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Miguel Amado
Ponto de Encontro ou o Regresso da Arte do Real
Meeting Point or The Return of the Art of the Real
All in all, the creative act is not performed by the artist alone;
the spectator brings the work in contact with the external
world by deciphering its […] inner qualification and thus adds
his contribution to the creative act.
Em suma, o acto criativo não é desempenhado apenas pelo
artista; o espectador põe a obra em contacto com o mundo
exterior, decifrando [...] as suas propriedades internas e,
assim, adicionando o seu contributo para o acto criativo.
Marcel Duchamp, “The Creative Act”[1957], in LEBEL, Robert,
Marcel Duchamp, New York: Paragraphic Books, 1959, p. 78.
Marcel Duchamp, “The Creative Act” [1957], in LEBEL, Robert,
Marcel Duchamp, Nova Iorque: Paragraphic Books, 1959, p. 78.
In fact, I think people start off from an idea and seek out the
material, rather than seeking out the material in search of an
idea. Any material is possible […]; you can draw from fashion,
music, theatre, even MTV, but the problem is that, in the midst
of all this, what makes this or that art?
Realmente, acho que se parte de uma ideia em busca de um
material e não do material em busca de uma ideia. Todos os
materiais são possíveis [...], podes procurá-los na moda, na
música, no teatro, até na MTV, mas o grande problema é que,
no meio disso tudo, o que é que faz com que isto ou aquilo
seja arte?
Joana Vasconcelos, in RUBIO, Agustín Pérez, “Do Micro ao Macro
e Vice-versa. Uma Conversa entre Agustín Pérez Rubio e Joana
Vasconcelos”, in Joana Vasconcelos, Lisbon: ADIAC Portugal,
Corda Seca, 2007, p. 162.
The statement by Marcel Duchamp cited above
(from the closing paragraph of “The Creative Act”,
a talk first given in 1957) changed the understanding of art in the post-World War II era. This
was nothing new for Duchamp, who back in the
second decade of the 20th century had transfigured, ontologically speaking, art’s modus operandi
with the readymade. Not one to offer easy reassurance, Duchamp left his revolutionary gesture to
the mercy of the most varied interpretations. He
himself averred that “the curious thing about the
readymade is that I have never been able to reach
a definition […] that fully satisfies me.”1 However,
as stated in an entry in the Dictionnaire Abrégé du
Sur réalisme cryptically signed M. D., a readymade is 1 TOMPKINS, Calvin, Duchamp:
A Biography, NewYork: Henry
“an ordinary object eleHolt and Company, 1996,
vated to the dignity […]
p. 158.
Joana Vasconcelos, in RUBIO, Agustín Pérez,“Do Micro ao Macro
e Vice-versa. Uma Conversa entre Agustín Pérez Rubio e Joana
Vasconcelos”, in Joana Vasconcelos, Lisboa: ADIAC Portugal,
Corda Seca, 2007, p. 42.
A declaração de Marcel Duchamp em epígrafe
(que concluía “O Acto Criativo”, uma palestra
proferida, originalmente, em 1957) alterou o entendimento da arte no pós-II Guerra Mundial. Tal
circunstância era tudo menos nova na biografia do
artista, que já em meados da década de 1910
transfigurara, ontologicamente, o modus operandi
artístico com o ready-made. Personagem desconcertante que era, Duchamp deixou o seu gesto
revolucionário à mercê das mais variadas inter pretações. Como afirmou, “o curioso acerca do
ready-made é que nunca fui capaz de chegar a uma
definição [...] que me satisfizesse totalmente.” 1
Porém, como patente numa entrada do Dictionnaire 1 TOMPKINS, Calvin, Duchamp:
A Biography, Nova Iorque:
Abrégé du Surréalisme reHenry Holt and Company,
digida sob a críptica assi1996, p. 158; tradução do
autor.
natura M. D., ready-made
17
Message in a Bottle, 2006
Pop Champagne, 2006
Garrafas de saqué, ferro metalizado e pintado, LED de alta intensidade, sistema eléctrico / Sake bottles, metallized and painted iron,
high-intensity LED, electrical system
(2 x) 650 x Ø 350 cm
Colecção da artista / Artist’s collection
Garrafas de champanhe, ferro metalizado e pintado, LED de alta intensidade, sistema eléctrico / Champagne bottles, metallized and painted
iron, high-intensity LED, electrical system
470 x Ø 248 cm
Colecção / Collection Domaine Pommery, Reims
Echigo-Tsumari Triennal, Tokamashi, 2006
of art by the mere choice of
2 BRÉTON, André and Paul
an artist”.2 This was a proÉluard, Dictionnaire Abrégé
du Surréalisme [1938], Paris:
clamation of the primacy
José Corti, 1991, p. 23.
of the concept over the
medium or, in the words of
Joana Vasconcelos also cited above, of the “idea
over the material”, characteristic of avant-garde
artistic practices of the 20th century.
In the late 1960s, Joseph Kosuth wrote that “all
art (after Duchamp) is conceptual (by nature),
because art only exists conceptually”,3 accepting
Duchamp’s legacy as the
foundation of the art of that 3 KOSUTH, Joseph, “Art After
Philosophy” [1969], in Chartime. Duchamp’s spectre is
les Harrison and Paul Wood
still acknowledged as ho(eds.), Art in Theory 1900-2000:
An Anthology of Changing
vering over present-day art
Ideas, Malden, MA: Blackwell,
and, in Portugal, no artist
2002, p. 856.
shows this to be the case
as much as Vasconcelos.
Symptomatically, the illustration accompanying the
description of readymade cited above is that of
Néctar [Nectar], 2006
Museu Colecção Berardo, Lisboa / Lisbon
[Ver / See p. 186]
é um “objecto banal elevado
2 BRÉTON, André e Paul Éluard,
à categoria de arte pela simDictionnaire Abrégé du Sur réalisme [1938], Paris: José
ples opção de um artista”.2
Corti, 1991, p. 23; tradução
Esta proposição anunciou, do autor.
pois, o primado do conceito sobre o medium ou, como refere Joana Vasconcelos na frase igualmente em epígrafe, da
“ideia sobre o material”, que caracteriza as práticas artísticas vanguardistas do século XX.
Joseph Kosuth declarou, em finais da década de
1960, que “toda a arte (depois de Duchamp) é
conceptual (por natureza),
porque a arte só existe con- 3 KOSUTH, Joseph, “Art After
ceptualmente”,3 assuminPhilosophy” [1969], in Charles Harrison and Paul Wood
do o legado duchampiano
(eds.), Art in Theory 1900-2000:
como fundamento da arte
An Anthology of Changing
Ideas, Malden, MA: Blackwell,
de então. Hoje, reconhece-se
2002, p. 856.
que o espectro de Duchamp
paira, ainda, sobre a arte
actual e, em Portugal, nenhum artista o demonstra tão
singularmente como Vasconcelos. Sintomaticamente,
a ilustração que acompanha a descrição de readymade supracitada é a de Porte-bouteilles,4 uma
obra de 1914. Porte-bouteilles radicalizou a acção 4 Obra também conhecida
como Séchoir à bouteilles ou
de Duchamp na medida em
Hérisson.
que, ao contrário de experiências anteriores, como Bicycle Wheel (1913),
não exigiu qualquer modificação do objecto,
assim prenunciando a famosa Fountain (1917), um
urinol simplesmente inver tido e assinado “R. Mutt
1917”. Ora, uma das réplicas de Porte-bouteilles
(que, como no caso dos restantes ready-mades,
substituiu o original, entretanto destruído) é uma
das obras pertencentes à Colecção Berardo e a
que inspirou Vasconcelos na realização, em 2006,
do grupo de obras Message in a Bottle, Pop Champagne e Néctar, esta integrada naquele acer vo e
instalada à porta do Museu
Colecção Berardo.5
5 Tal ocorreu no âmbito do
concurso “The Winner TaNéctar consiste numa
kes It All”, vencido pela ar estrutura similar a Portetista, com o qual o Museu
Colecção Berardo iniciou a
-bouteilles, embora de gransua actividade.
de escala, que sustenta
inúmeras garrafas de vinho, no interior das quais
estão pequenas lâmpadas que, à noite, acendem
e não só iluminam a área circundante, como também recortam a própria obra, destacando-a do edifício envolvente. Para além de convocar Duchamp,
a obra alicerça-se noutras referências: por um
lado, a configuração do castiçal, utensílio doméstico que remonta à civilização romana e que, caindo em desuso com a invenção da electricidade,
ganhou estatuto e se afirmou como modo de distinção; por outro, o flagelo do alcoolismo, fenómeno
simultaneamente transclassista, local e global.
Estes tópicos pressentem-se, igualmente, em Pop
Champagne e Message in a Bottle, embora estas
obras ampliem o seu significado com subtis variações estilísticas. Na primeira, empregam-se garrafas
de champanhe, reputada bebida francesa típica
de ambientes festivos, e alude-se a uma marca comercial que, por sua vez, evoca um movimento
artístico; Message in a Bottle, criada para um acontecimento realizado no Japão, recorre a garrafas
de saqué japonês e recorda a narrativa das viagens marítimas, em geral, e do passado náutico
português, em particular, especialmente no contexto nipónico.
Estas obras evidenciam uma das principais
características do trabalho de Vasconcelos: os “jogos de linguagem”. Para Ludwig Wittgenstein, que
cunhou este conceito, os vocábulos definem-se não
em função das coisas que nomeiam ou dos pensamentos a si associáveis, mas pelos seus modos
de utilização na comunicação diária. Como escreveu o filósofo, esta noção demonstra que “o facto
de falar uma língua é parte de uma actividade ou
Porte-bouteilles, 4 a work
4 Also known as Séchoir à
dat ing from 1914. Portebouteilles or Hérisson.
bouteilles radicalized Duchamp’s action insofar that, unlike his previous
experiments, such as Bicycle Wheel (1913), no
modification of the object was required, making it
the precursor of the famous Fountain (1917), simply
an inverted urinol signed “R. Mutt 1917”. One of
the replicas of Porte-bouteilles (which, as with the
other readymades, replaced the original, which
had in the meantime been destroyed) is one of the
works belonging to the Museu Colecção Berardo,
and inspired Vasconcelos in a set of works dating
from 2006, entitled Message in a Bottle, Pop Champagne and Néctar (Nectar), the latter also belonging to that holding and installed at the entrance
to the museum.5
Néctar consists of a 5 As a result of the competition
“The Winner Takes It All”, in
structure similar to Portewhich Vasconcelos was debouteilles, although on a
clared the winner, and which
marked the opening of the
larger scale, holding a huge
Museu Colecção Berardo.
number of wine bottles,
inside of which are small bulbs which light up at
night, illuminating not only the surrounding area
but also the work itself, setting it apart from the
building’s façade. In addition to evoking Duchamp,
the work is also based on other references: on the
one hand, the form of the candlestick, a domestic
utensil which goes back to Roman civilization and
which, having fallen into disuse with the invention
of electricity, reinvented itself as a status symbol;
on the other hand, the curse of alcoholism, a transclassist, local and global phenomenon. The same
themes can also be detected in Pop Champagne and
Message in a Bottle, although these works extend
their meaning through subtle stylistic variations.
Pop Champagne uses champagne bottles, which
evoke the prestigious French wine that is typical of
the party scene, and alludes to a brand which in
turns refers to an artistic movement. Message in a
Bottle, created for an event in Japan, uses bottles of
sake and recalls the narrative of maritime voyages
in general, and Portugal’s seafaring past in particular, especially in the Japanese context.
These works show us one of the main characteristics of Vasconcelos’ œuvre: the “language
games”. For Ludwig Wittgenstein, who came up
with the concept, vocables are defined not in
terms of the things they name or the thoughts
which may be associated with them, but by the
way in which they are used in everyday communication. As the philosopher wrote, this notion
seeks to “bring into prominence the fact that the
speaking of a language is
part of an activity, or a 6 WITTGENSTEIN, Ludwig,
Philosophical Investigations
form of life.”6 According to
[1953], Malden, MA: Blackwell,
this logic, it is important to
2001, p. 23.
18
19
consider, in addition to the denotative capacity of
a word, its value in use, meaning that a given utterance emerges from its respective cultural background. Vasconcelos’ strategy is based on this
premise; this is the case, above all, in works in
which the title appropriates daily expressions —
such as in Néctar, drawn from “nectar of the gods”
(colloquially used in Portuguese for a good wine)
— which thereby gain a polysemic character. This
perspective has in fact been discussed in other
articles, such as that by the critic João Pinharanda,
who already in 2001 drew attention to the importance of the “linguistic
and visual”7 dimension in 7 PINHARANDA, João, “Invenção e Reinvenção de Alguns
the analysis of the artist’s
Ditos Populares para Uso
practice.
Frequente”, in Medley, Lisbon: EDP – Electricidade de
Two other works can
Portugal/Comissão Instalaserve to exemplify this fradora da Fundação EDP,
2001, without page number.
mework. Tolerância Zero
(Zero Tolerance, 1999) is
an assembly of funnels, each cradling a sphere,
evoking a controversial road safety campaign with
the slogan “Zero tolerance, maximum safety”. Ouro
sobre Azul (Gold Over Blue, 2001) consists of a
circular cabin from which a commanding voice is
emitted and which on the outside features shelves
filled with trophies of different types, thus alluding
to the slogan of “blood, sweat and tears” evocative
of competitive sport. Presented at the Faculty of
Sport at the Oporto’s University (the colours of the
town’s main football club are blue and white), this
work deals with mythologies of regional emancipation that can still be found in discourse concerning the city. The understanding of the footballistic
phenomenon as a factor of aggregation of the masses can again be found in Ópio (Opium, 2003), two
sets of goal posts connected by multicoloured
netting in squares, with rosettes at the corners of
each one of them. Here the artist cites a rephrasing
of the celebrated Marxist quote “religion is the
opium of the people”. Fashion industry is examined
in Fashion Victims (2001), which presents three
naked dolls, standing back to back, slowly being
imprisoned by coloured cotton thread which is
wound around their bodies, in an erotic movement
of revelation/concealment of their erogenous zones.
A similar logic applies also to the title of this
exhibition, the first survey of Vasconcelos’ output.
