Processos de subjetivação e novos arranjos urbanos
João Leite Ferreira Neto+
RESUMO
O artigo aborda uma linha de pesquisa ainda incipiente na Psicologia: os processos de
subjetivação e o espaço urbano. Discorre sobre a tradição de se compreender a subjetividade
conquanto interioridade, e dissociada dos processos sociais, propondo, com base em
Foucault, uma compreensão da subjetivação como processo conectado à exterioridade do
espaço urbano. Aborda os novos processos de subjetivação presentes nos atuais arranjos
urbanos com realce para a nova segregação urbana realizada através da privatização de
espaços fechados e monitorados para residência, consumo, lazer e trabalho das classes
média e alta. Aponta novas direções da clínica psicológica numa perspectiva transdisciplinar
e política.
Palavras-chave: Subjetivação; espaço urbano; social; Foucault; transdisciplinar.
Subjectivizing processes and new urban dispositions
ABSTRACT
The aim of the present article is to talk about an investigation area that has just begun in the
Psychology Studies: the processes of subjectivizing and the urban space. Taking such matter
into account, it talks over the traditional way of understanding subjectivizing as interiority
and separated from the social processes, by proposing, based on Foucault, a conception of
subjectivizing as a process directly connected to the urban space exteriority. It approaches
the new trials of subjectivizing present in the actual urban arrangements with prominence for
the new urban segregation that comes from the privatization of closed spaces monitored for
residence, consume, leisure and work, of the middle and high class. The article also suggests
new directions to the clinical psychology in a transdisciplining and political perspective.
Key-words: Subjectivizing; urban space; social; Foucault; transdisciplining.
1
* Doutor em Psicologia Clínica PUC-SP, professor da Pontifícia Universidade Católica de
do Centro Universitário FUMEC.
Endereço: Prof. Aníbal de Matos, 442/102 Belo Horizonte – MG CEP: 30350-220e-mail:
[email protected]
Minas Gerais e
O tema processos de subjetivação e espaço urbano não pertence a uma disciplina
particular, mas convoca uma abordagem interdisciplinar ou mesmo transdisciplinar. Neste
artigo, porém, será abordado a partir da Psicologia, campo de formação do autor; não
obstante, não se pretende conferir-lhe uma perspectiva disciplinar.
Em primeiro lugar, uma constatação: existe uma distância histórica entre os estudos da
Psicologia e a temática urbana. Os processos psicológicos, seja qual for a formulação das
diferentes teorias psicológicas particulares, sempre foram investigados à margem dos
processos urbanos. Mesmo levando-se em consideração que as cidades foram tomadas como
objeto de investigação pelas ciências sociais não faz muito tempo, há que se reconhecer que a
Psicologia chegou tarde a esse debate. É importante levantar algumas hipóteses sobre as
possíveis razões desse fato.
A avaliação da relação entre subjetividade e cidade se insere no já centenário debate
entre o individual e o social. É um debate que atravessa a História da Psicologia desde Wundt
(1832-1920), o pioneiro na formulação de um projeto da Psicologia como ciência
independente.
Wundt recorreu às abordagens experimentais das ciências naturais para investigar o
objeto de estudo da Psicologia, segundo ele, a consciência como “experiência imediata”. Para
o estudo dessa experiência consciente, o método escolhido era a introspecção, o “exame do
próprio estado mental” (Schultz e Schultz, 1996, p. 82). Essa foi a faceta mais enfatizada da
contribuição desse pioneiro, em virtude do seqüente desenvolvimento, na América, da
Psicologia como ciência experimental. Entretanto, o próprio Wundt sempre manteve a
convicção de que sua ciência era ‘apenas em parte’ um ramo das ciências naturais e
desenvolveu um projeto de Psicologia Social, que envolve o estudo das funções mentais mais
complexas, como pensamento e linguagem, e o estudo dos processos sociais em outros temas,
como língua, religião, costumes, mitologia etc.
