Da constituição histórico-cultural da inteligência Fernanda Santos de Castro (UEM-CNPq) Sonia Mari Shima Barroco Tânia dos Santos Alvares da Silva Introdução Enquanto ciência e profissão, a psicologia tem sido convocada para adentrar na escola com suas contribuições acerca dos conhecimentos sobre os processos de ensino, aprendizagem e desenvolvimento humano. Sob a perspectiva da Psicologia Histórico Cultural (PHC), pressupõe-se que o ser humano se reequipa culturalmente, superando o equipamento biológico com o qual nasce. O ensino e a consequente aprendizagem de conteúdos sistematizados, relacionados aos campos da ciência, filosofia, artes, entre outros, impactam sobremaneira esse processo de reequipamento, e implicam na formação e no desenvolvimento daquilo que é específico aos seres humanos: as funções psicológicas superiores (FPSs). Na conjuntura contemporânea, esses conteúdos são veiculados e disponibilizados para a população na instituição escola. Ante a importância que esta assume, já que suas atribuições incidem na direção da própria formação humana, a psicologia sob a perspectiva da THC prima por um ensino sistematizado e intencional. Apesar de se encontrar muitos estudos e escritos científicos sobre a formação social do psiquismo pela PHC, nem nesta vertente da psicologia nem em outras perspectivas teóricas dessa ciência pode ser encontrado um consenso acerca do que seja o conceito de inteligência. Como por exemplo, seguem-se algumas definições de autores notórios da Psicologia: para Burt a inteligência é a “eficiência mental inata”, para Claparéde, Stern e Thorndike é a “capacidade para resolver problemas novos” e para Thurstone e Terman é a “capacidade de abstracção” (GILLY; MERLET-VIGIER, 1969, p. 80). Segundo Bock et al (2001) cada autor, cada vertente teórico-metodológica da psicologia apresenta noções diferentes sobre a Inteligência. Para estes autores, o senso comum concebe a inteligência como uma qualidade que determinada pessoa tem para resolver um problema corretamente, ou enquanto qualidade de aprender as coisas facilmente ou de se adaptar a situações novas. Visando maior esclarecimento sobre o conceito e objetivando instrumentalizar cientificamente o professor que precisa lidar com alunos inteligentes, com ou sem deficiência intelectual, o presente trabalho expõe um exercício de análise e síntese da constituição da história de um conceito que possui notoriedade no cotidiano dos professores: a inteligência. Este objetivo se entrelaça com os fundamentos teóricos adotados e a metodologia empregada em pesquisa de cunho bibliográfico-conceitual (UEM - 2012 a 2013), com estudo da produção de autores clássicos da Psicologia – em fontes primárias (dos próprios autores) e secundárias (de intérpretes). Nela elegeram-se como norteadores o materialismo histórico dialético (método de Marx) e a psicologia histórico cultural, que se pauta naquele para o estudo das leis do psiquismo. O método materialista pressupõe que o homem, diferentemente dos animais, trabalha, isto é, modifica a natureza visando atender às suas necessidades; é um ser social, e, portanto, é produto e produtor da história dos homens. A PHC, partindo dos pressupostos desse método, entende que o homem desenvolve seu psiquismo a partir do convívio com outros homens, o que, por sua vez, possibilita a apropriação e o emprego de instrumentos e signos para a modificação da natureza externa e que também lhe modifica internamente. Por essa compreensão de homem, tem-se que os conceitos e ideias científicas são produções humanas, que não escapam das leis da história e que a própria ciência (que o explica) não é estática, mas se desenvolve a partir de novas descobertas e do maior domínio do homem sobre a natureza. Ante essas considerações, este trabalho objetiva, de modo mais específico, também discutir as diversas concepções histórico culturais sobre a inteligência e o seu impacto nas atividades pedagógicas dos professores, bem como sobre a concepção de deficiência intelectual, uma vez que se identificou que estes dois conceitos tem sua história de constituição entrelaçada. Produção histórica da Inteligência Considera-se que a base material da existência tem relação intrínseca com a constituição e o desenvolvimento do psiquismo. Isso pode ser notado pela própria história dos homens. Destaca-se que o primeiro modo de produção dos homens, denominado modo de produção comunal-primitivo, caracterizava-se por se organizar em uma sociedade na qual não existia divisão de classes sociais. A divisão do trabalho era distribuída em função do sexo e idade, porém, sem nenhuma subordinação em relação às atividades de tal ou qual trabalho. No entanto, ao longo do tempo, a “distribuição dos produtos, a administração da justiça, a direção das guerras, a supervisão do sistema de irrigação, etc.” passaram a exigir certas formas diferentes do “trabalho material própriamente dito” (PONCE, 1963, p. 20, grifos do autor). Assim, surgiu um grupo de homens libertos desse trabalho material, que estavam sob a tutela da comunidade, e que prestavam funções úteis a ela. Este grupo de homens acabou realizando uma exaltação de seu poder, que com o tempo foi se convertendo em hegemonia. Assim, paulatinamente, a sociedade se dividiu em “administradores” e “executadores”; “a direção do trabalho se separa do próprio trabalho, ao mesmo tempo que as fôrças mentais se separam das físicas” (PONCE, 1963, p. 22, grifos do autor). Com a divisão entre trabalho intelectual e trabalho