PROGRAMA ÉTICA E CIDADANIA construindo valores na escola e na sociedade Educação inclusiva: Revolução ou reforma Rinaldo Voltolini1 As revoluções são mais raras que as reformas. Talvez nossa época, marcada pelos “milagres” da Ciência, tenha nos colocado numa difícil posição para percebermos esta verdade trivial. Afinal, a todo instante ouvimos ou lemos algo sobre uma “revolução” qualquer: regimes, remédios, novas tecnologias de informática, métodos cirúrgicos, etc., tudo anunciado como vindo para “transformar nossas vidas”. A crença na facilidade da transformação radical (lembremos o que este termo guarda de relação com raízes, enraizamento) é ainda mais perigosa quando se trata de transformar o comportamento, por exemplo. De fato é mais fácil mudar o rosto que me desagrada do que mudar o meu descontentamento comigo mesmo, mas pra que mudar a mim mesmo se posso mudar o rosto que me desagrada, enfim, se posso mudar o mundo para que ele se adapte ao que quero dele. Aqui nos vemos em condições de visualizar o que tal postura pode alimentar de nossa onipotência infantil, nunca totalmente ultrapassada, que nos impulsiona, feito a criança que fomos, a neutralizar os obstáculos reais do mundo, inventando um mundo a parte, no qual somos o mestre criador e nada pode realmente nos limitar. Neste plano as revoluções parecem fáceis. “O que falta à escola para ser inclusiva?” eis uma pergunta cuja unanimidade de sua formulação deveria nos despertar suspeita. Uma vez que deixamos de interrogar uma pergunta, talvez por a considerarmos óbvia, estamos ”condenados a respondê-la!” 1 Professor da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo. 1 Conhecemos as respostas habituais: maiores investimentos, formação docente, reformas arquitetônicas, adaptações curriculares, etc. Todas estas “reformas” que parecem necessárias à “transformação” da escola numa escola inclusiva. A história é fértil de exemplos que demonstram o risco de uma proposta revolucionária em seus termos, sucumbir a uma “reforma” que não faz senão manter tudo como estava antes, com a diferença de nos permitir o reconforto de uma posição moral. O exemplo clássico é o que aconteceu na crítica aos manicômios como instituições antiterapêuticas, desumanas, que só fez com que, salvo iniciativas muito pontuais, os hospitais fossem pintados de uma cor mais alegre, os médicos e enfermeiros fossem convidados a não utilizar mais meios tão chocantes para conter a desrazão dos pacientes, que a administração da loucura ganhasse um aspecto “mais humano”, o que só vem evidenciar que a desumanização destas pessoas é um risco iminente. A armadilha da pergunta “o que falta à escola para ser inclusiva?” está, sem dúvida, no vício da idealização que ela introduz, no fato de que daí por diante estamos condenados a pensar a instituição em termos ideais esquecendo o que ela é em termos reais. A concepção de uma “escola ideal” para atender a perspectiva da educação inclusiva, aparentemente feita para que nos orientar com relação à direção a seguir, com muito mais freqüência, como é típico na matéria do ideal, desemboca numa desorientação. Isto acontece porque não é fácil transitar nas bordas que separam de um lado uma escola ideal, de outro, ideais para a escola, retomando aqui uma distinção estabelecida por Freud entre “ego-ideal” e “ideal do ego”. Que a escola ou mesmo a sociedade tenha ideais é mais que desejável, necessário. Os ideais dão à vida em sociedade a perspectiva de futuro, a possibilidade de uma profundidade na ação, na direção do sublime que não é senão uma condição para que nos afastemos da busca imediata para nossas 2 satisfações, sempre desagregadora e problemática para qualquer organização social. Já a escola ideal é algo que tem a ver com uma idéia de “perfectibilidade”, com a intenção de se tornar “sem falhas”, ou seja, com o conforto narcísico, aquele que se produz quando nos apaziguamos com nossa própria imagem refletida no espelho. Todo problema do narcisismo, como sabemos, é que Narciso foi aquele que “morreu” por estar condenado a “não olhar mais para ninguém”. É neste sentido que salientávamos o perigo da pergunta sobre “o que falta à escola para tornar-se inclusiva?”. O risco é de que a escola em sua reforma fique tão aprisionada em seu modelo ideal que o outro a quem ela se dirige desapareça. Talvez fizéssemos bem em deslocar a pergunta para : “ Quais são ‘as possibilidades’ da escola para contribuir na direção de uma sociedade mais inclusiva?” Isto nos dá a vantagem de poder abordar o caráter paradoxal de uma tal proposta, pois é certo que a mesma sociedade que demanda a suas instituições que sejam inclusivas é a sociedade que se utiliza dos “serviços da exclusão” para garantir a sua organização. Então até que ponto ela permitirá que sejam levadas as mudanças? Vejamos um exemplo: Gostamos de reconhecer a proposta de inclusão social, em particular da educação inclusiva, por aquilo que ela representa de “progresso” na discussão sobre os “direitos” do cidadão e seu viés emancipatório rumo a uma sociedade mais igualitária. Mas a idéia de progresso, uma vez que impõe uma leitura linear