EM DEFESA DA FAMÍLIA: UM ESTUDO SOBRE A PROPAGAÇÃO DO
IDEÁRIO EDUCACIONAL DA IGREJA CATÓLICA NO BOLETIM “SERVIR”
(ANOS 1950/1960)
Bárbara de Amorim Gen
UERJ – Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Eixo Temático: 6 - Intelectuais, pensamento social e educação.
Nos quadros do debate conduzido na sociedade brasileira, relativo ao tema
educacional, nos anos 1950/60, observa-se a presença marcante da Igreja Católica e do
movimento empreendido sob sua liderança. Tal participação, ainda que encaminhada, neste
momento, em uma direção diversa, pode ser compreendida em uma dimensão de
continuidade em relação ao envolvimento do grupo católico nos debates educacionais de
décadas anteriores. Se, nos anos 1920/30, observa-se a tentativa de intervenção no sistema
público de ensino, que então se organizava, especialmente no que diz respeito à defesa do
ensino religioso nas escolas que o compunham, neste novo contexto, observa-se a
participação do movimento católico em debates que têm na educação privada um
importante foco.
Para compreendermos a atuação dos católicos neste cenário, tornar-se importante a
observação de uma instituição que irá congregar de forma institucionalizada os educadores
católicos: a Associação de Educação Católica (AEC). Criada em 1945, como
desdobramento do I Congresso Interamericano de Educação Católica realizado em Bogotá,
inicialmente como uma instituição dotada de um caráter arquidiocesano, a então
Associação de Educação Católica do Rio de Janeiro assume, a partir de 1952, caráter
nacional, passando a ser chamada AEC do Brasil. Isto possibilitou uma maior repercussão
internacional e a adesão de vários estabelecimentos educacionais católicos do país,
contribuindo, ainda mais, para a “presença vigilante da hierarquia 1 ” da Igreja nesse
processo de unificação dos educadores católicos. Conforme Rossa: “A AEC seria o braço
estendido da hierarquia eclesiástica para os assuntos referentes à educação” (Rossa,
2005, p.146).
De acordo com o Estatuto da AEC aprovado em 1952, na I Assembléia Geral
Ordinária, esta associação deveria congregar estabelecimentos particulares de ensino, de
1
Cf Cruz, 1966, p.32.
qualquer grau, em todo o território nacional, mantidos por Ordens e Congregações
religiosas, ou por leigos que professassem a fé católica e aceitassem as determinações de
seu Estatuto. Neste documento são determinados, ainda, os fins da associação, e entre eles,
temos, a defesa dos direitos da família no ensino e na educação; o amparo à liberdade de
iniciativa particular no campo pedagógico e administrativo; a assistência aos
testabelecimentos com relação aos seus legítimos interesses; a cooperação para a união dos
educadores e de todos os colégios católicos do Brasil; entre outros 2 .
A AEC, ao longo dos anos, ampliou seu campo de atuação e de influência no
âmbito internacional, através da filiação a diversas organizações internacionais, como
UILE (União Internacional pela Liberdade de Ensino), OIEC (Organização Internacional
de Educação Católica), UNESCO, entre outras. Além disso, é preciso mencionar o seu
envolvimento nos Congressos Interamericanos de Educação Católica, tendo inclusive
participado da organização do IV CIEC, realizado em 1951, no Rio de Janeiro.
Considerando que a AEC do Brasil teve um papel central na transmissão dos ideais
religiosos católicos para a sociedade, no período referencial deste estudo (1950-1960), esta
associação foi eleita como alvo principal desta investigação histórica. Mais
especificamente, o foco estará sendo dirigido para o primeiro impresso oficial da
instituição, o Boletim “Servir” 3 . Tendo como interesse particular a reflexão sobre as
representações acerca da família, propagadas pelo Boletim “Servir”, na década de 1950,
este trabalho esteve atento às preocupações das lideranças católicas em divulgar, por meio
de periódicos 4 , seus interesses e “direitos”, em um contexto de discussões em torno da Lei
de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, iniciado em fins da década anterior.
