ARTIGO / ARTICLE
Costa, L. A. F. & Pereira, A. M.
Expressão da Tristeza em Camada Popular Urbana de
Salvador, Bahia, Brasil1
The Expression of Sadness in a Working Class Bairro in Salvador,
Bahia, Brazil
Lívia Alessandra F. da Costa2
Antonio Marcos Pereira2
COSTA. L. A. F & PEREIRA. A. M. The Expression of Sadness in a Working Class Bairro in
Salvador, Bahia, Brazil. Cad. Saúde Públ., Rio de Janeiro, 11 (3): 448-455, Jul/Sep, 1995.
This paper examines the peculiarities of the expression of emotion in a poor neighborhood
from Northeastern Brazil, the bairro of Nordeste de Amaralina, in Salvador, Bahia. Focusing
on the expression of sadness, we built a scheme in which to understand how the informants
perceive, identify, and deal with this emotion in the course of their daily lives. We attempted
to reach an understanding of the wavs people in the bairro interpret sadness. In order to
accomplish this goal. we built a semantic network which revealed three main clusters of
emotional expression: the inner set, the bodily set, and the interactional set. We came to
realize the various superpositions benween the universe of emotional expression and the
local concept of person.
Key words: Experience; Meaning; Emotion; Sadness
INTRODUÇÃO
Tradicionalmente domínio quase que exclusivo dos psicólogos, apenas recentemente o tema
das emoções passou a merecer maior atenção
entre os cientistas sociais (Shweder & Levine,
1984; White & Kirkpatrick, 1985; Duarte, 1986).
Afastando-se dos conceitos que repousavam na
idéia de emoção enquanto fenômeno eminentemente físico-biológico, estudos mais recentes
propõem que a emoção não é algo menos cultural nem mais privado do que, por exemplo, as
crenças. Esta idéia é comungada pelos autores
1
A presente discussão é resultado de dois principais projetos
de pesquisa: “Social and Cultural Landmarks for
Community Mental Health in Bahia, Brazil” coordenado
pelo Dr. Naomar de Almeida Filho; Dr. Carlos Alberto
Caroso; Dr. Paulo César Alves a Dra. Míriam Cristina
Rabelo, com a colaboração do Douglas Hospital e
financiamento do IDRC Canadá; “A lógica do Itinerário
Terapêutico” coordenado pelo Dr. Paulo César Alves, com o
apoio do CNPq e a Organização Panamericana de Saúde.
2
Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas,
Universidade Federal da Bahia. Estrada de São Lázaro,
s/n, Salvador, BA, 40210-730, Brasil.
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que argumentam que emoção é tomada como
significativa pela existência de um contexto interpretativo. Emoção é, sobretudo, cognição;
interpretação sempre culturalmente informada,
em que temos um ator cujo corpo, o “self’ e a
identidade são domínios imediatamente envolvidos. Os atores negociam afetos assim como
qualquer outro aspecto de suas vidas. Assim,
alegria ou tristeza são reconhecidas enquanto
tais de acordo com um contexto específico. Em
outras palavras, as emoções não são reconhecidas apenas por sua sensação (feeling), mas
através de seu contexto. Esta posição compreende que emoções não são incontroláveis, pois
existe um controle de sensações (feeling rule)
que determina quando esta será apresentada. A
manifestação da emoção é, sobretudo, uma
transação simbólica. Podemos dizer, então, que
diferentes contextos sócio-culturais têm controles de sensações diferenciados, como têm
diferentes ocupações, crenças, períodos históricos (Fine, 1988).
O debate está longe de se esgotar. Tais considerações têm sido contestadas por aqueles
que sugerem que emoções possuem particulaCad. Saúde Públ., Rio de Janeiro, 11 (3): 448-455, jul/set, 1995
Depressão
ridades psicológicas reais. A busca pela identificação de uma emoção tem lugar em pressupostos implícitos e explícitos das teorias sobre as
emoções veiculadas pela Psiquiatria e Psicologia Ocidentais. Na verdade, essas teorias tomam
como pressuposto básico, dentre outros, que
as profundezas da consciência constituem a
essência da realidade do indivíduo. O problema, em suma, reside na questão de como se utilizar conceitos Ocidentais para reconhecer e
alcançar as distinções entre as emoções existentes em contextos diversos. Algumas culturas fazem referência a sua vida emocional enfatizando o coração, o fígado, o intestino. O
coração pode ser concebido como o centro do
ser e o sangue como o sopro da vida. A tristeza,
por sua vez, está relacionada às batidas do coração. Entre os Amhara, da Etiópia (Young,
1986), o coração é hipersemantizado, tomado
enquanto uma referência constante no discurso sobre a emoção. O coração é a fonte explicativa de doenças e estados emocionais indesejáveis; pulsa a vida para os demais órgãos,
além de constituir-se no centro do intelecto.