In a globalized, technological world, “netless” carries a sense of detachment, as personified by disconnected Internet-obsessed users. A similar sense
permeates this project, which takes a fresh look at
the artist’s œuvre. In preparing this exhibition, one
was confronted with the growing recognition of
Vasconcelos’ œuvre, both in Portugal and abroad,
mostly in response to works dealing with issues
and techniques associated with womanliness. This
de uma forma de vida.”6
6 WITTGENSTEIN, Ludwig,
De acordo com esta lóPhilosophical Investigations
gica, impor ta considerar, [1953], Malden, MA: Blackwell,
2001, p. 23; tradução do autor.
para além da qualidade
denotativa de uma palavra, o seu valor de uso,
pelo que um dado enunciado emerge do respectivo quadro cultural. A estratégia de Vasconcelos assenta nesta premissa, tal verificando-se
sobretudo em obras cujo título apropria expressões correntes — é o caso do de Néctar, baseado
em “néctar dos deuses” — e, assim, ganham um
carácter polissémico. Esta observação entronca,
aliás, noutras perspectivas, como a do crítico João
Pinharanda, que chamava a atenção, já em 2001,
para a importância dos “níveis do linguístico e do
visual”7 na análise da prática da artista.
7 PINHARANDA, João, “Invenção e Reinvenção de Alguns
Refiram-se outras obras
Populares para Uso
exemplares neste contexto. Ditos
Frequente”, in Medley, Lisboa: EDP – Electricidade de
Tolerância Zero (1999) é
Instalaum emaranhado de funis, Portugal/Comissão
dora da Fundação EDP, 2001,
sem número de página.
dentro dos quais jazem esferas, que evoca uma polémica campanha de prevenção rodoviária, “Tolerância
zero, segurança máxima”. Ouro sobre Azul (2001)
consiste numa cabine circular da qual emerge
uma voz de comando e cujo exterior apresenta
taças de diferentes tipos dispostas em diversas
prateleiras, assim aludindo ao lema “sangue, suor
e lágrimas” próprio da competitividade despor tiva. Apresentada na Faculdade de Desporto da
Universidade do Porto, cidade cujo principal clube
de futebol equipa de azul e branco, a obra
abordava mitologias de emancipação regional
ainda hoje presentes no discurso sobre o Porto. O
entendimento do fenómeno futebolístico enquanto
factor de agregação de massas mantém-se em
Ópio (2003), duas balizas unidas por uma policromática rede quadriculada cujas junções compõem rosetas. Aqui, é uma reformulação do célebre
ditado marxista “a religião é o ópio do povo” que
a artista cita. A indústria da moda comenta-se em
Fashion Victims (2001), três bonecas nuas, com as
costas voltadas umas para as outras, lentamente
aprisionadas por linhas de coser coloridas que
envolvem os seus corpos, numa erótica acção de
revelação/ocultação das respectivas zonas erógenas.
Uma lógica similar aplica-se à designação desta
exposição, a primeira antológica de Vasconcelos.
Nas actividades circenses, “sem rede” traduz a
sensação de risco distintiva dos venturosos trapezistas que, acrobaticamente, balouçam a alturas
vertiginosas. Daí a sua adopção como título deste
projecto, inovador no olhar lançado sobre a prática
da artista e, portanto, ousado nas propostas que
desenvolve. A preparação desta exposição confrontou-se com o crescente reconhecimento do
Tolerância Zero [Zero Tolerance], 1999
Funis em PVC, ferro pintado, madeira / PVC funnels, painted iron, wood
120 x 120 x 120 cm
Colecção / Collection Banco Privado Português, Lisboa / Lisbon
21
tendency is exemplified by the series Coração
Independente (Independent Heart, 2004-2008) and
works such as A Noiva (The Bride, 2001-2005),
Donzela (Maiden, 2007) and Marilyn (2009). Never theless, challenging this perception, Netless also
brings together other works, such as the duo Sofá
Aspirina (Aspirin Sofa, 1997) and Cama Valium (Valium Bed, 1998), which helped to set her career,
and Ponto de Encontro (Meeting Point, 2000), and
O Mundo a Seus Pés (The World at Your Feet, 2001),
which were significant in consolidating it on a national level. Created between the mid-1990s and the
early years of the current decade, these works reflect the multiple facets of the artist’s practice. As a
result, Netless provides an overview of her output and
a rare chance to discover or re-explore it in depth.
Created in 1996 and remade last year, Flores do
Meu Desejo [Flowers of My Desire] introduces the
viewer to Vasconcelos’ early output. This work owes
much to the use of the body as an expressive resource that has defined post-minimalist art made
by women. It consists of a curvaceous metal armature pierced by feather dusters, whose uncanny8
presence prompts an antithetical reaction: the tempt- 8 The uncanny, as defined by
Sigmund Freud in 1919, is
ing interior of the structure
the familiar yet strange, and
engages the senses — sugoften provokes a cognitive
dissonance in the individual
gesting the touch, for examconsidering the paradox of
ple — whilst the exterior
simultaneously being attracted to and repulsed by a
recalls a target pierced by
given object. This circumarrows. The ar tist is dealstance leads to an outright
rejection of that object, as
ing with topics which the
one would rather refuse it
bodily aspect has brought
than rationalize it. Vide FREUD,
Sigmund, The Uncanny, Loninto art: the ambivalent redon: Penguin Classics, 2003.
lationship between flesh
and sacrifice or abjection
and the pursuit of pleasure, for example. Flores do
Meu Desejo serves as a bridge between college
experiments with body extensions — Bunis (1994)
and, above all, Overware (1996), a bra-armature in
beaten copper — and works such as Menu do Dia
(Today’s Specials, 2001), Burka (2002) or Esposas
(Wives / Handcuffs, 2005), metaphors for violence.
In effect, what message is conveyed by fur coats
hanging on fridge doors, if not this? Menu do Dia
thus articulates the scrutiny of animal sacrifice in
the name of iniquitous ostentation. In Esposas,
naked mannequins bonded with sado-masochiststyle braces give expression to gender submission: three women don’t let go three men, each one
of them holding the hands of two of them. And what
are we to think of Burka, the mantle of shame that
subjects Muslim women to concealment of their
faces, in order to prevent the alleged effect of
seduction which they exert over men. In order to
show just how universal this issue is, Vasconcelos
spreads it on thick in a kinetic apparatus which
trabalho de Vasconcelos, tanto em Portugal como
no estrangeiro, sob um ângulo da sua produção
essencialmente assente em problemáticas e técnicas associadas ao universo feminino. Enquadram-se
nesta postura a série Coração Independente (2004-2008) ou obras como A Noiva (2001-2005), Donzela (2007) e Marilyn (2009). Todavia, desafiando
tal percepção, Sem Rede reúne, para além destas,
obras como Sofá Aspirina (1997) e Cama Valium
(1998), marcantes no início da sua trajectória, e
Ponto de Encontro (2000) e O Mundo a Seus Pés
(2001), significativas na consolidação da sua
carreira a nível nacional. Realizadas entre finais da
década passada e inícios da actual, estas obras
enunciam as múltiplas facetas da prática da artista.
Sem Rede traça, assim, uma panorâmica do seu
trabalho e constitui uma rara oportunidade para o
conhecer ou redescobrir aprofundadamente.
Realizada em 1996 mas refeita no ano passado,
Flores do Meu Desejo introduz o espectador aos
primórdios da produção de Vasconcelos. Esta obra
deve muito à adopção do corpo como recurso expressivo que definiu parte da arte pós-minimalista
protagonizada por mulheres. A obra consiste numa
curvilínea armação metálica atravessada por espanadores, cuja presença “estranhamente
familiar”8 causa uma reacção antitética: o cativante
interior da estrutura exalta
os sentidos — convidando 8 Pretende traduzir-se o senao toque, por exemplo —, tido da noção uncanny, cunhada por Sigmund Freud,
enquanto o exterior recorem 1919. Para si, esta “estranha familiaridade” provoda um alvo alvejado por
ca uma dissonância cognitiva
setas. A artista aborda os
no indivíduo dado o paradoxo de sentir-se atraído
tópicos que a dimensão
por e simultaneamente recor pórea trouxe à arte: a
pudiar um dado objecto. Tal
circunstância conduz a uma
relação ambivalente entre
rejeição instintiva desse
o carnal e o sacrificial ou o
objecto, como se se preferisse recusá-lo do que
abjecto e o prazenteiro, por
racionalizá-lo. Vide FREUD,
exemplo. Flores do Meu DeSigmund, The Uncanny, Londres: Penguin Classics, 2003.
sejo faz, assim, a ponte
entre experiências escolares com extensões corporais — Bunis (1994) e,
sobretudo, Overware (1996), um soutiã-armadura
em cobre repuxado — e obras como Menu do Dia
(2001), Burka (2002) ou Esposas (2005), verdadeiras metáforas de violência. Efectivamente, que
mensagem transmitem casacos em pele pendurados em portas de frigoríficos, senão essa? Em
Menu do Dia, é o escrutínio da oblação em nome
da iníqua ostentação que se articula. Em Esposas,
manequins nus envolvidos por braçadeiras de
inspiração sado-masoquista ilustram a submissão
de género: como numa roda infantil, três mulheres
seguram três homens, cada uma delas agarrando
as mãos de dois deles. E que pensar de Burka,
esse vergonhoso manto que sujeita as mulheres
muçulmanas à ocultação da face, a fim de prevenir
22
Esposas [Wives / Handcuffs], 2005
Manequins em espuma, braçadeiras em plástico / Foam dummies,
plastic hoops
Dimensões variáveis / Variable dimensions
Prova cromogénea montada sobre K-mount / Chromogenic print
mounted on K-mount
230 x 125 cm
Colecção da artista / Artist’s collection
a sedução dos homens que o seu rosto pretensamente exerce. Aqui, para demonstrar quão universal é este tema, Vasconcelos junta a forca à
guilhotina num aparato cinético que revela não um
mas sete véus, numa alusão às sete saias do típico
traje das mulheres da Nazaré que constitui mais
uma acha para a fogueira desta veemente denúncia do falocentrismo.
Transversal ao trabalho de Vasconcelos, a condição feminina marca um conjunto de obras que
equacionam as vivências familiares, em geral, e a
conjugalidade, em particular. Sofá Aspirina e Cama
Valium combinam mobiliário de quarto e de sala
com comprimidos que, milagrosamente, cuidam
do físico e do espírito. A doença como metáfora —
para citar a escritora Susan
Sontag9 — da malaise da 9 Vide SONTAG, Susan, Illness
as Metaphor and AIDS and
alma prolonga-se na série
Its Metaphors, Nova Iorque:
de pinturas Consumo (1997Picador, 2001.
-2010), planos de cor entrecortados por embalagens plásticas de diversos
feitios, como ilustrado por Hiperconsumo (2010).
Actividades como ir às compras ou lavar a roupa
insinuam-se em Bundex Car (2000) e Neoblanc
reveals not one, but several veils, in the manner of
the layered skirts traditionally worn by the women
of Nazaré, adding further fire to her vehement
denunciation of phallocentrism.
Cutting across all Vasconcelos’ œuvre, the
feminine condition marks a number of works that
deal with family life in general and conjugal life in
particular. Sofá Aspirina and Cama Valium combine
bedroom and living room furniture with pills that
miraculously care for our bodies and minds. Illness
as a metaphor — to cite writer Susan Sontag9 —
of the malaise of the soul
can also be found in the 9 Vide SONTAG, Susan, Illness
Consumo (Consumption, as Metaphor and AIDS and
Its Metaphors, New York:
1997-2010) series of paintPicador,2 001.
ings, in which layers of colour intersect with plastic packaging of different
kinds, as illustrated by Hiperconsumo (Hyperconsumption, 2010). Activities such as shopping or
doing the laundry insinuate themselves into
Bundex Car (2000) and Neoblanc (2004), intriguing
manipulations of a supermarket trolley and a clothes rack. Plastic flowers and mothballs, which
compose a sofa in Brise (2001), echo the fly paper
23
cocoons in Trianons (1996). Paintings such as Wild
at Heart (2003) and Não Há Metal que Aguente
(There is No Metal That Can Resist, 2004) suggest
overpowering passions that contrast with the boredom of the housewife’s Tupperwares in Plastic
Party (1997). Secrets of the bedchamber are evoked
in Strangers in the Night (2000), a crazed amalgam
of a container on wheels converted into a compartment for one person, psychedelic car lights
blinking and the voice of Frank Sinatra. Like a dolls
house, Vista Interior (Inner View, 2000) is a fantasy:
window blinds which open and close in an action
which metamorphoses them into railings over a
shop window packed with the domestic appliances of a typical suburban one-bedroom flat.
Vasconcelos first moved towards being identified with a feminist tendency with the presentation in 2005 of A Noiva in Always a Little Further,
one of the two main shows at the 51st Venice Biennale. Installed at the centre of the Arsenale’s rotunda, the work was articulated with a set of posters
by the American collective Guerilla Girls, hung on
the surrounding walls. Despite the fact that curator
Rosa Martínez situated the exhibition in the territory of the imagination, mentioning the character
from an adventure book by Corto Maltese as the
starting point, and declaring that “fantasy helps us
to a better understanding
of reality”10, the curatorial 10 A sentence pronounced at
a press conference.
framework revealed feminism as the guiding thread.
This was clear in the headlines and reports on the
event published, for example, in the newspaper
The Economist (“Girl Power”) and in the magazine
Artforum (“Women on the Verge”), and the decision to jointly present works by Vasconcelos and
the Guerilla Girls was a case in point. It must be
recognized that a structure that reproduces a
chandelier in which tampons are used instead of
(2004), intrigantes manipulações de um carrinho
de super-mercado e de um estendal. As flores em
plástico e as bolas de naftalina que desenham um
sofá em Brise (2001) rimam com as fitas mosquiteiras que arquitectam casulos em Trianons (1996).
Pinturas como Wild at Heart (2003) e Não Há Metal
que Aguente (2004) sugerem paixões arrebatadoras que contrastam com a dolência dos tupperwares domésticos de Plastic Party (1997). Os
segredos de alcova evocam-se em Strangers in the
Night (2000), amálgama alucinada de contentor
rolante convertido em habitáculo unipessoal, luzes
de automóvel psicadelicamente acesas e voz de
Frank Sinatra. Qual casa de bonecas, Vista Interior
(2000) é uma fantasia: estores de janela que se
abrem e fecham, nesta acção metamorfoseando-se em grade de vitrina de loja cujas prateleiras
transbordam com os diversos utensílios domésticos do típico T1 suburbano.