Na circular de 1947 da AEC, aparece a primeira alusão a uma publicação oficial da
associação, que, de acordo com os planos apresentados, haveria de contribuir para tirar
dúvidas e esclarecer os associados sobre as questões educacionais, entre elas, sobre a
legislação escolar:
“Não pensamos ainda, numa revista luxuosa e de grande formato. Queremos
começar humildemente, sem compromissos financeiros excessivos... Neste
Boletim publicaríamos, entre outros trabalhos, respostas às consultas mais
importantes, depois de resolvidas nos diferentes Ministérios. O caso particular de
um Colégio, quase sempre, serve de orientação ao outro”. (CRUZ, 1966, p.30).
2
Boletim “Servir”, Ano V, nº4, Dezembro de 1952 – “Estatuto da Associação de Educação Católica” (p.2027).
3
As edições investigadas deste boletim foram encontradas na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.
4
Entre estes exemplos de periódicos, temos a Revista “A Ordem”, ainda que o tema não aparecesse com
tanta freqüência, ele mostrava-se presente na publicação.
Realizando este propósito, foi criado o Boletim “Servir”, que circulou de 1948 até
1963, quando foi substituído pelos “Cadernos da AEC”. Para que ocorresse a assimilação
da mensagem pelos leitores do boletim, foi indispensável estabelecer os mecanismos de
circulação e de distribuição do impresso para as diversas instituições de ensino associadas.
De acordo com o que se pode perceber, a AEC organizou a veiculação gratuita e regular de
seu impresso, buscando atingir, segundo era apresentado, todos os lugares e regiões
possíveis do Brasil.
O boletim apresentava em suas edições, notícias, artigos e documentos que
envolviam o campo da educação, como por exemplo, as legislações educacionais vigentes,
as determinações do Vaticano e as transcrições de textos papais acerca do tema, indicações
de livros para os professores, anúncios de cursos e seminários de estudos para o
aprimoramento do corpo docente, entre outros textos. Os exemplares do periódico
apresentavam diversas ilustrações, como por exemplo, fotos de festas e de solenidades
religiosas ligadas à educação, especialmente, das comemorações do “Dia da Educação
Católica”. Outros momentos ilustrados davam destaque para Cursos, Seminários e Semanas
Pedagógicas promovidas pela AEC, assim como para os eventos de que esta associação
participava, entre eles, congressos, assembléias e reuniões.
Na maior parte dos artigos publicados no boletim, não era mencionada a autoria,
apenas a instituição à qual o autor pertencia. Além disso, foi possível observar que esta
publicação possuía um caráter informativo, sendo destinado um maior espaço para notícias
nacionais e internacionais referentes à educação do que, propriamente, para trabalhos
opinativos que envolvessem a temática educacional.
Quanto a sua estrutura, o Boletim “Servir” apresentava as seções “Notícias do
Vaticano”, “Nossas Reuniões Mensais”, “Noticiário da AEC”, “Bibliografia Pedagógica”,
“Assembléias da AEC”, “Notícias do Estrangeiro”, “Relatório da AEC”, entre outras. Cabe
mencionar que algumas seções possuíam uma presença periódica diferenciada, aparecendo,
até mesmo, anualmente no impresso, como por exemplo, “Assembléias da AEC” e
“Relatórios da AEC”. Entre os temas que mais se destacavam no periódico, podem ser
mencionados os direitos da Igreja na educação da sociedade, a função do professor, o
direito primordial da família na educação e a liberdade de ensino.