manual, foi concebida a ideia de que é o trabalho intelectual que produz a riqueza da sociedade. À luz do marxismo, Lessa (2008, p. 6) coloca que esta ideia de que é a atividade de planejamento, de concepção e de preparação do trabalho que produz a riqueza da sociedade é falsa, porque “por mais que se pense, que se planeje, que se organize, se a produção não acontecer, não haverá nenhuma riqueza”. Ao contrário disso, escreve que esta concepção corresponde à necessidade da classe dominante em dizer que não são exploradores, mas que sua atividade é a principal para que a sociedade possa existir. Assim, a atividade de planejamento intelectual foi, a partir da sociedade de classes, designada à classe dominante, àqueles que detêm o poder. No entanto, essas habilidades intelectuais tão exaltadas nem sempre foram desenvolvidas por todos os homens em sociedades divididas em classes. Isto é, por um lado elas foram exaltadas, e, por outro, às classes dominadas ficou o papel de trabalho manual, o que foi fundamental para que estas continuassem dominadas. Platão colocava que em uma sociedade harmônica cada classe deveria desempenhar a sua virtude: “que os filósofos pensem, que os guerreiros lutem, que os trabalhadores trabalhem para os filósofos e os guerreiros” (PONCE, 1963, p. 56). Isto é, aos trabalhadores o trabalho manual e não o intelectual. Desde a ascensão da cidade-estado grega essa mesma valorização da razão, da inteligência e do grande status conferido à mente fez com que crianças destituídas dessas capacidades fossem, por vezes, eliminadas. “Nós [...] asfixiamos os recémnascidos mal constituídos; mesmo as crianças, se forem débeis ou anormais, nós as afogamos; não se trata de ódio, mas da razão que nos convida a separar das partes sãs aquelas que podem corrompê-las” (Preceitos de Sêneca – De Ira, I, XV, apud MISÈS, 1977, p. 13 - destaque nosso). Segundo Misès (1977) desde o renascimento, até aproximadamente o século XVIII vigoraram perspectivas humanistas em relação aos deficientes. Nesta mesma direção, Pessotti (1984) demarca alguns autores que afirmam a crença na educabilidade do deficiente mental, como por exemplo, John Locke (1632-1704), Étienne Bonnot de Condillac (1715-1780) e Jean Itard (1774-1838). No entanto, com os resultados sobre a educabilidade dos deficientes mentais, a medicina se movimentou no sentido de recuperar o domínio da oligofrenia para suas explicações orgânicas. Assim, o Dictionnaire Encyclopédique des Sciences Médicales é tido como uma das obras fundamentais para a história da deficiência, que integrou monografias de autores reconhecidos e se tornou depositário da doutrina médica (PESSOTTI, 1984). A teoria da deficiência veiculada no Dictionnaire era amparada na visão de Bénédict Morel (1809-1873) e na ideia de François-Emmanuel Fodéré (1764-1835), pela qual o cretinismo deriva do bócio dos pais ou de outros ascendentes. As pesquisas médicas da época eram voltadas para a etiologia do cretinismo e de suas relações ou com o bócio, ou com a idiotia. Essas pesquisas eram realizadas a partir dos censos regionais ou nacionais e a partir da observação clínico-patológica, que buscava uma fisiologia, relacionada à antropometria e a uma semiologia1 anatômica do cretino ou da idiotia (PESSOTTI, 1984). Dessa maneira, a definição de deficiência mental chega ao século XX com uma “etiologia orgânica nervosa, diagnóstico clínico estatístico, sintomatologia heterogênea com predominância morfológica e anatômica” (PESSOTTI, 1984, p. 172). Sob uma concepção pedagógica, J.-E. Esquirol (1772-1840) introduz a ideia de que esses deficientes mentais estavam submetidos a uma falta de inteligência. E. Seguin (1812-1880) continua essa concepção, afirmando que haveria uma continuidade dessa ininteligência (termo empregado pelo autor), que estaria disposta em graus. Na sequencia desse pensamento, Binet introduz a ideia de inteligência como um feixe, no qual intervêm funções e tendências múltiplas, e que poderia ser posta à prova experimentalmente. Assim, seu objetivo era chegar a uma identificação e categorização clara e racional da deficiência mental a partir dessa concepção de inteligência (NETCHINE, 1976). 1 Referente aos estudos da medicina dos signos e sinais das doenças. Neste contexto médico e pedagógico, Binet aceitará os estudos da medicina e da pedagogia, porém dirá que eles não bastam. Então, propõe que para realizar o diagnóstico da deficiência mental é preciso adotar um dualismo metodológico: a sintomatologia orgânica e a avaliação psicológica (NETCHINE, 1976). No entanto, anteriormente a esta proposição, Gould (1999) destaca que Binet passou a investigar a partir das pesquisas de medição dos crânios; a craniometria. Binet foi às escolas e realizou avaliações médicas recomendadas por Broca com os alunos ditos pelos professores os mais inteligentes e os mais estúpidos. Encontrou diferenças não significativas, que mais representavam a diferença de altura entre os alunos mais inteligentes, e para complicar, algumas medidas favoreciam os alunos “mais estúpidos”. Depois de cinco estudos sobre a cabeça dos escolares, e da publicação de nove artigos na L’année Psychologique, já não tinha mais tanta convicção destes (GOULD, 1999). Em 1904, voltou a abordar o problema da inteligência por outras técnicas; “Abandonou o que denominava enfoques ‘médicos’ da craniometria, bem como a busca lombrosiana de estigmas anatômicos, decidindo-se, em vez disso, pelos métodos ‘psicológicos’” (GOULD, 1999, p. 151). A partir