Qualquer distúrbio aí instalado pode conduzir
à confusão mental. Neste caso, notamos que
as emoções não são tomadas como um domínio estanque, desvinculado da vida do pensamento. A idéia é, então, não tomar emoção e
pensamento como categorias em oposição a
priori. Ao invés disso, tomamos emoções
como pensamentos incorporados, ou seja, parte de um processo cognitivo inerente a toda
vida mental e, portanto, mediado pela cultura
(Rosaldo, 1984).
Segundo Levy (1984), ao fazermos uma revisão do tema na literatura, encontramos uma variedade de perspectivas, muitas vezes contrastantes e até mesmo opostas. Apesar disto,
evidencia-se que, até bem recentemente, o tema
não tem sido uma preocupação central entre os
cientistas sociais. Assim, olhando para trás, temos em um pólo as posições mais biologizantes,
que enfatizam o aspecto fisiológico/orgânico da
expressão das emoções e, portanto, seu caráter
eminentemente universal; noutro, assunções
mais culturalistas, que tomam a cultura como tendo um papel fundamental na própria gênese de
um conjunto de representações emocionais. Há,
evidentemente, uma tensão entre os universalistas e os relativistas (Lutz & White, 1986).
Cad. Saúde Públ., Rio de Janeiro, 11 (3): 448-445, jul/set, 1995
Entretanto, tais perspectivas interpenetram-se
em vários níveis, compondo um vasto gradiente de um extremo a outro da questão, que passa
pela possibilidade de tomar-se a emoção como
um campo cognitivo – nem mais, nem menos
importante que o domínio do pensamento
(Shweder & LeVine, 1984).
Ao falarmos em campo cognitivo intentamos
dar conta de um domínio no qual estão implicadas caracterização e explicação. Todavia, ao salientarmos caracterização e explicação não pretendemos nos remeter a universais, ou desvendar a partir dos dados empíricos de nossa investigação elementos que apontem para similaridades nucleares com relação à expressão e significação do mesmo problema em outras culturas
ou grupos sociais. Ao contrário, é nosso interesse ressaltar a especificidade desse campo
cognitivo, tomando tanto as caracterizações dos
informantes quanto suas atribuições de causalidade e estipulações de significado enquanto
emuladas pelas particularidades sócioculturais
do contexto analisado.
TRISTEZA, CONTEXTO E SIGNIFICADO
Neste trabalho buscamos compreender o significado cultural de uma categoria emocional
específica, a “depressão”, apegando-nos às interpretações desta emoção dadas em um contexto social concreto. Com este propósito, deslocamos nosso locus de observação do comportamento individual (isto é, a dimensão estritamente psicológica) para os processos interativos utilizados pelos sujeitos para construir
significados na vida cotidiana. Assumimos que
a emoção revela-se em símbolos, construídos
e negociados publicamente e, nesse sentido,
deixa de ser exclusivamente concernente a uma
esfera privada, individual (Geertz, 1984; Levy,
1984; White & Kirkpatrick, 1985; Fine, 1988).