O Padre Jesuíta Arthur Alonso Frias foi o primeiro presidente da AEC, e, com o
pseudônimo de Mariano da Cruz, escreveu, em 1966, o livro: “Vinte anos a serviço da
educação” em comemoração ao vigésimo aniversário desta associação. O autor reproduz
em seu livro a apresentação por ele assinada da primeira edição do Boletim “Servir”,
intitulada “Santo e Senha”, publicada em maio de 1948, quando exercia o cargo de
presidente da instituição:
“É com natural emoção que traçamos estas linhas, introdutórias ao primeiro
número do Boletim SERVIR, órgão da Associação Nacional de Educação
Católica. Título de nobreza evangélica lhe assinala o humilde frontispício:
SERVIR! (...) SERVIR: para a realização de um programa de crescente
prosperidade, de progresso pedagógico de defesa e de combate, de união e de
solidariedade nacional. (...) SERVIR: na realização de uma grande família cristã,
pelo estreitamento dos laços culturais entre todas as nações e todos os povos
irmãos. (...) Abram-se, de par em par, as portas dos colégios e educandários a este
humilde e fiel mensageiro da Educação Católica. (...) Recatado e discreto, com
aquela prudente reserva, que é garantia de sucessos sobrenaturais, ele responderá
humilde: “MEU SANTO E SENHA” é SERVIR!” (Boletim Servir – Ano I, Maio
de 1948, n° 1, p.8 )
Ainda no mesmo livro, o autor apresenta:
“O Boletim SERVIR, verdadeiro traço de união e mensageiro discreto, que visita
periodicamente todos os educandários, até os mais remotos, nos últimos recantos
do país. Seu título, evocador de solidariedade, de confiança e de vassalagem,
tornar-se-á, dia a dia, mais conhecido e familiar, passando a ser interpretado como
“Santo e Senha” do Secretariado do Rio cujo propósito único, o cronista está
consciente disso, foi sempre, invariavelmente: SERVIR ... ” (Cruz, 1966, p.73).
Refletindo sobre o uso do termo “Santo e Senha” pelo Presidente da AEC nas
descrições do Boletim “Servir”, pode-se considerar, como significados, os de “senha que
consiste no nome de um santo e um sinal”, e ainda, “qualquer sinal convencionado para
diferenciar discretamente os adversários dos partidários” 5 . Nessa direção, o boletim pode,
então, ser entendido como uma espécie de “sinal” emitido pelas lideranças da associação,
indicando que as instituições atingidas seriam aquelas que partilhariam e seguiriam a
mesma doutrina pedagógica, compondo assim, uma congregação de escolas católicas.
Percebe-se, ainda, que os representantes da AEC manifestavam através da
publicação de seu boletim, o desejo de facilitar a comunicação entre os associados,
possibilitando, com isso, “servir”, segundo o próprio nome de sua publicação, as escolas
católicas através das funções de assistência, de capacitação, de aperfeiçoamento, de
informação, entre outras.
Conforme a visão apresentada nos Estatutos da AEC, esta instituição, desde a sua
fundação, teve como intuito principal promover “a união de todos os educadores sob a
5
Dicionário Virtual KingHost: www.kinghost.com.br/dicionario/santo-e-senha.html.
égide da doutrina da Igreja” 6 , assim como, segundo CRUZ (1966, p.28), garantir “a
defesa dos direitos dos seus associados e a assistência nos seus interesses, como
realização concreta do seu próprio fundamento de: SERVIR”.
Nos quadros do movimento de renovação católica em curso desde os anos de 1920,
o impresso foi utilizado como um importante “dispositivo de constituição de um lugar de
autoridade” 7 . No caso deste boletim, os intelectuais católicos procuravam atingir os
leitores e associados, construindo sua autoridade por meio da defesa de seus pontos de vista
e da censura às posições de seus adversários.
Carvalho (1994), em seus estudos, prioriza a importância estratégica do impresso
para a Igreja no campo doutrinário e pedagógico, e cita um trecho do Congresso de
Educação de 1933, em que é reafirmado o valor da imprensa, na propagação de discursos e
representações:
“É inegável o valor da imprensa como fator de difusão de idéias e como
instrumento educativo individual e social. Assim para o bom êxito de qualquer
ação, preliminarmente, deve incluir-se esta arma poderosa da vida moderna.