A dinâmica de inscrição do trabalho de Vasconcelos numa filiação feminista iniciou-se com a
apresentação, em 2005, de A Noiva em Always a
Little Further, uma das duas exposições nucleares
da 51.ª Bienal de Veneza. Instalada no centro da
sala inaugural do Arsenale, a obra articulava-se
com um conjunto de posters do colectivo norteamericano Guerrilla Girls, afixados nas paredes
circundantes. Apesar de a comissária da exposição, Rosa Martínez, a situar no território da imaginação, mencionando a personagem de um livro
de aventuras de Corto Maltese como ponto de
partida ou declarando que “a fantasia nos ajuda
a compreender melhor a
realidade”,10 a grelha cura- 10 Frase dita em conferência
de imprensa.
torial desenvolvida sustentava o feminismo enquanto
linha de orientação. Tal demonstra-se pelos
cabeçalhos das notícias e das recensões ao evento
publicadas, por exemplo, no jornal The Economist
Bundex Car, 2000
Neoblanc, 2004
Aço inox, papel higiénico, malha industrial / Stainless steel, toilet paper,
industrial knitted fabric
110 x 95 x 150 cm
Cortesia / Courtesy Galería Luis Adelantado, Valência / Valencia
Estendal em metal e PVC, sistema eléctrico, fichas, luzes de presença,
lâmpadas fluorescentes / Metal and PVC clothes horse, electrical
system, plugs, nursery lights, fluorescent lamps
100 x 180 x 60 cm
Colecção da artista / Artist’s collection
Trianons, 1996
Fitas mosquiteiras em PVC, ferro pintado, rede tremida / PVC mosquito
ribbons, painted iron, wire mesh
(2 x) 300 x 300 x 300 cm
Colecção da artista / Artist’s collection
Parque de Serralves, Porto / Oporto
Brise, 2001
Flores em plástico, bolas de naftalina, madeira, napa, esferovite / Plastic
flowers, mothballs, wood, nappa leather, polystyrene
90 x 170 x 100 cm
Colecção da artista / Artist’s collection
(“Girl Power”) e na revista Artforum (“Women on
the Verge”), e a opção tomada quanto à junção das
obras de Vasconcelos e das Guerrilla Girls atesta-o
modelarmente. Reconheça-se que uma estrutura
que reproduz um candelabro no qual tampões
higiénicos substituem os habituais pingentes de
cristal dificilmente escapa a tal interpretação.
Contudo, para além dos ditames do ethos machista, a obra também explora outros assuntos,
como a decoração dos sumptuosos salões palacianos e a configuração do típico vestido dos casamentos católicos. A obra possui, pois, camadas de
significado impregnadas de senso comum que
a libertam do espartilho intelectual do feminismo
the usual crystal pendants will be hard pressed to
avoid such an interpretation. However, in addition
to the imperatives of the macho ethos, the work
also explores other issues, such as the decoration
of sumptuous palatial salons and the configuration
of the typical Catholic wedding dress. The work
therefore reveals layers of meaning impregnated
with common sense that provide an escape from
the intellectual corsetry of feminism and set the
artist apart from the strictly ideologically-informed
practices typical of this
artistic trend.11
11 This question is considered
in depth in the essay by
A Noiva also incorpoElisabeth Lebovici pubrates other references, the
lished in this catalogue.
most erudite of which is Du12 Also known as Large Glass.
champ’s remarkable work
The Bride Stripped Bare by 13 TOMPKINS, Calvin, op. cit.,
p. 297.
Her Bachelors, Even (191512
1923). In his own words, 14 One alludes here to the film
Modern Times (1836), by
this “hilarious picture”13 reCharlie Chaplin, whose title
refers to the zeitgeist of that
presents the unforeseeable
age.
encounter between the
bride and her nine bache- 15 Walter Benjamin defined
the aura as the “here and
lors, in a complex amalgam
now of [...] art – its unique
of automatic painting, unuexistence in the place
where it is found” or as the
sual materials and vivid
“unique manifestation of a
allegories indicated by the
distance, however close”,
thereby fixing it as that
mechanical apparatus that
which, reflecting the au illustrated the “modern tithenticity of art, generates
the ecstasy that distin mes”14 of the early 20th cenguishes it from other forms
tury. Vasconcelos therefore
of cultural production. Vide
BENJAMIN, Walter, “A Obra
starts from art and comes
de Arte na Era da Sua Reback to it, in a path traversprodutibilidade Técnica”,
in Sobre Arte, Técnica, Lining tradition and modernity,
guagem e Política, Lisbon:
collective unconscious and
Relógio d’Água, 1992, p. 77
and p. 81.
history, the sublime and
the symbolic. Without ever
losing sight of the primacy of the aura in art15, the
artist makes use of mindsets, through the impulse
of allegory, to comment on contemporary forms of
life, especially those rooted in identity, be it in
terms of gender, class or nationality. More than any
other artist, Vasconcelos looks at “social representations” in the sense defined by the psychologist Serge Moscovici. These constitute a “system
of values, ideas and practices with a twofold
function; first, to establish an order which will
enable individuals to orientate themselves in their
material and social world and to master it; and
secondly to enable communication to take place
among the members of a community by providing
them with a code for social exchange and a code
for naming and classifying
Serge, “Foreunambiguously the various 16 MOSCOVICI,
word”, in Claudine Herzlich
aspects of their world and
(ed.), Health and Illness:
A Social Psychological Anatheir individual and group
lysis, London: Academic
history."16
Press, p. xiii.
Brise, 2001 [Pormenor / Detail ]
24
27
Vasconcelos deconstructs the realities of the
consumer society that define the cultural logic of
late capitalism characteristic of industrialized nations. This process is anchored in different operations, which “comprise accumulation, repetition, the
series effect, chromatic associations and decontextualization”, as the curator João Fernandes has
written.17 In his view, the
artist’s works “appropriate 17 FERNANDES, João, “Joana
Vasconcelos: As Coisas Já
objects which are easily
Não São o que Eram…”, in
identifiable in everyday life,
Joana Vasconcelos, Porto:
Museu de Arte Contempoaltering their […] func rânea de Serralves, 2000,
tionality.” 18 In this sen se,
without page number.
Vasconcelos’ output comes
18 Idem, ibidem, without page
close to the principles of
number.
the Nouveau Réalisme, the
French artistic movement founded in 1960 that,
working within the legacy of Duchamp in general
and in the field of readymade in particular, disseminated techniques such as the assemblage,
based on the juxtaposition of found objects.19
According to one of its theoreticians, the critic Pierre 19 In New York, Robert
Rauschenberg had some
Restany, Nouveau Réalism
years earlier created his
sought to achieve the “pocombines, hybrids of painting and sculpture also cometic recycling of urban,
posed of “found objects”.
industrial and advertising
20
reality”, a perspective 20 RESTANY, Pierre, 60/90.
Trente Ans de Nouveau Réawhich also applies to Vaslisme, Paris: La Différence,
1990, p. 76.
concelos. However, the ar tist expands on this premise,
as she looks at the everyday through the prism of
otherness, as expressed in the admirable nineteenth century postulate of “je suis un autre”,
coined by the poet Jean-Arthur Rimbaud.
Vasconcelos thus plays with the precariousness
of materials professed by Nouveau Réalisme and
found as well in much contemporary art. For Hal
Foster, the decade just ended can be defined by its
“precarious condition”. The scholar has found his
inspiration in works by artist Thomas Hirschhorn —
such as Musée Précaire Albinet (2004), exhibited
in Aubervilliers, one of the outskirts of Paris — and
in the potential of precariousness as a “political
and aesthetic device”, as proposed by the poet
Manuel Joseph, in order to develop this idea, which
conveys a “state of uncertainty” both in cultural
and the other areas of the
social fabric.21 This pers- 21 Vide FOSTER, Hal, “Precarious”, Artforum (Decempective allows for multiple
ber 2009), pp. 207-209.
hypotheses and one of them
is that found in Vascon- 22 PINHARANDA, João, op. cit.,
without page number.
celos output, based on an
intricate bricolage with elements, [together with a rejection of] “rubbishobjects as raw material and a preference […] for
shine, for a perfect finish, for new materials”.22
Vista Interior [Inner View], 2000 [Pormenor / Detail ]
[Ver / See p. 134]
e salvaguardam a artista das práticas estritamente
ideológicas que marcam esta corrente artística.11
A Noiva incorpora, ainda,
outras referências, a mais 11 A análise desta problemática desenvolve-se no enerudita das quais a notável
saio de Elisabeth Lebovici
obra de Duchamp The Bride
publicado neste catálogo.
Stripped Bare by Her BaObra também conhecida
chelors, Even (1915-1923).12 12 como
Large Glass.
Nas suas palavras, este
TOMPKINS, Calvin, op. cit.,
“quadro hilariante”13 repre- 13 p.
297.
senta o encontro imprevisível entre a noiva e os seus nove pretendentes,
numa complexa amálgama de pintura automática,
materiais inusitados e vívidas alegorias sugeridas
pelo aparato mecânico que ilustrava os “tempos
moder nos”14 do início do século XX. Assim, Vasconcelos parte da arte e a
ela volta, nesse percurso 14 Alude-se, aqui, ao famoso
filme Modern Times (1836),
cruzando tradição e mode Charlie Chaplin, cujo
dernidade, inconsciente cotítulo denomina o zeitgeist
da época.
lectivo e história, sublime
e simbólico. Sem nunca 15 Walter Benjamin definiu a
aura como “o aqui e agora
perder de vista o primado
da […] arte – a sua exisaurático da arte,15 a artista
tência única no lugar em
que se encontra” ou como
socorre-se das mentalida“manifestação única de uma
des para, sob um impulso
lonjura, por muito próxima
que esteja”, assim fixandoalegórico, comentar as for-a como o que, traduzindo a
mas de vida actuais, soautenticidade da arte, gera
o êxtase que a distingue da
bretudo as enraizadas na
restante produção cultural.
identidade, releve esta do
Vide BENJAMIN, Walter,
“A Obra de Arte na Era da
género, da classe ou da
Sua Reprodutibilidade Técnacionalidade. Mais do que
nica”, in Sobre Arte, Técqualquer outro artista, Vasnica, Linguagem e Política,
Lisboa: Relógio d’Água,
concelos debruça-se, pois,
1992, p. 77 e p. 81.
sobre as “representações
sociais”, no sentido em que as definiu o psicólogo
Serge Moscovici. Estas constituem um “sistema de
valores, ideias e práticas com uma dupla função;
primeiro, estabelecer uma ordem que permita aos
indivíduos orientar-se nos seus mundos material e
social, a fim de os controlar; segundo, possibilitar
a comunicação entre os membros de uma comunidade, fornecendo-lhes códigos para a troca
social e para nomear e classificar, inequivocamente, os vários aspectos de seu universo e da
sua biografia enquanto indivíduos e grupo.”16
16 MOSCOVICI, Serge, “Foreword”, in Claudine Herzlich
Vasconcelos desconstrói
(ed.), Health and Illness:
as realidades da sociedade
A Social Psychological Analysis, Londres: Academic Press,
de consumo que definem
p. xiii; tradução do autor.
a lógica cultural do regime
capitalista tardio característico dos países industrializados. Tal processo
ancora-se em diversas operações, que “compreendem a acumulação, a repetição, o efeito de
série, as associações cromáticas e a descontextualização”, como escreveu o comissário João
Fernandes.17 Seguindo o
17 FERNANDES, João, “Joana
seu raciocínio, as obras da
Vasconcelos: As Coisas Já
Não São o que Eram…”, in
artista “apropriam-se de
Joana Vasconcelos, Porto:
objectos facilmente identiMuseu de Arte Contemporânea de Serralves, 2000,
ficáveis na vida de todos
sem número de página.
os dias, alterando-lhes a
sua [...] funcionalidade.”18 18 Idem, ibidem, sem número
de página.
Neste sentido, o trabalho de
Vasconcelos aproxima-se 19 Em Nova Iorque, Robert
Rauschenberg desenvoldos princípios do Nouveau
vera, anos antes, os seus
Reálisme, movimento artíscombines, híbridos pictóricos e escultóricos comtico francês fundado em
postos, igualmente, por
1960 que, inscrito no legado
“objectos encontrados”.
duchampiano, em geral, e 20 RESTANY, Pierre, 60/90.
do ready-made, em partiTrente Ans de Nouveau Réalisme, Paris: La Différence,
cular, difundiu técnicas co1990, p. 76; tradução do
mo a assemblage, baseada
autor.
na justaposição de objets
trouvés.19 De acordo com um dos seus teóricos, o
crítico Pierre Restany, o Nouveau Reálisme visava
uma “reciclagem poética da realidade urbana,
industrial e publicitária”20, perspectiva igualmente
aplicável a Vasconcelos. Todavia, a artista expande
esta premissa, pois interessa-lhe o quotidiano sob
o prisma da alteridade, tal como expresso no
admirável postulado novecentista “je est un autre”,
cunhado pelo poeta Jean-Arthur Rimbaud.
Vasconcelos equaciona, então, a precariedade
dos materiais professada pelo Nouveau Reálisme —
marca, igualmente, de muita da arte actual. Para
Hal Foster, a década transacta define-se pela sua
“condição precária”. O investigador inspirou-se
em obras do artista Thomas Hirschhorn — como
Musée Précaire Albinet (2004), exibida em Auber villiers, na periferia de Paris — bem como no potencial da precaridade como “dispositivo político
e estético” proposto pelo poeta Manuel Joseph
para desenvolver esta noção, que traduz um “estado de incerteza” tanto na
arte como nos restantes 21 Vide FOSTER, Hal, “Precarious”, Artforum (December
campos do tecido social.21
2009) pp. 207-209.