A pesquisa envolveu a coleta de narrativas
sobre casos concretos de doença mental identificados por habitantes locais a partir de uma lista
de 12 comportamentos problemáticos. A lista foi
baseada em 10 categorias comportamentais propostas pelo psiquiatra canadense H. B. M. Murphy cobrindo o espectro de comportamentos
problemáticos tomados como universais e, ao
mesmo tempo, potencialmente relevantes para a
psicopatologia. Dentre estes temos o registro
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Costa, L. A. F. & Pereira, A. M.
depressão, cujo conteúdo é “que vive chateado, que a vida não presta, que é um fracasso, é
negativo, acha sempre defeito nos antigos, isolado, mal-amado, fica sem ânimo, não come, o
olhar fica sem brilho, fica angustiado, perde a
vontade de viver”. Na primeira fase da investigação estes registros foram adaptados ao idioma local dos moradores do bairro. Posteriormente, alguns informantes-chave identificaram pessoas que apresentavam tais comportamentos e relataram suas histórias. O desenho metodológico foi desenvolvido pelos Drs. Ellen
Corin & Gilles Bibeau (Universidade McGill/Universidade de Montreal). Tal metodologia tem sido
utilizada em uma pesquisa comparativa internacional envolvendo, além do Brasil, grupos de investigadores do Peru, índia, Mali e Costa do Marfim.
Estabelecida talvez de forma mais eloqüente nos trabalhos de Geertz (1978, 1984), está a
proposição de que o significado é um fato público e que a vida pessoal toma forma em termos culturais. Além disso, os sujeitos estão
necessária e continuamente envolvidos no processo de apreensão, interpretação e transformação dos modelos simbólicos criados socialmente. É, portanto, através das narrativas dos
sujeitos que reconstroem situações cotidianas
de lide com a depressão e com os deprimidos,
que podemos flagrar em exercício o aparato
cultural sobre a experiência social a afetiva.
Assim, essas narrativas são resultantes de
“processos interativos e comunicativos
através dos quais os indivíduos constroem
uma rede de significados para as suas
experiências aflitivas (...) Nesse aspecto, as
estruturas cognitivas devem ser
criticamente analisadas enquanto resultado
de condições sociais da produção do
conhecimento” (Alves, 1994: 98)
Que signos caracterizam uma certa emoção?
Como interpretações e reações evidenciam-se no
discurso sobre a emoção no interior de um grupo específico? Geertz (1978, 1984) nota que não
é necessário buscar na privacidade individual a
compreensão das crenças a símbolos de uma
cultura. Segundo ele, seus significados podem
ser encontrados na praça do mercado, por exem450
plo. Ampliando o escopo desta premissa, o mesmo pode ser dito a respeito das emoções. Significados partilhados socialmente dão conta, em
grande medida, das implicações das emoções
para os sujeitos. Ao mesmo tempo, estas emoções são, em parte, uma construção social da
situação na qual os sujeitos estão envolvidos.
Outra sugestão de Geertz, cujas implicações
também nos interessa explorar aqui, diz respeito à sua insistência em que a noção de pessoa de uma cultura consiste em um excelente
veículo para proceder-se uma aproximação das
categorias nativas de pensamento – as interpretações que ele chama, apropriando-se da
terminologia cunhada por Kohut (apud Geertz, 1984), de “experience-near concepts”
(conceitos próximos da experiência). Um
“experience-near concept” é um conceito
utilizado naturalmente e sem esforço para definir o que o sujeito percebe, sente ou pensa,
e que pode ser compreendido prontamente por
outros envolvidos no mesmo contexto: um
conceito no qual as idéias e as realidades que
estas mesmas idéias informam estão natural e
indissoluvelmente ligadas.
As abordagens sócio-antropológicas parecem
insistir, então, na tentativa de compreender como
os indivíduos entendem a si mesmos e como
vêem suas ações e comportamentos sendo, de
alguma maneira, as criações dessas compreensões de si mesmos. Há a sugestão de que devemos apreciar como tais compreensões crescem,
não de uma essência interior – relativamente
independente do mundo social –, mas de uma
experiência de significados, imagens e laços sociais em que todas as pessoas estão inevitavelmente envolvidas.
