PANORAMA
“As desigualdades nos
nossos países de economias
emergentes são escandalosas”
Foto: Müller-Westerhagen - All rights reserved
Helga Nunes e António Poncioni
(ENTREVISTA)
José Ramos-Horta é, actualmente, o Representante Especial do Secretário-Geral da ONU na
Guiné-Bissau. Ele foi Presidente da República de Timor-Leste e obteve o Prémio Nobel da Paz,
em 1996. A revista Capital teve a oportunidade de o entrevistar e regista aqui o seu ponto
de vista sobre os progressos de Timor-Leste, da Guiné-Bissau e dos novos players na África
Subsaariana.
TIMOR-LESTE
Timor Leste teve duas
independências, dois colonizadores
distintos e é o único país oriental
de fala portuguesa. Como entende
que se vai desmarcar e fundir-se na
CPLP?
Timor-Leste é um país asiático, a
geografia impõe-se; a história e as
influências que são absorvidas ao
longo da história de cada povo casos da colonização portuguesa,
evangelização cristã, etc. - não
alteram esta realidade. Timor-Leste é
um país geograficamente asiático e
como praticamente todos os países
asiáticos, é muito heterogéneo do
ponto de visto étnico e cultural.
Para além de que Timor-Leste,
por afinidade histórica, aderiu
à Comunidade dos Países de
Língua Portuguesa (CPLP), a sua
vocação imperativa é integrar-se
regionalmente, restabelecer pontes
com a Indonésia, e outros países
da região, sem descurar a Austrália,
Nova Zelândia e as ilhas-Estados
do Pacífico Sul, como a Papua-Nova
Guiné e Fiji.
Espero que Timor-Leste possa aderir,
em 2015, à ASEAN (Associação dos
Países do Sudeste Asiático) pois isto
é um imperativo estratégico para
o país. Para mim, a CPLP não deve
aspirar ir além do que é, um fórum
cultural, na sua essência. Tentar fazer
da CPLP algo que não pode ser, por
exemplo, fazer da CPLP uma espécie
de organização com características e
vocação de uma organização regional
seria absurdo.
Vejamos, por exemplo, com quem
Portugal mais se relaciona a todos
os níveis - com os seus parceiros
europeus e os EUA. Vejamos com
quem o Brasil mais se relaciona - com
os seus vizinhos, os EUA, Europa.
Claro, tentam também ocupar algum
espaço na China e Índia.
Portugueses regressam à Angola e
Moçambique pelas oportunidades
que estes dois países oferecem, e
não por amor à CPLP. Há obviamente
algo sentimental mas nós não
vivemos de sentimentos apenas.
GUINÉ-BISSAU
A 31 de Dezembro, o SecretárioGeral Ban Ki-moon nomeou-o
Representante Especial na GuinéBissau. Que diagnóstico faz daquele
país e como avalia os progressos
registados em termos sócioeconómicos?
O governo de Transição – com
o apoio dos seus parceiros
internacionais e, em especial de
Timor-Leste e da Nigéria – levou
a cabo com grande sucesso o
Recenseamento Eleitoral. Apesar
das dificuldades iniciais, foram
recenseados 95% de guineenses
para cima de 18 anos. Um verdadeiro
sucesso, singular, nem conseguido
nos países mais avançados. Parabéns
a Timor-Leste que liderou este
processo quer no plano financeiro,
quer no plano técnico. Parabéns aos
irmãos da Guiné-Bissau que aliás
foram eles que se desdobraram
pelo seu próprio país em condições
muito difíceis. Mas as eleições serão
apenas o começar de uma nova era –
com muitos mais e maiores desafios
—para a Guiné-Bissau.
Não podemos esquecer que para
além de todos os indicadores
estruturais, a situação económica
e social que se vive na GuinéBissau é preocupante. A redução
da pobreza, um dos principais
Objectivos do Milénio para o
Desenvolvimento, é uma meta quase
inatingível. O desemprego persiste,
as desigualdades agravam-se, as
condições de saúde e educação têm
vindo a deteriorar-se.
