TRABALHO, POLÍTICA E EDUCAÇÃO EM MEMÓRIAS
DOCENTES
Márcia Maria Alves Linhares1
Universidade Federal de Minas Gerais
Daisy Moreira Cunha2
Universidade Federal de Minas Gerais
Resumo: Este artigo pretende refletir acerca da importância dos processos produtivos na sociedade
do capital e os impactos na subjetividade dos sujeitos que nela participam, em especial no mundo
do trabalho docente, o que envolve rever questões relativas ao trabalho como realidade constitutiva
do gênero humano e das sociedades humanas, os sentidos e as condições da mobilização subjetiva
dos trabalhadores na atividade do trabalho, bem como aquelas referentes ao trabalho docente, as
políticas que o envolvem e suas condições de produção e reprodução. Demonstro a importância da
narrativa de experiências de trabalho em virtude das relações estabelecidas entre sujeitos, que
contribuem com a análise da realidade no seio de trabalho em que estamos submersos na atualidade.
A análise de Trabalho e Educação é feita por meio da aproximação entre os sentidos do trabalho na
contemporaneidade e a memória de professores.
Palavras-chave: trabalho – educação – memória – política – professores
Este artigo surgiu de inquietações que giram em torno de questões como trabalho,
política, educação e memórias. Perspectiva essa, que nos remete a análise sobre as relações
entre o trabalho e a realidade subjetiva dos professores; os sentidos do trabalho em
educação e os da organização escolar e de que maneira ambos se conjugam e subjugam,
visto que ele mobiliza saberes e valores dos educadores e nos incita rever relações com o
entorno sóciopolítico e cultural que esses trabalhadores estão inseridos.
Acreditamos na importância de nos valer das vivências e experiências cotidianas
individuais e coletivas vividas em meio a organizações (políticas sindicais, revoluções e
1
Mestranda em Educação na Faculdade de Educação/UFMG, na linha de pesquisa Política, Trabalho e
Formação Humana. Graduada em Pedagogia/UFPA. E-mail: [email protected]
2
Doutora em Filosofia pela Université de Provence, França. Professora do Programa de Pós-graduação da
Universidade Federal de Minas Gerais, Faculdade de Educação, e-mail: [email protected]
2
movimentos sociais como greves dentre outros) para discutir a (re)construção das
memórias, dialogando com suas realidades sociais e considerando o contexto no qual estão
inseridos. Importa saber o que se passou e como vivem, hoje, os sujeitos envolvidos na
educação de ontem, sua entourage social e política, analisando tais relações sociais e se (e
de que modo) as mutações ocorridas na estrutura societária, com ênfase em seus aspectos
políticos, mobilizaram a subjetividade destes trabalhadores, geradas no meio social em que
vivem, contribuindo para a construção de um “patrimônio”, o do trabalho, em particular, o
do trabalho docente. Chauí (1984, p. 55) confirma nossa fala afirmando que “[...] cada um
de nós é o herdeiro silencioso de uma história mundial que constitui o acervo da
humanidade e que a filosofia recolhe, rememorando o caminho feito pelo trabalho paciente
do negativo”.
Nessa perspectiva, observa-se, pois, a relevância do (re)encontro com o passado de
trabalhadores da educação, o (re)constituir da história profissional e pessoal desses sujeitos,
haja vista que acreditamos ser possível, através de diálogos com professores, a
(re)construção, assim, da memória coletiva de um determinado grupo acerca de seu
trabalho (HALBWACHS, 2006). Halbwachs (2006, p. 29) analisa o processo da memória
individual e coletiva, afirmando que a memória coletiva, que se caracteriza por ser
compartilhada por um grupo específico, pode, em uma determinada situação, auxiliar na
memória individual, ou seja, “[…] nossa confiança na exatidão de nossa recordação será
maior, como se uma mesma experiência fosse recomeçada não apenas pela mesma pessoa,
mas por muitas”, estando, dessa maneira, a memória individual interligada à memória
coletiva, visto que é nesta memória que encontramos a história vivida capaz de contribuir
para a compreensão da realidade na qual somos obrigados a (sobre)viver.