Apoiada na História, essa Psicologia Social não poderia ser estudada pelo método
experimental. Portanto, sua Psicologia fisiológica e sua Psicologia Social se apresentam como
projetos diferenciados e, de certo modo, desconectados. Essa não era uma dificuldade
exclusiva de Wundt. Segundo Farr, na virada do século XIX, era freqüente o interesse entre os
exponentes das ciências humanas e sociais sobre a relação entre o individual e o social; no
entanto, "sabia-se o suficiente para separar os dois objetos de estudo, mas não o bastante para
demonstrar como eles estavam inter-relacionados".(Farr, 2000, p. 61)
Esse tema apresentou-se como um problema fecundo no decorrer do século XX,
produzindo respostas diversificadas, instigantes, em alguns momentos gerando profícuas
interlocuções e, em outros, com impasses intransponíveis, mas indubitavelmente conduzindo
a significativos avanços. Isso permitiu, até mesmo, particularizar o debate entre subjetividade
e social, analisando a face do social mais concreta e próxima da nossa atual experiência
cotidiana, a cidade. Uma pequena digressão histórica permitirá uma melhor visualização do
tema.
Psicologia, interioridade, social
Que modos de articulação entre a subjetividade e o social podem ser pensados para
além do truísmo sempre repetido de que ‘o homem é um ser social’? Para além da simples
constatação de que o indivíduo humano vive em sociedade e é por ela influenciado? Essa
formulação, já amplamente capturada pelo senso comum, toma o indivíduo como um
conjunto fechado em interação, em trocas, com o ambiente social que lhe é externo. Uma
perspectiva que tem por solo a oposição entre interno x externo, no qual a subjetividade é
entendida como interioridade. Essa concepção remonta ao início da Filosofia moderna (ainda
que suas origens sejam mais antigas) quando o sujeito foi definido por Descartes como ‘coisa
pensante’ (res cogitans) que habita a interioridade do corpo, estando separado de toda
exterioridade.
A Psicologia não ficou alheia a essa tradição reflexiva do pensamento moderno e
Wundt compreendeu seu objeto, a consciência, conquanto um mundo interno ao qual se tem
acesso por meio da introspecção. Essa noção, da consciência compreendida como
interioridade, fundamentou o nascimento da Psicologia como disciplina autônoma. De certo
modo, toda a história da Psicologia foi influenciada pela assimilação da subjetividade à noção
de interioridade. Uma das conseqüências dessa formulação foi a tendência de segmentação
dos estudos psicológicos em relação aos estudos sociais, ou seja, uma divisão disciplinar. A
disciplina da Psicologia toma, assim, seu objeto de estudo de modo desconectado em relação
ao espaço social, sofrendo, portanto, de um solipsismo desde seu nascimento como ciência.
Evidentemente, a passagem pelo século XX não deixou incólume essa equivocada
divisão. Esse século de mudanças profundas e velozes tornou patente a associação entre
experiência social e experiência subjetiva, demonstrando que entre a vida social e a vida
subjetiva existe uma relação fundamental. Fez-se assim necessário, por parte dos psicólogos, a
problematização dessa relação. Deter-me-ei em duas possíveis versões dessa relação.
A primeira dessas versões, ainda que reconheça a relação necessária entre o social e o
subjetivo, ainda trabalha com a oposição entre exterioridade e interioridade, entendendo que
nossa subjetividade é formada com base nas influências sociais. Utiliza noções como
introjeção ou socialização e postula a existência de um espaço interior influenciado, ou
mesmo formado, pelo espaço social ou cultural. Nesse caso, o social (exterioridade) constitui
a subjetividade (interioridade), numa relação de causalidade. Esse modelo de pensamento
pode ser complexificado valendo-se de uma compreensão dialética desses processos, na
medida em que essa interioridade identitária constituída passa a operar como agente de
transformação da exterioridade social, num movimento contínuo e dialético. Em qualquer um
dos casos, o dualismo interno x externo é mantido.
É outra a concepção de subjetividade que gostaria de abordar aqui. A subjetividade
entendida como emergência histórica de processos, não determinados pelo social, mas em
conexão com os processos sociais, culturais, econômicos, tecnológicos, midiáticos,
ecológicos, urbanos, que participam de sua constituição e de seu funcionamento. A noção de
causalidade dá lugar à de concomitância, de conexão rizomática ou causalidade imanente
(como propõem Deleuze e Guattari). Foucault fala de ‘desmultiplicação causal’, que consiste
numa análise dos acontecimentos, segundo os processos múltiplos que os constituem
(Foucault, 2003, p. 339). Aqui a idéia de interioridade identitária cede lugar à de
processualidade em permanente transformação e à pluralidade de sua constituição. Por isso, a
noção de processos de subjetivação é uma formulação que atende melhor a esse enfoque do
que a noção de sujeito. Interessa pensar a subjetividade mais como processo que como
estrutura. E também, como emergem, concomitantemente, novos modos de subjetivação ante
os novos arranjos, na cidade contemporânea.
