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O Princ?o da insignific?ia na atual concep? do STF
Resumo: O artigo aborda a aplicação do princípio da insignificância pelo STF à luz da teoria constitucionalista do delito.
Palavras-chave: Interpretação axiológica da lei penal. Evolução do conceito de tipicidade. Teoria constitucionalista do delito.
Sumário: 1) Introdução; 2) Tipicidade formal e material; 3) Aplicação do princípio da insignificância pelo STF e 4) Conclusão.
1. Introdução
O Direito Penal, em virtude do seu caráter fragmentário e subsidiário, declina aos demais ramos do Direito (Civil, Administrativo, Tributário e outros) a
tarefa ordinária de controle social, reservando, para si, em ultima ratio, a tutela dos bens juridicamente mais importantes como, por exemplo: a vida, a
liberdade, a integridade física e o patrimônio.
Porém, com fundamento no axioma acima, tornou-se praxe a invocação do princípio da insignificância para repelir a tipicidade do injusto penal e,
assim, legitimar a impunidade do agente que o praticou.
Nesta senda, importa observar que a aplicação do mencionado princípio deve ser comedida conforme, aliás, tem enfatizado o Pretório Excelso em
suas novéis decisões, sob pena de se confundir garantismo com abolicionismo.
2. Tipicidade formal e material
Consectário do princípio da legalidade, em sua vertente do nullum crimen sine lege, é a inferência de que somente as condutas humanas tipificadas
em lei penal como crime assim o podem ser consideradas.
Destarte, para se conceber um fato como uma infração penal, é necessário, a priori, verificar a sua tipicidade, a qual é aferida mediante a subsunção
exata da conduta ao modelo abstrato previsto na norma penal incriminadora (tipo penal[1]). No entanto, o referido conceito de tipicidade cinge ao
aspecto formalista[2], fruto das teorias causal (de Liszt e de Beling) e final (de Welzel).
Para a teoria causalista, o fato revela-se típico quando reúne: conduta voluntária (neutra, pois, in casu, o dolo e a culpa integram a culpabilidade);
resultado naturalístico (nos crimes materiais); nexo de causalidade (entre a conduta e o resultado); e relação de tipicidade (adequação do fato à
norma penal).
De acordo com essa teoria – a qual concebe o dolo e a culpa como integrantes da culpabilidade, vale dizer, espécies de culpabilidade –, o tipo penal
é revestido tão-somente de um aspecto objetivo (cf. Bitencourt, 2003: 154). Neste diapasão, convém destacar a teoria neokantista (neoclássica) que,
a despeito de sustentar os principais fundamentos do causalismo, provocou-lhe significativas transformações.
Acerca do assunto, Bitencourt (2003: 142) sintetiza que:
“A teoria neoclássica do delito caracterizou-se pela reformulação do velho conceito de ação, nova atribuição à função do tipo, pela transformação
material da antijuridicidade e redefinação da culpabilidade, sem alterar, contudo, o conceito de crime, como a ação típica, antijurídica e culpável.”
A teoria finalista, por sua vez, reputa tipicamente penal o fato que conjuga os mesmos requisitos preconizados pela teoria causalista, ressalvando,
porém, o dolo e a culpa como elementos da conduta e não da culpabilidade. O tipo penal, doravante, passa a ter mais um substrato cuja essência é
de natureza subjetiva.
Malgrado à insofismável contribuição das teorias causal e final para a construção do conceito de delito, certo é que ambas, por se engessaram ao
formalismo do positivismo legalista (precipuamente a primeira), não conseguem solucionar o problema do abismo existente entre o Direito Penal e a
realidade social.
Além disso, as teorias suso citadas enleiam a violação da norma primária imperativa com a violação da norma primária valorativa e igualmente não
cuidam da necessária ofensa ao bem jurídico, assim como da imputação objetiva desse resultado ao seu agente (cf. Gomes: 2 mai. 2006). Logo,
segundo os causalistas e finalistas, o tipo penal configura-se com o simples amolde da conduta à letra da lei.
Claus Roxin, na década de 1970, em virtude das teorias causal, neokantista e final não resolverem os problemas ventilados alhures, aperfeiçoou a
teoria da imputação objetiva, cuja metodologia de análise delimitava o alcance do tipo objetivo (cf. Stivanello: 2003).
Consoante salienta Luiz Flávio Gomes (2 mai. 2006), dois são os pressupostos da imputação objetiva: o primeiro atine à criação ou ao incremento de
um risco proibido relevante; o outro, ao resultado objetivamente imputável ao risco criado (que esteja na esfera de proteção da norma).
