Alexandre Mansur Barata*
Sociabilidades e circulação de idéias no Império
Português na virada do século XVIIIpara o
século XIX
Um estudo de caso
Resumo
A partir da trajetória dc vida do negociante Francisco Álvaro da Silva Freire, o objetivo desta comunicação é
analisar a inserção da sociabilidade maçónica na América Portuguesa, sobretudo na cidade do Rio de Janeiro na
virada do século XVIII para o século XIX. Busca-se compreender as conexões existentes entre os maçons dos
dois lados do Atlântico.
Palavras-chave: Maçonaria, Sociablidade, Brasil, Portugal
Abstract
Taking the path of life of the merchant Francisco Alvaro of Silva Freire, this paper intends to analyze Masonic
sociability in Portuguese America focusing on the city of Rio de Janeiro at the turn of the eighteenth century and
the first two decadcs of the nineteenth century. It shall seek to comprehend the connections between freemasons
on the two sides of the Atlantic Ocean.
Keywords: Freemasonry, Sociability, Brazil, Portugal
P r o f e s s o r d o D e p a r t a m e n t o d e História e d o P r o g r a m a d e P ó s - G r a d u a ç ã o e m História ( M e s t r a d o ) da U n i v e r s i d a d e F e d e r a l d e J u i z d e f o r a
(UF.IF). P e s q u i s a d o r C o l a b o r a d o r d o P r o j e t o ' " N a ç ã o e C i d a d a n i a n o I m p é r i o : n o v o s h o r i z o n t e s " . P R O N H . X - F A P F R J - C N P Q .
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Sociabilidades e circulação de idéias no Imperio
Português na virada do século XVIIIpara o
século XIX
Um estudo de caso
Alexandre Mansur Barata
E m 1799 aportou no Rio de Janeiro o navio Nossa Senhora da Conceição e Santo
Antônio com 243 presos procedentes de Lisboa com destino a Goa. Entre eles, estava Francisco Álvaro da
Silva Freire.
Francisco Álvaro era negociante, natural da cidade do Porto (Portugal). Filho de Francisco da Silva
Costa Guimarães e Ana Vitória da Silva Freire, era casado com Ana Rosa da Silva Freire. Em 1791, tinha
sido preso na Cadeia do Limoeiro, sendo seis meses depois, em março de 1792, transferido para os cárceres
do Santo Ofício. Seu crime era o de ser pedreiro-livre. Pelo que consta da sua confissão, teria sido iniciado na
maçonaria em julho de 1791 a convite de dois franceses, negociantes como ele. Sua iniciação deu-se numa
casa que ficava no Poço do Bispo, em Lisboa, tendo sido também iniciados João Luiz do Couto, Jerônimo
José Nogueira, José Joaquim Aranha, Manuel dos Santos Rocha, Vicente José de Oliveira Sampaio. Apesar
de acusado pelo promotor do Santo Ofício de fazer "confissões frívolas", Silva Freire acabou absolvido "in
fama ecclesia " da excomunhão maior em que se achava incurso. Mas foi obrigado a receber por um mês
instrução particular no Convento de São Pedro de Alcântara.1
Ao que tudo indica, Silva Freire continuou a freqüentar as reuniões maçónicas, pois em abril de
1799, a rainha D. Maria I determinou ao Intendente Geral da Polícia Diogo Ignácio de Pina Manique, que
Francisco Álvaro da Silva Freire fosse mandado sem perda de tempo para Goa "pela sua indigna e reprovada
conduta". 2 Quando chegou ao porto do Rio de Janeiro, em julho de 1799, Silva Freire, que contava então
com trinta e seis anos, procurou entrar em contato através de correspondências com seus amigos em Lisboa,
com o Chanceler da Relação do Rio de Janeiro Luiz Beltrão de Gouveia e Almeida e com Modesto Antônio
Mayer, Ouvidor de Vila Rica recém-nomeado e que estava por chegar ao Brasil.3 Segundo o relato de
Beltrão, como a correspondência "não era muito inocente" e o seu "temor de que este maníaco empestasse