Foucault e a genealogia dos modos de subjetivação
Foucault, um dos autores que trabalha com base nessa perspectiva, dedicou os últimos
anos de sua vida à elaboração de uma genealogia do sujeito de desejo na Modernidade.
Sujeito de desejo entendido como uma configuração histórica de um modo de subjetivação
particular da Modernidade, e não como uma estrutura essencial do ser humano. Portanto, o
sujeito de desejo não é universal, mas uma construção histórica. Uma invenção particular e
contingente, da qual até podíamos prescindir. O propósito de suas pesquisas era de traçar uma
genealogia “dos diferentes modos pelos quais, em nossa cultura, os seres humanos se
tornaram sujeitos” (id., 1995, p. 231). Sua pergunta era: como, no Ocidente, o indivíduo
moderno podia fazer a experiência dele mesmo conquanto sujeito de desejo? E, para isso,
"seria indispensável distinguir previamente a maneira pela qual, durante muitos séculos, o
homem ocidental fora levado a se reconhecer como sujeito de desejo" (id., 1984, p. 11). A
preocupação de Foucault não se detinha na análise do estado de coisas. Mais que isso, seu
alvo era apontar e expor a determinação eminentemente contingente de nossos modos atuais
de subjetivação e a possibilidade sempre presente de construção de novos processos de
subjetivação numa perspectiva ético-política. "Talvez, o objetivo hoje em dia não seja
descobrir o que somos, mas recusar o que somos [...]. Temos que promover novas formas de
subjetividade através da recusa deste tipo de individualidade que nos foi imposto há vários
séculos".(id., 1995, p. 239)
Seu ponto de partida para essa pesquisa foi a Antigüidade greco-romana. Ao voltar-se
para os gregos e romanos, seu interesse era menos o da pesquisa histórica da origem dos
processos de subjetivação e mais apresentação de uma alternativa ético-política para nossa
atualidade. Os gregos inventaram, em política, a relação entre homens livres que governam
homens livres, sendo para isso necessário que governassem a si mesmos, inventando também
uma subjetivação, na qual cada indivíduo se constitua a si mesmo como uma obra de arte (cf.
Deleuze, 1992, p. 140). Subjetivação como construção de uma estética da existência. Uma
subjetividade construída na relação com a cidade, a pólis, marcada, portanto, pela
exterioridade e distinta de nossa experiência de interioridade psicológica.
Um princípio geralmente admitido é o de que quanto mais for visado,
quanto mais tiver ou se quiser autoridade sobre os outros, mais se
buscará fazer de sua vida uma obra resplandecente, cuja reputação se
estenderá longe por muito tempo, mais será preciso se impor, por
escolha e vontade, princípios rigorosos de conduta sexual [...]. A
temperança [que pertence] àqueles que têm posição, status e
responsabilidade na cidade. (Foucault, 1984, p. 57)
Importa lembrar que Foucault não quer demonstrar como a cidade grega determinou
modos de subjetivação ético-estéticos, mas como ela faz parte de suas condições de
emergência e funcionamento. Encontramos aqui uma abordagem dos processos de
subjetivação associados ao conjunto dos fluxos urbanos.
Da pólis grega à cidade contemporânea as mudanças são imensas, proporcionais às
mudanças da subjetivação ético-estética do homem grego à subjetivação individualizada,
narcísica e identitária do sujeito de desejo moderno. Temos no contemporâneo um modo de
subjetivação dominante a que poderíamos chamar de modo individualizado, um conjunto
identitário, fechado, interiorizado, construído, fundando-se em processos sociais e históricos
desde os gregos, passando pelo Cristianismo, até chegar à Modernidade.
É sobre esse modo de subjetivação hegemônico em nossa sociedade urbana que os
grandes autores da história da Psicologia dedicaram suas investigações e pesquisas. E, na
maior parte dos momentos, essa subjetividade individualizada foi des-historicizada e tomada,
equivocadamente, como parâmetro definitivo da natureza humana. Um dos objetivos da
genealogia foucaultiana do sujeito de desejo moderno foi efetuar a desnaturalização dessa
versão de subjetividade por meio da demonstração de sua formação historicamente datada.