de 1882 a educação na França passava a ser um direito de todos e com a universalização do direito à educação, começou aparecer um problema: nem todas as crianças conseguiam aprender. A solução para esse problema da escola foi verificar se essas crianças tinham algum tipo de debilidade mental (NETCHINE, 1976). Dessa maneira a teoria de Binet e Simon tinha como pretensão responder a demanda de organização da escola pública, universal, gratuita e laica, recém-criada na França. Esta preocupação dos autores decorria do chamado que o Ministro da Instrução Pública Francesa fez para Binet realizar um estudo com o objetivo de “desenvolver técnicas para identificar crianças cujo fracasso escolar sugerisse a necessidade de alguma forma de educação especial” (GOULD, 1999, p. 152). Binet intentou chegar a uma identificação e categorização clara e racional da deficiência mental a partir da concepção de inteligência (NETCHINE, 1976). Conceituou a inteligência como um feixe, no qual intervêm funções e tendências múltiplas, e que poderia ser posta à prova experimentalmente. Segundo este, as funções superiores são o que distinguem os indivíduos, e não as elementares, e a inteligência seria um feixe no qual penetrariam de certa forma todas estas funções das quais se ocupam a Psicologia (ZAZZO, 1976). A partir da definição de inteligência, segundo Netchine (1971) Binet e Simon chegaram à ordenação da deficiência mental em graus: idiotas, imbecis, débeis mentais, duros de inteligência, inteligência média, inteligência superior, inteligência brilhante. Os idiotas seriam os que não poderiam se comunicar com os outros pela linguagem, os imbecis não poderiam se comunicar pela linguagem escrita, e os débeis seriam os mais difíceis de serem diagnosticados, mas o seu não aprendizado seria decorrente de sua deficiência: a debilidade mental – o que justificaria que eles fossem dirigidos para classes especiais. Com Binet e Simon surgem a necessidade de aferição da inteligência, a psicometria, as classes especiais para deficientes. Segundo Zazzo (1976) a debilidade mental, que geralmente era detectada nos alunos que não conseguiam aprender, teve origem com o recém-criado ensino obrigatório. Ou seja, com a obrigatoriedade do ensino às crianças francesas, evidenciouse a demanda por fazer com que todas elas aprendessem os conteúdos escolares. Segundo Alves (2006) na França a educação era vista como fundamental para a formação do cidadão, e, assim, para a consolidação da República e derrota dos inimigos feudais. O autor discute que a promessa de escola para todos na França serviu para agregar os trabalhadores à Revolução Burguesa, e mesmo com a consolidação da burguesia no poder após 1789 e 1795, a obrigatoriedade do ensino só ocorreu em 1882. No entanto, quando a escola atingiu os trabalhadores, modificou os conteúdos escolares: reduziu a formação humanística e científica. A escola nova se propôs a cumprir a promessa burguesa de educação universal, contudo, modificando os conteúdos didáticos da educação tradicional e a forma de desenvolvê-los. Com o propósito de universalidade, os livros dos clássicos foram substituídos por manuais didáticos, simplificando o trabalho didático, barateando os serviços dos professores, e assim, diminuindo os custos da instituição escola (ALVES, 2006). Esse processo submeteu o mestre ao processo de restrição de seu domínio teórico e de suas habilidades didáticas; seu instrumento de trabalho dominava suas atividades em sala. Quando a escola pública chegou ao filho do trabalhador, o conteúdo ensinado a partir dos manuais não se tornava mais em meio de domínio da realidade. Esse aviltamento dos conteúdos didáticos se tornou característica da escola pública contemporânea, e assim, nem os trabalhadores, nem os burgueses fugiram aos seus efeitos (ALVES, 2006). Como se pode notar, a escola pública também ajudou a criar a debilidade por conta das novas condições de ensino. No teste Binet-Simon, cada resolução de tarefa era atribuída a um nível de idade, que correspondiam às tarefas que uma criança de inteligência normal desta determinada idade conseguiria responder (GOULD, 1999). Assim, no teste a criança começava respondendo às tarefas equivalentes a determinado nível de idade e ia realizando às próximas até se deparar com aquelas que não conseguia resolver. Assim, a idade atribuída às últimas tarefas que a criança conseguia responder correspondia a sua “idade mental”, e o seu nível intelectual era calculado pela subtração da sua idade mental de sua idade cronológica (GOULD, 1999). Foi a partir da ideia de nível intelectual que surgiu a proposição do conceito de QI de W. Stern em 1912. O psicólogo alemão argumentou que a idade mental não deveria ser subtraída da cronológica, mas dividida (GOULD, 1999). Dessa maneira, o cálculo empregado para a medição do QI pode ser resumido pela fórmula, na qual se entende QI como Quociente Intelectual, I.M. como Idade Mental e I.C. como Idade Cronológica: QI = I.M x 100 I.C. Foi com esta proposição que nasceu o conceito de quociente intelectual, que foi apropriado (mas nem sempre calculado exatamente por esta fórmula) por grande parte dos testes psicológicos em vigor até hoje. Segundo Zazzo (1976) com os testes de Porteus, Kohs e Wechsler, e com outras escalas de inteligência, também se pode calcular o QI e diagnosticar atraso na inteligência, no entanto, o resultado do Q.I. obtido, por exemplo, pelo teste de Wechsler não demonstra o mesmo resultado que o testado pelo teste Binet-Simon. Ou