Nestas condições, no que se refere à imprensa e à ação católica, deve ser feita
através de impressos, circulares, avulsos, folhetos, etc., como na ocasião foi
alvitrado pela natureza do assunto e finalidade a objetivar-se” (Carvalho, 1994,
p.110).
A utilização do Boletim “Servir”, pela AEC, para a propagação de seu pensamento
social, tinha o intuito de criar um vínculo, unificando toda a “família cristã”. Neste caso,
pode-se observar que o sentido atribuído ao conceito de “família” por alguns religiosos e
representantes das lideranças católicas, remetia ao grupo de colégios, professores, alunos e
famílias que partilhassem do mesmo ideário religioso e educacional católico.
Esses mecanismos estratégicos de utilização dos impressos apresentavam, ainda, a
intenção de difundir uma doutrina pedagógica construída pela Igreja acerca das instituições
educativas, sendo alvo de reflexão, neste caso, o papel da própria Igreja, da família e do
Estado. Esta ação pode ser entendida a partir do conceito de “estratégia” de Certeau, que
afirma:
“As estratégias são, portanto ações que, graças ao postulado de um lugar de poder
(a propriedade de um próprio), elaboram lugares teóricos (sistemas e discursos
totalizantes), capazes de articular um conjunto de lugares físicos onde as forças se
distribuem” (Certeau, 1994, p.102).
6
7
Cf Cruz, 1966, p.28.
Cf Carvalho, 1998, p.71-72.
No caso da hierarquia católica, a fonte central de poder é representada pelas
determinações do Vaticano, o que explica o recurso recorrente, como forma de legitimação
dos posicionamentos defendidos pela AEC em seu boletim, aos documentos oficiais da
Igreja, como pronunciamentos, falas e determinações de S. S. o Papa. Desta maneira,
lançava-se mão da voz do Papa para conferir solidez ao discurso da instituição, voltado, em
grande medida, para as escolas católicas, sendo estas, por sua vez, responsabilizadas pela
doutrinação dos alunos e, em especial, dos pais, através do chamado “Apostolado nas
Famílias”:
“Por meio da educação dos jovens, chega-se também às respectivas famílias.
Chegue a todos a palavra de Deus nos momentos de alegria ou de dor. Agrupemse os pais de família, em associações adequadas às quais, com todos os meios
possíveis infundam a plena consciência de seus deveres para com Deus e os
deveres que deles se derivam perante o Estado.”(Boletim “Servir”, Ano I,
Novembro de 1948, nº3, p.8).
As representações sobre o papel central da família no processo educativo sempre
tiveram lugar de destaque na doutrina pedagógica cristã, visto que a família era entendida
como a primeira instância educativa do homem, ou seja, a “instituição formadora do ser 8 ”,
e como a base da sociedade, fundada no laço indissolúvel do casamento. Alceu Amoroso
Lima (1954) acrescenta, ainda, que “a família é o sinal mais importante da estabilidade
nacional 9 ”.
Gonella (1952), em seu artigo “Educação, Escola e Estado”, publicado na Revista
“A Ordem”, de novembro de 1952, apresenta seu ponto de vista, acentuando uma marca de
continuidade na função social exercida pela família:
“Educadora é a família, a tribo e o clã primitivo, qualquer que seja a classificação
e qualificação que estas formas sociais tenham assumido em principio...”
(Gonella, 1952, p.4).
A Associação de Educação Católica, apoiada na doutrina social da Igreja, assumia,
através de suas ações e de seu Boletim “Servir”:
“(...) a defesa intransigente da família, principalmente da mais pobre ou
remediada, à qual assiste igual direito que os ricos, de escolher o gênero de
educação para seus filhos e, correlativamente, incumbe a obrigação de exigir dos
poderes públicos a imprescindível cooperação financeira, para que a liberdade
democrática de opção não venha a ser anulada e destruída pela sua deficiente
condição econômica. A igualdade de oportunidades não é autenticamente
8
Cf Gonella, 1952.
