Devastação, Sara e Vilma
Devastação, Leonora e Selma
Os olhos, o espelho, o outro
1.
A noite chegara há pouco. Sentamo-nos, lado a lado, nas duas cadeiras diante do espelho falso. Sobre
os nossos corpos, a intensa luminosidade do aparato fotográfico, enquanto o leve ruído do disparador
cortava os instantes. Nossos olhos, entre as tentativas de escape, encontravam-se, vez ou outra, na
distância da imagem no espelho. Fugíamos, voltávamos. Perdemo-nos, por fim. Ainda que nos olhássemos,
já não nos víamos. Restitui-se, de repente, o fio mais primitivo que vincula os nossos corpos: o que é meu,
o que é dela? Restou somente o olhar: já sem corpo, quase sem visão, o olhar fixo no outro, este que se
mistura a mim, que não se separa, que me tira o ar, imagem colada à minha, o meu autorretrato do outro.
2.
A primeira imagem com a qual estabelecemos relação talvez seja a nossa própria imagem. Lacan falaria
mesmo de uma experiência com o espelho, em que a criança compreende, diante do próprio reflexo,
que seu corpo é um outro. Se, naquele momento, ela se dá conta de que existem ao menos dois corpos,
o seu próprio e o da mãe, ela constata não somente a alteridade da mãe mas, também, a sua própria
alteridade em relação ao pensamento original de ser um único corpo com ela. Tendo olhado para seu
corpo no espelho, a criança se vê como um outro. A mãe também a olha e lança ao seu pequeno corpo
a confirmação de estar separado. Neste instante, instaura-se uma nova ordem de relação com o mundo,
com o olhar e com as imagens. A imagem do outro – a minha imagem no espelho – é a minha origem como
sujeito, apartado do outro, separado da mãe.
3.
Freud falaria de uma catástrofe. Lacan, de uma devastação. A relação entre essas duas mulheres, mãe
e filha, constitui-se por restos sem palavra, resíduos de uma pré-história perdida, sem memória, sem
linguagem possível. Segundo Freud, a mãe é o primeiro objeto de amor do menino e da menina. Mas a
menina precisa fazer um movimento inverso e difícil: deixar este primeiro objeto amoroso para ir em
direção ao pai. Na mãe, falta; o pai é a promessa da restituição do que foi perdido. Nesse rasgo, mãe e
menina se perdem no duplo vazio que as constitui. A menina investe, então, em uma primeira separação que
deverá ser afirmada ao longo da relação com a mãe. Uma paisagem devastada vincula as duas: o feminino é
do campo da falta, do enigma, o que Freud chamou de continente negro, sendo da ordem da construção,
jamais algo dado. A menina espera aprender o feminino com a mãe, mãe que, por sua vez, não sabe, não
pode ensiná-lo. A relação se investe, então, de jogos de amor e ódio, de decepções e frustrações; uma
não pode reinvestir a outra do que falta, do que definitivamente faltará. A história da menina com a mãe
transforma-se na história de uma separação necessária, mas sempre adiada; os corpos se misturam, não
se sabe o que pertence a quem na relação. Para a menina se tornar mulher, ela precisa separar-se deste
outro primordial. Para poder ir em direção ao desejo, é preciso deixar de responder à demanda infinita do
outro materno. Mas os vínculos são obscuros, intangíveis. A paisagem torna-se ruína, deserto. Para Lacan,
a devastação é a difícil trama de uma demanda infinita de amor que impossibilita a filha de se separar da
mãe para constituir-se como mulher.
4.
Na série Devastação, de Paula Huven, o que vemos de imediato é um encontro. Encontro entre mãe e filha,
sim, mas um encontro que envolve, ainda, um outro: a fotografia. Na proposta do trabalho, mãe e filha
sentam-se diante de um espelho falso, através do qual está a câmera. O tempo que se segue, de uma
duração variável, destina-se a uma constituição do olhar das duas, enquanto a artista, atrás do espelho e
sem ser vista, procura-o, estabelecendo, por sua vez, uma outra relação com a cena, de captura e silêncio.
