TECNOLOGIA E CURRÍCULO, PODER E AUTORIA
LEONARDO SILVEIRA SANTANA
UNEB, mestrando em Educação e Contemporaneidade
TÂNIA MARIA HETKOWSKI
UNEB, Professora Doutora em Educação
O currículo perde o caráter humanista e passa a ser ideológico. Diante da releitura da produção
conceitual pós-estruturalista e cultural pós-crítica que Thomaz Tadeu da Silva (2001) traz ao
discutir currículo na contemporaneidade, o currículo, em termos epistemológicos, perde
definitivamente, para essa corrente de pensadores, o caráter amoral transcendental da proposta
clássica. Evidenciando seu compromisso com dado projeto político e suas implicações nas
tessituras amalgamadas social, técnica, econômica e culturalmente de determinado grupo. O
currículo, assim como as demais construções humanas, é situado em espaço geográficosimbólico relativo e influenciado pelas aspirações humanas, escolhas e capacidade de interpretar
a vida, provenientes do contexto histórico ao qual pertence.
Da metodologia para a epistemologia. Diante desse percepto da realidade sócio-educacional
humana há uma transferência da preocupação metodológica que se detêm na questão de como
ensinar algo para a questão dialética-crítica que investiga o porquê determinado conhecimento é
escolhido e legitimado como importante. Para tanto as contribuições de Foucault a respeito do
binômio saber-poder serviram de fundamental lastro teórico para decifrar o agenciamento sóciotécnico1 que o currículo se constitui na contemporaneidade.
Saber e poder ou saber versus poder?
[...] para Foucault, o saber não é o outro do poder, não é externo ao poder. Em vez disso saber e
poder são mutuamente dependentes. Não existe saber que não seja a expressão de uma vontade
de poder. Ao mesmo tempo não existe poder que não se utilize de um saber, sobretudo de um
saber que se expressa como conhecimento das populações e dos indivíduos submetidos ao
poder. (SILVA, 2001).
1
Agenciamento sócio-técnico aqui entendido, na perspectiva de Lévy (1993), enquanto conjunto de valores-ações-escolhas
humanas, nos âmbitos sociais, políticos e técnico-científicos que associados possuem o potencial de construir a realidade de um
dado momento histórico humano. Ou ainda, modo de ser e funcionar que elabora a realidade humana, atualizada por meio de
ações objetivas e subjetivas, materiais e imateriais, naturais e artificiais que operam imbricadamente nas dimensões biológicas,
sociais, políticas, econômicas, culturais e técnico-científicas do homem (LIMA JR, 2005).
O homem tem o poder de conferir sentido a si mesmo, ao outro e ao mundo. O homem enquanto
ser capaz (que tem o poder de) dar sentido ao mundo, a si mesmo e ao outro possui uma relação
intrínseca natural com o poder. O poder, obviamente em termos não absoluto, é da condição
humana e me ocorre que este elo impulsionou nossa existência no planeta, e, ao mesmo tempo,
nos constituiu humanos. O que quero afirmar com isso é que somos humanos porque podemos
dar sentido e transformar/criar a realidade.
E o currículo enquanto artefato humano (LIMA JR, 2003, 2005; SILVA, 2001; MOREIRA, SILVA,
2002) é uma das muitas estradas que atualizam e perpetuam os anseios dos homens. Os
homens que, em determinado momento histórico, ocupam uma posição de privilégio na estrutura
material-simbólica de determinada sociedade, sem dúvida, possuem maior poder de construir
sentido e realidade, ainda que esse poder, apesar de fortemente condicionante, não seja
absoluto. Esse tipo de agenciamento sócio-técnico termina por definir a natureza-objetivo dos
currículos propostos para formação dos grupos sociais, e corroboram para a manutenção/
perpetuação de dado modelo de sociedade (LIMA JR, 2003, 2005; SILVA, 2001).
Os currículos oficiais contemporâneos, por exemplo, estão pautados no projeto da ciência
moderna e segundo Boaventura Santos (1998) o objetivo dessa forma/conteúdo de decifrar o
mundo e o homem foi poder controlar os fenômenos naturais e humanos da realidade. A própria
lógica da literização metodológica científica propõe isso: simplificar, medir, controlar, modificar.
Nessa visão de mundo, a natureza precisa ser controlada para o bem estar humano e, sobretudo,
de certos grupos que interferem fortemente na construção desses currículos (SILVA, 2001;
MOREIRA, SILVA, 2002). Teria sido o período histórico no qual o homem melhor conseguiu
estabelecer nexos causais a ponto de ampliar sua possibilidade de controle sobre a natureza.
Diante dessa constatação, ou melhor, interpretação/ criação, já tentando fugir da pretensão
moderna de capturar a verdade absoluta, convido o leitor a uma rápida viagem ao túnel histórico
do tempo humano, para imaginarmos nossos mais remotos antepassados pré-históricos e suas
relações de poder com o mundo, a fim de traçar um hipotético paralelo com as pretensões de
controle e domínio modernos, mais adiante. Peçamos licença poético-criativa para nosso ensaio e
imaginemos o homem pré-histórico diante de um gigantesco mundo incognoscível. Esse mundo
poderoso e implacável versus uma espécie frágil imersa num jogo de sobrevivência que há todo
momento parece dar indícios de que o mais forte (poderoso) se estabelece de forma privilegiada,
e o mais forte não era o homem.