com a sua missão e doutrina os que o ouviam, pela facilidade que lhe deram de falar e escrever", ele acabou
por decidir fazer uma representação junto ao vice-rei Conde de Resende sobre a necessidade "que havia
de fazer evitar as correspondências, e comunicações com um lunático perigoso, no tempo presente, quanto
as opiniões políticas; pois que as Religiosas, nem eu as entendo por falta de Teologia, nem o Grande e
Incompreensível Ente necessita que o defenda um pequeno inseto". 4
Ao tomar conhecimento da tentativa de Francisco Álvaro da Silva Freire, o Vice Rei Conde de Resende
determinou que se procedesse imediata diligência para averiguar o conteúdo daqueles fatos denunciados
pelo Chanceler da Relação Luiz Beltrão de Gouveia e Almeida. Terminada a diligência, o Conde de Resende
comunicou a D. Rodrigo de Souza Coutinho o que havia se passado no Rio de Janeiro. Nas palavras do
vice-rei, Francisco Álvaro da Silva Freire era "um refinado jacobino e pedreiro livre", que projetava assim
que chegasse em Goa fugir para Holanda ou para a França. Disse também que foram encontrados alguns
catecismos maçónicos com um amigo de Silva Freire que ia para Moçambique. 5
Esse amigo era Vicente Guedes da Silva e Sousa, filho de um importante comerciante em Moçambique,
que depois de estudar por sete anos na Corte regressava à África. Além dos catecismos maçónicos, Vicente
Guedes da Silva e Souza levava consigo alguns livros que o Vice Rei presumia conterem "os errados
princípios dos novos Republicanos". 6 Embora os livros tenham sido apreendidos, Vicente Guedes da Silva
e Souza conseguiu seguir viagem para a África. "Com o passageiro de Moçambique certamente depois da
achada de Livros, e Catecismos de Pedreiros Livres a minha tenção era segurá-lo nesta Cidade, mas a sua
consciência o fez por em cautela, de forma que todas as Ordens que passei a este respeito foram baldadas."
7
Silva Freire permaneceu até 1802 no Rio de Janeiro, preso na fortaleza da Ilha das Cobras, sob rígida
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vigilância para evitar "toda a comunicação com a Gente do Pais", aguardando novas ordens régias sobre
0 seu destino.8 Em julho de 1802, foi embarcado para seu degredo na índia. Através da pesquisa de Adelto
Gonçalves, entretanto, ficamos sabendo que ele acabou residindo um tempo em Moçambique em companhia
do amigo Vicente Guedes da Silva e Souza. Lá teria inclusive conseguido com o governador Isidro de Sá
um emprego público como escriturário da tesouraria da Junta da Real Fazenda.9
E bem possível que na passagem de Silva Freire e Vicente Guedes da Silva e Souza pelo Rio de
Janeiro, apesar de todo o cuidado das autoridades régias, eles tenham acabado por estabelecer algum tipo
de comunicação com a "gente do país", inclusive recebendo algum tipo de ajuda para fugir como no caso
de Vicente Guedes.
Todavia, o que nesse episódio chama mais a atenção é a revelação de uma complexa
rede de amizades, forjada com base no pertencimento à maçonaria, que aproximava pessoas de diferentes e
distantes regiões do Império Português.10
Pelo o que se pode constatar através das cartas apreendidas, ao chegar ao Rio de Janeiro, Francisco
Alvaro da Silva Freire buscou a proteção de Luiz Beltrão Gouveia de Almeida, que era amigo de Modesto
Antônio Mayer e de Antônio Mendes Bordalo. Essa tentativa de busca de proteção, talvez tenha sido
recomendada pelo maçom e amigo Antônio Mendes Bordalo, que era advogado na Casa de Suplicação em
Lisboa. De certa forma, todos já se conheciam, pois freqüentaram a casa do referido Bordalo numa época
em que ele advogava na defesa de sete pessoas acusadas de serem "jacobinos" e pedreiros livres."