seja, não existiria um Q.I. universal, cada teste de medição da inteligência determinará um número diferente de QI para cada pessoa. Segundo Gould (1999), nos EUA, as advertências de Binet foram ignoradas, suas instruções distorcidas e sua escala transformada em um formulário. Para o autor, o uso dos testes foi incorreto devido a duas “falácias”: a reificação e o hereditarismo. Gould (1999) coloca como os três principais continuadores da teoria de Binet nos Estados Unidos da América (EUA) H. H. Goddard (1866-1957), L. M. Terman (1877-1956) e R. M. Yerkes (1876-1956). Goddard foi responsável por introduzir a escala de Binet e Simon nos EUA, afirmando o inatismo da inteligência, Terman elaborou a escala Stanford-Binet e idealizou uma sociedade racional, na qual a profissão de cada um seria decidida com base no QI. Yerkes, por sua vez, convenceu o exército a submeter 1.750.000 homens a um teste de inteligência na Primeira Guerra Mundial e afirmou a hereditariedade do QI – o que foi base para a Lei de Restrição da Imigração de 1924, pela qual se restringiu o acesso de pessoas nos EUA que provinham de regiões geneticamente desfavoráveis (GOULD, 1999). Segundo Gould (1999) “A teoria do QI hereditário é um produto tipicamente americano” (p. 161, grifos nossos) e está em grande parte relacionada com o medo dos americanos em relação à chegada de mão-de-obra barata da Europa do Leste e do Sul. Este medo se reflete na obra de Goddard, uma vez que estes imigrantes eram diagnosticados como débeis mentais e, segundo este, os débeis deveriam: ser internados, mantidos sobre vigilância, ter suas necessidades atendidas para que se mantivessem contentes, e ser impedidos de se reproduzirem (GOULD, 1999). Goddard denominou os débeis mentais pela palavra morons (em grego significa tolo, estúpido), e acreditava que os comportamentos indesejáveis dos infratores eram causados pela deficiência mental hereditária em conjunto com a imoralidade. Assim, criminosos, prostitutas, alcoólatras, fracassados eram considerados débeis mentais. A partir deste pensamento, Goddard estava persuadido de que o teste de Binet proporcionava a medida de uma entidade inata e independente e seu propósito era identificá-los para segrega-los, impedir sua procriação e assim evitar que a estirpe americana fosse deteriorada (GOULD, 1999). Entendia-se que o baixo grau de inteligência produz “sociopatas”, mas o nível seguinte “gera trabalhadores doces e apáticos que fazem a sociedade industrial funcionar e que aceitam pouca coisa em troca” (GOULD, 1999, p. 166). Ou seja, o problema eram os débeis mentais, pois os idiotas e os imbecis ainda ocupavam uma posição muito inferior dentro do grupo dos indesejáveis. Enquanto os débeis ameaçavam a saúde da raça, uma vez que Goddard havia concluído que a debilidade mental era regida por leis mendelianas da hereditariedade e por isso ela continha uma dose dupla de genes ruins, recessivos (GOULD, 1999). Dessa mesma forma, Goddard (1919 apud GOULD, 1999) explicou as desigualdades sociais problematizando a ideia de “Como pensar em igualdade social se a capacidade mental apresenta uma variação tão ampla” (p. 166). Afinal, enquanto os débeis tinham dois genes ruins, os trabalhadores possuíam um exemplar de gene normal e poderiam ser colocados diante de uma máquina (GOULD, 1999). É preciso compreender a obra de Goddard se dá num momento histórico de redescobrimento da obra de Mendel. Os biólogos acreditavam que os traços humanos eram produto do gene, e não da interação dos genes com o ambiente. Assim, sob concepção eugênica, entendia-se que se os traços indesejados derivam de genes específicos eles poderiam ser eliminados por restrições à reprodução (GOULD, 1999). Se Goddard foi responsável por introduzir a escala de Binet nos EUA, Terman a popularizou. Em 1912, Terman fez a primeira revisão da escala, adaptando-a para adultos e ampliando-a para noventa questões, e como a revisou sendo professor da Universidade de Standford a denominou de Escala de Standford-Binet (GOULD, 1999). Terman aspirava que todas as pessoas fossem testadas para, a partir da graduação das suas capacidades inatas, se encaminhasse as crianças às posições que lhes eram mais adequadas na vida. Assim, “A aplicação de testes logo se transformou numa indústria milionária [...] Trinta minutos e cinco testes poderiam marcar uma criança para o resto da vida” (GOULD, 1999, p. 183-185). O conceito de inteligência para Terman elencava como suas funções o juízo moral, o juízo comercial e o juízo social. Assim como para Goddard, para Terman o comportamento criminoso é evidenciado por um QI baixo, e assim, a coibição do crime era uma das mais produtivas aplicações dos testes psicológicos. Neste mesmo período, Yerkes com o objetivo de consolidar a Psicologia como ciência a partir do rigor da quantificação e dos números, obteve uma ideia de como construir para esta “o corpo abundante, útil e uniforme de dados numéricos, capaz de impulsionar a transição entre o estágio de arte discutível para o de ciência respeitada” (GOULD, 1999, p. 202). Sua insistência nos círculos governamentais possibilitou que ele aplicasse seus testes mentais em recrutas durante a Primeira Guerra, e que a Psicologia ganhasse reconhecimento como ciência a partir da demonstração de sua importância para a engenharia humana (GOULD, 1999, p. 202). Segundo Gould (1999), estes testes não foram muito proveitosos para o exército, porém representaram uma vitória para Yerkes, uma vez que agora ele tinha