Esta perspectiva desenvolve-se em múltiplas hipó- 22 PINHARANDA, João, op. cit.,
sem número de página.
teses e uma delas é a de um
trabalho como o de Vas- 23 BARRETO, Jorge Lima, “Um
Novo Objectivismo”, in
concelos, baseado numa
Medley, Lisboa: EDP –
Electricidade de Portugal/
minuciosa bricolage com
/Comissão Instaladora da
os materiais, [bem como a
Fundação EDP, 2001, sem
número de página.
rejeição dos] “objectos-lixo como matéria-prima
e a preferência […] pelo brilho, pela perfeição da
realização, pelo material novo”.22 A artista escapa,
assim, a uma “estética pobre” e propõe uma espécie de “novo objectivismo — enredo multifário,
citação, miscelânea, invenção maravilhante de
objectos desenhados pela lógica do pensamento
absurdo, de pregnante cromatismo.”23
This allows her to avoid a “poor aesthetics” and to
propose a kind of “new objectivism — multifarious
plotting, citation, miscellany, the startling invention
of objects fashioned by the
logic of absurd thought and 23 BARRETO, Jorge Lima, “Um
Novo Objectivismo”, in
pregnant chromaticism.”23
Medley, Lisbon: EDP –
This vividly expressed
Electricidade de Portugal/
Comissão Instaladora da
definition, as prosaic as it is
Fundação EDP, 2001, without
dreamlike, marks Vasconpage number.
celos’ works that come
close to a theatrical genre: tragic-comedy. For
example, in Endgame, written by Samuel Beckett
between 1955 and 1957, Nell tells us: “Nothing is
funnier than unhappiness, I grant you that. Yes, yes,
it's the most comical thing in the world.” The existential crisis proclaimed by Nell is the same as that
experienced by the visitor when faced with Una
Dirección (One Way, 2003), that consists of posts
linked by rope made of synthetic hair that structure
a path. Like in an airport or other high security building, it is not what the beholder wants that matters,
but what someone else has decided by defining
the only possible way forward. And what can one
say of Barco da Mariquinhas (Mariquinhas’ Boat,
2002), a boat clad in tiles paradoxically stranded
on land and thereby deprived of any functional
sense? Passerelle (2005) takes this nihilism to the
extreme, asking the viewer to set in motion spinning
rails from which faience dogs are hung by the
collar, causing them to knock into each other, and
so gradually fall to bits. An intact row of these statuettes insinuates the feeling of an eternal cycle of
destruction, reflecting what
24 From the several editions of
Clov, another of the chaEndgame, one quoted that
of Grove Press (New York,
racters in Endgame, deli1958), pp. 18-19 and p. 1.
riously exclaims at the start
of the play: “Finished, it's 25 The use of this term reflects the recent interest of
finished, nearly finished, it
contemporary art in the
“world as a stage” – to cite
must be nearly finished.”24
the famous passage from
25
Theatricality also finds
William Shakespeare’s pastoral comedy As You Like It
its way into works anchored
(1623). Consider for examin a mise-en-scène, such as
ple the exhibitions “The
World as a Stage”, orgathe series Valquíria (Valnized by Tate Modern in
kyrie, 2004-2009), baroque,
late 2007, or “Un Teatro sin
Teatro”, presented at MACBA
malleable structures hangalso in 2007.
ing from the ceiling that
evoke the goddesses of 26 One refers here to the idea
of “controlled decontrolling
Nordic mythology. From
of the emotions” posited
by the sociologists Norbert
Valquíria Excesso (Excess
Elias and Eric Dunning in
Valkyrie, 2005) to Valquíria
their analysis of leisure activities in general and sport
Enxoval (Dowry’s Valkyrie,
events in particular as
2009), the whole series
escape valves from the bespeaks precisely of the
havioural normativity characteristic of the West. Vide
“controlled decontrolling”26
ELIAS, Norbert and Eric
iconographies that the artist
Dunning, Quest for Excitement. Sport and Leisure in
develops. This can be unthe Civilizing Process, Oxderstood in the light of the
ford: Blackwell, 1986.
28
Barco da Mariquinhas [Mariquinhas’ Boat], 2002
Azulejos industriais, fibra de vidro, madeira / Industrial tiles, fibreglass, wood
40 x 111 x 236 cm
Colecção da artista / Artist’s collection
30
Valquíria Enxoval [Dowry’s Valkyrie], 2009 [Pormenores / Details ]
Alinhavados e outros bordados, aplicações em feltro, rendas de bilros,
frioleiras, olaria pedrada, tricô e croché em lã feitos à mão, tecidos,
adereços, poliéster, cabos de aço / Tacking and other needlework, felt
applications, bobbin lace, purling, stone-decorated pottery, handmade
woollen knitting and crochet, fabrics, adornments, polyester, steel cables
Dimensões variáveis / Variable dimensions
Colecção / Collection Câmara Municipal de Nisa, Nisa
Esta festiva definição, tão prosaica quanto onírica, ecoa obras de Vasconcelos adjacentes a um
género teatral, a tragicomédia. Por exemplo, em
Endgame, memorável peça de Samuel Beckett
redigida entre 1955 e 1957, Nell afirma: “Nada é
mais engraçado do que a infelicidade [...] é a coisa
mais cómica do mundo.” Ora, a crise existencial
que Nell protagoniza é também a que assola o visitante perante Una Dirección (2003), suportes unidos
por tranças em cabelo sintético que estruturam um
percurso. Assim, tal como num aeroporto ou noutro
edifício de alta segurança, não é a sua vontade que
impera, mas a de outrem, que definiu o único caminho possível. E que dizer de Barco da Mariquinhas
(2002), uma embarcação revestida por azulejos
paradoxalmente prostrada por terra e, por isso,
desprovida de qualquer nexo funcional? Já Passerelle (2005) leva ao extremo este niilismo, ao solicitar ao espectador que accione carris giratórios
dos quais pendem, suspensos por coleiras, cães
de porcelana, provocando mútuos choques que,
paulatinamente, os despedaçam. Uma fila destas
estatuetas intactas insinua a eternidade deste ciclo
de destruição, reflectindo o que Clov, outra das
concept of “carnivalesque” proposed by the philosopher Mikhail Bakhtin, a magical window of opportunity for inverting the established rules that is a
unique moment when conventions are broken in a
regulated fashion.27 One
might for example consider 27 Vide BAKHTIN, Mikhail [1929]
Problems of Dostoyevsky’s
the components of Valquíria
Poetics, Minneapolis, MN:
Enxoval, mostly typical of
University of Minnesota
Press, 1984.
the craftwork produced in
the Portuguese city of Nisa:
tacking and other needlework, felt applications,
bobbin lace, purling, stone-decorated pottery,
handmade woollen knitting and crochet, fabrics,
adornments, polyester, steel cables. This stylistic
quality — a kind of lyrical extravagance — was
previously seen in wall sculptures such as the
series Pantelmina (2001-2004), but goes over the
top in Contaminação (Contamination, 2008-2010),
an amazingly colourful, tentacular structure which
creeps and crawls over the architecture, swallowing it up in an anthropophagic dynamic which is at
once enchanting and threatening. Vasconcelos has
here few rivals in her ability to explore the “formless” in the sense used by Georges Bataille. For
31
Bataille, this concept speaks of a reality which
operates inside different forms so as to destabilize
the actual nature of form: “Thus formless is not only
an adjective […], but a term that serves to bring
things down in the world, generally requiring that
each thing have its form. What it designates has no
rights in any sense and gets itself squashed everywhere, like a spider or an
earthworm.”28 Taking this 28 BATAILLE, Georges, Œuvres Complètes I, Paris:
line, Vasconcelos counterGallimard, 1970, p. 217
attacks the omnipresent
[translated by the author].
power of form in contemporary art, replacing the “being” by “doing” — what
matters is what the work does, rather than what it is.
The critic Jörg Heiser argues that, in art, “the
emphasis has shifted from biography and medium
to method and situation.”29 For Heiser, this obser vation suggests a means
of overcoming the unpro- 29 HEISER, Jörg, All of a Sudden: Things that Matter in
ductive dichotomies that
Contemporary Art, Berlin,
govern criticism today, inNew York: Sternberg Press,
2008, p. 5.
cluding in particular an
“entrenched battle between 30 Idem, ibidem, p. 5.
defenders of art's auto31 Consider for instance the
nomy and champions of its
following observation from
Jacinto Lageira: “Much of
merging with entertainher work reveals this kind
ment culture.”30 Imprisoned
of addiction to [...] kitsch
[…]”. Vide LAGEIRA, Jain these ways of thinking, a
cinto, “Being Consumed”,
number of critics have resin Joana Vasconcelos, Lisbon: ADIAC Por tugal,
trictively encapsulated VasCorda Seca, 2007, p. 155.
concelos’s œuvre within
31
the field of kitsch , dis- 32 Vide BAUDRILLARD, Jean,
For a Critique of the Political
regarding the critique of
Economy of the Sign [1973],
the political economy of
New York: Telos Press, 1981.
the sign that she articulates.
In effect, along the lines of the thinking of the
philosopher Jean Baudrillard,32 for whom it was the
domain of consumption and not that of production
(as proposed by orthodox Marxist thought) that
defines the systems of rules resulting from the
industrial revolution, Vasconcelos comments on the
fetishism of the merchandise, the form of fascination exerted by goods on the individual, thereby
re-identified as consumer. So she is interested not
in the functional, exchange or symbolic value of an
object, but in its value as a sign, which derives from
the object’s existence within a system of objects,
itself a signifier.
This is how Vasconcelos demonstrates the contradiction in the antithesis between kitsch and the
avant-garde inspired by the arguments of the critic
Clement Greenberg33, according to which the emergence of the latter would
33 Vide GREENBERG, Clement,
save art from the decline of
“Avant-Garde and Kitsch”,
Partisan Review, 6:5 (1939);
taste supposedly caused
republished in idem, Avantby the consumer society.
Garde and Culture, Boston:
Beacon Press, 1961.
Now, this argument lost its
personagens de Endgame, exclama delirantemente
no início da peça: “Acabado, está acabado, quase
acabado, deve estar quase acabado.”24
A teatralidade25 insinua-se, ainda, em obras anco- 24 Das várias edições de Endgame, cita-se a da Grove
radas numa mise-en-scène,
Press (Nova Iorque, 1958),
como as da série Valquírias
pp. 18-19 e p. 1.
(2004-2009), barrocas es25 O uso deste termo reflecte
truturas maleáveis, suspeno recente interesse da arte
pelo “mundo como palco”
sas do tecto, que evocam as
– para citar a famosa pasdeusas da mitologia nórdica.
sagem da comédia pastoral As You Like It (1623), de
Justamente, da Valquíria ExWilliam Shakespeare. Vericesso (2005) à Valquíria
fiquem-se, por exemplo, as
exposições “The World as
Enxoval (2009), é todo um
a Stage”, promovida pela
programa de “descontrolo
Tate Modern, em finais de
2007, ou “Un Teatro sin
controlado”26 de iconograTeatro”, organizada pelo
fias que a ar tista desenMACBA no mesmo ano.
volve. Tal compreende-se
Evoca-se, aqui, a noção de
em função do “carnava- 26 “descontrolo
controlado das
lesco” proposto pelo filóemoções” com que os sociólogos Norbert Elias e
sofo Mikhail Bakhtin, essa
Eric Dunning analisaram as
feérica janela de oportuactividades de lazer, em
geral, e os eventos despor nidade para a inversão das
tivos, em particular, enregras instituídas, momento
quanto válvulas de escape
à normatividade compor único em que as conventamental característica do
ções se quebram regulaOcidente. Vide ELIAS, Norbert e Eric Dunning, Quest
damente.27 Atente-se, por
for Excitement. Sport and
exemplo, nas componentes
Leisure in the Civilizing Process, Oxford: Blackwell, 1986.
de Valquíria Enxoval, primordialmente típicas do 27 Vide BAKHTIN, Mikhail [1929]
Problems of Dostoyevsky’s
artesanato de Nisa: alinhaPoetics, Minneapolis, MN:
vados e outros bordados,
University of Minnesota
Press, 1984.
aplicações em feltro, rendas de bilros, frioleiras,
olaria pedrada, tricô e croché em lã feitos à mão,
tecidos, adereços, poliéster e cabos de aço. Esta
qualidade estilística — uma espécie de extravagância lírica — encontrava-se, já, nas obras de
parede conhecidas como Pantelminas (2001-2004),
mas alcança um estádio desmesurado com Contaminação (2008-2010), uma estrutura tentacular
hiper-colorida que, como um vírus, rasteja, trepa
e se empoleira na arquitectura, engolindo-a numa
dinâmica antropofágica simultaneamente encantadora e ameaçadora. Nesta lógica, Vasconcelos
explora, como poucos, o “informe” na acepção
batailliana. Para Georges Bataille, este conceito
traduz uma realidade que opera no interior de
diferentes formas de maneira a desestabilizar a
própria natureza da forma. Como declarou, “o informe não é, apenas, um adjectivo, [...] mas um
termo que desautoriza a exigência de que cada
coisa tenha a sua própria forma. O que designa
não possui direitos, em qualquer sentido, e estilhaça-se 28 BATAILLE, Georges, Œuvres Complètes I, Paris:
por todo o lado como uma
Gallimard, 1970, p. 217;
tradução do autor.
aranha ou uma lombriga.”28
Seguindo esta premissa, Vasconcelos contra-ataca
o omnipresente poder da forma na arte actual,
assim substituindo o “ser” pelo “fazer” — é o que
a obra faz, mais do que o que é, que aqui importa.
O crítico Jörg Heiser argumenta que, na arte, “a
ênfase mudou da biografia e do meio de expressão para o método e a situação.”29 Para si, esta
constatação suscita a ultrapassagem das improdu- 29 HEISER, Jörg, All of a Sudtivas dicotomias que, hoje,
den: Things that Matter in
Contemporary Art, Berlim,
regem a crítica, de entre as
Nova Iorque: Sternberg
quais sobressai uma “entrinPress, 2008, p. 5; tradução
do autor.
cheirada batalha entre os
arautos da autonomia artís- 30 Idem, ibidem, p. 5; tradução
do autor.
tica e os defen sores da
intersecção da arte com o 31 Atente-se, por exemplo, na
seguinte observação de
entretenimento.”30 Presos
Jacinto Lageira: “Uma grana este pensamento, diverde parte do [seu] trabalho
revela essa espécie de tosos críticos equivocam-se
xicodependência relativaquando enclausuram Vasmente ao [...] kitsch [...].”
Vide LAGEIRA, Jacinto, “Ser
concelos na esfera do
Consumido”, in Joana Vaskitsch,31 desconsiderando
concelos, Lisboa: ADIAC
Portugal, Corda Seca,
a crítica da economia polí2007, p. 42.
tica do signo que esta protagoniza. Efectivamente, na 32 Vide BAUDRILLARD, Jean,
Para Uma Crítica da Econoesteira do pensamento do
mia Política do Signo [1973],
Lisboa: Edições 70, 1995.
filósofo Jean Baudrillard,32
para quem era a esfera do
consumo e não a da produção (conforme proposto
pela visão marxista ortodoxa) que define os regimes resultantes da revolução industrial, a artista
comenta o fetichismo da mercadoria, esse fascínio
exercido pelos bens sobre o indivíduo, assim reidentificado como consumidor. Interessa-lhe, pois,
não o valor funcional, de troca ou simbólico de um
objecto, mas o sígnico, que releva da existência
desse objecto no interior de um sistema de
objectos, ele próprio significante.