De fato, Francisco Alvaro da Silva Freire esperava contar com os maçons e com a maçonaria para o
livrar de seus tormentos. Na carta enviada a Modesto Antônio Mayer, relata o bom acolhimento recebido
durante a viagem entre Lisboa e o Rio de Janeiro do comandante, dos oficiais e dos passageiros da nau
Conceição. "Logo que entrei a bordo da nau, achei acolhimento em todos os oficiais dela e nos da casa da
índia. Estes me recomendaram àqueles, a quem já estava assaz recomendado pelos bons amigos de Lisboa,
e entre eles a Cunha e Bordalo me acho muito obrigado. O último e sua família não me recomendaram só;
a sua amizade ainda a mais os obrigou." Na carta dirigida a Lúcio José Bolonha, Francisco Alvaro da Silva
Freire relatou que, ao chegar ao Rio de Janeiro, depois de aproximadamente 47 dias de viagem, foi remetido
para a Fortaleza da Ilha das Cobras lá encontrando a estima e a amizade do Governador e de seu filho. E
terminava com uma sugestiva frase: "grande século em que por toda a parte se acham amigos dos homens
em tão grande número!" Já na carta dirigida a Simão Pires Sardinha, a solidariedade encontrada tanto a
bordo quanto na Fortaleza da Ilha da Cobras, propiciada pelo pertencimento à maçonaria, aparecia de forma
cifrada, através de um sinal formado por três pontos alinhados em forma triangular colocado depois da
expressão "homens honrados": "Finalmente acho-me neste continente, e bem contra minha vontade. Até
aqui bem tenho passado, porque a bordo achei amigos que me procuraram um tratamento como passageiro
o mais atendido. Na Ilha das Cobras, em que me acho, tenho sido assaz distinguido pelo Governador e seu
filho, que dá toda a liberdade. A sua casa é o meu quartel: em toda a parte acho homens honrados :. [três
pontos em forma triangular, símbolo maçónico]. Na índia espero também encontrá-los no pouco tempo que
espero ali demorar-me;...".12
Mas entre as cartas apreendidas, o que mais chamou a atenção das autoridades portuguesas foi a
sua pretensão de ao chegar em Goa tentar fugir dali para a Europa com a ajuda da "Santa Irmandade", ou
seja, a maçonaria. Na carta enviada a Modesto Mayer escreveu: "Ouço dizer que por estes dias 12 dias,
sairemos deste Porto, para continuar a nossa viagem até a índia, aonde sei, hei de achar amigos, e muitos,
e nesta certeza desde já te digo não me demorarei naquele País muitos meses. De Goa a Bombaim é perto,
e dali para a Inglaterra há muitas embarcações, em uma das quais voltarei para a Europa à custa da Santa
Irmandade que tem obrigação para isso; o que sentirei será receber benefício de Ingleses, sendo nação que
tanto aborreço. De Inglaterra me hei de passar para a Holanda, ou para ali ficar, ou para transportar-me a
F.... [França] para viver naqueles sítios, enquanto a minha amada Pátria tiver em si monstros, e logo que lhe
acabe a [ilegível] voltarei a ela para lhe sacrificar até a minha vida se preciso for. (...) Seja qual for o meu
destino, e viva eu em qualquer País que seja, podes estar certo que hei de ser o mesmo em tudo, por que
Freire não sabe mudar."13
Francisco Alvaro da Silva Freire, ao que tudo indica, conseguiu o seu intento e de forma surpreendente
acabou por se transformar em agente secreto do rei D. João VI em Paris no início do século XIX. Segundo
Miguel Antônio Dias, baseando-se na obra de Clavel, informa que a partir de 1804, Francisco Álvaro da
Silva Freire encontrava-se em Paris como agente secreto do rei D. João VI e membro de uma certa "Ordem
do Templo".14 Em 1818, o encontramos a serviço da Legação de Portugal naquela capital, dirigida então
pelo Marquês de Marialva. Neste ano, teria ele enviado ao Ministro Tomás Antônio Vilanova Portugal, que
se encontrava no Rio de Janeiro, uma carta datada de 27 de julho, na qual procurava dar informações ao
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ministro a respeito de Francisco Cailhé de Geine, que teria recebido autorização para estabelecer no Rio de
Janeiro uma casa de jogo. Esse Cailhé de Geine se transformaria em informante da Intendência Geral da
Polícia da Corte do Rio de Janeiro e foi autor do folheto Le Roi et la Famile Royale de Bragance doivent-ils,
dans les circonstances présentes, retourner en Portugal, ou bién Rester au Brésil?, publicado em 1821.15
Embora contasse com a amizade de Luiz Beltrão e Modesto Mayer, ambos acabaram por negar
qualquer tipo de relacionamento mais comprometedor com Francisco Alvaro da Silva Freire. Enquanto
Luiz Beltrão acabou por entregar as correspondências recebidas ao Vice Rei Conde de Resende; Modesto
Mayer procurou garantir sua nomeação para Ouvidor de Vila Rica enviando à Rainha sua defesa onde
expunha que "não tendo tido outras relações com um Francisco Álvaro da Silva Freire mais do que exercer
com ele, na sua indigência, alguns ditos de caridade, não cabendo nas forças da prudência humana prever
que ele se despenhasse em crimes e absurdos detestáveis, que o tornassem objeto da execração pública, de
que resultou ter sido preciso ao suplicante justificar a sua honra na Soberana Presença de Vossa Alteza, por
ocasião da captura e extermínio do sobredito."'6
O período em que Francisco Álvaro da Silva Freire e Vicente Guedes da Silva e Souza estiveram no
Rio de Janeiro foi justamente o momento no qual a maçonaria iniciava um processo gradativo de maior
institucionalização. No início do século XIX, diversas lojas maçónicas começaram a funcionar, ora se
filiando à Obediência francesa, ora à portuguesa. O Rio de Janeiro, a Bahia e Pernambuco se transformaram
em espaços de crescente efervescência maçónica.