dados uniformes a partir da testagem em massa. Assim, a intenção original de aplicação individual; aplicador e criança; do teste de inteligência, que era considerado por Yerkes como um obstáculo da obra de Binet, tivera sido contornado pela produção de testes em massa e que poderiam testar e classificar todos (GOULD, 1999). No Brasil, a concepção de inteligência e de deficiência mental de Binet e Simon se constituiu como base para os primeiros estudos considerados psicológicos no país. Almeida (2010) afirma que a inserção do nome de Binet no Brasil não se deu apenas no âmbito dos testes de inteligência, mas que sua produção foi assimilada de outras formas. O nome de Binet quando comparado ao de outros educadores estrangeiros permanece desconhecido, ou esquecido, embora tivesse papel fundamental na construção das concepções pedagógicas. No início do século XX, Binet estava à frente de instituições importantes de investigação científica na França. Almeida (2010, p. 30) faz a analogia de que o autor estaria desenvolvendo o que hoje se chama de “pesquisa de ponta” da Europa. Binet estava à frente do Hospital da Salpetrière, de uma revista científica cuja foi criador; L’année psychologique, incorporava em suas pesquisas conceitos da biometria, antropometria, psicometria, experimentação, entre outros que eram conceitos considerados avançados da ciência da época, e estava à frente de um grupo com a função de lidar com as novas questões da escola francesa publica recém-instituída, chamado de Comissão dos Anormais (ALMEIDA, 2010). Para Antunes (1998), na mesma época, no século XIX, o Brasil passava por um desenvolvimento urbano-industrial que requeria “indivíduos capacitados nas técnicas escolares mínimas: ler, escrever e contar”, assim como havia a preocupação em se formar uma nação forte mental e fisicamente (p.64). A reforma de Benjamim Constant (1890) clamava por liberdade, laicidade e gratuidade do ensino primário, o pensamento liberal e positivista era compatível com o escolanovismo, que exigia um homem novo esculpido pela nova educação (ANTUNES, 1998). Decorrente dessa necessidade de formação do homem para aquela sociedade que se via às voltas com o processo de urbanização e de industrialização, que precisava se especializar em função das exigências do processo produtivo material, é que a educação escolar necessitou se desenvolver no Brasil. Antunes (1998) afirma que a Psicologia foi a fornecedora de arsenal teórico e técnico para as ações da educação escolanovista. Assim, Alfred Binet havia se tornado uma referência nos estudos da Pedagogia científica e da Psicologia. As condições históricas estavam dadas, as ideias da psicometria de Binet e Simon encontraram um terreno fértil no solo brasileiro. Concomitantemente, na Europa, Jean Piaget (1896-1980) e Henri Wallon (18791962), que foram contemporâneos, discutiam sobre a inteligência. Piaget, epistemólogo suíço, teve contato com as ideias de Binet e Simon em 1919 quando viajou para Paris e durante sua estadia, conheceu Théodore Simon. Para Piaget (2010) a relação entre razão e organização psicológica deve estar no início do estudo sobre o nascimento da inteligência. Para o autor, a inteligência verbal/refletida se embasa da inteligência prática/sensório-motora, que por sua vez está ancorada em hábitos e associações. Zazzo (1978) explica que para Piaget a inteligência é uma estrutura biológica que obedece à logica da fórmula universal das estruturas biológicas: assimilação, acomodação e adaptação. No entanto, Zazzo (1978) considera que o princípio explicativo de Piaget é tão geral, que na verdade não explica muito do que se propõe. Segundo Zazzo (1978) a teoria da inteligência para Wallon pode ser confrontada com a teoria da inteligência em Piaget. Ambos partem da existência de estádios que se transformam e se reorganizam, e explicam a inteligência pela permanência de condições e funções e, simultaneamente, por novidades em cada estádio. Porém, Wallon explica a inteligência por aquilo que muda e aquilo que permanece. O que evolui tem que ser explicado ao mesmo tempo pelo oposto e pelo idêntico, de modo que “Piaget preocupase, acima de tudo com a identidade funcional, o seu interesse é sobretudo a axiomática dos estados de equilíbrio do pensamento, a logística. Wallon preocupa-se principalmente com as diferenças, as mudanças da evolução” (ZAZZO, 1978, p. 71). Nesse sentido, Zazzo (1978, p. 72) afirma que a psicologia tradicional objetiva encontrar um “princípio explicativo único” para o problema da evolução da inteligência, que é o da dualidade e sucessão da inteligência sensório-motora e da inteligência discursiva. Ao contrário da psicologia tradicional, Wallon afirma só se importar com a passagem de uma a outra, pois a partir do método materialista histórico dialético entende que se houver alguma identidade, esta se revelará, e que elaborar um apenas um princípio explicativo, pode correr o risco de se negligenciar o essencial. Para Wallon a inteligência aparece antes da linguagem e não requer critérios do raciocínio e meios de introspecção para ser definida. Para o autor o comportamento do animal e da criança de tenra idade não pode ser reduzido à atuação dos instintos e dos hábitos, mas se deve falar da inteligência quando se tem uma conduta que seja contrária aos automatismos dos movimentos espontâneos. Dessa forma, Wallon afirma que essa capacidade de combinação e invenção, esse modo de agir de acordo com as circunstâncias deve ter o título de