O homem sonha em transformar o mundo em um lugar seguro. O homem não compreendia os
fenômenos naturais, mas estava submetido drasticamente a eles, a essa força arrebatadora e
potentosa. Ele não era a espécie mais forte, não possuía garras ou dentes que o colocassem
numa posição de destaque, sequer diante dos outros animais, muito menos diante da natureza. O
inferno são os outros2 (humanos e não humanos). Talvez, por causa dessa esmagadora
sensação de impotência, dessa ausência de poder, o homem tenha acalentado o ideal, a ‘utopia’,
o sonho de transformar a natureza em seu Éden, e exatamente nesse momento tenha surgido o
projeto de domesticação do mundo para ampliar as possibilidades de sobrevivência, satisfação e
felicidade humanas. Humanizar o mundo e submetê-lo a serviço da nossa satisfação, não apenas
sobrevivendo a ele, mas dominando-o para que pudéssemos nos tornar soberanos, poderosos,
deuses à sua imagem e semelhança, ou à imagem e semelhança do que conseguíamos
perceber/interpretar do que chamamos divindade. Em uma das tantas palestras que assisti,
narraram uma entrevista feita a uma das crianças que sobrevivem nos semáforos da cidade de
São Salvador e ao perguntá-la qual o seu maior sonho ela arrematou convictamente: - Ter uma
sinaleira só pra mim!
O homem dá sentido para poder transformar o mundo. Para garantir sua sobrevivência o homem
desenvolve a capacidade de dar sentido ao mundo como forma de capturá-lo, apreendê-lo para
em seguida controlá-lo. O homem sente necessidade de poder por questão de sobrevivência e
por satisfação das necessidades materiais e simbólicas, individuais e coletivas (LIMA JR,
HETKOWSKI, 2006). O saber e o conhecer3 como meio de controlar para transformar e satisfazer
nossos anseios humanos. Afinal, como controlar o desconhecido ou o não sabido? Essa
elaboração mental se aplica em primeira instância à relação do homem com a natureza, e em
seguida, à relação do homem com seus pares. São os outros externos a cada individualidade
humana que compõem a existência humana em sua dimensão social.
Estabelece-se as relações de poder homem-saber-mundo e homem-saber-homem. Relação de
poder que estabelecemos com o mundo e com o outro, interferindo na relação que construímos
com a natureza e com os outros pares igualmente sedentos por poder transformar a realidade em
seu paraíso particular. Configura-se enquanto dupla aspiração humana: domesticar /humanizar a
natureza e convencer seus pares de que o sentido que atribui ao mundo é a melhor forma de
2
Referência à peça existencialista de Jean Paul Sartre, Entre Quatro Paredes, que narra o encontro de três personagens
condenados a conviver eternamente um com os outros num inferno todo particular. Diante de verdadeiras batalhas psicológicas os
personagens se revelam, acotovelando-se uns aos outros.
3
Usualmente os termos ‘saberes’ e ‘conhecimentos’ são empregados nos dicionários e discursos como se possuíssem o mesmo
significado, em caráter de sinônimos. De acordo com a etimologia dessas palavras, ‘saber’ deriva do latim ‘sapere’ que significa
‘ter sabor, ter gosto’, enquanto ‘conhecer’ vem do latim ‘cognoscere’ (co + gnos) que quer dizer ‘aprender com a mente’. No
grego, ‘saber’ deriva de ‘sophia’, ou seja, sabedoria. O termo ‘filosofia’, literalmente, amor filial ou amizade (philo) à sabedoria
(sophia), tem correlação direta com a palavra ‘saber’. Quem sabe é quem possui a sabedoria e para isso é necessário uma
apropriação do que é sabido, o que vai além do conhecimento, extrapola-o. Conhecer é ter ciência ou estar ciente da existência de
algo ou de alguém, de alguma informação. Saber é apropriar-se dessa existência(informação) de forma que ela passa a fazer parte
de você. Utilizando a metáfora sugerida pelo termo em latim, a absorção dos alimentos, dos sabores e gostos, pelo organismo
biológico confere a este último a apropriação intrínseca do que constituía esse alimento. Ou seja, quem come uma maçã não
apenas a conhece profundamente, mas a possui como parte integrante do seu ser.
interpretá-lo, conhecê-lo, e consequentemente, meio mais eficaz de dominá-lo. Esses desejos, no
decorrer da história civilizatória humana, foram negociados/atualizados por meio de muitas ações
violentas (‘indícios de que o mais forte [...] se estabelece de forma privilegiada’), mas também por
meio de outras formas de convencimento como a dialética e a afetividade.