Digo constituição do olhar porque ele não é algo dado, pronto, imediato. Ele se desenha no tempo em que
os olhos se olham, se enfrentam, se acalmam. O olhar acontece, às vezes muito brevemente, num mínimo
relance. O olhar não dura, ele é frágil, pode desaparecer com um sorriso, uma risada, a cabeça para baixo,
para o lado, os olhos fechados. Quando nos propomos a olhar os olhos do outro, sem nada dizer, sem
gesticular, impedindo que qualquer outra linguagem apareça além do olhar, sentimo-nos imediatamente
estranhos, muitas vezes rimos, tentando afastar a invasão do olhar do outro. Somos, em geral, protegidos
do olhar pelas palavras e pelos gestos, pelo que sempre nos chama em outra direção. Olhar o outro
– e, principalmente, deixar-se ser olhado – é um exercício perturbador. Aqui não se trata de um olhar
direto, mas de um olhar enviesado: mãe e filha estão lado a lado, olham-se uma para a outra através do
espelho. Mas o que poderia ser menos inquietante, porque aparentemente distante, beira o insuportável:
como estar diante de um espelho e olhar o outro, se o espelho é o artifício que devolve a minha própria
imagem? Diante de um espelho, olhamo-nos a nós mesmos; o outro não precisa de um espelho para ser
olhado por nós. O que acontece, então, quando eu olho para o espelho e o que lá encontro é a imagem
do outro? Essa inversão desestabiliza de imediato uma ordem da relação: misturamo-nos nos olhos e nas
imagens, somos extraviados do nosso próprio corpo, tecidos no corpo do outro. O rosto da mãe, o rosto
da filha, instâncias de uma intimidade avassaladora, tornam-se, também, de uma estrangeiridade absoluta.
Aquele rosto do outro, que é um pouco meu porque reside em meu olhar, investe o meu próprio rosto de
seus traços, perco-me no outro, não me separo, aninho-me no inapreensível de sua imagem. Se o espelho
um dia trouxe a confirmação de nossa diferença, hoje ele restitui o rasgo, transformando parte de um
corpo no outro. O olhar que um dia separou hoje gera o encontro, para que, talvez, possamos novamente
nos separar. Mas a fotografia – ela, este outro – não permitirá mais a separação: para sempre, nela, o fio
invisível que nos liga, que nos torna feitas de um só corpo, na trama dos olhos enviesados, dos olhos
fechados, da carne misturada, da pele à distância, do riso, da dor – para sempre a imagem será a dupla
construção do vínculo e da perda.
Carolina Junqueira
Pesquisadora e doutoranda em Artes Visuais | UFMG
The eyes, the mirror, the other
1.
Night had just fallen. We sat, side by side, on a pair of chairs facing the fake mirror. Bathing our bodies
is the intense luminosity of the photographic apparatus, while the trigger’s low continuous sound cuts
through time. Our eyes, trying to avoid each other, would sometimes find themselves in the distance
of the mirror’s image. We escaped, we returned. At last, we got lost. As much as we stared, we weren’t
actually seeing each other. All of a sudden our most primitive bond was restored: what is mine and what
is hers? Nothing but the gaze remained: disembodied, sightless, the eye fixed upon the other, the other
who merges with me, to whom I’m perpetually stuck, the other who suffocates me, its image glued to
mine, my self-portrait of the other.
2.
The first image we connect to is probably our own. Lacan would speak of an experience with the mirror,
in which the child, confronted with her own reflection, comprehends that her body is someone else’s.
If at that point the child is able to understand that there are at least two bodies at play – her mother’s
and her own – she will then figure out not only the mother’s alterity, but her own alterity in relation to
the primordial idea that together they form one unique being. Having faced her own body in the mirror,
the child sees itself as another. The mother also casts a look at her own little body, confirming their
separation. Right at this instant a new order and a new way of seeing and relating to the world and to
images is established. The image of the other – my image in the mirror – is my origin as an individual,
weaned from the other, separated from my mother.
Devastação, Cláudia e Patrícia
3.
Freud would speak of catastrophe. Lacan of ravage. The relation between these two women, mother and
daughter, builds itself on wordless remains, residues of a lost pre-history, devoid of memory and language.