intelectual, e, portanto, a denomina de inteligência prática, ou “inteligência das situações” (ZAZZO, 1978, p. 75, destaques no original). Wallon concebe que a inteligência das situações seria a concorrência de circunstâncias vividas sincreticamente a partir de um campo perceptivo em constante transformação e que esta se encontra na estrutura que liga ao objeto o desejo do sujeito. “Desse modo, a inteligência, nas suas primeiras formas, distingue-se simultaneamente do instinto e do entendimento” (ZAZZO, 1978, p. 76). Distinguiria do instinto, pois é uma transformação da forma original de operar no meio, e se distinguiria do entendimento, pois não procede por análise. A inteligência das situações (prática/sensoriomotora) se distinguiria, portanto, da inteligência discursiva. Enquanto a primeira seria a combinação de movimentos de manejar o campo operatório até fazer com que coincida com o efeito, a inteligência discursiva “é o meio de escapar à ordem actual das coisas, de substituir a intuição do mundo pela sua representação, pelo seu duplo” (ZAZZO, 1978, p. 77). Assim, para Wallon o aparecimento da função simbólica é o limiar entre a inteligência prática e a discursiva, e é o que distingue o homem dos outros animais. Segundo Zazzo (1971), enquanto nos EUA os psicólogos da escola de Vineland respondem que a debilidade é a incapacidade de adaptação social, o próprio autor, em conjunto com Marie-Claude Hurting, defende que a debilidade não é só isso. Entende que os autores que afirmam não haver determinantes naturais para a inteligência caem no espiritualismo. Para ele, a inteligência é tributária de fatores hereditários, porém também é de fatores não hereditários, sendo que nestes últimos que cabe a ação da psicologia. PHC e o desenvolvimento da Inteligência: imbricações entre pensamento e linguagem Para os teóricos da PHC o psiquismo é formado socialmente. Isto quer dizer que o psiquismo não se desenvolve se o homem nunca tiver contato com outros homens, quiçá sobrevive na ausência de outro para zelar pelo desenvolvimento do filhote humano. Assim, a inteligência também se desenvolveria em sociedade e, portanto, a tese do desenvolvimento social da mente se contrapõe à compreensão dos teóricos da inteligência que a julgam como inata. Contudo, pode-se perguntar se a inteligência é uma função exclusiva da espécie humana, ou ainda, se ela é exclusiva aos seres vivos. É possível traçar um caminho argumentativo de resposta a partir do que sistematizam Vygotsky e Luria (1996), no intuito de uma investigação genética (da gênese) da constituição do que é próprio ao ser humano, e não entendendo que o macaco explique o homem, mas que este, mais desenvolvido explique aquele, abordam sobre o caminho da evolução psicológica do macaco ao homem cultural. Para os autores o comportamento passa por três estágios principais em seu desenvolvimento: os instintos, o treinamento ou condicionamento reflexo e o intelecto. O primeiro estágio corresponde aos instintos. Estes são reações hereditárias e inatas a serviço de satisfazer as necessidades básicas de um organismo e têm função biológica de preservação e reprodução. São estruturas intrínsecas do organismo e não aprendidos. Porém, nem todos os instintos se desenvolvem e são funcionais rapidamente logo após o nascimento (como a sucção); o instinto sexual, por exemplo, desenvolve-se mais tarde. Sua importância biológica está relacionada à adaptação ao meio ambiente e seguem as leis da evolução de C. Darwin (1809-1882) (VYGOTSKY; LURIA, 1996). O segundo estágio, denominado condicionamento/reflexo respondente ou treinamento, tem base no reflexo incondicionado. Este se refere às reações não são hereditárias, mas provêm da experiência e resultam de um treinamento específico e individual. Não criam novas reações, mas associam reações inatas a estímulos ambientais, originando conexões condicionadas. Por isso, esse estágio levanta-se sobre o anterior. Neste, cria-se uma nova função biológica: se os instintos tem a função de adaptação ao meio ambiente, o condicionamento reflexo tem uma função de adaptação mais flexível, sutil e refinada às condições de existência individual. I. Pavlov (18491936) e sua escola os descrevem e exemplificam (VYGOTSKY; LURIA, 1996). O terceiro estágio, o intelecto prático, desenvolve-se a partir dos reflexos condicionados e representa uma nova forma de combinação dos mesmos, que significa uma nova qualidade e forma de comportamento. Como exemplo desse comportamento, intelectual, Vygotsky e Luria (1996) retomam os estudos dos teóricos da Gestalt, principalmente os experimentos de Wolfgang Köhler (1887-1967) com macacos antropoides. Demonstram que neles fica evidente o comportamento intelectual desses macacos quando estão em condições diferentes daquelas em que estão acostumados ou quando enfrentam alguma dificuldade. “Assim, a reação intelectual do macaco aparece sempre em resposta a algum obstáculo, empecilho, dificuldade ou barreira que impede sua realização” (VYGOTSKY; LURIA, 1996, p. 77). Sobre esse terceiro estágio, Vygotsky e Luria (1996, p. 80) afirmam que ainda se encontram longe de uma explicação psicológica sobre a reação intelectual, no entanto, podem concluir brevemente que essa “reação baseia-se numa interação complexa entre os estímulos atuais e conexões condicionadas anteriores”. Escrevem que quando o macaco antropoide age intelectualmente, o instrumento adquire um “significado funcional” (p. 83), que pode ser transferido generalizadamente a outro objeto. Essa