Para grande parte da historiografia, a inserção da maçonaria no espaço colonial americano foi resultado
da ação dos estudantes brasileiros que foram estudar nas universidades européias, particularmente em
Coimbra e Montpellier, no final do século XVIII. Durante a estadia na Europa, muitos deles tomaram
conhecimento do que era a maçonaria e procuraram ser iniciados na Ordem. Ao regressarem à colônia
acabaram por iniciar novos membros, a se reunirem e fundarem algumas lojas especialmente no Rio de
Janeiro, Minas Gerais, Bahia e Pernambuco.
Essa interpretação, também utilizada para explicar a expansão das idéias da Ilustração na colônia
portuguesa, traz consigo alguns problemas. O primeiro é o campo que ela abre para uma associação direta
entre Ilustração e Revolução. Diante disso, os letrados coloniais influenciados pelas Luzes adquiridas
nas universidades européias, através da maçonaria, conspiraram a ruptura da colônia com a metrópole. E
preciso não esquecer que nem todos aqueles que foram estudar na Europa tornaram-se maçons e que ao
voltarem para a América participaram de movimentos de contestação ao domínio português. O segundo é
que essa forma de explicação de tanto ser reafirmada, acabou por nublar outras trajetórias de expansão da
maçonaria. Refiro-me, por exemplo, ao papel exercido pelos comerciantes, militares, funcionários públicos
que no Brasil se estabeleceram, ou mesmo degredados que a caminho da África e da índia aportavam em
portos brasileiros e estabeleciam contato com os maçons locais. Neste sentido, o caso de Francisco Álvaro
da Silva Freire é paradigmático.
Tomando como referência o Manifesto de José Bonifácio de Andrada e Silva, datado do final de 1831,
a primeira loja maçónica a ter funcionamento regular no Brasil foi a Reunião, fundada em 1801 em Niterói
(Rio de Janeiro).17 Consta que esta loja acabou por se filiar, dois anos depois, ao Grande Oriente da lie
de France (Ilha Maurícia, pertencente então à França), tendo sido escolhido como seu representante junto
àquela Obediência um francês chamado Laurent.' 8
Em 1802, instalava-se na Bahia a loja Virtude e Razão.19 E bem possível que tenha sido os maçons dessa
loja baiana que ajudaram na fuga do inglês T. Lindley quando da sua prisão por suspeita de contrabando
primeiramente em Porto Seguro e posteriormente em Salvador, entre os anos de 1802 e 1803. "Partíamos,
agora, com esses valiosos amigos, que tanto nos tinham ajudado materialmente, num país em que suas
pessoas e bens teriam sofrido severamente se houvessem sido descobertos; e que procederam nisso, pelos
mais puros motivos de humanidade e benevolência (as grandes características da sociedade a que tinham a
honra de pertencer) assim formando forte contraste com os outros seus degenerados e ignorantes cidadãos."
20
A notícia sobre o funcionamento de lojas maçónicas no Brasil filiadas a uma obediência francesa, fez
com que o Grande Oriente Lusitano, recém-formado, procurasse subordiná-las. Para tal, enviou ao Rio
de Janeiro emissários seus, mas que não obtiveram sucesso. Desta forma, esses representantes do Grande
Oriente Lusitano acabaram por fundar duas lojas no Rio de Janeiro subordinadas àquele Grande Oriente.