É nesta lógica que Vasconcelos demonstra a
contradição da antítese entre kitsch e vanguarda
inspirada na tese do crítico Clement Greenberg,33
segundo a qual a emergência da segunda instância 33 Vide GREENBERG, Clement,
“Avant-Garde and Kitsch”,
salvaria a arte do declínio
Partisan Review, 6:5 (1939);
do gosto pretensamente
republicado em idem, Avant-Garde and Culture, Boston:
provocado pela sociedade
Beacon Press, 1961.
de consumo. Ora, esta argumentação perdeu eficá- 34 Idem, “Modernist Painting”,
in Charles Harrison and
cia com a falência da visão
Paul Wood (org.) Art in
modernista reinante a seTheory 1900-1990: An Anthology of Changing Ideas,
guir à II Guerra Mundial.
Malden, MA: Blackwell, 1992,
Para o autor, “a essência
p. 755; tradução do autor.
do modernismo […] reside no uso de métodos característicos de uma
disciplina para criticar a própria disciplina — não
de modo a subvertê-la, mas para a fixar mais
firmemente na sua área de competência.” 34
impact with the bankruptcy of the modernist vision
that had reigned supreme after World War II. For
the author, “The essence of Modernism lies, as I see
it, in the use of the characteristic methods of a
discipline to criticise the discipline itself — not in
order to subvert it, but to entrench it more firmly in
its area of competence.”34
However, the self-referential 34 Idem, “Modernist Painting”,
in Charles Harrison and Paul
attitude towards mediumWood (eds.) Art in Theory,
specificity which this point
1900-1990: An Anthology of
Changing Ideas, Malden,
of view illustrates — that
MA: Blackwell, 1992, p. 755.
underlies the illusory character of the pictorial — imploded some fifty years
ago, when artists abandoned the transcendentality
resulting from the mythology of personal expressiveness and sought “new ways of understanding
the real”, as propounded, for example, in the 1960
manifesto of Nouveau Réalisme.
Vasconcelos may therefore be seen to be in
tune with the “ethnographic turn” in art proposed
by Foster. This took place as a result of the changes
brought about by minimalism, the artistic movement that challenged formalist premises. As the
author writes, “these developments form a sequence of investigations: first, of the material elements of the medium, then of their spatial conditions
of perception, and finally of the corporeal basis of
perception. [...] Art as an institution has rapidly
stopped being able to be described only in spatial
terms (studio, gallery, museum, etc.); it was equally
a discursive network of different practices and institutions, of other subjectivities and communities.
[...] Thus art has effectively entered the wider field
with which anthropology should deal.”35 In this
sense, Vasconcelos’ concerns differ little from the 35 FOSTER, Hal, The Return of
the Real: Art and Theory at
other Por tuguese artists of
the End of the Century, Camher generation. This combridge, MA: The MIT Press,
1996, p. 184.
plicity is borne out by the
following summary by the
curator Miguel von Hafe Pérez: “[The nineties are
about the] updating in attention to multimedia interventions and to the free association of differentiated
media, in which the tradition of Duchamp’s readymade is critically re-equated [...]. Thus there is a
calculated commitment to the participation of the
creative act in the becoming of the contemporary
condition, inscribing it in the present in the form of
a commentary, a manipulation of the active communicational codes or even through derisory acts
[…], through an appeal to
greater interactivity with 36 PÉREZ, Miguel von Hafe,
“A Década de Noventa: Esthe viewer [...] and, finally,
tabilização Disruptiva”, in
through the stimulating of
Fernando Pernes (ed.), Panorama da Arte Portuguesa
debate around questions of
no Século XX, Oporto: Funidentity (sexual, political or
dação de Serralves, Campo das Letras, 1999, p. 327.
generational, for example).”36
32
33
We can therefore see why Vasconcelos has chosen elements relating to identity or, in the words of
the critic Alexandre Pomar,
traits of “Portugality”,37 in 37 POMAR, Alexandre, “Passagem para Paris”, in Expresso
order to cement her prac(Actual), Lisbon (February
tice. One should note for
12, 2005), p. 33.
example the following ex38 Entitled simply “Joana Vascerpt from a review of the
concelos”, this exhibition
comprised the following
artist’s show at Passage du
works, most of which are
Désir/BETC Euro RSCG, in
also to be seen in this exhibition: Plastic Party; Cama
Paris (the first to look back at
Valium; Wash and Go; Spot
her career).38 Pomar writes:
Me; Pega (Pot Holder, 2000);
Ponto de Encontro; A Noiva;
“The space then opens up
Airflow; Spin; Barco da Mato two works with moveriquinhas; www.fatimashop;
ment which use pieces of
Pantelmina (2003); Valquíria
#3 (Valkyrie #3, 2004).
clothing, in one case ties
which fly in the wind, in
Airflow (2001), and coloured nylon tights on two
spinning drums, in Wash and Go (1998). The reference to fashion and grooming, not exclusively
feminine, is continued further on in two other works
placed symmetrically, Spot Me (1999), and Spin
(2001) — the first a sentry box full of round mirrors
and the second a plinth on which a crown of
hairdryers is turned on.”39
In this sense, Vasconcelos’ 39 POMAR, Alexandre, op. cit.,
p. 33.
oeuvre echoes that of other
artists who find in the collective imagination the infrastructure for their
practice. However, her derisory attitude sets her
apart, placing her in the context of what the critic
Bettina Funcke has called a tension between the
longevity of cultural history
and the overwhelming pre- 40 Vide FUNCKE, Bettina, Pop
or Populus: Art Between High
sence of mass culture in
and Low, Berlin: Sternberg
present times.40
Press, 2009.
The exhibition at Passage du Désir/BETC Euro RSCG also featured
www.fatimashop (2002), one of the works that best
exemplifies the exceptional way in which Vasconcelos moves between the two poles identified by
Funcke. The artist drove an old-fashioned motorized
tricycle from Lisbon to Fátima, choosing the route
taken by the Catholic pilgrims who regularly walk
along the national highways on their way to the
Sanctuary of Our Lady of Fátima. This journey was
documented by photographs, yielding the series
Transgressão (Transgression, 2002). These photographs show, for example, the picturesque façade
of the Fátima Shopping Center, a kind of temple of
street vendors built on religious ground. They also
display that vehicle parked next to the bull ring in
Vila Franca de Xira, one of the icons of “marialvismo”, a proto-morality based on a bumptious
notion of masculinity. The trip was also recorded
on video, showing the geography of the region,
inhabited by the unusual vernacular architecture
Todavia, a atitude auto-referencial perante a especificidade do medium ilustrada por este ponto de
vista, que subjaz ao carácter ilusório do pictórico,
implodiu há cerca de cinquenta anos, quando os
artistas abandonaram a transcendentalidade resultante da mitologia da expressividade pessoal e
encetaram “novos modos de compreender o real”,
como sustentava, por exemplo, o manifesto do
Nouveau Réalisme, redigido em 1960.
Pressente-se, assim, a sintonia de Vasconcelos
com a “viragem etnográfica” na arte proposta por
Foster. Esta ocorreu devido às mudanças suscitadas pelo minimalismo, movimento artístico que
desafiou as premissas formalistas. Como afirma
este investigador, tais “desenvolvimentos constituem uma sequência de investigações: primeiro,
dos elementos materiais do medium; depois, das
suas condições espaciais de percepção; finalmente, da base corpórea da percepção. [...] Rapidamente, a arte [...] deixou de descrever-se apenas
em termos espaciais (ateliê, galeria, museu, etc.);
era, igualmente, uma rede discursiva de diferentes
práticas e instituições, de outras subjectividades e
comunidades. [...] Assim, a arte entrou, efectivamente, no campo alargado sobre o qual a antropologia se deve debruçar.” 35
Neste sentido, as preocu- 35 FOSTER, Hal, The Return of
the Real: Art and Theory at
pações de Vasconcelos não
the End of the Century,
divergem muito das dos
Cambridge, MA: The MIT
Press, 1996, p. 184.
restantes artistas portu gueses da sua geração.
A comprovar esta cumplicidade, atente-se na seguinte síntese do comissário Miguel von Hafe
Pérez: “[a década de 1990 define-se pela] actualização na atenção às intervenções multimédia e à
livre associação de meios [de expressão] [...],
onde a tradição do ready-made duchampiano é
criticamente reequacionada [...]. Daí um calculado
empenhamento na participação do acto criativo no
devir da contemporaneidade, inscrevendo-o no
presente sob a forma de comentário, de manipulação dos códigos comunicacionais vigentes ou,
ainda, por via de actos derisórios, [...] por um
apelo a uma maior interactividade com o espectador [...] e, finalmente, por um fomento do
debate em torno de questões de identidade
(sexual, política ou geracional, por exemplo).”36
36 PÉREZ, Miguel von Hafe,
“A Década de Noventa:
Compreende-se, então,
Estabilização Disruptiva”,
a opção de Vasconcelos
in Fernando Pernes (coord.),
por elementos identitários
Panorama da Arte Portuguesa no Século XX, Porto:
ou, como os designou o
Fundação de Serralves,
crítico Alexandre Pomar,
Campo das Letras, 1999,
p. 327.
traços de “portugalidade”37
para cimentar o seu tra- 37 POMAR, Alexandre, “Passagem para Paris”, Expresbalho. Repare-se, por exemso (Actual), Lisboa (12 de
plo, no seguinte excerto
Fevereiro, 2005), p. 33.
da recensão à exposição
38 Simplesmente intitulada
da artista na Passage du
“Joana Vasconcelos”, esta
exposição compreendia as
Désir/BETC Euro RSCG,
seguintes obras, a maioria
em Paris (a primeira que
das quais expostas, igualmente, em Sem Rede:
revisitou a sua carreira).38
Plastic Party; Cama Valium;
Escreve Pomar: “O espaço
Wash and Go; Spot Me;
Pega (2000); Ponto de Enabre-se, entretanto, para
contro; A Noiva; Airflow;
duas obras com moviSpin; Barco da Mariquinhas;
www.fatimashop; Pantelmina
mento em que utiliza pe(2003); Valquíria #3 (2004).
ças de vestuário, num caso
gravatas que voam ao vento,
em Airflow (2001), e meias de nylon coloridas
sobre dois dispositivos giratórios, em Wash and Go
(1998). A referência à moda e ao cuidado com a
aparência, não só feminina, prolonga-se mais
adiante com outras duas obras também simetricamente dispostas, Spot Me (1999), e Spin (2001) —
a primeira uma guarita cheia de espelhos redondos e a segunda um plinto onde se põe em funcionamento uma coroa de secadores de cabelos.”39
Neste sentido, o trabalho
de Vasconcelos ecoa o de 39 POMAR, Alexandre op. cit.,
p. 33.
outros artistas que encontram no imaginário comum
a infra-estrutura da sua prática. Porém, a sua atitude derrisória distingue-a destes, enquadrandose no que a crítica Bettina Funcke designou como
uma tensão entre a perenidade da história cultural
e a presença avassaladora
da cultura de massas na 40 Vide FUNCKE, Bettina, Pop
or Populus: Art Between
contemporaneidade.40
High and Low, Berlim:
Na exposição da PassaSternberg Press, 2009.
ge du Désir/BETC Euro
RSCG constava, ainda, www.fatimashop (2002), uma
das obras que melhor exemplifica o excepcional
modo como Vasconcelos circula entre os dois pólos mencionados por Funcke. A artista conduziu
um rústico triciclo motorizado entre Lisboa e Fátima, elegendo o percurso dos peregrinos católicos
que, regularmente, calcorreiam as estradas nacionais a caminho do Santuário de Nossa Senhora aí
localizado. Esta viagem documentou-se fotograficamente, originando a série Transgressão (2002).
Nestas fotografias vislumbram-se, por exemplo, a
pitoresca fachada do Fátima Shopping Center,
uma espécie de templo dos vendilhões plantado
em terreno religioso, ou aquele veículo estacionado junto à Praça de Touros de Vila Franca de
Xira, um ícone do marialvismo, essa proto-moral
alicerçada no ideário bacoco da masculinidade.
Um vídeo também captou a viagem, revelando a
geografia da região, povoada por uma inusitada
arquitectura vernácula que traduz os esquemas de
pensamento de um país sobranceiramente desrespeitado pela altivez das elites.41 É este registo,
autonomizado sob o título Fui às Compras, que
complementa o agora veículo-escultura, entretanto
reflecting the mindset of a
41 In connection with this, vide
country haughtily looked
A Rua da Estrada, a book
by the geographer Álvaro
down on by its own arroDomingues (Oporto: Dafne,
41
gant elite . It is this video,
2010), and the article on it
in the newspaper Público
presented independently
of January 31, 2010, by Sérunder the title I Went Shopgio C. Andrade. The first
paragraph of the text viping, which complements
vidly describes the microthe now vehicle-sculpture
cosms portrayed by that
publication: “On one of the
filled with fluorescent stanational highways leading
tuettes of Our Lady of Fátito Vila Nova de Famalicão,
ma similar to so many
there is a blue and pink
house surrounded by what
others which occupy a cencould be called a memotral place, like an altar, in
rial “garden”. It contains
a miniature Eiffel Tower,
Portuguese homes. Another
a dovecote, monkeys on the
good example of this persroof, statuettes, small shrubs,
a wind rose, flags, slates
pective is Euro-Vision (2005),
with poetic inscriptions, crea high-end television/DVD
nellations, columns, tiles…
A veritable treasury of cuplayer wrapped in croriosities and wonders.”
cheted doilies and showing
a poor quality copy of the 42 Vide ANDERSON, Benedict,
Imagined Communities: Retelevision broadcast of the
flections on the Origin and
Spread of Nationalism [1983],
1982 Eurovision Song ConLondon:Verso (2006), pp. 6-7.
test, in which a pioneer
Portuguese girls’ band — Doce — took part with
the glamorous number Bem Bom [Quite Good].
This work summons up Portugal as an “imagined
community”42 — a nation constructed socially, formerly and today, on the basis of a rhetoric founded
in folklore, be it rural in origin or travestied by
urban televisual sophistication.