De acordo com Gagnebin (2006), a memória dos homens, durante muito tempo, se
construiu entre dois pólos. O primeiro diz respeito à transmissão oral viva, que é dada como
mais frágil e efêmera; e o outro é o da conservação do passado pela escrita, técnica que
talvez perdure por mais tempo e que desenha o vulto da ausência. Vale ressaltar, entretanto,
que esses dois pólos não asseguram a imortalidade do passado, nem tão pouco garantem a
certeza de eternidade dos fatos, mas, de algum modo, testemunham “o esplendor e a
fragilidade da existência”. Do interior dessa concepção, na medida em que se propõe
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analisar a memória de trabalhadores da educação, torna-se necessário esclarecer a categoria
trabalho, indicada como criadora e mantenedora da vida humana em suas múltiplas e
históricas necessidades, em que a educação surge como um princípio que contribui
diretamente para a manutenção e transformação do trabalho.
Diante do paralelo Trabalho e Educação podemos afirmar que a proposição do
trabalho advém do fato de o mesmo constituir-se como categoria estruturante, no interior da
concepção marxiana da história, da vida humana e, portanto, da própria sociedade, dado
que, segundo Marx e Engels (2005):
Pode-se referir a consciência, a religião e tudo o que se quiser como distinção
entre os homens e os animais; porém esta distinção só começa a existir quando
os homens iniciam a produção dos seus meios de vida [...]. Ao produzirem os
seus meios de existência, os homens produzem indiretamente a sua própria vida
material (Grifo meu).
A consciência nunca pode ser mais do que o Ser consciente e o Ser dos
homens é o seu processo da vida real. [...] Isto significa que não se parte
daquilo que os homens dizem, imaginam e pensam nem daquilo que são nas
palavras, no pensamento na imaginação e na representação de outrem para
chegar aos homens em carne e osso; parte-se dos homens, da sua atividade
real. [...] Não é a consciência que determina a vida, mas sim a vida que
determina a consciência. (Grifo meu).
Partimos, pois, da concepção que o trabalho acompanha o sujeito desde os
primórdios da humanidade, constituindo-se, assim, mediação indispensável entre o homem
e a natureza para o desenvolvimento de forças produtivas e relações sociais,
desenvolvimento esse que passou por diversas formas de organização político-econômicas
e culturais, ao longo da história. Nessa lógica, o trabalho é, e sempre foi, a condição
primordial para suprir as necessidades vitais do homem, sejam elas fisiológicas ou sociais,
capaz de prover o necessário para a sobrevivência humana. O homem transforma e produz
o espaço em que vive produzindo a si próprio e à sua vida por meio das relações que têm
origem no trabalho.
Entretanto, o trabalho vivido nas sociedades fundadas na lógica da propriedade
privada configura-se como trabalho alienado, representada pela divisão desigual do
trabalho que obriga o homem a ser subjugado, ficando alheio a sua vontade, ou seja,
alienado, em vez de ser ele, o próprio sujeito, a dominar essa relação homem/trabalho.
Segundo Marx e Engels (2005)
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(...) com a divisão do trabalho está dada, ao mesmo tempo, a contradição entre o
interesse de cada um dos indivíduos ou de cada uma das famílias e o interesse
comunitário de todos os indivíduos que mantêm o intercâmbio uns com os outros
e a verdade é que este interesse comunitário de modo nenhum existe meramente
na representação, como “universal”, mas antes de mais nada na realidade, como
dependência recíproca dos indivíduos entre os quais o trabalho está dividido.
Percebe-se que, no interior da lógica do capital, o trabalhador fica prejudicado
quanto a reflexão sobre sua condição, visto que, desumanizado, ele enfraquece e mortifica.
O sofrimento do trabalhador torna-se uma constante no exercício do trabalho. Esvai-se,
assim, a vitalidade, o prazer e a saúde do trabalhador (CODO, 1999). O controle e a
opressão tornam-se, pois, o viver do trabalhador docilizado, que aceita o sofrimento como
“preço” do continuar a existir.