Com Foucault, entre outros, aprendemos que não existe uma forma padrão “natural” da
subjetividade, mas ela é variável e emerge em conexão com processos históricos, sociais,
políticos, econômicos, urbanos num contínuo vir a ser marcado pela contingência e nunca por
um determinismo derradeiro. Mais do que isso, que nossa presente individualidade identitária
seja, talvez, um modo de subjetivação que não mais responda às configurações do
contemporâneo presente nos novos arranjos urbanos e esteja em via de ser sucedida por novos
modos de subjetivação.
Novos arranjos urbanos e novos modos de subjetivação
Nessa passagem a caminho da produção de novos modos de subjetivação, não
possuímos nenhuma garantia de avanço ou evolução. Podem advir subjetivações constituídas
por práticas de assujeitamento ao atual capitalismo de sobreprodução, do tipo ‘sujeito
consumidor’, por exemplo. Afinal, as forças sociais que administram o capitalismo atual já
entenderam há muito tempo que a produção de subjetividade é tão importante quanto a
produção material dos bens de consumo e investiram intensamente nisso (cf. Guattari e
Rolnik, 1986). Por isso, numa época de redução de custos de produção, os investimentos em
publicidade nas grandes empresas são sempre crescentes. Encontramos esse modo de
subjetivação de assujeitamento presente tanto naquele que consome avidamente bens
materiais quanto no que consome próteses químicas como Viagra, Xenical, Prozac, Botox,
buscando transformar-se num indivíduo sexualmente potente, magro, imune à tristeza e sem
rugas. (Pereira, 2002)
Mas podem também ser subjetivações constituídas por práticas de liberdade mediante
o constante descompromisso com as formas instituídas de experiência para a invenção de
novas formas de vida. Aqui os exemplos são mais delicados, uma vez que envolvem
processos instituintes que não se instituem de modo permanente. Numa perspectiva mais
geral, podemos mencionar o que ficou conhecido como Novos Movimentos Sociais, que
emergiram no Brasil, na segunda metade da década de 1970, identificando “novas formas de
opressão que extravasam as relações de produção” e estendendo a concepção de política para
o terreno da subjetividade (Santos, 1997). Movimentos de associações de bairro, de grupos
estudantis, de mulheres, das Comunidades Eclesiais de Base, de luta pela democracia e
direitos sociais básicos, entre outros, transformaram o modo de se fazer política na cidade e
no campo, afirmando uma maneira de subjetivação que liga prática política e vida cotidiana.
Retomando o tema proposto, como podemos caracterizar esses ‘novos arranjos
urbanos’? Vários elementos são indicados pelos estudiosos do assunto. Alguns enfatizam a
experiência da velocidade dos deslocamentos na cidade que transforma o espaço urbano num
lugar de passagem (Sennett, 2001). Outros, a progressiva substituição na cidade do meio
ambiente por mecanismos tecnológicos de controle e a midiatização do urbano pelos novos
meios de comunicação (Pelbart, 2000). Gostaria de enfatizar aqui o que os estudiosos têm
chamado de “novo regime de desigualdade e marginalidade urbana” após o declínio do
fordismo (Wacquant, 2001) ou de “nova segregação urbana” com a privatização de espaços
fechados e monitorados para residência, consumo, lazer e trabalho das classes média e alta.
(Caldeira, 1997)
A desigualdade estabelecida no capitalismo hodierno possui em terras brasileiras uma
face rude. O espaço urbano materializa essa nova segregação, erguendo muros, portões e
guaritas e demarcando uma privatização do espaço urbano. Práticas cotidianas estão também
conectadas ao processo de segregação presente no modo de andar nas ruas, de fechar os
vidros dos carros, ou no olhar sempre desconfiado para os estranhos. Novos arranjos urbanos
associados à segregação, que constituem, ao mesmo tempo, novos modos de subjetivação.
Medos, ódios, insensibilidades, indiferença. Novas maneiras de viver, sentir, perceber e
interpretar os encontros na cidade. As classes média e alta passam a identificar o espaço
público como perigoso e buscam organizar os encontros públicos por meio da seletividade e
separação. A segregação torna-se, assim, complementar à violência urbana.