Doilies, small pieces made of fabric, lace or
paper with decorative purposes, yet also designed
to protect domestic furniture, have given rise to
one of Vasconcelos’ best known techniques: the
wrapping of objects in crochet. Works such as
Mesa 111 (Table 111, 2004) — a set of dining room
furniture wrapped in white lace, with the names of
the artist and her then gallerists stapled onto the
back of the chairs — and Euro-Vision still mimic
the context which inspired them. But Vasconcelos
has gradually broken free from this reference and
used this device in situations where, although
referring to a residential context, they reveal other
hermeneutic qualities. This is the case of works
featuring faience or cement animals like those
found next to “emigrants’ houses” in inland Por tugal, as exemplified by works such as Matilha
(Pack of Dogs, 2005) and Vigoroso e Poderoso
(Vigorous and Powerful, 2006). This is also the case
of garden statuettes, like those on sale alongside
roads such as the National Highway 1, which give
rise to storylines suggested by the Portuguese and
universal intellectual heritage, as seen in works
such as Família Feliz (Happy Family, 2006) and
A Ilha dos Amores (The Island of Love, 2006), which
metaphorically revisit the biblical nativity story and
the idyllic scenario described by Luís Vaz de
34
35
Camões in Os Lusíadas [The Lusiads]. This is the
case, lastly, of the bedspreads used to decorate
balconies during the summer’s religious processions, which are rendered in monumental form in
Donzela (Maiden, 2007), presented at Santa Maria
da Feira’s castle, and in Varina (Fishwife, 2008), displayed on the D. Luís I bridge in Oporto.
Vasconcelos made full use of the plasticity of
crochet in Made in Portugal (2008), a work that recreates the Portuguese flag. In this case, a red and
green lacework frames the insignia laboriously
crafted by the artist and
her assistants,43 also women 43 The performance of the
work in progress – either
like those who sewed the
the artisanal or representanational flag unfurled in
tional side of the gesture in
action – is of the highest
1910 on the proclamation
importance to Vasconcelos.
of the Republic. The work
We can see this in HandMade (2008), a video which
was presented in 2008 as
consists of a sequence of
part of the commemorashots of women of different
ages knitting and crochettions of Portugal’s Republic
ing together near or inside
Day (October 5) at the prenational monuments to the
sidential palace in Belém.
sound of the Portuguese
guitar played by Carlos PaHanging from a flagpole
redes. The melancholy mood
installed in the topiary garof this tune underlines the
passage of time, here the
den, the work could be seen
synonym of the handing
from both inside and outover of skills down from
one generation to another.
side the building, unlike the
national flag hoisted each
day at the premises. The work accordingly instituted itself, more properly, as Portugal’s standard.
This process of de-consecration of the Portuguese
flag recalls the summer of 2004, when Portugal
hosted the European Football Cup. Over this period, Portuguese flags were sold cheaply and in
large numbers at Chinese-owned shops (famous
for their low priced, sometimes shoddy goods),
and the Portuguese took to offering them as gifts,
wearing them, hanging them from windows and
spreading them out on beaches, amongst other
unusual uses (regarded as surprising by some,
and as improper by others). Bringing it down to the
level of yet another consumable “made in China”,
Vasconcelos released the Portuguese flag from the
constraints of solemnity surrounding a symbol of
this nature, and turned it into a household object.
Following an inverse course, Vasconcelos has
revived the exuberant decoration typical of the
once popular faiences of Rafael Bordalo Pinheiro
(1846-1905), which fell out of fashion with the
advent of designer tableware. One of the leading
artists of the second half of the 19th century, Bordalo Pinheiro made his name as a caricaturist, best
known for “Zé Povinho”, a figure celebrating the
pure Portuguese type of the national imagination.
A free spirit and a thorn in the side of the establishment, Bordalo Pinheiro set up in 1884 a faience
factory in Caldas da Rainha, which was to become
repleto de estatuetas de
41 A este propósito, vide
Nossa Senhora de Fátima
A Rua da Estrada, livro
do geógrafo Álvaro Dominfosforescentes semelhangues (Porto: Dafne, 2010),
tes a tantas outras que ocubem como o artigo a si
dedicado pelo jornal Púpam um lugar central, como
blico de 31 de Janeiro, da
um altar, nos lares portuautoria de Sérgio C. Andrade, cujo primeiro parágueses. Outra obra exemgrafo descreve vividamente
plar desta perspectiva é
o microcosmos retratado
pela publicação: “Numa
Euro-Visão (2005), um ludas estradas nacionais (EN)
xuoso televisor/leitor de
que levam a Vila Nova de
Famalicão, há uma casa
DVD envolvido em napeazul e cor-de-rosa rodeada
rons que exibe uma cópia
por aquilo a que se pode má qualidade da emisderia chamar um “jardim”
memorial. Contém uma Torsão televisiva do Festival
re Eiffel em miniatura, um
Eurovisão da Canção de
pombal, macacos nos telhados, estatuetas, pequenos
1982, no qual o grupo
arbustos, uma rosa-dos“Doce” — uma pioneira
-ventos, bandeiras, ardósias
com inscrições poéticas,
girls band — participou
ameias, colunas, azulejos…
com o glamoroso tema Bem
Um autêntico gabinete de
curiosidades e maravilhas”.
Bom. Convoca-se, também
aqui, a projecção de Por - 42 Vide ANDERSON, Benedict,
Imagined Communities: Retugal enquanto “comuniflections on the Origin and
42
dade imaginada” — essa
Spread of Nationalism [1983],
Londres: Verso (2006),
nação socialmente conspp. 6-7.
truída, ontem e hoje, a par tir da retórica folclórica, seja de matriz rural ou
travestida de telegénica sofisticação urbana.
Os naperons, pequenas peças de tecido, renda
ou papel com fins decorativos — embora também
protectores — de mobiliário doméstico, suscitaram
uma das mais conhecidas técnicas de Vasconcelos:
o envolvimento de objectos com peças de croché.
Obras como Mesa 111 (2004) — conjunto de mesa
e cadeiras revestidas com renda branca, nas costas
das quais se grafaram os nomes da artista e dos seus
galeristas de então — e Euro-Visão ainda mimetizam
o contexto que as inspirou. Contudo, a artista
libertou-se paulatinamente desse referente e
utilizou este dispositivo em situações que, apesar
de remeterem para o universo habitacional, revelam outras qualidades hermenêuticas. É o caso protagonizado pelos animais em faiança ou cimento
iguais aos encontrados à beira das “casas de emigrantes” do interior do país, plasmados em obras
como Matilha (2005) e Vigoroso e Poderoso (2006).
São, igualmente, as estatuetas de jardim, à venda
na berma de vias como a Estrada Nacional 1, que
compõem enredos sugeridos pela herança intelectual portuguesa e universal, como ocorre em
Família Feliz (2006) e A Ilha dos Amores (2006), metafóricas revisões da natividade bíblica e do cenário
idílico descrito por Luís Vaz de Camões n’Os Lusíadas. É, finalmente, a colcha que ornamenta as
varandas aquando das procissões de Verão, circunstância transladada para a monumentalidade do
Castelo de Santa Maria da Feira, com Donzela (2007),
e da ponte D. Luís I, no Porto, com Varina (2008).
Transgressão [Transgression], 2002
Provas cromogéneas montadas sobre K-mount / Chromogenic prints
mounted on K-mount
(6 x) 100 x 150 cm; (2 x) 150 x 100 cm
Edição de 3 + PA / Edition of 3 + AP
Colecção da artista / Artist’s collection
39
Euro-Visão [Euro-Vision], 2005
Televisor / leitor DVD, croché em algodão feito à mão, metal cromado,
madeira / Television / DVD player, handmade cotton crochet, chromiumplated metal, wood
“Festival Eurovisão da Canção (1982)”: DVD, PAL, 4:3, cor, som, 120’/
“Eurovision Song Contest (1982)”: DVD, PAL, 4:3, colour, sound, 120’
163 x 87 x 63 cm
Colecção / Collection Fundação PLMJ, Lisboa / Lisbon
something of a cultural institution unrivalled in
Portugal. The works produced there, both utilitarian
and ornamental in nature, included picturesque
figurines which sarcastically portrayed the Portugal
of the time. Nevertheless, Bordalo Pinheiro also
explored plant and animal motifs, evolving a bestiary ranging from the cat stretched out beside him
in his famous self-portrait to the frogs hopping and
smoking on the panels of tobacco shop in Lisbon.
Vasconcelos has turned her attention to Bordalo
Pinheiro’s legacy by focusing on this bestiary, from
which she has adopted 11 pieces. The doilies in
different colours and patterns which cover them,
like an extra skin paradoxically defined between a
protective layer and an imprisoning mesh, serve
to highlight the behaviour of the represented
animals. The delicacy of the lobster is therefore
confronted with the authority of the wasp. The wary
cat is counterposed to the majestic horse’s head,
which pairs up with that of the imposing bull and
the humble donkey. The aloofness of the wolf ties
in with the ferocity of the lizard and the crab, whilst
the melancholic frog contrasts with the slender
[Página anterior / Previous page]: video-still
Vasconcelos explorou, ao máximo, a plasticidade do croché em Made in Por tugal (2008), uma
obra que recria a bandeira nacional. Neste caso, o
verde e o vermelho rendilhados enquadram umas
insígnias laboriosamente efectuadas pela artista e
as suas assistentes,43 também mulheres como as
que costuraram a bandeira nacional desfraldada
em 1910 aquando da proclamação da República.
A obra apresentou-se, no
âmbito das comemorações 43 A performance da obra em
execução – seja o lado ar do 5 de Outubro de 2008,
tesanal ou representaciono Palácio de Belém. Susnal do gesto envolvido na
acção – importa sobremapensa de um mastro imneira a Vasconcelos. Complantado no Jardim de Buxo,
prova-o Hand-Made (2008),
um vídeo que consiste em
observava-se tanto do inplanos-sequência de cinco
terior como do exterior do
mulheres de várias idades
a tricotar e a crochetar no
edifício, ao contrário do suinterior de monumentos nacedido com a bandeira
cionais, acompanhadas pelo
som da guitarra portunacional aí diariamente
guesa tocada por Carlos
hasteada. Assim, esta obra
Paredes, cuja melancolia
sublinha a passagem do
instituiu-se, com mais protempo, aqui sinónimo da
priedade, em divisa de
transmissão de saberes
Portugal. Este processo de
inter-geracional.
dessacralização da bandeira nacional recorda o
Verão de 2004, marcado pela realização do Campeonato Europeu de Futebol. Durante esse período, a bandeira nacional — vendida a baixo custo
em lojas chinesas — ofereceu-se, vestiu-se, pendurou-se à janela e estendeu-se na praia, entre outros
usos invulgares, para uns, e irregulares, para outros.
Equiparando-a a mais uma mercadoria “made in
China”, Vasconcelos libertou-a do espartilho da
solenidade que caracteriza um símbolo desta natureza, tornando-a num objecto de trazer por casa.
Numa trajectória inversa, Vasconcelos recuperou
o fausto de outrora das cerâmicas de Rafael Bordalo Pinheiro, há muito trocadas pela mais distintiva louça de design. Um dos destacados artistas da
segunda metade do século XIX, Bordalo Pinheiro
evidenciou-se como caricaturista, celebrizando-se com o “Zé Povinho”, traço puro e duro do por tuguês de então e uma das alegorias axiais do
imaginário nacional. A sua personalidade, marcada
por um espírito livre, inquietou os poderes vigentes na época e traduziu-se em projectos ímpares
no nosso panorama, como o encetado com a Fábrica de Faianças das Caldas da Rainha, fundada
em 1884. As peças aí produzidas, tanto com fins
utilitários como ornamentais, englobaram personagens pitorescas que corporizavam, em tom sarcástico, a portugalidade. Todavia, Bordalo Pinheiro
também desenvolveu motivos naturalistas, destes
salientando-se um bestiário. Efectivamente, do gato
que se espreguiça ao seu lado num famoso auto-retrato, às rãs saltitantes e fumadoras dos painéis da
Tabacaria Mónaco, em Lisboa, são infinitas as provas da atracção de Bordalo Pinheiro por este universo.
Vasconcelos abordou o legado de Bordalo Pinheiro focando-se neste bestiário, do qual adoptou
11 peças. Os naperons de diversas cores e padrões que as cobrem, qual pele extra, paradoxalmente balançando entre uma camada preservadora
e uma malha agrilhoadora, sublinham o carácter
dos animais representados. Assim, a delicadeza da
lagosta confronta-se com a autoridade da vespa.
Ao gato assanhado contrapõe-se a majestosa cabeça de cavalo, que emparelha com a imponência
da de touro e a humildade da de burro. Já a altivez
do lobo entrelaça-se com a ferocidade do sardão
e do caranguejo, enquanto o sapo melancólico
contrasta com a cobra esguia. Com a vivacidade
dos naperons a cativar o olhar e a sensualidade
das pinturas e dos vidrados cerâmicos a exaltar os
restantes sentidos, estas obras demonstram a
genialidade de Bordalo Pinheiro e instituem-se em
gesto de homenagem prestado pela artista que,
assim, une duas eras — como o prova, aliás, a
magnificência da instalação Jardim Bordallo Pinheiro (2010), que graciosamente transfigurou o
jardim do Museu da Cidade de Lisboa.
snake. The lively design of the doilies catches the
eye and the sensuality of the painted and glazed
ceramics appeals to the other senses. These works
bear out the genius of Bordalo Pinheiro, to whom
Vasconcelos pays a tribute, and by which she
unites two eras — as proven by the magnificence
of the installation Jardim Bordallo Pinheiro (Bordallo
Pinheiro Garden, 2010) which gracefully transfigured the gardens of the Lisbon City Museum.
Another example of Vasconcelos’ reading of
heritage — simultaneously ironic and admiring —
can be seen in Coração Independente Dourado
(Golden Independent Heart, 2004). This work was
created in response to a commission from a luxury
restaurant in Lisbon. In order to symbolize wealth,
the artist decided to recreate, on a larger scale, the
heart design typical of the filigree jewellery of
Viana do Castelo. Taking an ironic approach to the
proposed context for the work, she used as raw
material the most humble of catering accessories
— plastic cutlery, in this case yellow, the colour of
gold. The title of the work refers to a line in a fado
sung by Amália Rodrigues, the great diva of this
musical genre associated with Portugal. This reference then gave rise to Coração Independente Ver melho (Red Independent Heart, 2005-2008) and
Coração Independente Preto (Black Independent
Heart, 2006), similar works yet with distinctive
details, revealing the handmade aspect of their
execution (proportion and design, for example).