Elaborando mais especificamente dentro desta
perspectiva, Levy (1984) propõe que questões
empíricas referentes ao domínio da emoção são
melhor tratadas quando se parte de etnografias
centradas na pessoa. Assim, poderíamos perceber quais emoções são hipercognizadas e quais
são hipocognizadas – definindo, dessa forma,
emoções que receberam uma maior ou menor elaboração naquela cultura. Referindo-se ao seu
trabalho no Taiti, Levy diz que
“Várias formas de raiva, por exemplo, são
nomeadas; há palavras específicas para
irritabilidade, para ira, para um sentimento
Cad. Saúde Públ., Rio de Janeiro, 11 (3): 448-455, jul/set, 1995
Depressão
‘ordinário’ de raiva. Há muita doutrina a
respeito do que fomenta a raiva nas relações
pessoais, como a raiva age no indivíduo, e
como se deve avaliar a raiva. A raiva é, com
relação a outras emoções, hipercognizada,
isto é, há um vasto número de esquemas
fornecidos pela cultura para interpretar e
lidar com a raiva”
(Levy, 1984: 218, tradução dos autores)
Notamos que se, por um lado, sociedades
como a ocidental moderna estão definidas a
partir de uma ênfase maior na “interioridade” individual, há outras em que são ressaltados os aspectos coletivos do indivíduo, que
é tomado como o nexo parcial de processos
mais amplos. Esta ênfase dada, ora na “interioridade”, ora nos aspectos mais coletivos
nos aponta para a questão primordial da discussão: como conceber e trabalhar a emoção
do ponto de vista antropológico? Ou ainda:
qual a contribuição que a antropologia pode
oferecer no que diz respeito às abordagens
tradicionais do tema? Percebendo que emoções não são coisas, mas processos que são
compreendidos com referência a cenários
culturais e às associações que esses cenários evocam, os recursos interpretativos atualmente utilizados pelas Ciências Sociais para
lidar com esta questão são aqueles que partem, sobretudo, da ênfase no conceito nativo
de emoção. Há o argumento de que a chave
para dar conta de tal problemática é o desenvolvimento de um conceito rico de cultura;
interpretativista, que possibilite mudanças na
maneira através da qual pensamos a emoção.
Podemos identificar, na verdade, que toda a
discussão gira em torno de questões teóricas mais gerais: as oposições entre o variável e o universal; o relativo culturalmente e
o relativo biologicamente etc. O problema
reside, ainda, na distinção, peculiar ao universo ocidental, feita entre pensamento e sentimento, concebidos enquanto coisas de naturezas diversas. O pensamento é padronizado pela cultura e mesclado com os sentimentos. Sugere que da mesma forma que o pensamento não existe isoladamente, a vida emotiva é culturalmente ordenada e não existe
isolada do pensamento (Rosaldo, 1984).
Cad. Saúde Públ., Rio de Janeiro, 11 (3): 448-445, jul/set, 1995
CENÁRIO, ATORES E DISCURSOS
O ponto de partida de nossa análise é, após
uma breve descrição etnográfica, empreender um
levantamento dos termos utilizados por nossos
informantes para referir-se ao domínio específico da experiência que estamos investigando
(Good & Good, 1977). O contexto estudado é
um bairro de camada popular de Salvador, Bahia,
Nordeste de Amaralina (pesquisa similar tem
sido desenvolvida em outro bairro de camada
média/média alta de Salvador, a Pituba, para possibilitar uma análise comparativa; os resultados
da pesquisa na Pituba estão ainda em processo
de análise). O nordeste de Amaralina é um bairro que possui aproximadamente 80.000 habitantes residindo em pouco mais de 14.000 casas
residenciais. Uma alta percentagem de seus moradores, cerca de 60%, é constituída por migrantes rurais. Esse bairro está dividido em três regiões: Vale das Pedrinhas, Santa Cruz e Nordeste de Amaralina propriamente dito. A pesquisa
esteve concentrada basicamente nesta última região, que foi ocupada nos fins da década de 1940.
O processo que intensificou a ocupação do Nordeste de Amaralina foi estimulado pelo grande
fluxo migratório de pessoas da zona rural. Antes
disso, o bairro foi moradia dos ex-combatentes
da Segunda Guerra Mundial.
Observar as peculiaridades da vida cotidiana das
áreas de pesquisa é uma das chaves para compreender o universo de relações locais. Além disso,
permite apreender como e o porquê se dão determinadas interações. A partir desta construção,
baseada no discurso dos informantes, acreditamos
poder avaliar com maior cuidado a complexidade
da rede de fatores intervenientes no processo da
construção social .da emoção. A partir daí foi
possível construir um pano de fundo de onde emergiram as experiências da “depressão”, em toda sua
riqueza lexical e semântica.