Por um lado, o medo do crime é usado para legitimar medidas
progressivas de segurança e vigilância. Por outro, a produção cada vez
mais intensa de falas sobre o crime passa a ser o contexto no qual os
habitantes geram e fazem circular estereótipos, classificando
diferentes grupos sociais como perigosos e, portanto, como grupos a
serem temidos e evitados. (Caldeira, 1997, p. 174)
Tudo isso produz um processo de subjetivação coletivo e bipolar, centrado na
violência e insegurança retroalimentado por ambos os pólos, reforçando a desigualdade e o
distanciamento. Cabe a nós, sufocados por esses fluxos de opressão coletiva, a recusa desses
processos hoje dominantes em nosso cenário urbano? Que outras possibilidades de
apropriação do espaço urbano podemos pensar e viver nesse contexto, fora da equação
diferença/desigualdade/segregação? Seremos capazes de tomar o heterogêneo como simples
diferença e não mais como uma desigualdade irreconciliável? Dificilmente a alteração desse
estado de coisas se dará sem o desenvolvimento de outras formas de apropriação do espaço
urbano. Estudos apontam para a experiência do desenvolvimento de práticas democratizadas,
localizadas na melhora das condições de vida das populações pobres como sendo um fator de
reversão da lógica presente de segregação e violência (ibid.). Nesse caso, são movimentos
coletivos de luta popular os agentes fundamentais das mudanças e não somente as ações de
planejamento urbano estatal.
Psicologia, exterioridade, novas práticas clínicas
Não foi sem razão que os exemplos anteriormente discutidos foram da esfera da vida
coletiva. A estética da existência, desenvolvidas na Grécia e estudadas por Foucault (1984),
não deve ser entendida como uma ação do indivíduo sobre si mesmo desconectado de
processos coletivos. Afinal, o que estava em questão era o governo de si associado ao governo
da pólis. A construção contemporânea de novos modos de subjetivação de caráter libertário
passa, necessariamente, pela articulação com práticas inseridas no espaço urbano.
Por essa razão, cabe a nós, psicólogos, atentar para os riscos da psicologização de
fenômenos, que ainda sejam vividos na ‘interioridade’ íntima, e possuem uma etiologia
imanente aos processos acima descritos. Vemos na atualidade o crescimento dos chamados
transtornos alimentares (anorexia e bulimia), dos transtornos de ansiedade (pânico, fobia
social etc.) e da dependência de substâncias psicoativas (em especial as toxicomanias). Nesses
casos, a mudança do perfil epidemiológico das modalidades de sofrimento mental tem uma
associação evidente com os processos sociais e urbanos na contemporaneidade. Tomando
como exemplo o transtorno de pânico, a psicanalista Suely Rolnik o entende como um
analisador da problemática do nosso tempo, quando nos encontramos mais expostos a
movimentos de desestabilização ante as intensas e diversificadas mudanças que hoje
experimentamos no espaço urbano. O transtorno de pânico refletiria, então, a vivência de um
abalo que atinge a própria vida, mais intenso que o abalo egóico, experimentado pela histeria
no final do século XIX. É como se o próprio organismo pudesse perder sua organicidade e
enlouquecer levando à morte biológica (Rolnik, 1995). Por essa razão, tratar dos quadros de
pânico, cada vez mais freqüentes, tomando-os como vivência puramente intra-subjetiva,
desligada dos atuais processos urbanos, acarreta conseqüências clínicas, teóricas e políticas. A
individualização e interiorização do sintoma encarcera no domínio da psicopatologia uma
experiência patentemente psicossocial. Por essas razões, diante dos novos arranjos urbanos,
nós, psicólogos, somos convocados a construir outra prática clínica.
Que elementos compõem essas novas práticas clínicas? Em primeiro lugar, um
pensamento transdisciplinar. Se compreendemos a subjetividade como um processo histórico,
constituído e em conexão com variados fluxos, não podemos desenvolver uma clínica num
enfoque estritamente disciplinar. Nenhuma disciplina particular, desenvolvida pelo autor ‘psi’
mais brilhante, pode isoladamente responder apenas por si mesma pela complexidade atual
dos processos de subjetivação. O diálogo interdisciplinar deixou de ser um recurso possível
para se tornar uma exigência imprescindível. Em segundo lugar, na medida em que
entendemos a ligação entre os processos de subjetivação e o espaço urbano, a clínica deixa de
ser uma experiência de um âmbito puramente íntimo e se amplia para um âmbito político,
transcendendo, até mesmo, o território sedentário do consultório individual. Pensar a
subjetividade como produto de práticas históricas aponta para uma clínica atravessada pela
pólis. Portanto, desde sempre, uma clínica política.
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Primeira decisão editorial em: novembro / 2003
Versão final em: fevereiro / 2004
Aceito em: maio / 2004
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