Ao trabalhador, transmutado em peça da grande engrenagem que é o mundo do
trabalho, cabe, apenas, o fazer da parcela especializada do produto, a qual, regularmente,
não consegue ver acabada, nem, menos ainda, ter acesso à mesma. Assim sendo, as
“digitais” que imprime em seu trabalho são as de uma subjetividade danificada, pois que
externas a ele. Para Weil (2001, p. 56):
O trabalho não se faz mais com a consciência orgulhosa de que somos úteis, mas
com o sentimento humilhante e angustiante de possuir um privilégio outorgado
por um favor passageiro do destino, um privilégio do qual se excluem vários
seres humanos pelo fato mesmo de que nele temos, enfim um lugar. [...] O
progresso técnico parece ter falhado, uma vez que em lugar de bem-estar ele não
trouxe às massas senão a miséria física e moral em que as vemos se debater [...].
Assim, estamos habituados com a disseminação da historiografia posistivista que
marca os heróis da nossa sociedade, diverso dos hérois que aqui citamos. Diante dessa
lógica, nos vemos indicando uma outra concepção de história, marcada pela busca nos
bastidores das grandes mudanças, em que encontramos aqueles(as) que foram as bases dos
processos de transformação social pelo fato de que seus trabalhos comuns e vidas anônimas
deram luz aos caminhos percorridos pelos diversos atores sociais, nos permitindo uma
outra percepção acerca do mundo, que não aquela valorizada pelo mercado, e das
consequências impostas pelas mutações no mundo do trabalho.
Thompson (1978), no volume I da obra A formacão da classe operaria inglesa
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introduz sua análise a esse respeito na medida em que busca recuperar uma história
alternativa, o que supõe em certa medida polemizar com a ideologia dominante, dando
primazia a ação humana visto que acredita que as classes populares fazem história,
demonstrando seu posicionamento político. Segundo o próprio Thompson (1978, p. 57),
“Se estamos interessados na transformação histórica, precisamos atentar para as minorias
com linguagem articulada.”, o que significa levar em consideração a fala popular, a
consciência de classe, que para ele é a forma como as experiências dos sujeitos são tratadas
em termos culturais e a liberdade de consciência, que era o único grande valor que o povo
preservara. Ainda no fio condutor desse pensamento, podemos nos apropriar do que diz
Ciavatta (2002) a respeito dessa relação entre trabalho e memória segundo o autor.
Para o historiador inglês E. P. Thompson (1988), ‘o fazer-se da classe
operária é um fato tanto da história política e cultural quanto da história
econômica’. O que significa que tanto os trabalhadores participam como
produtores da riqueza social, quanto da criação dos padrões e valores
históricos e culturais que estruturam a vida individual e coletiva da sociedade
a que pertencem. Contudo, a memória preservada e o exame da história,
na sua visão mais corrente e tradicional, não registram o cotidiano
estafante e penoso de milhares de homens e mulheres, que arcam com os
trabalhos mais humildes ou com os mais embrutecedores. A memória
que se conhece e a história que se ensina é a dos príncipes, dos reis e da
nobreza, dos governantes das altas hierarquias e da administração dos
negócios do país, é a história dos ricos e dos ilustres” (CIAVATTA, 2002, p.
23. Grifo meu).
Assim, o presente artigo situa-se, pois, na fronteira que estabelece uma relação de
pertença entre o trabalho, o contexto educacional e a memória, buscando, ao demonstrar a
importância do entrecruzar as histórias de vida, ou seja, experiência de professores, analisar
de que modo as questões relativas à precarização do trabalho docente, questão que
constitui, hoje, pauta das discussões e disputas postas em relevo em virtude da
implementação, a partir dos anos 80, das políticas públicas educacionais, as quais
mercantilizaram, sobremaneira, a educação, impondo condições cada vez mais precárias ao
trabalhador da educação.