O Nordeste de Amaralina é um típico bairro de camada popular urbana: barracos pequenos, na maioria possui apenas um cômodo que
abriga, às vezes, até vinte pessoas, insuficiência na rede elétrica e rede de abastecimento de
esgoto e água, carência de equipamentos urbanos. xistem algumas escolas particulares, poucos ginásios, creches e postos de saúde.
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Costa, L. A. F. & Pereira, A. M.
Quando há problemas de saúde, a população
atua diretamente, atendendo, como pode, às suas
próprias demandas. Quanto às instituições, há
igrejas e templos de várias religiões, clubes e
associações de bairro; os espaços públicos não
estão devidamente planejados. Estas constituem
as maiores queixas dos habitantes locais. Somam-se a estes problemas, outros como carência generalizada de recursos econômicos, fome
que já fazem parte da história do Nordeste de
Amaralina e de cada um de seus habitantes.
Como não existe uma oferta regular de emprego e mão-de-obra especializada, o subemprego
caracteriza-se como uma alternativa mais imediata. Os homens empregam-se geralmente como
porteiros de prédios nos bairros de classe média alta próximos do Nordeste de Amaralina. As
mulheres, quando não dedicadas às atividades do
lar, são comumente vendedoras de acarajé, lavadeiras ou empregadas domésticas. O trabalho das
crianças complementa a renda familiar. No bairro há um alto índice de violência e comércio de
drogas, principalmente maconha. As redes de
relação de vizinhança são bastante fortes e o espaço da rua é muito ocupado, devido ao reduzido tamanho das habitações e as formas de sociabilidade relacionais e locais, tornando-se, assim, uma extensão da casa. Há constantemente a
participação dos vizinhos nas decisões familiares, quer seja de busca de tratamento para eventos de doença, quer seja na preparação de eventos comemorativos.
Deste contexto extraímos uma rede de significados associados à “depressão” (Figura 1).
FIGURA 1. Depressão: Rede Semântica
TRISTE
ISOLADO
Angustiado
Desgostoso
Tristonho
Invocado
Caladão
Amuado
Amedrontado
Agoniado
DEPRIMIDO
• se joga no desprezo
• chora muito
• se entrega
• não quer comer
TRISTE
• não dorme
• fica fraco
• pede a morte
• fica nervoso
• caladão
• fica sem
energia
• se joga no desprezo
• fica indisposta
• não liga para nada
• não come
• fica desgostoso
• chora muito
• se afasta
• fica triste
• não canta
ISOLADO
• não quer ver ninguém
• não ri
• tem vontade de sumir
• recuado
• não fala
• não gosta de amigo
• não levanta
• se tranca nuna
concha
• lamenta
• fica quieto
• fica deitada
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Cad. Saúde Públ., Rio de Janeiro, 11 (3): 448-455, jul/set, 1995
Depressão
As descrições de “depressão” repousam
basicamente em torno de dois signos dominantes que caracterizam o problema: tristeza e isolamento. Em outras palavras, quando se referiam a casos identificados por eles como se enquadrando naquele registro comportamental
“depressão”, os informantes constantemente representavam o problema fornecendo informações sobre tristeza e isolamento, como é dado
ver no quadro acima. Ao mesmo tempo, tristeza
e isolamento se apresentam como comportamentos principalmente relacionados com um estado
que é descrito por “jogar-se no desprezo”. Tal
estado se caracteriza por uma atitude de total
negligência com relação a si mesmo, particularmente no que respeita a interação com outros.
Embora, representem respostas culturalmente codificadas para certas situações, há uma indicação de que determinadas caracterizações da
emoção não compartilham de um status de causas legítimas para tal comportamento, isto é, elas
não eximem aqueles que as experimentam da responsabilidade pessoal sobre uma possível perda
de controle. Em uma reconstrução de caso de “depressão”, por exemplo, colhemos a história de um
indivíduo que em resposta a uma paixão não correspondida não se importava mais em demonstrar uma impressão positiva aos outros - “se joga
no desprezo”, “não liga pra nada”, “é desleixado”;
diz o informante:
“agora ele tá sem energia, ele hoje tá sem
energia... é um homem mais velho do que eu
quatro ou cinco anos, mas tá sem energia (...)