Chamavam-se Constância e Filantropia,21
São deste período as primeiras denúncias ao Santo Ofício em Lisboa sobre a existência de pedreiros
livres no Brasil. Em 05 de maio de 1804, Timóteo Cláudio Baptista entregou pessoalmente ao Comissário
do Santo Ofício no Rio de Janeiro, Félix de Santa Teresa Nascentes, uma denúncia por escrito. Segundo o
comissário, entregou-a "com tanto susto que não o vissem neste Convento [do Carmo] pela desconfiança
de que perderia a vida". Na denúncia, Timóteo Cláudio Baptista dizia que teria sido iniciado maçom na
casa de um amigo quando certa vez foi visitá-lo. Disse também que havia consentido em ser iniciado, pois
lhe garantiram que os Pedreiros Livres nada tinham contra a Santa Fé Católica e que seu único objetivo era
"para se conhecer os homens de bem e serem fiéis uns com os outros". Na sua confissão, Timóteo Cláudio
Baptista denunciou outros pedreiros livres: o alferes Francisco Manoel, um rapaz que morava na rua dos
pescadores, um paulista chamado Diógenes, o escrivão e o praticante do Brigue Condessa, um tal de Borges
e um tal Antônio José que também viviam nesta embarcação.22
Em outubro de 1804, outra denúncia contra os pedreiros livres chegou ao Comissário do Santo Ofício.
O denunciante era Venâncio José Lisboa, que aconselhado por seu confessor, disse que ouviu na loja de
Manoel Pereira da S. Vianna que Francisco Xavier de Araújo, filho do coronel de milícias da vila de Magé,
era secretário dos Pedreiros Livres e um "libertino forte". 2 ' Em dezembro daquele mesmo ano, Venâncio José
Lisboa retornou ao comissário do Santo Ofício para denunciar como pedreiros livres o caixeiro Francisco
Fernandes Barbosa, Manoel Gomes da Cunha que morava na Travessa da Alfândega e José da Estrela que
era mestre de uma embarcação que navegava para o Rio Grande do Sul e trazia na corrente do relógio um
sinete com as armas da maçonaria.24
As denúncias continuaram e em janeiro de 1805, Antônio Gomes de Abreu denunciou como pedreiros
livres João Rodrigues Pereira de Almeida e Joaquim José do Faro. Ambos eram negociantes na praça do Rio
de Janeiro e moradores na rua dos Pescadores, na freguesia de Santa Rita. Joaquim José do Faro era também
familiar do Santo Ofício.25 Além desses, a Inquisição de Lisboa também tomou conhecimento de que alguns
padres haviam entrado para a "seita" dos pedreiros livres. Foram denunciados um certo frei Antônio, que
vivia no Rio Grande do Sul, sendo um fugitivo das Ilhas do Atlântico, e frei Francisco Sampaio.26
Se nos primeiros anos do século XIX, as lojas maçónicas do Rio de Janeiro recrutavam seus membros
basicamente entre os comerciantes e os marinheiros, é bem possível que com a chegada da Corte em 1808
tenha ocorrido um alargamento da base de recrutamento com a entrada de funcionários públicos e membros
da nobreza que para cá vieram acompanhando D. João VI. Segundo a tradição maçónica, a loja São João
de Bragança teria funcionado no Paço Real. Nas anotações à sua biografia, A. M. V. Drummond conta que
o Conde de Parati e o Marquês de Angeja, depois da Revolução de 1817 em Pernambuco e que resultou
numa violenta perseguição aos maçons, se auto-denunciaram a D. João VI como iniciados na maçonaria.
Como sinal de arrependimento, o marquês de Angeja ofertou toda a sua prata para as "urgências do Estado".