Enunciamos aqui, algumas questões de relevância para deixar como reflexão no que
diz respeito as experiência de educadores(as) e o mundo do trabalho tal como ele se
configura em sua estrutura capitalista: Quem e como eram os professores(as) antes das
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atuais políticas públicas? Como viviam? Como se organizavam no interior da escola e fora
dela? Como se relacionavam entre si e com o momento sociocultural? Sentiam (e de que
modo) a captura de suas subjetividades? Sob que aspectos as políticas públicas
educacionais decorrentes do Golpe Militar de 1964, que geraram os Acordos MEC-USAID,
a expansão de ensino (momento em que ocorre a instituição do salário-educação) ocorrida
lado a lado às políticas da contenção e da repressão? De que modo, enfim, as medidas de
ordem prática (como por exemplo, a Reforma Universitária, o Decreto-Lei 477/69, a Lei
5692/71), criadas no sentido de adequar a educação tanto aos traços da política econômica e
à ditadura militar (ROMANELI, 1978), puseram em circulação outras e novas
subjetividades àqueles que trabalhavam na docência?
Souza (2007) esboça uma síntese que nos parece interessante tendo em vista a
problematização da identidade/subjetividade dos professores no contexto educacional, dos
anos 60 à atualidade:
A partir dos anos 60, sob a égide das teorias psicológicas
desenvolvimentistas, que colocavam os alunos no centro do processo, ou das
correntes radicais que apregoavam os benefícios de uma anti-escola, os
professores foram ignorados. Deixaram, nessa época, de ter existência enquanto
sujeitos implicados na dinâmica educativa. Quando ressurgiram, nos anos 70, foi
para serem esmagados por um discurso que os acusava de contribuírem para a
reprodução e para a legitimação das desigualdades sociais, mediante a imposição
de um ensino identificado com a classe dominante ou mesmo de um mau ensino
identificado com os interesses da dominação de classes. Nos anos 80, a suspeita
justificou a multiplicação de discursos e das instâncias de controle dos
professores. A década que coincide com o atual governo, além do refinamento
das formas de avaliação, trouxe a novidade da inflação de diplomas, e a
conseqüente retirada dos professores do que lhes restava de autonomia de
julgamento, necessária para que certificados fossem dados de qualquer
maneira. Não se deve estranhar, assim, que os professores não reajam a um
discurso onipresente que subestima sua miséria e deslegitima sua missão
(Grifo meu).
No que diz respeito a temática que aborda memórias e subjetividades de
professores, pode-se dizer que representa uma contribuição, na medida em que retomando
as palavras de Bosi (1987, p. 42), certamente, fundamentada em Walter Benjamin, a arte de
contar histórias esteja em decadência:
Por que decaiu a arte de contar histórias? Talvez porque tenha decaído a
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arte de trocar experiências. A experiência que passa de boca em boca e que o
mundo da técnica desorienta. A Guerra, a Burocracia, a Tecnologia desmentem a
cada dia o bom senso do cidadão: ele se espanta com sua magia negra, mas calase porque lhe é difícil explicar um Todo irracional (Grifo meu).
No que concerne especificamente à arte de contar histórias, de trocar experiências,
propomo-nos a incitá-la mesmo considerando que a Educação no Brasil, principalmente,
nos anos 60, vivia, no dizer de Fazenda (1985), o pacto do silêncio. Enfim, compreender
uma parte de questões educacionais e sociais do ontem e do hoje, a partir da recolha de
narrativas e em meio às mutações ocorridas na estrutura societária e na subjetividade dos
narradores é que visualizamos como relevante na tríade trabalho, educação e memória.
Conforme Benjamim (1994) pode-se afirmar que tanto o narrador, por se permitir a
experiência, quanto o que ouve sua narrativa proporcionam-se a si próprios a matéria
narrada, quer seja a experiência própria, relatada ou ouvida.
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GAGNEBIN, Jeanne Marie. Lembrar, escrever, esquecer. São Paulo. Editora 34. 2006.
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ROMANELI, Otaiza de Oliveira. História da Educação no Brasil: 1930/1973. Petrópolis:
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