According to Freud, the mother is any child’s first love object. But the girl must trail an opposite and
very difficult path: leave behind this first object of her love and walk towards the father. In her mother
something is always lacking. The father is the promise of restitution of what has been lost. During this
laceration, mother and girl loose each other in the very emptiness that constitutes them. The girl then
invests herself in a first separation, which will be reaffirmed through the course of their relationship. A
ravaged landscape binds them together: the feminine is a place of lacking, of enigma, a place Freud named
The Dark Continent, where everything must be built and nothing is a given. The girl wishes to learn about
the feminine with her mother, but the mother herself doesn’t know, and cannot teach it. Their relationship
becomes invested in games of love and hate, of deception and frustration; one is never able to reinvest
the other in what is lacking, in what will always be lacking. The story of the girl and her mother becomes
the story of a necessary separation, but one that is forever postponed; their bodies merge, it is impossible
to say what belongs to whom in their relationship. In order for the girl to become a woman she must
detach herself from this primordial other. For her to be able to walk towards desire, she needs to stop
answering to the endless demands of her maternal other. But these bonds are obscure, intangible. The
landscape turns to ruins, to desert. For Lacan, the ravage originates from an endless request for love,
which makes it impossible for the girl to detach herself from her mother and become a woman.
4.
In Paula Huven’s Ravage what we first see is an encounter. An encounter between mother and daughter,
yes, but one that also involves a third component: photography. In her work, mother and daughter sit
in front of a two-way mirror, through which they are photographed. The time that follows, of variable
duration, is meant to allow their gaze to constitute itself, while the artist, hidden by the mirror, searches
for it, establishing a different kind of relationship with the scene, one of capture and silence. I say the
gaze needs to constitute itself because it is not a given, it’s not ready, not immediate. It delineates itself
while their eyes focus on each other, confront each other, calm each other. Sometimes the look is very
brief, the smallest of glances. It doesn’t last, it’s fragile, it can vanish with a smile, a laugh, a head tilted
down, sideways, the closing of the eyes. When we decide to look someone in the eye without saying
a word, without gesturing, averting every other type of language besides looking, we immediately feel
awkward. We tend to laugh, trying to flee the invasion of the other’s gaze. We are, in general, shielded
from the look by words and gestures, by all the little things that draw our attention in other directions.
To actually look at someone – and, most importantly, to let yourself be looked at – is a disturbing
exercise. In this case it’s not a direct look, but a sideways one: mother and daughter are sat side by side,
looking at each other through the mirror. But what could seem less disquieting, since apparently distant,
borderlines the unbearable: how is it possible to face a mirror and look at the other, if the mirror is itself
the artifice that returns my own image to myself? When facing a mirror we see ourselves, but we need
no mirrors to look at the other. What happens, then, when I look in the mirror and what I find is not
myself, but the image of the other? This inversion immediately destabilizes the relationship: our eyes and
our images combine, we are strayed from our own body, our tissues belong to the body of the other.
The mother’s face, the daughter’s face, instances of an overwhelming intimacy, also acquire the highest
degree of foreignness. That face of the other, which belongs a little bit to me as well, since it resides in
my own gaze, covers my own face with its traces. I lose myself in the other, I cannot separate myself, I
nest myself in what is inapprehensible about your image. If one day the mirror brought us confirmation of
our differences, today it mends the tear, transforming part of one body into another. The look that once
separated today brings a new encounter, so that maybe we can split again. But photography – this other
– will allow the separation no longer: in it, forever, the invisible thread that binds us, that makes us one
unique body in a web of sideway glances, of eyes closed, of combined flesh, of distant skin, of laughter
and pain – in it the image will eternally be that of the double construction of bond and loss.