Já ao Conde de Parati, D. João VI teria o obrigado a tornar-se irmão da Ordem Terceira de S. Francisco da
Penitência, tendo ficado um dia inteiro no Paço vestido com o hábito daquela irmandade.27
José Anselmo Correia Henriques, que era fortemente contrário aos maçons, em 1816, em carta dirigida
ao Rei D. João VI, denunciou o grande número de maçons na Corte do Rio de Janeiro. "As primeiras
Autoridades do Trono, pelas suas moléstias, e idades, creio que não são; mas aqueles indivíduos, que
os cercam de mais perto, pela venalidade, que exercem com as partes, dão quase certeza que o sejam;
porque quem se enxovalha com ações ridículas pode muito bem aspirar a outras pretensões, que sejam mais
infames. Vossa Alteza Real está cercado de Franco-maçons, e o partido é já tão poderoso, e grande, que só
uma medida de força adequada a sua potência a pode desarraigar pela raiz; (...)." 28
Bahia e Pernambuco eram também centros maçónicos importantes no início do século XIX. Em
1808, o Capitão José Carlos Paes Barreto, proprietário do engenho Saltinho, na Freguesia do Una, em
Pernambuco, denunciou ao Santo Ofício que o Padre José Felício o havia convidado para ser Pedreiro
Livre, visto que não era contrário a Santa Fé Católica. José Felício também teria lhe dito que fosse a casa de
Félix José Tavares de Lira, que este lhe "diria como se havia reger, e que se lhe havia dar um livro para seu
Regimento" e que convidasse algum amigo para também ser iniciado na maçonaria, "porém que fosse dos
mais principais e não Publicanos". Por essa denúncia, o Santo Ofício tomou conhecimento que o número
de maçons havia progredido na capitania de Pernambuco, tanto no "mato" quanto no Recife, com a entrada
para a "irmandade", recentemente, de Antônio Jacinto, de Luciano da Silveira e do Padre Pedro de Souza
Tenório. Motivo pelo qual, Domingos Antônio Pereira, responsável pelo encaminhamento da denúncia ao
Comissário do Santo Ofício, solicitou aos Inquisidores de Lisboa que medidas fossem tomadas, pois se
nada fosse feito, "em poucos anos, ficará este vasto Brasil todo herege". 29
A análise da emergência da sociabilidade maçónica na América Portuguesa não pode deixar de lado a
profunda mudança cultural que atingiu alguns setores da sociedade luso-brasileira nos anos finais do século
XVIII e iniciais do século XIX, influenciada, sobretudo, pelo contato e circulação das idéias da Ilustração.
97
Deste modo, a sociabilidade maçónica, apesar do seu caráter fechado/secreto, mostrou-se permeável a um
diálogo com o mundo exterior às lojas maçónicas. Interagindo, interferindo, trazendo para o seu interior
os debates que mobilizavam o espaço público, a maçonaria revelou-se um instrumento significativo para a
compreensão da sociedade luso-brasileira do período, com suas contradições e singularidades.
Notas
1
IANTT. Inquisição de Lisboa, processo 8608.
2
ANRJ. Correspondência dos Vice-Reis para a Corte. Códice 68, v. 15, 1800.
3
ANRJ. Vice Reinado, caixa 491, pacotilha 1. Agradeço ao Prof. Dr. Adelto Gonçalves a indicação da documentação referente a Francisco
Alvaro da Silva Freire conservada no Arquivo Nacional do Rio de Janeiro.
4
ANRJ. Correspondência dos vice-reis para a Corte. Códice 68, v. 15, 1799. pp. 185-186. É importante ressaltar que, embora não processado,
Luiz Beltrão de Gouveia e Almeida foi suspeito de ter participado na Conjuração Mineira de 1789. Na ocasião, ocupava o cargo de fiscal da extração
de diamantes da comarca do Serro Frio, tendo sido nomeado em 1786. Ver: GONÇALVES, Adelto. Gonzaga, um poeta do iluminismo. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1999, p. 400.
5
ANRJ. Correspondência dos vice-reis para a Corte. Códice 68, v. 15, 1799.
6
Foram encontrados entre os pertences de Vicente Guedes da Silva e Souza 25 livros e 06 cadernos. Entre os cadernos, três eram relativos
á maçonaria. Entre os livros, podia-se encontrar: Rousseau, Voltaire, Helvetius, Condillac, Cervantes, Molière, entre outros. ANRJ. Vice Reinado,
caixa 491, pacotilha 1.
7
ANRJ. Correspondência dos vice-reis para a Corte. Códice 68, v. 15, 1800. p. 184.
8
Ibidem, p. 321.
9
GONÇALVES, Adelto. Gonzaga, um poeta do iluminismo, p. 402.
LEITE, Paulo Gomes. Vieira Couto e as ligações entre a maçonaria do Tijuco, de Portugal e de Moçambique. REVISTA MÉDICA DE
MINAS GERAIS. Belo Horizonte, v. 5, n. 3, jul-set/1995.
11
Segundo Paulo Gomes Leite, Antônio Mendes Bordalo nasceu no Rio de Janeiro em 1750 e faleceu em Lisboa em 1806. Formou-se em
Direito Canónico pela Universidade de Coimbra, tendo sido nomeado advogado da Casa de Suplicação em Lisboa. Sua ampla e influente rede
de amizades que incluía, por exemplo, José de Seabra, Lucas de Seabra, Martinho de Melo e Castro, talvez o penha protegido das perseguições
do Intendente Geral da Polícia, Pina Manique. Sua casa em Lisboa teria sido um importante ponto de encontro de maçons de ambos os lados do
Atlântico. Ver: LEITE, Paulo Gomes. Vieira Couto e as ligações entre a maçonaria do Tijuco, de Portugal e de Moçambique, p. 199.