O risco, na lição de Cláudia López Diaz, integra o mundo natural, de sorte que a permissão e a proibição são determinadas conforme as regras do
ordenamento social. Isto é, a tolerância à conduta produtora de risco decorre das estruturas sociais que, por meio de certos critérios, disciplinam o
que é lícito e o que é desaprovado (1996: 108).
Notadamente, há riscos imprescindíveis à manutenção da sociedade e ao avanço tecnológico (como atividades nucleares) que, por essa natureza,
são concebidos como risco permitido, ainda que eventualmente causem um dano. Ora, viver é arriscar-se permanentemente.
De outra banda, deflui do requisito, resultado objetivamente imputável, a ilação de que a falta de ofensa concreta ou real do bem tutelado impede a
tipificação da conduta, ainda que ela tenha criado ou incrementado o risco, posto que a presunção de perigo não é albergada pelo moderno Direito
Penal.
Nessa linha exegética, Zaffaroni (1988: 371) elaborou a teoria da tipicidade conglobante, segundo a qual é típica a conduta praticada pelo agente que
se revela, concomitantemente, antinormativa e ofensiva aos bens de relevo para o Direito Penal. Este último aspecto (efetiva lesão ao bem jurídico)
faz alusão à tipicidade material.
Nos moldes da teoria da tipicidade conglobante (antinormatividade + tipicidade material), a ofensividade é abarcada pela tipicidade material. Daí o
raciocínio de que, inexistindo a ofensa, inexiste a tipicidade e, ausente esta, não há crime (cf. Greco, 2002: 176).
Decerto, é também irrefutável a contribuição de Zaffaroni (1988: 371) para a construção da teoria do delito, conquanto o sobredito jurista transcendeu
a falha das teorias pretéritas que concebiam típico o fato que se adequava à literalidade da lei, independentemente da efetiva ou da real lesão do
bem jurídico.
3. Aplicação do princípio da insignificância pelo STF
As teorias da imputação objetiva e da tipicidade conglobante (esta, no viés da tipicidade material) deram azo à teoria constitucionalista do delito
(defendida por Luiz Flávio Gomes), a qual – ao nosso juízo – é hodiernamente perfilhada pelo Supremo Tribunal Federal, cuja aplicação se dá à luz
do princípio da insignificância.
Em verdade, as decisões[3] proferidas pelo Supremo Tribunal Federal reconhecem a descaracterização da tipicidade penal em seu aspecto material,
tendo em conta a reunião dos seguintes requisitos: a) mínima ofensividade da conduta do agente; b) nenhuma periculosidade social da ação; c)
reduzido grau de reprovabilidade do comportamento; e d) inexpressividade da lesão jurídica provocada.
Com efeito, os requisitos a que o STF se refere tangem à tipicidade material-normativa da teoria constitucionalista do delito, ou seja, ao “resultado
jurídico desvalioso”.
Luiz Flávio Gomes (8 fev. 2006), ao abordar o tema em testilha, pondera:
“Resultado jurídico desvalioso, que implica uma ofensa: a) objetivamente imputável à conduta (leia-se: criação ou incremento de um risco
proibido penalmente relevante e objetivamente imputável à conduta); b) concreta ou real (lesão ou perigo concreto ao bem jurídico); c)
transcendental (afetação de terceiros); d) grave (significativa); e) intolerável e f) objetivamente imputável ao risco criado pelo agente
(imputação objetiva do resultado jurídico, que significa duas coisas: 1) conexão direta do resultado jurídico com o risco proibido criado ou
incrementado; 2) que esse resultado esteja no âmbito de proteção da norma)”; (o grifo é nosso)
No magistério do aludido autor, isto é, na ótica constitucionalista do fato punível, o delito deve ser compreendido simultaneamente do ponto de vista
formal e axiológico (valorativo). Assim, o fato revela-se típico com a criação ou com o incremento de um risco proibido penalmente relevante e
objetivamente imputável à conduta, somado a lesão ou ao perigo concreto ao bem jurídico.
Luiz Flávio Gomes (2005) assevera, ainda, que em razão da tipicidade material:
“Nem tudo que foi mecanicamente causado pode ser imputado ao agente, como fato pertencente a ele (como obra dele pela qual deva ser
responsabilizado). Aquilo que se causa no contexto de um risco permitido (autorizado, razoável) não é juridicamente desaprovado, logo, não é
juridicamente imputável ao agente. Na lesão esportiva (dentro das regras do esporte) há a causação de um resultado, mas isso não pode ser
objetivamente imputado ao agente (porque se trata de risco permitido). Diga-se a mesma coisa em relação à intervenção cirúrgica, à colocação de
ofendículos, ao exercício de um direito etc.. Tudo que se produz no contexto de riscos permitidos não é objetivamente imputável” (não é fato típico,
ou melhor, não é um fato material e normativamente típico).