Mas para além das dificuldades de
pagamento de salários, o governo
não tem conseguido assegurar
serviços mínimos: o abastecimento
de água, electricidade, saneamento
ou estradas.
Algumas das maiores riquezas do
país – as madeiras – continuam a
ser desenfreada e abusivamente
exploradas, os recursos piscícolas
não estão a ser protegidos, nem o
Estado tem capacidade marítima de
fiscalizar.
Os enormes desafios que se impõem
requerem a participação de todos
os guineenses, não apenas de um só
partido político.
Os líderes guineenses optaram
por um sistema semi-presidencial
de representação proporcional,
com separação de poderes e
interdependência dos órgãos de
soberania. O que parece não ter
funcionado; aliás tem sido fonte dos
conflitos havidos nesse país.
Este modelo dito semipresidencialista tem sido criticado
muito na Guiné-Bissau e, por várias
vezes, foi discutida a alteração
Capital Magazine · MAIO 2014
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da Constituição. Em vez de
interdependência tem-se assistido
à concorrência entre os órgãos de
soberania que tem contribuído para
o clima de instabilidade que se tem
vivido na Guiné-Bissau.
Neste quadro constitucional, as
capacidades de liderança exigidas
são ainda mais relevantes: o
Presidente e Primeiro-Ministro
têm de encontrar e tornar firme
entre eles um espírito de equipa.
É imperativo adoptar estratégias
de complementaridade, pelo bem
público e pelo povo generoso e sábio
de todos os cantos da Guiné-Bissau.
O Presidente da República é o Chefe
de Estado, símbolo da unidade e
garante da independência nacional
e da Constituição. O Presidente da
República é também o Comandante
Supremo das Forças Armadas.
Na situação política actual, com a
Guiné-Bissau a sair de uma crise
política que levou à suspensão das
relações normais com a Comunidade
Internacional e com a urgência de
reformas, o próximo Presidente
da República terá de ser capaz
de colaborar com o Governo e
a oposição, com todas as forças
políticas, culturais, religiosas, sociais
e económicas para gerar consensos
de esperança onde possa ser
encontrado um futuro de bem-estar e
harmonia a todos os níveis, incluindo
no plano de política.
É por isso que o Presidente da
República tem de manter uma
posição suprapartidária. Criará
condições para o exercício saudável
da democracia e, antes de mais,
para uma reconciliação nacional
duradoura.
Estes são os requisitos necessários
para cumprir um programa de
reformas que conduza à refundação
do Estado. Tem de atender aos ideais
do bem estar social e económico, de
alegria e paz do povo guineense.
E se assim for, uma figura respeitada
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MAIO 2014 · Capital Magazine
na Comunidade Internacional poderá
contribuir para que o Estado da
Guiné-Bissau recupere a confiança
dos parceiros internacionais.
O papel principal do Presidente da
República será, pois, o de congregar
todas as forças políticas para o
diálogo e para o entendimento
e construir a paz à volta das
prioridades mais importantes do país.
Depois, é o Primeiro-Ministro que
deverá encarregar-se da refundação
do Estado e das grandes reformas
económicas, sociais e políticas. Com
um Governo competente e que
saiba ouvir e fazer-se ouvir, de mão
dada com todos, sem exclusão, sem
animosidades, sem descuidos.
ÁFRICA SUBSAARIANA
Nos últimos anos, têm surgido novos
‘players’ na África Subsaariana.
Países como a China, Índia ou
Brasil, com ambições africanas mais
recentes ganham protagonismo face
a países como Portugal, França ou
Inglaterra. Serão estas mudanças
sintomáticas?
Primeiro, devo dizer que ainda não
ouvimos o canto de cisne europeu
ou americano. Europeus e norteamericanos ainda vão dominar a
Ciência, Tecnologia, os mecanismos
financeiros, durante muitas décadas.