12
ANRJ. Vice Reinado, caixa 491, pacotilha 1.
13
Ibidem.
14
DIAS, Miguel Antônio. Annaes e Código dos Pedreiros Livres em Portugal. Lisboa, 1853. pp. 19-20. (Fac-simile).
15
PEREIRA, Ângelo. D. João VIPríncipe
16
ANRJ. Correspondência da Corte com o Vice-Reino. Códice 67, v. 25, p. 44.
17
Manifesto
e Rei. Lisboa: Empresa Nacional de Publicidade, 1956. v. 3. pp. 307-308.
do Gr:. Or:, do Brasil a todos os GGr:. OOr:., GG:. LL:., LL:. RR:. e MM:. de todo o mundo. Rio de Janeiro: Typ. Austral,
1837.
18
A discussão sobre qual teria sido a primeira loja maçónica instalada no Brasil é extremamente controversa, sobretudo, entre os historiadores
maçons. Para uns, teria sido o Areópago de Itambé, fundado em 1796 pelo botânico Arruda Câmara, localizado na divisa das capitanias de
Pernambuco e Paraíba. Para outros, teria sido a loja Cavaleiros da Luz, fundada na Bahia em 1797. Segundo Frederico Guilherme Costa, embora
tanto o Areópago de Itambé quanto a Cavaleiros da Luz possam ser consideradas lojas maçónicas, elas não eram lojas maçónicas regulares. Ver:
Frederico Guilherme COSTA, "A primeira Loja Maçónica no Brasil". In Breves ensaios sobre a História da Maçonaria Brasileira. Londrina: A
Trolha, 1993. pp. 23-27. Quanto à loja maçónica Cavaleiros da Luz, o historiador Luís Henrique Dias Tavares, em artigo recente, embora não
rejeite a possibilidade dela ter sido fundada em julho de 1797, reitera que essa questão permanece em aberto. Também István Jancsó, na sua obra
Na Bahia, contra o Império, alerta sobre a necessidade de se reabrir o debate em tomo da relação entre a Maçonaria e o processo político baiano em
1798: "Ora, os jantares com características maçónicas a envolverem o padre Francisco Agostinho Gomes; a presença na Bahia de um personagem
que regressa da Ilha da Madeira, onde se fizera maçom, integrante da elite local, e que poderia ter organizado e participado de jantares suspeitos;
a existência de textos de procedência maçónica entre os papéis apreendidos com os presos, quando da Devassa, como é o caso do Aviso de São
Petersburgo, esses dados apontam para a existência de relações antes difíceis de estabelecer." Recentemente, no artigo "Bahia 1798 - a hipótese
de auxílio francês ou a cor dos gatos", Jancsó, embora não se refira explicitamente à maçonaria, reafirma que na Bahia do final do século XVIII
emergiu "um grupo de jovens integrantes da elite colonial ou próximos a esta, poderosamente seduzidos pelos sucessos da Revolução francesa.
Este grupo esboçava sua face mediante o recurso a formas de sociabilidade política de tipo novo, tomando-se agente do espraiar-se de uma cultura
política contraposta à do absolutismo, fazendo circular informações e idéias à margem do controle oficial. Este fenómeno, manifestação da crise do
Antigo Regime luso e, em particular, do Antigo Sistema Colonial que lhe era constitutivo, repete-se por esta época em outras localidades da América
Portuguesa. Mas, diferentemente do que se vê alhures, vem encontrar na Bahia, fortuitamente graças á estadia aí de um militar francês [Antoine
René Larcher] que se dispõe a servir de intermediário entre os baianos e o Governo da França, condições para desdobrar-se num projeto operacional
de tomada de poder e alteração radical da ordem política, bordejando um terreno que não era mais aquele das típicas reuniões de letrados." Ver:
Luís Henrique Dias TAVARES, "Questões ainda não resolvidas na História da Sedição de 1798 na Bahia". In ACADEMIA DE LETRAS DA
BAHIA, II Centenário da Sedição de 1798 na Bahia. Salvador: Academia de Letras da Bahia; Brasília: MINC, 1999. pp. 21-36; István JANCSÓ,
Na Bahia, contra o Império: história do ensaio de sedição de 1798. São Paulo: Hucitec; Salvador: EDUFBA, 1996. pp. 149-150; István JANCSÓ,
"Bahia 1798 - a hipótese de auxílio francês ou a cor dos gatos". In Júnia Ferreira FURTADO (org), Diálogos oceânicos: Minas Gerais e as novas
abordagens para uma história do Império Ultramarino Português. Belo Horizonte: Ed.UFMG, 2001. pp. 370-371.