Alceu Amoroso Lima foi um importante intelectual que atuou com destaque em diferentes frentes do
movimento católico. Cf Lima, 1954.
9
democrática quando deixa de apoiar-se num regime, em que a justiça distributiva
atenda, de fato, com igual tratamento, aos diversos estados de consciência ” (Cruz,
1966, p.169).
Pode-se observar, deste modo, que no discurso veiculado no âmbito da AEC, vai se
afirmando a noção de direito das famílias. Defendia-se, assim, com grande ênfase, no
período estudado, a idéia de que caberia ao Estado dar execução ao preceito constitucional
da “liberdade de ensino”, assegurando aos pais, com o apoio de recursos públicos, a
possibilidade de escolher a escola e o ensino que pretendessem para seus filhos, assim
como os seus mandatários na educação, fossem eles da iniciativa privada ou não. E isto,
dentro da concepção de “democracia” da Igreja, só seria possível através de uma legislação
escolar “democrática”, que possibilitasse o “direito de opção” para as famílias.
Segundo essa visão, que reconhecia os direitos da família cristã e sua missão
educadora, não bastava que a escola subministrasse o ensino religioso, mas sim que toda a
organização escolar fosse regida pelo espírito cristão. Por esta razão, a única escola vista
como perfeitamente adaptável para uma família cristã era a escola cristã. Cruz (1966),
inclusive, afirmava a preferência das famílias pelos colégios católicos:
“Um fato é incontestável: a família brasileira continua a preferir os colégios
religiosos” (Cruz, 1966, p.47).
Pio XII enfatizava que a família deveria ser o apoio do professor, pois este seria,
primeiramente, delegado da família, antes de tornar-se empregado do Estado ou da
instituição de ensino 10 . Os educadores eram vistos como auxiliares da família, e entre eles
deveria haver uma relação ativa de cooperação, de compreensão e, principalmente, de
reciprocidade entre as suas filosofias de vida e seus preceitos religiosos.
No Boletim “Servir”, de outubro de 1951, é apresentada a visão de Pio XII sobre a
relação da família com o Estado: “a família não existe em função da sociedade, mas ao
contrário, é a sociedade que existe para a família, pois ela é a célula fundamental e o
elemento constitutivo da comunidade e do Estado 11 ”.
A luta da Igreja para a defesa de seus posicionamentos favoreceu também as
instituições privadas de ensino, visto que devido à possibilidade de escolha dos pais, a
iniciativa privada também passaria a ser mandatária da família que assim o desejasse. Desta
maneira, a AEC defendia, ao lado do Sindicato de Estabelecimentos Particulares de Ensino,
10
Cf. Cruz, 1966.
Boletim “Servir” Ano IV nº3 Outubro de 1951 – Artigo: “Pio XII fala sobre os problemas da família e da
educação” (p.2).
11
o financiamento público para as escolas particulares, destinado à manutenção e
remuneração de professores, entre outras atividades que pudessem equipará-las às escolas
do Estado. As lideranças católicas achavam uma injustiça do Estado obrigar os pais que
optavam pela escola não estatal a pagar duas vezes a taxa escolar: através de impostos e das
mensalidades escolares.
Cury (1991) afirma que estes argumentos defendidos pelos setores católicos
ganharam força neste debate em torno do projeto da LDB porque aqueles, ao se aliarem ao
grupo privatista da educação, tiveram suas bases de sustentação alargadas, consolidando-se,
com a AEC, como um poderoso grupo de pressão na tramitação desta lei.