Carolina Junqueira
Researcher and a PhD student in Visual Arts, UFMG
DEVASTAÇÃO [RAVAGE]
Paula Huven
Exposição [Exhibition]
17 de maio a 7 de junho de 2014 [may 17 - june 7, 2014]
Paula Huven nasceu em Belo Horizonte, 1982. Vive e trabalha em Belo Horizonte. Mestre em Arte e Cultura
Contemporânea pela UERJ (2012); formação livre pela Escola de Artes Visuais do Parque Lage no Rio de Janeiro (20082012); Especialista em Imagens e Culturas Midiáticas pela FAFICH / UFMG (2006) e graduação em Comunicação pela
PUC MG (2004). Exposições individuais: Devastação, Galeria A.M (2014, Belo Horizonte, MG); o que nos une, o que
nos separa, Galeria Ibeu (2013, Rio de Janeiro). Exposições coletivas: V Prêmio Diário Contemporâneo (2014, Belém,
Pará); Fotografia Mineira Contemporânea (2014, 4º Festival de Fotografia de Tiradentes, MG); A lua no bolso, Largo
das Artes (2013, RJ); III Mostra Aprofundamento, Parque Lage (2013, RJ); Abre Alas 8, Galeria A Gentil Carioca (2012,
RJ); II Semana da Fotografia de Belo Horizonte (2012, CentoeQuatro, MG); entre a cama e a janela, Projeto Expofoto,
OI Futuro Flamengo (2011, RJ); ao mesmo tempo, Palácio das Artes (2008, BH), entre outras. Prêmio Funarte Mulheres
nas Artes Visuais, 2013.
Paula Huven was born in Belo Horizonte, state of Minas Gerais, Brazil, in 1982. She received her Master’s Degree in
Art and Contemporary Culture from the State University of Rio de Janeiro (UERJ) in 2012. Before that she studied at
Parque Lages’ School of Visual Arts (EAV), also in Rio de Janeiro (2008 – 2010). In 2006 she specialized in Media Culture
and Images at the Federal University of Minas Gerais (UFMG), and in 2004 she received her B.A in Communications
from the Pontifical Catholic University of Minas Gerais (PUC-MG). Individual exhibitions: ‘Devastação’, at Galeria
A.M (2014, Belo Horizonte, MG); ‘o que nos une, o que nos separa’, at the IBEU Gallery (2013, Rio de Janeiro, RJ).
Collective exhibitions: ‘V Prêmio Diário Contemporâneo’ (2014, Belém, Pará); ‘Fotografia Mineira Contemporânea’, at
the 4thTiradentes Photography Festival (2014, Belo Horizonte, MG); ‘A lua no bolso’, at Largo das Artes (2013, Rio de
Janeiro, RJ); ‘III Mostra Aprofundamento’, at Parque Lage (2013, Rio de Janeiro, RJ); ‘Abre Alas 8’, at A Gentil Carioca
Gallery (2012, Rio de Janeiro, RJ); ‘Belo Horizonte’s Second Photography Week’, at 104 Gallery (2012); ‘entre a cama
e a janela’, Expofoto Project, at Oi Futuro Flamengo (2011, Rio de Janeiro, RJ); ‘ao mesmo tempo’, at Palácio das Artes
(2008, Belo Horizonte, MG). In 2013 she received the Funarte Award for Women in the Visual Arts. She currently
lives and works in Belo Horizonte.
[www.cargocollective.com/paulahuven]
Todas as obras da série Devastação, 2014, fotografia, 100 x 100 cm cada
[All photographs from the sequence ‘Ravage’, 2014, photography, 100 x 100 cm each]
Texto [Essay] Carolina Junqueira
Assessoria de imprensa [Press release] Hipertexto e Manu Melo Franco
Projeto gráfico [Graphic design] Luísa Rabello
Tradução [Translation] Luiza Spósito Vilela
Angela Martins [Diretora]
Emmanuelle Grossi [Diretora Artística]
Iara Silva [Administrativo e Financeiro]
Bárbara Salum [Vendas e Relacionamento]
Sebastião Carlos [Montagem e Acervo]
Paulo Diniz [Transporte]
Rua Cláudio Manoel 155 Lj 04
30140-100 Belo Horizonte MG
+55 31 32234209
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de segunda a sexta das 10h às 19h
aos sábados das 10h às 13h30
Agradecimentos [Thanks to]
Às mães e filhas que tornaram este projeto possível;
à Carol Junqueira, por tudo dito e por tudo indizível; ao Fábio Cançado, pela luz, de agora e outrora;
ao Rodrigo, pelo cuidado ao dar corpo às imagens; à Galeria A.M., por acolher, e à Funarte, por contemplar.
Dedico esta série à minha mãe.
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do folder da exposição