transferência de estrutura de um objeto para outro é algo que diferencia o comportamento intelectual, dos reflexos condicionados. Há também outra especificidade no comportamento intelectual do antropoide, que Köhler também havia concluído: o que determina o comportamento do chimpanzé é o seu campo visual e há limitações nos processos de ideação. Sobre essas especificidades Vigotski (2009, p. 123) escreve: Lembremos que é precisamente a ausência de ‘ideação’, ou seja, de operação com resíduos de estímulos não atuais e ausentes, que caracteriza o intelecto do chimpanzé. A existência de uma situação visual, facilmente perceptível e evidente, é condição indispensável para que o macaco empregue corretamente um instrumento [...] é exatamente a ausência dessa operação que a maioria dos pesquisadores adota como o traço essencial que distingue o intelecto do chimpanzé do intelecto do homem. Compreende-se, então, que quando o macaco antropoide se depara com algum obstáculo, dificuldade ou barreira que impede sua realização, este descobre a estrutura da situação e a partir disso determina o lugar e significado de cada parte isolada em situações análogas. Isso acontece também com o homem, “há certas coisas que precisam ser memorizadas por meio de muitas repetições, enquanto há outras que precisam ser compreendidas apenas uma vez para que sua estrutura seja conservada por muito tempo” (VYGOTSKY; LURIA, 1996, p. 81). Por esse entendimento, Vygotsky e Luria (1996) compreendem que as atividades do intelecto começam no ponto em que as atividades dos instintos e dos reflexos condicionados/treinamento não têm efeito. Desse modo, compreende-se que o intelecto prático dos antropoides caracteriza-se pela capacidade de adaptação a novas situações ou a condições alteradas. Diante de determinada situação problema, o antropoide é capaz de fazer instrumentos simples e utilizá-los. No entanto, isso só é possível quando os artifícios para a resolução do problema se encontram dentro da estrutura perceptiva, que quer dizer no campo visual do macaco, isto significa que “todo o processo de solução de uma tarefa determinada desde seu início até sua conclusão é essencialmente uma função da percepção” (VYGOTSKY; LURIA, 2007, p. 36). Essa é a diferença entre o comportamento dos animais e do homem: alguns animais atingem o estágio do comportamento intelectual, porém, este tem algumas limitações em relação ao comportamento intelectual humano. Pelos estudos de Köhler (apud VYGOTSKY; LURIA, 1996) esse comportamento do antropoide é o mais próximo do comportamento intelectual humano, porém a diferença reside na falta de capacidade de produzir instrumentos e signos e empregá-los para se adaptar a natureza. (...) a despeito do fato de que o macaco manifesta uma capacidade para inventar e utilizar instrumentos – o pré-requisito de todo o desenvolvimento cultural humano -, a atividade de trabalho, baseada nessa capacidade, não se desenvolveu ainda no macaco, nem mesmo minimamente. O uso de instrumentos na ausência de trabalho é o que mais aproxima o comportamento do homem e do macaco e, ao mesmo tempo, o que mais os afasta. (VYGOTSKY; LURIA, 1996, p. 87, grifos no original). Entende-se, assim, que o intelecto prático, presente no antropoide, funciona como um vínculo entre o comportamento do macaco e do homem, e é pré-requisito para o comportamento humano, que se submete, assim como o comportamento do macaco, à filogênese, a ontogênese, mas também às leis sócio-históricas, e, portanto, é mais desenvolvido. Para Vigotski (2009, p. 112) “Os ‘inventos’ dos macacos, traduzidos no preparo e no emprego de instrumentos e na aplicação de ‘vias alternativas’ na solução de tarefas, constituem uma fase primária absolutamente indiscutível no desenvolvimento do pensamento, mas uma fase de pré-linguagem”. Afirma que pode ser encontrada no antropoide uma linguagem relativamente desenvolvida até certo ponto. No entanto, se os antropoides não possuem capacidade de se descolar do campo visual e da estrutura perceptiva da situação, mesmo que a sua linguagem possa parecer semelhante a do homem, eles não conseguem empregar as palavras (signos) de modo funcional. Conclui-se que “a linguagem do chimpanzé e o seu intelecto funcionam independentemente um do outro” (VIGOTSKI, 2009, p. 115), de modo que Vigotski (2009, p. 123) comenta: Duas teses podem ser consideradas fora de dúvida. Primeira: o emprego racional da linguagem é uma função intelectual que em nenhuma condição é determinada diretamente pela estrutura ótica. Segunda: em todas as tarefas que não disseram respeito à estrutura visual atual, mas a uma estrutura de outra espécie (estruturas mecânicas, por exemplo), os chimpanzés passaram do tipo intelectual de comportamento para o puro método de provas e erros. Uma operação tão simples do ponto de vista do homem, como colocar uma caixa sobre a outra e observar o equilíbrio ou retirar um anel de um prego, acaba sendo quase inacessível à ‘estática ingênua’ e à mecânica do chimpanzé. Logo quando a criança nasce e começa a se desenvolver, assim como os animais, ainda não se apropriou da linguagem humana. Seu comportamento possui certa correspondência com o estágio intelectual do macaco, de modo, que alguns autores tentaram estender os estudos com animais para a psicologia infantil e inclusive Bühler afirmou que a fase inicial de vida da criança deveria se chamar “idade do chimpanzé” (VYGOTSKY; LURIA, 2007, p. 14). Porém, Vygotski e Luria (2007) afirmam que somente no período