The original presentation of Coração Independente
Preto incorporated a soundtrack comprising three
songs by Amália and a mechanism whereby the
work, hanging from the ceiling, spun on its own
axis, thereby acquiring a kinetic dimension that the
artist has explored on a number of occasions — in
this case, manifesting the capacity of wonderment
already latent in the work. This format was then
extended to the other works in the series, and in
particular to their joint presentation,44 pointing to
an emotional dimension,
which had previously been 44 As in the present exhi bition.
hidden. Red and black here
symbolize the blood and 45 Vide GIL, José, Portugal,
Hoje – O Medo de Existir,
mourning characteristic of
Lisbon: Relógio d’Água,
the “fear of existing” iden2004.
tified by the philosopher
José Gil45 as afflicting contemporary Portugal,
whilst also suggesting the perseverance, even
when painful, of a noble people, the “heroes of the
sea” referred to by the opening words of the
Portuguese anthem.
The effect of enlarging a given image or figure
(it could be accurate to say “images-figures”), giving it a different appearance, along with the use of
recognizable objects as raw material, displacing
them from their essence and investing them with
Varina [Fishwife], 2008
Montagem / Installation
40
Made in Portugal, 2008
Croché em algodão feito à mão, aço inoxidável /
Handmade cotton crochet, stainless steel
750 x 300 x 7,6 cm
Colecção da artista / Artist’s collection
Produção, montagem e inauguração / Production, installation and opening
Palácio de Belém, Lisboa / Lisbon, 2008
A leitura do património — simultaneamente irónica e deslumbrada — protagonizada por Vasconcelos exemplifica-se, igualmente, com Coração
Independente Dourado (2004). Na sua génese, esta
obra responde a uma encomenda de um restaurante de luxo de Lisboa. Para simbolizar a riqueza,
a artista recriou, em grande escala, um Coração de
Viana do Castelo — uma típica jóia portuguesa
feita em filigrana. Porém, ironizando com o contexto
subjacente à realização da obra, utilizou como
material o mais pobre dos acessórios de restauração: talheres de plástico (neste caso amarelos,
cor que alude ao ouro). O título desta obra remete
para o verso de um poema cantado por Amália
Rodrigues, a diva do fado, género musical associado a Portugal. Esta referência suscitou Coração
Independente Vermelho (2005) e Coração Independente Preto (2006), obras similares mas com
pormenores que as distinguem, revelando o lado
manual da sua execução (proporção e desenho,
por exemplo). A apresentação original de Coração
Independente Preto incorporava uma banda sonora composta por três canções de Amália e um
mecanismo através do qual a obra, suspensa do
tecto, rodava sobre si própria, assim adquirindo a
dimensão cinética que a artista explora em múltiplas ocasiões — neste caso, tal característica
manifesta a capacidade de maravilhamento já
latente na obra. Este formato, entretanto, alargou-se
às restantes obras, em geral, e à sua instalação
simultânea, em particular,44
conferindo ao conjunto uma 44 Como a patente nesta
exposição.
dimensão emocional até
então desconhecida. O vermelho e o preto metaforizam, aqui, o sangue e o
luto característicos do “medo de existir” — como
enun ciou o filósofo José
Gil 45 — que grassa pelo 45 Vide GIL, José, Portugal,
Hoje – O Medo de Existir,
nosso país, mas sugerem
Lisboa: Relógio d’Água,
também a perseverança —
2004.
mesmo que sofrida — de
um nobre povo, os “heróis do mar” com que
começa a letra do hino nacional.
O efeito de ampliação de uma dada imagem ou
figura — “imagens-figuras”, dir-se-ia justamente —,
conferindo-lhes outra aparência, a par da utilização de bens reconhecíveis como matéria-prima,
deslocando-os da sua essência e investindo-os de
um novo significado (embora articulável com o
original), constitui outro eixo do vocabulário de
Vasconcelos. Tal evidencia-se não só na série
Coração Independente, mas também noutras obras.
Mencione-se, por exemplo, Jardim do Éden (Labirinto) (2010). A obra consiste em serpenteantes
canteiros de plantas artificiais que, brilhando no
escuro, revelam uma paisagem evocativa tanto dos
oitocentistas jardins à inglesa como da lenda do
new meaning (albeit in articulation with their original meaning), is another of the main characteristic of Vasconcelos’ vocabulary. This can be seen
not only in the Coração Independente series, but
also in other works. An example of this is Jardim do
Éden (Labirinto) (Garden of Eden [Labyrinth],
2010). The work consists of snaking containers of
artificial plants that shine in the dark and reveal a
landscape evocative of both 18th century English
gardens and the legend of the Minotaur. Although
one can also points to a biblical reference in this
work, it is the conflict between technological progress and the conservation of nature that most
occupies the artist here. Other examples of this
strategy include Cinderela (Cinderella, 2007) and
its variation Marilyn (2009). In these works, a large
number of rice pans and the respective lids are
combined to delineate, on a huge scale, a highheeled sandal (a pair in the latter case). Whilst the
product that was used refers to the kitchen, the
place stereotypically reserved for women, the form
described suggests ideas of beauty as propounded
by women’s magazines. The titles themselves refer
to characters that, from fairytales to Hollywood,
typify femininity, located between the angelical
princess and the femme fatale. The result is that the
works reflect the contradictory visions which still
mark the female condition today, caught between
the pressure to achieve success in the public sphere
and the supposedly conventional need to play the
maternal and related roles in the private domain.
Vasconcelos’ option for large scale in these
works and in various public art projects encapsulates her approach to monumentality. This category,
central to the entire European tradition of sculpture,
is examined not only aesthetically but also in terms
of ethics, diverting it from the uses that were
dominant down the centuries. It is not therefore the
monument in itself that the artist deals with, but
with the utopia underlying the actual monumental
dimension, as she is interested in the “meaning of
place”46 and not the rhetoric of celebration. This is
why the reference to architecture in general and to 46 This notion aims to encapsulate not only the sense
spatial organization in par of site-specificity but also of
ticular defines another of
the “context of the local”,
which refers to civilizathe main threads in Vas tional concerns.
concelos’ oeuvre, espe cially with regard to the
relationship between the work and the built
environment. One can see this, for example, in
Trono ao Santo António (Altar of Saint Anthony, 2001)
and A Jóia do Tejo (The Jewel of the Tagus, 2008),
works that interpret, respectively, the pillory in
Lisbon’s Municipal Square and the Tower of Belém.
The candles, plastic flowers and statuettes which
come together to constitute an altar, in the first
44
45
case, and the maritime buoys cables which delineate a necklace, in the second instance, all draw
undoubtedly on Portugal’s cultural heritage, but it
is the magnificence and sensitivity with which the
artist redesigns these architectural icons that will
persist in the collective memory.
Against this background, the importance conferred by Vasconcelos on articulating the work with
the viewer and both with the “white cube”47 of
gallery spaces is another
trait of her practice. In this 47 On the types of gallery
spaces and how they inexhibition, in addition to
fluence the perception of
the already plural meaning
art, vide Brian O’Doherty’s
discussion in Inside the White
possessed by each work,
Cube: The Ideology of the
the unexpected and sur Gallery Space [1976/ 1986],
Berkeley, CA: University of
prising sharing of the galCalifornia Press, 2000.
lery space by carefully
arranged works generates
multiple meanings which recreate the artist’s
oeuvre as never before. At the reception Museu
Colecção Berardo is Victoria (2008), a work belonging to the Valquíria series but which abandons the
wide chromatic range characteristic of the series
in favour of a lustrous black. Too big for the area
housing it, the work takes on a denser nature, metamorphosing into an unlimited organic mass on the
verge of explosion. The exuberance of the scintillating textures making up the work supports a
connection to the referent of the title: the morality
of the Victorian period. However, more than just the
moral strictures with which Queen Victoria is still
associated today, the work deals with another aspect
of her reign: the expansion of the British Empire,
the war machine responsible for many of the postcolonial conflicts which mark the contemporary era.
The combined effect of the works with the peculiarities of the gallery space at the Museu Colecção
Berardo, especially on Floor -1, reaches a peak
with the installation of O Mundo a Seus Pés and
Ponto de Encontro. In the first case the characteristics
of the work offer the viewer a different vantage
point for the elements of Contaminação that climb
the walls and hang from the ceiling. Ponto de Encontro is displayed in the centre of a room, surrounded by other works (such as Una Dirección,
which visitors walk through) and, on one side, by a
large window, thereby absorbing and reflecting at
the same time the presence of these elements.
These works are also united by a trait that defines
Vasconcelos’ practice: a need to be activated by
the beholder. This is something from the minimalist
tradition, which sees art as presupposing interaction
with the bodily presence of the visitor. Perception
of the work depends on the spectator involvement,
which complements the observation with a participative gesture that sets off a phenomenological
experience.
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Cinderela [Cinderella], 2007
Panelas e tampas em aço inoxidável, cimento / Stainless steel pans
and covers, concrete
250 x 150 x 430 cm
Colecção Tróia Design Hotel / Tróia Design Hotel Collection, Tróia
Jardinets de Gràcia, Barcelona, 2008
Minotauro. Se a referência bíblica também surge
nesta obra, é porém o conflito entre o progresso
tecnológico e a conservação da Natureza que a
artista aqui mais trata. Outras obras exemplares da
estratégia de Vasconcelos são Cinderela (2007) e
a sua variação Marilyn (2009). Nestas obras, várias
panelas e respectivas tampas delineiam, em grande
escala, uma sandália de salto alto (um par, no segundo caso). Se o produto utilizado remete para a
cozinha, lugar estereotipadamente reservado à
mulher, a forma alcançada sugere os ideais de
beleza veiculados pelas revistas “cor-de-rosa”. Já
os títulos aludem a personagens que, do conto de
fadas a Hollywood, tipificam a feminilidade, situada
entre a princesa angelical e a femme fatale. Estas
obras reflectem, pois, as visões contraditórias que,
ainda hoje, marcam a condição feminina, balizada
entre a pressão do sucesso na esfera pública e o
supostamente inerente desempenho do papel materno e afins no espaço privado.
A opção pela grande escala que Vasconcelos
evidencia nestas obras e em múltiplos projectos
de arte pública traduz a sua abordagem à monumentalidade. Esta categoria central de toda a tradição escultórica europeia sofre uma investigação
não só de carácter estético mas também ético que
a desvia dos seus usos dominantes ao longo dos
séculos. Assim, não é do monumento em si, que se
trata, mas da utopia subjacente à própria dimensão monumental, pois
à artista interessa o “sen- 46 Com esta noção, pretende
englobar-se não só a “estido do lugar”46 e não a
pecificidade do local”, na
retórica da celebração.
linha do que a expressão
inglesa site specific enuncia,
É por isso que a referência
mas também o “contexto
à arquitectura, em geral,
do sítio”, que releva do
civilizacional.
e à organização espacial,
em particular, define outro
eixo do trabalho de Vasconcelos, sobretudo no
que releva da relação entre a obra e o complexo
edificado. Tal nota-se, por exemplo, em Trono ao
Santo António (2001) e A Jóia do Tejo (2008), obras
que interpretaram o pelourinho da Praça do Município e a Torre de Belém, respectivamente. Entre
as velas, flores em plástico e estatuetas que compõem um altar no primeiro caso, e as bóias e
defesas náuticas que configuram um colar, no
segundo, perpassa seguramente a herança cultural
nacional, mas são a imponência e a sensibilidade
com que a artista redesenhou estes ícones arquitectónicos que perdurarão
47 Sobre a tipologia do “cubo
na memória colectiva.
branco” galerístico e o modo
Sob este pano de fundo,
como influencia a percepção da arte, vide a reflexão
a importância confe rida
de Brian O’Doherty em Inpor Vasconcelos à articuside the White Cube: The
Ideology of the Gallery Space
lação da obra com o es[1976/1986] (Berkeley, CA,
pectador e de ambos com o
Los Angeles: University of
California Press, 2000).
“cubo branco”47 galerístico
é, ainda, outra das qualidades da sua prática.
Assim, em Sem Rede, para além do sentido possuído por cada obra, já em si plural, a inesperada
e surpreendente convivência das obras nas
galerias, resultado de uma cuidada montagem,
gera múltiplos significados que recriam, como
nunca, o trabalho da artista. Na recepção do
Museu Colecção Berardo surge Victoria (2008),
uma obra da família das Valquírias que, contudo,
abandonou a plenitude cromática característica
desta série a favor de um negro lustroso. Sobredimensionada para a área que a acolhe, a obra
adensa-se, metamorfoseando-se num volume orgânico ilimitado, à beira de explodir. A exuberância das cintilantes texturas que a compõem
sustenta um vínculo ao referente que o seu título
convoca: a moral da era vitoriana. Porém, mais do
que a política dos costumes à qual a rainha inglesa
ainda hoje se associa, esta obra aborda outra das
facetas que a destacou: a expansão do império
britânico, essa máquina de guerra responsável
por muitos dos conflitos pós-coloniais que marcam
a contemporaneidade.
A conjugação das obras com as peculiariedades do espaço expositivo do Museu Colecção
Berardo, nomeadamente no Piso -1, atinge um
ponto alto com a instalação de O Mundo a Seus Pés
e Ponto de Encontro. No primeiro caso, as características da obra suscitam a observação, sob outro
ângulo, dos componentes de Contaminação que
subiram as paredes ou se suspenderam do tecto.
Ponto de Encontro situa-se no centro de uma sala,
rodeado por outras obras — como, por exemplo,
Una Dirección, dentro da qual circulam visitantes
— e, num dos lados, um janelão, assim absor vendo e reflectindo, simultaneamente, a presença
destes elementos. Estas obras aliam-se, ainda,
num repto definidor do trabalho de Vasconcelos:
a sua necessária activação pelo espectador. Esta
condição inscreve-se na tradição minimalista, de
acordo com a qual a arte pressupõe uma interacção
com a corporeidade do visitante. Neste sentido, a
percepção da obra depende de um envolvimento
do espectador que complemente a observação
com um gesto participativo desencadeador de
uma experiência fenomenológica.