Todos os países mencionados,
China, Índia, Brasil, Turquia, embora
fizeram progressos notáveis nas
últimas décadas, ainda têm um
longo caminho a percorrer, caminho
de pelo menos três décadas, até
ascenderem ao estatuto de países
verdadeiramente industrializados,
rivalizando com qualquer país
europeu industrializado, com per
capitas anuais de pelo menos
$20.000-$30.000 e com distribuição
equitativa de suas riquezas. As
desigualdades nos nossos países
de economias emergentes são
escandalosas, insustentáveis
politicamente e economicamente.
Pessoalmente acho que Angola e
Moçambique deveriam continuar a
privilegiar e a expandir a cooperação
técnica, trocas comerciais,
investimentos, etc. com o Brasil e
Portugal, assim como com o resto da
Europa. Apesar de todos os negativos
que possamos atribuir a Portugal
e aos europeus, eles regem-se
por regras claras, têm tecnologias
avançadas e adequadas para as
nossas economias.c
PANORAMA
Helga Nunes e António Poncioni
(INTERVIEW)
“The inequalitieS
in our countries
are scandalous”
Dr. José Ramos-Horta served as President of the Republic of East Timor between 2007 and
2012 and was awarded the Nobel Peace Prize in 1996. Ramos-Horta currently serves as Special
Representative of the UN Secretary-General in Guinea-Bissau. Capital Magazine had the
opportunity to interview him and capture his thoughts on the progress made in East Timor, in
Guinea-Bissau and also on a series of new and active players in Sub-Saharan Africa.
EAST TIMOR
East Timor gained its independence
twice, was under the rule of two
different colonial powers and is the
only Portuguese-speaking country in
Asia. How do you think it will stand
out and mingle in the CPLP?
East Timor is a small country in Asia,
its geographical location influences
its condition; the history and the influences that its people have assimilated
through the years – for instance the
Portuguese colonization, the Christian
evangelism – do not alter this reality.
Geographically speaking, East Timor
is an Asian country, and like almost
every single Asian country, it is very
heterogeneous both ethnically and
culturally.
Besides the fact that East Timor joined
the Community of Portuguese-Speaking Countries (CPLP – Comunidade dos
Países de Língua Portuguesa) for historical reasons, its imperative calling
is to further its regional integration,
to restore bridges with Indonesia, and
other countries in the region, without
neglecting Australia, New Zealand
and the South Pacific islands, such as
Papua New Guinea and Fiji.
I am hopeful that in 2015 East Timor
can join ASEAN (Association of
Southeast Asian Nations) as this is of
strategic importance for the country.
For me, the CPLP should not seek
to go beyond what it already is: a
cultural forum. An attempt to use the
CPLP for something that it cannot be,
for instance transforming it into an
organization whose mission and characteristics would resemble those of a
regional forum, would be absurd.
Let us consider, for instance, the interlocutor with whom Portugal interacts
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MAIO 2014 · Capital Magazine
the most at all levels – with its European partners and with the United
States. Who does Brazil interact with
the most – with its neighbors, the
United States and Europe. Quite naturally, they also try to be influential in
China and in India.
Portuguese citizens are heading
back to Angola and to Mozambique
because of the opportunities these
two countries are offering, and not
because of the CPLP. Obviously, there
are feelings involved in this phenomenon, but we do not live in a world
strictly driven by emotions.
GUINEA-BISSAU
On December 31st, the UN Secretary-General Ban Ki-moon appointed
you as his Special Representative
in Guinea-Bissau. What diagnosis
do you make of this country and its
progress in socioeconomic terms?
With the support of its international
partners, particularly East Timor and
Nigeria, the Transitional Government
has carried out the Electoral Census
with great success. Despite initial difficulties, 95% of the Guineans above
18 years old registered to vote. This
is a true and unique success that not
even the most developed countries
can brag about. Congratulations to
East Timor who led this process from
both financial and technical standpoints. Congratulations to the brothers of Guinea-Bissau who by the way
were the people who fiercely devoted
themselves to their own country in
very difficult conditions. But elections
shall only mark the beginning of a
new era – with many more and greater
challenges to come – for GuineaBissau.