a outra criatura <esposa> vendeu a casa e
foi embora com tudo, deixou ele à toa; daí
pra cá se desleixou, se jogou. Ele pode sair
disso, eu até já arrumei uma namorada pra
ele; ele é moço”. (Aposentado, 60 anos)
Evidencia-se, assim, que aquele que “se joga
no desprezo” é tomado como responsável por
sua condição. Em um outro caso, uma mãe começou a mostrar alterações de comportamento, se esquivando das demais pessoas da família, depois de experimentar ciúme com respeito ao casamento de seu filho:
“(...) aí minha cunhada foi pra maternidade,
quando voltou mãe queria pegar o menino
Cad. Saúde Públ., Rio de Janeiro, 11 (3): 448-445, jul/set, 1995
é ela não deixou, ela não deixou, nisso aí
mãe ficou nervosa, ficou com trauma, aí
pronto. A gente pensava que era ciúmes (...)
que ela aceitou, mas ao mesmo tempo não
aceitou o casamento, porque era o filho
único dela, filho único (...) tem nove anos
que mãe começou a ficar doente, um ano
depois que meu irmão casou (...) Foi depois
que nasceu o menino que, primeiro neto,
né? Ficou desse jeito, chorava, ouvia vozes,
né, que tava triste” (Doméstica, 25 anos)
Nota-se que, diferentemente do outro fragmento citado, a mãe, “triste” devido ao ciúme
experimentado é parcialmente desculpada por
seu comportamento depressivo. A razão para
essa diferença pode estar na relação particular
que existe entre os papéis ou identidades ligados às pessoas que as experimentam. Aqui, estão em jogo visões dominantes do grupo em relação à representação de certos papéis e como
estes devem ser conduzidos.
Existe um grupo de definições dadas e estas
subcategorias – tristeza e isolamento – que se
caracteriza por sua explícita ressonância na esfera física/corporal (Figura 2): “não come”, “não
ri”, “fica sem energia”, “fica fraco”, “fica nervoso”. Outras definições apontam para uma dimensão interior, alojando a tristeza e o isolamento
em um espaço íntimo, individual: “angustiado”,
“agoniado”, “desgostoso”, “invocado”, “caladão”, “amuado”. Outras definições podem ser
agrupadas, como aquelas que se referem à vontade individual como sendo a geratriz dos comportamentos associados a estas emoções: “se
tranca”, “fica triste”, “fica quieto”, “pede a morte”, “não levanta”, “fica indisposto”.
Um importante ponto parece revelar uma idéia
que subjaz a todas as definições/descrições do
comportamento “depressivo” neste contexto: o
aspecto interativo é recorrentemente referido
no discurso da emoção. Isto é, os signos dominantes fornecidos ressaltam a depressão como
pondo em jogo uma interação tomada como a
adequada para lidar bem com as situações cotidianas. Quando inquirida a respeito do comportamento depressivo da filha, por exemplo, uma
informante não hesita em acentuar o incômodo
que the causava ter dentro de casa um pessoa que:
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FIGURA 2. Depressão: Três Dimensões Expressivas
DEPRESSÃO
Aspectos Físico/Corporais
Aspectos Interativos
TRISTEZA
não gosta de amigo
não fala
não quer ver ninguém
se afasta
não ri
se tranca numa concha
&
ISOLAMENTO
Dimensão Interior
desgostoso
recuado
angustiado
amuado
tristonho
não canta
chora muito
não come
não dorme
indisposto
“às vezes deitava ou sentava aí que não
dava uma palavra. Parecia que não tinha
ninguém em casa. Levava o dia todo sem
dar uma palavra com ninguém (...) parecia
que eu tava sozinha”
(Dona de casa, 45 anos – Nordeste de
Amaralina)
Esta ênfase no processo de interação social
é melhor percebida quando visualizamos as descrições comportamentais que remontam a uma
normalidade anterior. Ao lado dos signos identificados como característicos do comportamento
depressivo estão sempre identificados outros
que ressaltam um ideal de pessoa como sendo
aquele que convive bem com os demais indivíduos – principalmente os vizinhos e amigos do
bairro – e tem uma vida social ativa:
“Era festa, era ilha, certo? Ela ia comigo e
tudo. Mas depois que surgiu esse problema,
pronto, ela se isolou, deixou de ir, até excluiu