Em O Mundo a Seus Pés, a mestria da artista no
cruzamento de referências evidencia-se mais uma
vez. A tradução portuguesa do título do filme
Citizen Kane — um roman à clé inspirado na biografia do magnata de imprensa William R. Hearst,
realizado e protagonizado por Orson Welles em
1941 — designa uma obra que combina globos
terrestres intermitentemente luminescentes com
uma estrutura que evoca uma escada móvel de
acesso a aviões, assim conjugando o ideário liber tador da viagem com uma filosofia de cariz
48
O Mundo a Seus Pés [The World at Your Feet ], 2001
[Ver / See p. 140]
In O Mundo a Seus Pés, one can once again
observe Vasconcelos’ mastery of cross-referencing:
the Portuguese translation of the title of the film
Citizen Kane — a roman à clé inspired by the life
of press magnate Willian R. Hearst, directed and
starred by Orson Welles in 1941 — is used to designate a work which combines terrestrial globes
intermittently luminescent with a structure that
evokes the movable stairs used for aircraft, thereby
combining escapist ideas of travelling with the
business-type philosophy which has magnanimously instituted today what might be called the
age of homo economicus. This reading only occurs
when the visitor is standing on the platform, with a
dizzy awareness, like that of Welles/Hearst, of the
immense power one wields. Although disguised by
the playful spirit of the work, this critical content is
also present in Ponto de Encontro. This is expertly
explained in the following excerpt: “in […] the
work that Vasconcelos is presenting at the Serral-
49
Ponto de Encontro [Meeting Point ], 2006
[Ver / See p. 138]
ves Museum, a carousel occupies the space for the
exhibition. This carousel revolves around a fixed
axis. Its seats are [...] objects characteristic of the
paradigm of office furniture, upholstered with particularly bright colours. On the floor, an industrial
rug carpets the [gallery] space, sending the visitor
back to the universe of the offices of executives
with some pretension in their decoration. The role
of design in the construction of an identity is here
placed within derision, in this crossing of references […] from the anonymous labour with the
childhood references [manifested in] [...] the
children’s playgrounds characteristic to a Portuguese generation [...], far
48 FERNANDES, João, op. cit.,
too serious in their games
without page number. “Estado Novo” [New State]
domesticated [by the] Esrefers to the Portuguese
tado Novo.”48
dictatorial regime of António Oliveira Salazar and
Although spot-on in his
Marcelo Caetano, who ruled
analysis, Fernandes omits
the country between 1932
and 1974.
to consider one of the
empresarial que, de tão magnânima nos nossos
dias, instituiu o que se designaria como idade do
homo economicus. Ora, esta leitura ocorre apenas
quando o visitante, em cima da plataforma, vertiginosamente consciencializa, tal como Welles/Hearst,
o poder imenso que tem. Embora disfarçada por
um espírito lúdico, esta carga crítica manifesta-se,
igualmente, em Ponto de Encontro. Tal explicita-se
modelarmente no seguinte excerto: “[na] obra que
[...] Vasconcelos agora apresenta no Museu de Serralves, um carrossel ocupa o lugar de exposição.
Este [...] gira em torno de um eixo fixo. As suas
cadeiras são objectos [...] característicos do paradigma do mobiliário de escritório, forradas com
tecidos de cores particularmente vivas. No chão,
uma alcatifa industrial atapeta [a galeria], reenviando o visitante para o universo dos gabinetes
de executivos com alguma pretensão na sua
decoração. O papel do design na construção de
uma identidade é aqui posto em irrisão, neste
cruzamento das referências do [...] trabalho anónimo
[...] com as [...] da infância [...], [manifestadas nos]
parques infantis característicos de uma geração
portuguesa [...], demasiado sérios nas suas brincadeiras domesticadas [pelo]
Estado Novo.”48
48 FERNANDES, João, op. cit.,
Apesar de certeiro na
sem número de página.
análise, Fernandes deixa
por apreciar uma das dimensões do trabalho da
artista que, à época — e singularmente no panorama nacional —, a sintonizava com uma das
tendências marcantes da arte recente: o “relacionalismo”. O comissário Nicolas Bourriaud abordou, em exposições49 e artigos,50 o que definiu
como “um conjunto de práticas artísticas que tomam como ponto de par tida teórico e prático
o todo das relações humanas
e o seu contexto social, em 49 Nomeadamente, Traffic
(CAPC – Musée d'Art Convez de um espaço privado,
temporain de Bordeaux,
independente”.51 Neste senBordéus, 1995) e Touch: Relational Art from the 1990s
tido, a arte julga-se em
to Now (San Francisco Art
função das trocas simbóInstitute, São Francisco, 2002).
licas que “representa, pro50 Posteriormente compilados
duz ou causa”.52 A obra
em Esthétique Relationnelle
(Dijon: Les Presses du Réel,
passa a definir-se, então,
1998). A tradução inglesa
enquanto local de produda mesma editora, lançada
em 2002, popularizou o livro.
ção de intersubjectividade
— o tal “ponto de encontro” 51 BOURRIAUD, Nicolas, Relational Aesthetics, Dijon:
a que alude Vasconcelos.
Les Presses du Réel, 2002,
Através dessa circunstânp. 113; tradução do autor.
cia, “o significado é ela52 Idem, ibidem, p. 112; traborado colectivamente, em
dução do autor.
vez de no espaço de con53 Idem, ibidem, pp. 17-18;
sumo individual.”53 Assim,
tradução do autor.
na linha do proposto por
54 Vide BLANCHOT, Maurice,
Maurice Blanchot,54 trataThe Unavowable Community [1983], Barrytown, NY:
-se de constituir uma comuStation Hill Press, 1988.
nidade. De acordo com o
crítico Kuisma Korhonen, 55 Leia-se “artística”.
Blanchot refere-se à “co- 56 KORHONEN, Kuisma, “Textual Communities: Nancy,
munidade ideal de comuBlanchot, Derrida”, Culture
55
nicação literária [não como
Machine, 8 (2006), sem número de página; tradução
uma] organiza ção autodo autor.
-consciente, mas uma flexível rede de amigos que 57 Remete-se, aqui, para A Sociedade do Espectáculo,
se encontram, de vez em
tratado situacionista do pensador-livre Guy Debord.
quando, à volta de uma mePublicado em 1967, a tese
sa, cada um com os seus
principal deste livro é que
a alienação resulta da formotivos, não apreendendo
ma de vida estruturada penecessariamente todo o
lo capitalismo. Revisitando
a visão marxista da luta de
significado do momento.”56
classes como motor da históÉ esta hipótese que Sem
ria, Debord considera, assim,
que é através do espectáRede coloca, desafiando o
culo que a burguesia se
visitante a rebelar-se coninstituiu como grupo dominante na sociedade actual.
tra os ditames anestesianVide DEBORD, Guy, The Sotes do espectáculo 57 e a
ciety of Spectacle, Nova Iorque: Zone Books, 1985.
assumir-se, na esteira do
dimensions of Vasconcelos’
49 Specifically, in Traffic
practice which, at the time,
(CAPC – Musée d'Art Contemporain de Bordeaux, Borand uniquely on the Portudeaux, 1995) and Touch:
guese scene, showed her
Relational Art from the
1990s to Now (San Franto be in tune with one of
cisco Art Institute, San Franthe crucial trends in recent
cisco, 2002).
art: “relationalism”. The cu50 Subsequently compiled
rator Nicolas Bourriaud has
in Esthétique Relationnelle,
Dijon: Les Presses du Réel,
examined, in exhibitions49
1998. The English translaand articles50, what he has
tion launched by the same
publisher in 2002 brought
defined as “a set of artistic
the book to a wider aupractices which take as
dience.
their theoretical and practiBOURRIAUD, Nicolas, Relacal point of departure the 51 tional
Aesthetics, Dijon: Les
Presses du Réel, 2002, p. 113.
whole of human relations
and their social context, 52 Idem, ibidem, p. 112.
rather than an independent and private space.”51 53 Idem, ibidem, pp. 17-18.
In this sense, art is judged 54 Vide BLANCHOT, Maurice,
The Unavowable Community
in terms of the symbolic
[1983], Barrytown, NY: Staexchanges that it “repretion Hill Press, 1988.
sents, produces or cau- 55 I.e. “artistic”.
ses.”52 Accordingly, the
work is now defined as the 56 KORHONEN, Kuisma, “Textual Communities: Nancy,
place where intersubjectiBlanchot, Derrida”, Culture
Machine, 8 (2006), without
vity is produced — the
page number.
“meeting point” to which
Vasconcelos alludes. As a 57 One refers here to The
Society of Spectacle, the
result, “meaning is elabosituationist treatise by the
free thinker Guy Debord.
rated collectively, rather
Published in 1967, the main
than in the space of in argument in the book is
that alienation results from
dividual consumption”.53
the form of life structured
Therefore, as argued by
by capitalism. Revisiting the
Marxist vision of class strugMaurice Blanchot,54 the aim
gle as the driving force of
is to constitute a commuhistory, Debord considers
that it was through spectacle
nity. According to the critic
that the bourgeoisie estaKuisma Korhonen, Blanchot
blished itself as the dominant group in society. Vide
is referring to the “ideal
DEBORD, Guy, The Society
55
community of literary comof Spectacle, New York: Zone Books, 1985.
munication not as a selfconscious organization, but 58 Vide RANCIÈRE, Jacques,
The Emancipated Spectator,
rather a changing network
London: Verso,2 009.
of friends who gathered,
every now and then, around 59 BOURRIAUD, Nicolas, op.
cit., p. 13.
a table, everyone with different motives, not necessarily recognizing the full significance of the
moment.56 This is the hypothesis posed by this
exhibition, asking the beholder to rebel against the
sleep-inducing rules of spectacle57 and to affirm
itself as an “emancipated spectator” in the sense
proposed by the philosopher Jacques Rancière.58
The role played by the works on view is not
therefore to construct “imaginary [...] realities, but
to actually be ways of living and models of action
within the existing real, whatever scale chosen by
the artist.”59
50
51
What Vasconcelos demonstrates is that this is
only possible with an attitude of commitment to life,
fully aware of the vicissitudes of the “transliterated
quotidian”60, but also aware
that the feasibility of this 60 The allusion is to the title of
the essay by Octavio Zaya
proposal depends on republished in this catalogue.
conciling Kantian beauty
with the legacy of Duchamp 61 Vide DUVE, Thierry de,
Kant after Duchamp, Camalong the lines suggested
bridge, MA: The MIT Press,
1996.
by Thierry de Duve.61 To
paraphrase Foster, Vascon- 62 MORRIS, Robert, “Notes on
Sculpture 1-3” [1966-1967],
celos exemplifies “the rein Charles Harrisson and
turn of the art of the real”,
Paul Wood (eds.), op. cit.,
p. 829.
intelligently bounding together the parts “in such a
way that they create a maximum resistance to perceptual separation”,62 as the artist Robert Morris
defined gestalt in an important set of articles. It is
in this sense that Vasconcelos, even taking a position
in the political field, insists on aesthetics being
present at the negotiating table in the search for a
peace agreement between these two opposing
standpoints. In effect, as Rancière has suggested,
it is impor tant to ransom aesthetics from the circumscribed existence into which it has been forced
by politics in recent years, demonstrating how
umbilical their relationship is. The philosopher has
envisaged the “distribution of the sensible”63 as the
only possible chance for
reuniting the aesthetic with 63 Vide RANCIÈRE, Jacques,
The Politics of Aesthetics:
the political. Vasconcelos is
The Distribution of the Senat the forefront of this desible, New York: Continuum,
2004.
bate, and this exhibition
proves that she has an in- 64 GALHÓS, Cláudia, “Val quíria Joana”, in Expresso
dispensible contribution to
(Actual), December 6, 2008,
make. As she herself has
p. 16.
said, her work derives, “more than from the artistic, the social”64, but it is her
special approach to this sphere that sets her apart
from other artists working in the art of the real.
Translated from the Portuguese by Clive Thoms.
filósofo Jacques Rancière,
58 Vide RANCIÈRE, Jacques,
como “espectador emanThe Emancipated Spectator,
Londres: Verso,2 009.
cipado”. 58 O pa pel de sempenhado pelas obras 59 BOURRIAUD, Nicolas, op.
cit., p. 13; tradução do autor.
expostas já não é, pois, o
de edificar “realidades imaginárias […], mas de constituir, justamente, formas
de vida e modelos de acção no interior do real
existente, independentemente da escala elegida
pelo artista.”59
O que Vasconcelos prova é que tal só é possível
com uma atitude comprometida com a vida, plena
de consciência das vicissitudes de um “quotidiano
transliterado”60, mas também ciente de que a via- 60 Alude-se, aqui, ao título do
ensaio de Octavio Zaya pubilidade desta proposta
blicado neste catálogo.
depende da reconciliação
do belo kantiano com o le- 61 Vide DUVE, Thierry de,
Kant after Duchamp, Camgado duchampiano, na linha
bridge, MA: The MIT Press,
1996.
do sugerido por Thierry
de Duve.61 Parafraseando 62 MORRIS, Robert, “Notes on
Sculpture 1-3” [1966-1967],
Foster, a artista protago in Charles Harrisson and
niza, assim, um “regresso
Paul Wood (org.), op. cit.,
p. 829.
da arte do real”, inteligentemente “reunindo as par tes de tal maneira que estas criam uma resistência
máxima à separação perceptual”,62 como o artista
Robert Morris definiu gestalt num impor tante
conjunto de artigos. É neste sentido que Vasconcelos, mesmo posicionando-se no campo do
político, reclama a presença da estética à mesa
das negociações que ensaiam um acordo de paz
entre estes dois pólos desavindos. Efectivamente,
como sugere Rancière, importa resgatar a estética
do circunscrito espectro a que a política a remetera nos últimos anos, demonstrando quão umbilical
é a sua relação. O filósofo equaciona, então, a “distribuição do sensível”63 como única hipótese possível 63 Vide RANCIÈRE, Jacques,
The Politics of Aesthetics:
para a reunião do estético
The Distribution of the Sene do político. É na linha da
sible, Nova Iorque: Continuum, 2004.
frente desta proposta que
Vasconcelos se encontra e 64 GALHÓS, Cláudia, “Val quíria Joana”, in Expresso
Sem Rede prova a sua
(Actual), 6 de Dezembro,
indispensabilidade neste
2008, p. 16.
debate. Como a própria artista refere, o seu trabalho releva, “mais do que do
artístico, do social”,64 mas é a sua especial abordagem dessa instância que a distingue entre os demais protagonistas da arte do real.
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Miguel Amado Ponto de Encontro ou o Regresso da Arte do Real