dos fatos, nos impede de observar o que há de paradoxal nestes mesmos fatos. Por acaso não deveria espantar-nos, pelo seu caráter paradoxal, que uma proposta como o da educação inclusiva, centrada que está no respeito às diferenças individuais, no cuidado pra que estas diferenças não sejam aniquiladas por uma homogeneização normalizadora que só faz tornar hegemônico o padrão 3 dominante, surja num contexto cuja marca é da “globalização”. Ou seja, de uma política que precisa, para instalar-se e preservar-se, exatamente de uma homogeneização (a das demandas do Mercado), de um aniquilamento das diferenças na direção da concretização de um “público alvo”. Lacan vaticinou certa vez que o crescimento de uma tendência globalizante acentuaria a “segregação”. O raciocínio no fundo é simples, quanto mais tendemos a apagar as diferenças em prol do predomínio de uma tendência, mais aguçamos aqueles que, não ficando contemplados pela tendência que predomina, reivindicarão o reconhecimento de sua diferença “excluída”. Por isso é que cresce no seio da sociedade globalizante os movimentos dos “sem”... (teto, terra,etc...) De certo modo, então, a partir desta perspectiva, nota-se o que o movimento chamado de “inclusão” tem a ver com esta expressão sintomática de nossa época: o apagamento das diferenças. Por este viés, longe de ser alguma coisa “revolucionária”, que se coloca em descontinuidade com o que há, pode se apresentar como potencializando o status-quo que lhe originou e do qual ele é tributário. Por acaso não poderíamos ver aqui o que aconteceu a múltiplas tentativas de inclusão que resultaram apesar de seus esforços, ou talvez por eles, numa outra exclusão? De crianças que foram convidadas a pertencer à escola regular, mas uma vez absorvidas em seus muros não puderam ser incluídas em seus métodos?. O que faço com esta criança?; Se cuido dela o que faço com os outros quarenta? Conviver com a diversidade não parece ser a inclinação de nossa época. É certo que a proposta inclusiva implicaria “reformas” na instituição, mas seus maiores “desafios” (termo constantemente aludido junto à questão da inclusão e que indica o caráter de briga, de duelo que a inclusão comporta) parecem advir daquilo que ela comporta de “revolução”. Mais do que nos procedimentos administrativos é na implicação subjetiva necessária para garantir o procedimento inclusivo que reside talvez o maior desafio, certamente o mais difícil. 4 Implicação subjetiva que nada tem a ver com a tal “força de vontade” tão alardeada nos dias de hoje. Na verdade este entendimento faz parte da supersimplificação característica de nossa época que serve, como dizíamos no início, apenas para preservar nossa crença em nossos poderes ilimitados de transformação. A vontade não tem tanta força assim face a nossas motivações inconscientes, provou Freud. Podemos querer o bastante uma coisa e sermos impedidos por nós mesmos de atingi-la, sem que saibamos explicar o porquê. Ainda que estejamos convencidos da justeza da premissa da equidade social será necessário que algo seja feito de nossa tácita tendência anti-social inconsciente que segundo Freud nos leva a insistir para que nossa própria satisfação seja privilegiada. Lembremos como foi comum ouvir na boca de vários de nós professores que a proposta da educação inclusiva ao nascer do respeito dos direitos dos excluídos “desrespeita” supostamente os direitos do próprio professor: “Eu não prestei concurso para lidar com crianças deficientes”, dizia uma professora mais corajosa ou talvez mais desesperada para correr o risco de ser sincera o suficiente e externar o que muitos de nós estamos convencidos intimamente e que expressaríamos caso não se sentisse que isso nos custaria a cabeça. Mas tal fato apenas expressa o caráter paradoxal de tal proposta e sua complexidade de implantação. Admitir este caráter paradoxal na pergunta sobre as possibilidades da escola na consecução do ideal da sociedade inclusiva parece mais promissor do que pretender perfectibilizar a instituição como se ela fosse, em sua estrutura, livre o bastante dos impasses da sociedade e pudesse reformar-se na direção que bem pretender, bastando para isso “força de vontade”, ou “vontade política”, que neste caso fica reduzida ao mesmo sentido. Como sempre deixar a quimera infantil é uma tarefa extremamente árdua, mas também e mais do que nunca, a mais necessária. Ou nos inteiramos do fato de que incluir significa dar a alguém a possibilidade de “ser” aluno, mais do que a possibilidade de “ter” uma escola, ou 5 continuaremos embalados pela perspectiva, que é a da nossa sociedade contemporânea, de que o ter um dia nos levará a ser! Mais para “ser” é preciso mais tempo, um tempo que não é do “time is money”, mas aquele da agricultura, no qual se planta, se cultiva, se espera que a planta faça também seu papel e no qual se está sempre sujeito a uma colheita nada ideal. Enfim se não nos acautelarmos com a pregnância de nosso ideal não podemos senão sucumbir numa ação que será sempre lida como fracassada, que é o resultado inevitável de quem espera mais de uma coisa do que ela pode efetivamente ser. 6