Os intelectuais católicos, através de manifestos escritos a favor da concepção de
educação que eles entendiam como sendo “democrática”, condenavam as posições dos
educadores defensores da escola pública e que reforçavam o papel do Estado na gestão
educacional. Esta presença central do Estado era compreendida pelas lideranças católicas
como “um monopólio estatal da educação”, que impedia o princípio da liberdade de
ensino 12 . Utilizavam, inclusive, argumentos legislativos para legitimar sua defesa, como,
por exemplo, a Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU, de 10 de dezembro
1948 que prescreve: “Os pais têm prioridade do direito de escolher o gênero de educação
a dar a seus filhos” (art.26, alínea 3).
Esta concepção “democrática” apresentada pela Igreja aparece em contraposição à
dos educadores ligados ao movimento da Escola Nova, defensores, de um modo geral, de
uma visão bem diferente de democracia. Para Anísio Teixeira, por exemplo, a
democratização do ensino seria representada pela escola oficial, única, laica e gratuita.
Desta forma, se na concepção de democracia desses educadores, a escola pública ganhava
lugar de destaque, para as lideranças católicas, o Estado “democrático” deveria garantir
liberdade e subsídios para a iniciativa privada, respeitando a opção religiosa das famílias.
Anísio Teixeira apresenta do seguinte modo sua posição acerca do “monopólio estatal” e da
escola pública:
“Não advogamos o monopólio da educação pelo Estado, mas julgamos que todos
têm direito à educação pública, e somente os que quiserem é que poderão procurar
a educação privada. Numa sociedade como a nossa, tradicionalmente marcada de
profundo espírito de classe e de privilégio, somente a escola pública será
verdadeiramente democrática e somente ela poderá ter um programa de formação
comum, sem os preconceitos contra certas formas de trabalho essenciais à
democracia”(Teixeira, 1994, p.101).
12
Cf Cruz, 1966.
Os representantes dos estabelecimentos católicos e particulares de ensino
acreditavam que o verdadeiro Estado “democrático” deveria colaborar com o preceito da
liberdade de ensino, configurando desta forma, segundo sua concepção, a educação
democrática. O Estado, dentro desta concepção, só interviria para exercer papel
suplementar à iniciativa privada, nunca um papel autoritário e incompatível com os direitos
da família. E o Boletim “Servir” faz menção a esse tipo de atitude, do Estado, entendida
como monopolista, num discurso do Santo Padre Pio XII:
“De fato, a liberdade de ensino, teoricamente admitida é, na prática, muito
restringida, quando não mesmo guerreada. Quanto muito é deixada numa situação
de tolerância, sempre que o Estado, em matéria de ensino, se considera detentor
de um autêntico monopólio e evoca para si o emprego da totalidade dos recursos
públicos destinados à educação” (Boletim “Servir”, Ano XII, Agosto de 1959,
nº2, p.30).
É do seguinte modo, que Mariano Cruz rememora o esforço da AEC:
“O SERVIR nos dá inúmeros testemunhos deste esforço constante da AEC.
Fundada no princípio de que: o Estado é devedor ao povo dos serviços e dos
dinheiros que administra; que o “sujeito do direito” aos recursos destinados à
educação e ao ensino é cada um dos cidadãos; que a educação não é meramente
ensino, mas formação integral da personalidade; que, para essa formação integral,
cada grupo tem direito de invocar uma determinada filosofia de vida ou uma
crença religiosa; que, finalmente, a essência da democracia está no respeito a essa
liberdade de pensar e que qualquer “uniformização” do processo educativo
implica na injusta frustração dessa liberdade de consciência; a AEC inferia,
validamente, que o Estado democrático só administrará com justiça distributiva o
erário público, na medida em que sua política econômica da educação se conciliar
com o pluralismo filosófico e religioso de todos os grupos sociais, que compõem a
unidade nacional” (Cruz, 1966, p.196).
É possível perceber, após este estudo, que, por meio do Boletim “Servir”, a AEC se
esforçou para defender sua concepção “democrática” de educação, buscando garantir,
assim, a afirmação de sua posição frente ao Estado, em um momento importante de
disputas entre projetos distintos e de definição de rumos para a educação brasileira.
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