Adeus à revolução neoclássica Robert Skidelsky 03/10/2008 A ameaçadora quebra do Lehman Brothers e a venda forçada do Merrill Lynch, dois dos maiores nomes das finanças, marcam o fim de uma era. Mas, então, o que virá a seguir? Os ciclos de modas econômicas são tão antigos como os ciclos econômicos e normalmente são causados por profundos distúrbios na atividade empresarial. Os ciclos "liberais" são seguidos por ciclos "conservadores", que dão lugar a ciclos "liberais" e assim por diante. Nos Estados Unidos, ciclos liberais são caracterizados por intervenções do governo e ciclos conservadores, pelo recuo do governo. Um longo ciclo liberal estendeu‐se dos anos 30 aos 70, seguido por um conservador, de desregulamentação econômica, que agora parece ter chegado ao fim. Com a estatização de dois gigantescos bancos hipotecários dos Estados Unidos, Fannie Mae e Freddie Mac, na seqüência de outra nacionalização também promovida neste ano, a do britânico Northern Rock, os governos começaram a intervir de novo, para evitar a dissolução do mercado. Os dias entorpecentes da economia conservadora acabaram ‐ por ora. Cada ciclo de regulamentação e desregulamentação é desencadeado por crises econômicas. O ciclo liberal passado, associado à política do "New Deal" do presidente Franklin Roosevelt e do economista John Maynard Keynes, foi acionado pela Grande Depressão, embora ainda fossem necessários os volumosos gastos governamentais da Segunda Guerra Mundial para que entrasse na marcha apropriada. Durante os 30 anos de era keynesiana, os governos no mundo capitalista geriram e regularam suas economias para manter o pleno emprego e moderar as flutuações econômicas. O ciclo conservador seguinte foi despertado pela inflação da década de 70, que pareceu ser produto das políticas keynesianas. O guru econômico dessa era, Milton Friedman, sustentava que a busca deliberada pelo pleno emprego estava fadada a alimentar a inflação. Os governos deveriam concentrar‐se em manter o dinheiro "sadio" e deixar a economia tomar conta de si mesma. A "nova economia clássica", como ficou conhecida, ensinava que, na ausência das rudes interferências do governo, as economias gravitariam naturalmente para o pleno emprego, maior inovação e melhores índices de crescimento. A crise atual do ciclo conservador reflete a acumulação maciça de dívidas de difícil recuperação, tornada visível após o debacle das hipotecas de má qualidade, que se iniciou em junho de 2007 e agora se disseminou para todo o mercado de crédito e afundou o Lehman Brothers. "Pense um uma pirâmide invertida", escreve o executivo de banco de investimento Charles Morris. "Quando mais se reivindica sobre a produção real, mais cambaleante fica a pirâmide". Quando a pirâmide começa a tombar, o governo ‐ isto é, os contribuintes ‐ precisam intervir para refinanciar o sistema bancário, reanimar os mercados hipotecários e evitar o colapso econômico. No entanto, quando o governo intervém nessa escala, costuma ficar por um longo tempo. O que está em questão aqui é o dilema sem solução mais antigo da economia: as economias de mercado são "naturalmente" estáveis ou precisam ser estabilizadas pela política? Keynes enfatizava a fragilidade das expectativas sobre as quais se baseia a atividade econômica em mercados descentralizados. O futuro é intrinsecamente incerto e, portanto, a psicologia do investidor é volúvel. "A prática da calma, da imobilidade, da certeza e segurança, de repente se rompe", escreveu Keynes. "Novos medos e esperanças assumirão, sem aviso prévio, o controle da conduta humana". Este é uma descrição clássica do "comportamento de manada" que George Soros identificou como característica predominante dos mercados financeiros. É tarefa do governo estabilizar as expectativas. A revolução neoclássica sustentava que os mercados eram muito mais estáveis ciclicamente do que Keynes imaginava, que se pode saber de antemão os riscos em todas as transações de mercado e que os preços sempre refletirão probabilidades objetivas. Tal otimismo em relação ao mercado levou a uma desregulamentação dos mercados financeiros nos anos 80 e 90 e à subseqüente explosão de inovações financeiras, que tornaram mais "seguro" captar empréstimos de somas cada vez maiores respaldadas em ativos com altas previsíveis. A bolha de crédito, recém‐estourada, alimentada pelos chamados "veículos de investimento estruturado" (SIVs, na sigla em inglês), derivativos, "obrigações garantidas por outros títulos" (CDOs) e classificações de risco de crédito "AAA" ilegítimas, foi construída a partir das ilusões de modelos matemáticos. Ciclos liberais, dizia o historiador Arthur Schlesinger, sucumbem à corrupção do poder; ciclos conservadores, à corrupção do dinheiro. Ambos têm seus custos e benefícios característicos. Contudo, se olharmos para os antecedentes históricos, o regime liberal dos anos 50 e 60 foi mais bem‐sucedido do que o regime conservador que o sucedeu. Com exceção da China e Índia, cujo potencial econômico foi desatado pela economia de mercado, o crescimento econômico foi maior e muito mais estável na era dourada keynesiana do que na era de Friedman; seus frutos foram distribuídos de forma mais eqüitativa; conservou‐se melhor a coesão social e hábitos morais. São vantagens importantes para levar‐se em conta diante certa lentidão econômica. A história, é claro, nunca se repete exatamente. Hoje há sistemas de interrupção da negociação em bolsas para evitar um desabamento no estilo de 1929. Mas quando o sistema financeiro, deixado à própria sorte, fica congelado, como ficou agora, somos claramente encaminhados a uma nova rodada de regulamentação. A indústria ficará livre, mas as finanças serão mantidas sob controle. Os ciclos das modas econômicas mostram como a economia está longe de ser uma ciência. Não se pode pensar em nenhuma ciência natural na qual a ortodoxia oscile entre dois pólos. O que dá à economia a aparência de uma ciência é que suas proposições podem ser expressas matematicamente, abstraindo‐se de muitas características decisivas do mundo real. A economia clássica da década de 20 abstraiu o problema do desemprego, supondo que não existia. A economia keynesiana, por sua vez, abstraiu o problema da incompetência e corrupção das autoridades, supondo que os governos eram administrados por especialistas benevolentes e oniscientes. A "nova economia clássica" de hoje abstraiu o problema da incerteza, supondo que poderia ser reduzida a riscos mensuráveis (ou contra os quais se podia proteger). Afora um ou outro gênio, os economistas moldam suas suposições para que se adaptem ao estado das coisas atual, e então as cercam de uma aura de verdade permanente. São mordomos intelectuais servindo aos interesses dos que estão no poder, e não observadores vigilantes da realidade em mutação. Seus sistemas os prendem na ortodoxia. Quando os eventos, por algum motivo, coincidem com seus teoremas, a ortodoxia que adotaram goza seu momento de glória. Quando os fatos mudam, torna‐se obsoleta. Como escreveu Charles Morris, "intelectuais são indicadores confiáveis com atraso, guias quase infalíveis do que costumava ser verdade". 
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