pré-verbal a atividade instrumental infantil é comparável a do macaco. Nesse período pré-verbal, a função social da linguagem vai se consolidando e criança vai desenvolvendo a fala a partir dos gritos, balbucios e primeiras palavras. Porém, este é um estágio pré-intelectual, que não se relaciona com o desenvolvimento do pensamento. Linguagem e intelecto se desenvolvem separadamente (VIGOTSKI, 2009). Vigotski e Luria (2007, p. 22), referem-se à fala e a ação prática quando se mencionam às linhas de desenvolvimento: o grande momento genético de desenvolvimento intelectual a partir do qual surgem as formas puramente humanas da inteligência prática e da inteligência cognoscitiva, produz-se mediante a unificação dessas duas linhas independentes do desenvolvimento, até então separadas. O que se compreende por essas afirmações é que o intelecto/pensamento antes dos dois anos de idade está ligado à ação prática da criança, assim como está nos animais. A inteligência da criança antes dessa idade corresponderia ao intelecto prático discutido por Vygotsky e Luria (1996) a partir dos estudos de Köhler. Aproximadamente aos dois anos, o pensamento e a fala da criança se cruzam e criam uma nova forma de comportamento. Segundo Vigotski (2009, p. 131), a partir desse momento, “a fala se torna intelectual e o pensamento verbalizado”. Nesse momento surge a inteligência cognoscitiva e a inteligência prática passa a diferir da dos animais, uma vez que passa a ser gradativamente dominada pelas palavras e outros signos. Esta compreensão apontaria caminhos a serem percorridos pelas práticas educativas com essa criança; as quais deveriam almejar o objetivo de forjar o intercruzamento entre o intelecto/pensamento da criança com os signos/palavras, isto é, forjar a apropriação da linguagem de modo que a criança não só a compreenda, mas também a utilize. Conclui-se, portanto, que há diferenças entre a inteligência do homem e do intelecto prático dos animais. Os macacos possuem um tipo de inteligência, e sua diferença em relação à inteligência dos homens é que ela somente opera com instrumentos dentro de dadas condições, sendo elas dependentes da estrutura perceptiva. Considerações Finais Desde o início da sociedade de classes, o critério da inteligência tem sido utilizado para separar as classes sociais em dominantes e dominadas. Vê-se, por exemplo, que nos EUA o critério da inteligência foi utilizado para colocar cada trabalhador em determinado posto de trabalho de acordo com sua capacidade intelectual inata. Isto se mostra contraditório quando se olha pelo prisma da PHC, pois esta entende que a inteligência prática e cognoscitiva não nasce com o sujeito, mas é desenvolvida socialmente, principalmente pela apropriação dos conceitos científicos na escola. Ao se discutir as variadas concepções sobre a inteligência e ao se expor a teorização dos psicólogos soviéticos, entende-se que isso denota a importância das atividades pedagógicas dos professores no processo dialético de desenvolvimento, de reequipamento cultural do aluno e no embate do curso comum da luta de classes, que tenta privar os filhos dos trabalhadores de uma educação pública de qualidade, e consequentemente, de desenvolver sua inteligência. Com o que se expôs buscou-se demonstrar a impropriedade de se esperar por um aluno geneticamente inteligente, que possa desenvolver-se em qualquer situação e a despeito das políticas públicas e das atividades de ensino. A pesquisa ofereceu subsídios para que se possa tomar autores e obras situadas a dados espaços geográficos e socioeconômicos. Assim, o recuo a outros períodos históricos, com seus fatos e feitos que lhes são próprios permitem identificar a constituição social não só do psiquismo, mas do modo de se produzir e reproduzir a existência e os próprios homens que, ao seu tempo e ao seu modo, levam adiante, dos mais variados modos, a ciência (dada) e o processo civilizatório. Isso impõe que a psicologia como ciência e profissão esteja em defesa da boa escola, aquela que se adianta ao desenvolvimento, como postula a teoria vigotskiana. A escola deve posicionar-se adiante do já alcançado (pelo aluno) e movimentar o seu desenvolvimento, por aquilo que ela lhe ensina e que nele forma; deve ir além do sincrético posto na cotidianidade e permitir-lhe formulações também menos diretas, menos aparentes; mais complexas. Essa complexidade que foi alcançada pelo gênero humano deve ser acessível a todos. Se a educação constitui-se em um processo intencional de formação das novas gerações, a psicologia sob a matriz teórica eleita deve subsidiar a boa escola, ao lhe oferecer subsídios para o reequipamento cultural, de modo a impactar diretamente nas FPSs. Na formação social não somente de seu intelecto, mas de seu psiquismo de modo integral. Referências ALMEIDA, D. D. M. (org.) … (et al.) Alfred Binet. Recife: Fundação Joaquim Nabuco, Editora Massangana, 2010. ANTUNES, M. A. M. A psicologia no Brasil: leitura histórica sobre a sua constituição. São Paulo: Unimarco Editora/Educ, 1998. ALVES, Gilberto Luiz. A produção da escola pública contemporânea. Campinas, SP: Autores Associados, 2006. BOCK, A. M. B.; FURTADO O.; TEIXEIRA, M. L. T. Psicologias: uma introdução ao estudo de psicologia. São Paulo: Saraiva; 2001. GILLY, M.; MERLET-VIGIER, L. Meio social, meio familiar e debilidade mental. In: ZAZZO, R. (org.). As debilidades mentais. Tomo II. Lisboa: Sociocultur, 1969. p. 79138. LESSA, S. 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