Todavia, inobstante o guardião da Carta Magna mencionar nos julgados (cf. nota 3) os requisitos da tipicidade apenas em seu prisma
axiológico-normativo, mister ressaltar que esta, na roupagem da teoria constitucionalista do delito, possui três dimensões, quais sejam: tipicidade
formal-objetiva, tipicidade material-normativa e tipicidade subjetiva (nos crimes dolosos).
4. Conclusão
Notadamente, quanto mais evoluída é a sociedade, menos intervencionista é o Direito Penal. Desse modo, podemos afirmar com tranqüilidade que
avançamos ao reconhecer o princípio da insignificância como mecanismo atipificador do injusto.
Entrementes, é imprescindível mantermo-nos cautelosos, a fim de não banalizar o famigerado princípio, desvirtuando-lhe o seu escopo. Por outras
palavras, o fato de um bem furtado ser de pequeno valor e de o agente ser primário não implica, prima facie, o afastamento da tipicidade, visto que se
trata de um crime de furto privilegiado (art. 155, § 2º, do CP).
Portanto, na esteira do entendimento arvorado pelo Supremo Tribunal Federal, bem como à luz da teoria constitucionalista do delito, infere-se que o
princípio da insignificância é cabível em nosso ordenamento jurídico dês que reunidos certos requisitos, a saber: a) mínima ofensividade da conduta
do agente; b) nenhuma periculosidade social da ação; c) reduzido grau de reprovabilidade do comportamento; e d) inexpressividade da lesão jurídica
provocada.
Referências bibliográficasObras BITENCOURT, Cezar Roberto (2003). Tratado de Direito Penal. Parte Geral. 8ª ed. vol. 1. São Paulo: Saraiva.
DÍAZ, Claudia López (1996). Introducción a laimputación objetiva. Bogotá: Centro de Investigaciones de Derecho Penal y Filosofia del Derecho,
Universidad Externado de Colombia. GRECO, Rogério. (2002). Curso de Direito Penal. Parte Geral. 2ª ed. Rio de Janeiro: Impetus. ZAFFARONI,
Eugenio Raúl (1988). Manual de Derecho Penal – Parte General. Buenos Aires: Ediar. Documento da Rede Internet: GOMES, Luiz Flávio (2005).
Dimensão Material da Tipicidade Penal. Disponível em: http://www.mundolegal.com.br/?FuseAction=Artigo_Detalhar&did=16716 Acesso em: 05
nov. 2008. GOMES, Luiz Flávio (8 fev. 2006). Requisitos da tipicidade penal consoante a teoria constitucionalista do delito. Disponível em:
http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=7932 Acesso em: 05 nov. 2008. GOMES, Luiz Flávio (2 mai. 2006). Tipicidade penal: tipicidade formal +
tipicidade material + tipicidade subjetiva. Disponível em:
http://ultimainstancia.uol.com.br/colunas/ler_noticia.php?idNoticia=27413&kw=tipicidade+conglobante , Acesso em: 17 out. 2008. STIVANELLO,
Gilbert Uzêda (2003). Teoria da Imputação Objetiva. Disponível em: http://www.cjf.jus.br/revista/numero22/artigo10.pdf . Acesso em: 29 out. 2008.
Notas: [1] Tipo penal, segundo Zaffaroni, é um instrumento legal, logicamente necessário e de natureza predominantemente descritiva que tem por
função a individualização das condutas humanas penalmente relevantes. [2] A tipicidade formal se desdobra em direta e indireta. A direta se dá
quando ocorre a subsunção do fato ao tipo penal sem a necessidade de uma norma de extensão, lado outro, a indireta precisa de uma norma de
extensão para se adequar ao modelo previsto na lei. V.g, matar alguém se amolda perfeitamente ao tipo do art. 121, do CP, já a tentativa de
homicídio exige a norma de extensão do art. 14, II, do CP. [3] HC 92.463, Rel. Min. Celso de Mello, DJ de 31/10/07; HC 92.961, Rel. Min. Eros Grau,
DJ de 22/02/08; e HC 94.765, Rel. Min. Ellen Gracie, Informativo STF nº 519.
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