suas amizades toda, ficou de mal com todos os
seus amigos, certo? se separou de todo
mundo. Se isolou (...) deixou de cumprimentar
as pessoas, as pessoas falava ela não
respondia, como se tivesse se fechado numa
concha, aí pronto, aí ninguém se aproximava
(...) ela antes era uma pessoa normal, como
eu, como você. Gostava de sair, brincar (...) a
gente tinha vezes que a gente fazia festinha aí
454
em baixo, na casa de um amigo, ela namorava
normal, nunca fez nada assim de anormal,
sempre foi assim alegre”
(Dona de casa, 28 anos – Nordeste de
Amaralina)
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Apesar de propormos uma categorização para
o conjunto de diversos significados e definições
para a “depressão” no Nordeste de Amaralina,
emerge do tratamento com os dados a constatação de que essa rede semântica compõe uma totalidade fluida e pervasiva. Também podemos notar como certas categorias são “hipersemantizadas”, ricas em definições, como por exemplo
tristeza e isolamento. Apesar de se multiramificarem em definições, todas as subcategorias
que partem destas categorias maiores remetem
ao campo mais vasto das interações sociais que
é onde, de fato, a emoção é construída enquanto
significado. Neste sentido, vale observar o quão
importante são as interações locais e suas relações estreitas com o significado atribuído a estados emocionais específicos.
Evidencia-se, portanto, como o processo de
construção social de um quadro de referências
para a identificação e interpretação da “depressão” passa pela forma como é construída a noção
de pessoa no interior deste grupo e, por extenCad. Saúde Públ., Rio de Janeiro, 11 (3): 448-455, jul/set, 1995
Depressão
são, pelo conjunto de disposições emocionais que
caracterizam o comportamento local. A “pessoa
ideal”, ou melhor dizendo, a personalidade vista
como “normal”, que se revela através das narrativas é aquele que é bem-humorado, fácil de lidar,
comunicativo, enfim, o sujeito que não estabelece impedimentos a sua interação com outrem. Por
um lado, o levantamento das interpretações sobre a emoção nos permite fazer inferências sobre o modelo de pessoa local. Por outro, remissões a este mesmo modelo – tal como ocorre
quando os informantes constroem um quadro de
normalidade em contraste com a expressão da depressão – são importantes auxiliares para que percebamos de que formas a definição de pessoa dada
pelo contexto é pervasiva e se manifesta claramente em relatos sobre o universo da expressão
emocional. As emoções mostram-se plasmadas
em tais relatos de forma a trair muito mais que
modelos racionais de apreensão do mundo. Mais
que isso, revelam em seu bojo o muito que o discurso não comporta, mas ao qual sempre se reporta - os meios não-verbais de expressão e os
formatos relacionais específicos de cada cultura.
AGRADECIMENTOS
Aos Drs. Paulo César Alves e Miriam Rabelo
por sua inestimável contribuição. Agradecemos
também ao Dr. Roberto Albergaria.
RESUMO
COSTA, L. A. F & PEREIRA, A. M. Expressão
da Tristeza em Camada Popular Urbana de
Salvador, Bahia, Brasil. Cad. Saúde Públ., Rio
de Janeiro, 11 (3): 448-455, jul/set, 1995.
Este artigo examina as peculiaridades da
expressão da emoção em um bairro popular de
Salvador, Bahia, o Nordeste de Amaralina.
Focalizando nossa exploração na expressão da
tristeza, tentamos construir um esquema que
possibilite a compreensão de como os
informantes percebem, identificam e lidam com
esta emoção no curso de suas vidas cotidianas.
Perseguindo este objetivo, construímos uma
rede semântica que revela a existência de três
agrupamentos principais de expressão
emocional: um grupo “interior”, um “corporal”
Cad. Saúde Públ., Rio de Janeiro, 11 (3): 448-445, jul/set, 1995
e outro “interativo”. Observamos também as
superposições entre o universo da expressão
emocional e o conceito de pessoa local.
Palavras-Chave: Experiência; Significado;
Tristeza
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