19
MELLO, Mário C. do Rego. A maçonaria no Brasil. In BASTOS, Octaviano et alii (orgs.). Livro Maçónico do Centenário. Rio de Janeiro:
Grande Oriente do Brasil, 1922. p. 192; MARQUES, A. H. de Oliveira. A História da Maçonaria em Portugal Lisboa: Presença, 1990, v. 1, pp.
85-86.
20
LINDLEY, Thomas. Narrativa de uma viagem ao Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1969. pp. 145-146.
21
Nos meses de outubro e novembro de 1804, como consta de um passaporte maçónico emitido pelo Grande Oriente Lusitano, Ignacio
Alberto de Oliveira, membro da Loja Amizade No. 5, de Lisboa, visitou essas duas lojas do Rio de Janeiro. Ver MARQUES. A. II. de Oliveira. A
História
da Maçonaria
em Portugal,
v. 1, pp. 85-86; M A R Q U E S , A. H. de Oliveira. A Maçonaria
portuguesa
e o Estado Novo. 3.ed. Lisboa: Dom
Quixote, 1995, p. 81.
IANTT. Inquisição de Lisboa, processo 15878, m a ç o 1122.
23
IANTT. Inquisição de Lisboa, processo 17386.
24
IANTT. Inquisição dc Lisboa, processo 15853.
2
' Na estrutura burocrática do Santo Oficio, os familiares eram " m e m b r o s civis que apoiavam a ação dos tribunais, gozando de certos
privilégios, n o m e a d a m e n t e licença de porte de armas, isenção de impostos, isenção dc serviço militar, indulgência plenária e funções de
representação". Ver B E T H E N C O U R T , Francisco. História das Inquisições: Portugal, Espanha e Itália (séculos XV-XIX). São Paulo: C o m p a n h i a
das Letras, 2000. p. 54. Até o n d e pude pesquisar, Joaquim José do Faro não foi o único familiar do Santo Oficio a pertencer à maçonaria. Na Ilha
da Madeira, em 1796, um outro familiar do Santo Oficio apresentou-se perante o Tribunal c o m o pedreiro livre. Foi o caso de José Paulo da Silva,
solteiro, Tenente dc Artilharia da Fortaleza dc S. Lourenço. Ver: IANTT. Inquisição de Lisboa, processo 412, m a ç o 38; IANTT. Inquisição de
Lisboa, processo 15853.
26
Esse frei Francisco S a m p a i o denunciado c o m o pedreiro livre em 1805 deve ser o m e s m o que pertenceu à Loja C o m é r c i o c Artes e foi
u m dos fundadores do Grande Oriente do Brasil em 1822, tendo uma atuação destacada nas articulações da Independência. Era t a m b é m u m dos
redatores do jornal O Regulador Brasileiro que circulou entre 1822 e 1823. Ver L U S T O S A , Isabel. Insultos impressos: a guerra dos jornalistas
na
Independência
(1821-1823).
São Paulo: Companhia das Letras, 2000. p. 245; IANTT. Inquisição de Lisboa, processo 17397; IANTT. Inquisição
de Lisboa, processo 17422.
27
D R U M M O N D , A. M. V. de. Anotações à sua biografia. A N A I S DA B I B L I O T E C A N A C I O N A L . Rio dc Janeiro, v. 13, 1885-86, p. 44.
Entretanto, Carlos Rizzini considera c o m o inverossímeis as atitudes do M a r q u ê s de A n g e j a e do C o n d e de Parati. Ver: RIZZINI, Carlos. Dos clubes
secretos às lojas maçónicas, pp. 29-44.
28
BNL. Carta de José A n s e l m o Correia Henriques dirigida ao Rei D o m João VI, datada do Rio de Janeiro, 1816, na qual se pede que o Rei
dissolva as lojas maçónicas. Reservados, C O D 10793.
29
IANTT. Inquisição de Lisboa, processo 17338.
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Sociabilidades e circulação de idéias no Império Português na