We cannot forget that besides all the
structural indicators, the social and
economic situation in Guinea-Bissau
is of concern. Poverty reduction,
which is one of the key Millennium
Development Goals, is an almost
unattainable target. Unemployment
is persistent, inequalities tend to
worsen, and we note a deterioration
of health and education conditions.
Aside from the challenges faced to
get salaries paid timely, the government has failed to ensure basic services such as water supply, electricity,
sanitation or transportation.
One of the country’s greatest wealth
– its timber – continues to be relentlessly and abusively exploited, its
piscicultural resources are not protected and the state does not have
the capacity to patrol on the high
seas.
The enormous challenges faced by
Guineans require the participation of
the Guinean people at large and not
of just one political party.
The Guinean leaders have opted for a
semi-presidential system with proportional representation, separation of
powers and checks and balances. This
seems to not have worked; actually,
it has been a source of conflict in the
country.
This so-called semi-presidential model has been hugely criticized in Guinea-Bissau and in several occasions an
amendment of the Constitution has
been discussed. Instead of interdependence there has been competition
amongst the several sovereign bodies,
which has contributed to the context
of instability currently experienced in
Guinea-Bissau.
In this constitutional framework, the
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leadership skills required are even
more relevant: the President and the
Prime Minister must agree on and
consolidate a teamwork spirit between them. It is imperative that complementary strategies are adopted, for
the sake of the public at large and the
generous and wise people of every
single corner of Guinea-Bissau.
The President is the head of state, the
symbol of unity and the guarantor
of national independence and of the
Constitution. The President is also the
Commander in Chief of the Armed
Forces.
In the current political situation,
where Guinea-Bissau is exiting a
political crisis, which led to the suspension of its relationships with the
international community, and given
the urgent need for reforms, the next
President will have to work together
with the government, the opposition,
all the political, cultural, religious,
social and economic interlocutors,
in order to generate consensus and
hope, which lead to a harmonious
future and well-being at all levels,
including at the political one.
That is why the President has to hold
himself in a nonpartisan position. He
will create the conditions required
for a salutary exercise of democracy
and, above all, for a lasting national
reconciliation.
These are necessary requirements for
the implementation of a program of
reforms aimed at the rebuilding of the
state. The President must strive to attain the ideals of social and economic
well-being, and also of happiness and
peace for the Guinean people.
Should this happen, a respected figure in the international community
will be in a position to help GuineaBissau regain the trust of its international partners.
The main role of the President will
thus be to bring together all the political bodies in a way that enables them
to dialogue and reach an understanding capable of building peace around
the key priorities for the country.
It is up to the Prime Minister to take in
of the rebuilding of the state and the
major economic, social and political
reforms. With a competent government that can listen and make itself
listened to, working together hand in
hand with everybody, without exclusion nor animosity nor carelessness.
Sub-Saharan Africa
In recent years, new players have
emerged in Sub-Saharan Africa.
Countries such as China, India or
Brazil, with more recent African
ambitions, are gaining presence at
the expense of countries such as Portugal, France or England. Are these
symptomatic changes?
First, I must say that we have not yet
heard the European or the American
“Swan song”. Europeans and Americans will most likely still dominate
science, technology, financial mechanisms, for many decades to come.
Although they have made significant
progress in the past decades, all the
above-mentioned countries, China,
India, Brazil, Turkey, still have a long
way to go - I would say of at least
three more decades – before they can
reach the status of fully industrialized
countries and effectively challenge
any industrialized European country
with an annual per capita of at least $
20,000 - $ 30,000 and with an even
distribution of its wealth. Inequalities
in our emerging countries are outrageous, and are both politically and
economically unsustainable.
Personally, I think Angola and Mozambique should continue to focus on
and expand their technical cooperation, their trade and investment relationship, etc. with Brazil and Portugal,
as well as with the rest of Europe.
Despite all the negative features that
Portugal or Europe can be credited
with, they are governed by clear rules
and have advanced and appropriate
technologies for our economies.c
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