cinema, que é, segundo ela, um vício. Sua
lista de atores favoritos é extensa: Marlon Brando, Celia Johnson, Daniel Day-Lewis,
Emmannuelle Riva, Joaquin Phoenix, Audrey Hepburn, Gregory Peck, Isabelle Huppert, Klaus
Kinski, Fernanda Montenegro, Wagner Moura, Lázaro Ramos, Paulo Gracindo, Lima Duarte,
Giulietta Masina, Meryl Streep, Melina Mercouri, Jacques Tati, Ricardo Darín. “Minha rotina
não é de 2ª a 6ª, já que trabalho todo o final de semana. Nem é de horário comercial. Cada dia
é diferente do outro. Quando viajo a trabalho, tento passar pelo menos mais um dia para
conhecer o lugar”.
Eliane diz que nunca pensou em trabalhar menos. Ela só queria ser dona do seu tempo e
misturar as coisas. Sua relação com o tempo, diga-se, sempre foi especial. Sua primeira grande
reportagem, publicada em 1989, quando era ainda foca, chamou a atenção da redação do
jornal Zero Hora pelo enfoque completamente inusitado. A encomenda era fazer uma matéria
nada promissora sobre a inauguração de uma loja do McDonald´s em Porto Alegre. Em vez de
fazer o óbvio, ficou o tempo todo ao lado de um grupo de velhinhos que passavam os dias
jogando xadrez no lugar. Acabou escrevendo um texto belíssimo sobre o tempo e a
modernidade irreversível. Entrou no jornal gaúcho como estagiária em 1988, depois de cursar
História e flertar com a Biologia e a Informática. Na redação, teve como “mestres” Marcelo
Rech e Carlos Wagner (ver pág. ).
No Zero Hora, Eliane fez de tudo um muito e passou até pela editoria de Polícia. “Nessa época,
Zero Hora tinha juntado as editorias de Polícia e Geral. Cobri alguns grandes crimes e ás vezes
fazia o que se chama lá de ‘ronda’. Foi aí que descobri uma história daquelas tão absurdas que
só existem na realidade. Na ficção soaria totalmente inverossímil”. Ela estava fazendo a ‘ronda’
quando ligou para uma delegacia de Sapucaia do Sul. Um policial do plantão atendeu dizendo
que a coisa estava tão calma que tinha até uma galinha presa. “Como assim?”, retrucou a
repórter. Ao chegar à delegacia com o fotógrafo, ela descobriu que a galinha presa tinha sido
encontrada de madrugada ao lado de um galo morto e de um homem abraçado a uma garrafa
de cachaça. A polícia havia liberado o homem e prendido a galinha. O boletim de ocorrência do
animal dizia: “detida em atitude suspeita”. Pior: o homem liberado era suspeito de homicídio e
estava foragido. “Mas por que a prisão da galinha vale uma reportagem? Porque a galinha fala
sobre o ser humano. Vale porque fala da incompetência da polícia. É uma história engraçada,
mas é uma denúncia. E a gente que é repórter tem tanta sorte que isso tudo aconteceu no Dia
Internacional da Ave”. A tal galinha presa foi capa do jornal e rendeu uma polêmica.
Esse pequeno “causo”, que foi contado pela repórter em uma palestra ilustra bem o tom das
reportagens de Eliane Brum. Sua busca permanente é pelas preciosidades que estão presentes
no dia a dia. Basta olhar direito para achá-las. “Tive sorte e nos 11 anos e meio que trabalhei
no jornalismo diário, com duas, três pautas por dia, encontrei muitas”.
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