Portanto, a realidade material simbólica dos grupos humanos é erigida a partir das relações de
poder que se estabelecem na tessitura social do homem consigo mesmo, com o mundo e com os
outros humanos e não humanos. Daí a importância sine qua non da criação da linguagem como
forma de criar, socializar e estabelecer sentidos que nortearão os currículos formais e informais,
explícitos e ocultos, ditos e não ditos que atualizam os modelos sociais, instaurando as realidades
simbólicas-materiais coletivas e interferindo nas construções individuais humanas (LÉVY, 1993;
LIMA JR, HETKOWSKI, 2006; LIMA JR, 2003, 2005; MOREIRA, SILVA, 2002; SILVA, 2001).
O homem inventa o grupo social, a linguagem e domestica a natureza por meio da agricultura. A
criação dos grupos sociais como forma de ampliar a sobrevivência em um mundo hostil e o
invento da linguagem como meio de comunicação que viabilizasse o convívio em grupo para a
construção da inteligibilidade em comum foram de capital importância na promoção do primeiro
grande evento de domesticação do mundo, a agricultura (LÉVY, 1993; LIMA JR, HETKOWSKI,
2006). O homem domesticou-se, socializando-se e criando cultura (compartilhamento de
sentidos) para poder dar seus primeiros passos no sentido de humanizar o mundo. Seriam esses
agenciamentos o fundamento basilar que nos levaria a acreditar, no século XVI, que seria
possível controlar o mundo e instaurar o nosso Éden Antropocêntrico?
Nosso primeiro artefato foi o corpo e sua linguagem. Nesse início foi a oralidade o instrumento
intelectual utilizado para a construção epistemológica do homem e como forma de perpetuação
das estruturas daquelas sociedades, como forma de construir/ interpretar/socializar/transmitir as
formas de funcionamento do mundo e das sociedades, satisfazendo suas necessidades,
buscando soluções para seus problemas (LÉVY, 1993; LIMA JR, HETKOWSKI, 2006). Nas
civilizações da Antiguidade, antes da escrita, a oralidade primária torna-se o principal meio de
difusão do saber-poder. Antes da escrita congelar o tempo, antes de romper os espaços, antes de
tornar-se história (LÉVY, 1993), a técnica oral primária de transmissão do conhecimento com o
apoio das suas tecnologias acessórias da fala (a declamação, a retórica e a dialética) definia as
formas e representação do pensamento (CHAVES, 1999, p.199). Lévy (1993, p. 95) compara as
sociedades de cultura oral primária a rios sem bordas, num movimento com ritmo indefinido, cuja
transmissão do conhecimento era feita por meio de narrativas e cantos, ritos, sinais mnésicos,
encenações, representações dramáticas, cantos e narrativas.
A escrita surge com outra criação humana que busca controle do conhecimento. Segundo Lévy
(1993), a escrita nasce como transcrição literal da oralidade, e no decorrer do seu exercício
histórico vai assumindo caráter próprio. Traz uma drástica revolução na construção do
conhecimento humano, mudando a relação com o tempo e o espaço, possibilitando maior
domínio dos signos e do homem, por meio de calendários, anais, leis, regulamentos, descrição de
processos, registros de contas, etc. Com um acúmulo e uma difusão maiores de conhecimentos,
torna-se possível a reconstrução/representação ordenada do tempo e da história. O saber
concreto da cultura oral, pautado na memória, na tradição, no cotidiano, nas referências míticas e
aventuras transmitidas de geração a geração, presencia a ruptura de seus territórios que tornamse abstratos, imutáveis, rígidos, controlados, sistêmicos, suscetíveis a análise e exame
posteriores.
No intuito de “congelar, programar, represar ou estocar” (LÉVY, 1993, p. 88) o futuro e o passado,
as idéias e os fatos, os espaços e o tempo, a escrita criou uma possibilidade mais concreta de
controle (poder) do homem sobre a natureza e sobre as sociedades. Entretanto, o processo de
legitimação da escrita em um mundo oralizado não ocorreu sem crises e conflitos entre
percepções epistemológicas divergentes, o que pode ser evidenciado no famoso diálogo mítico
Fedro, de Platão.
O documento histórico retrata um diálogo entre figuras mitológicas, com comentários que seriam
de Sócrates, no período de transição entre a cultura oral primária e o surgimento da escrita. De
acordo com Chaves (1999) o “deus Thoth ou Teuto (ou ainda, Hermes para os gregos), deus
egípcio que inventou a escrita, orgulhoso de sua principal invenção, vem mostrá-la ao rei Tamos”.
Sócrates desacredita-ironiza a escrita, afirmando que o conhecimento registrado em papiros
construirá jardins literários para entreter a velhice como passa-tempo de recordações para quem
não mais pode contar com a memória, esmagada pelo peso dos anos.
Apesar da preocupação do filósofo em apontar a necessidade de tradução/interpretação
enquanto obstáculo real para o qual a escrita precisaria buscar soluções, ele equivocou-se, pois
‘as verdades’ humanas passaram a ser inscritas e ao contrário ampliaram-se. Desde então, como
afirma Lévy (1993, p. 89), a partir do terceiro milênio antes de Cristo, o mundo passa a ser um
grande texto a ser decifrado. A maiêutica de Sócrates, o parto das idéias, une-se à hermenêutica,
a arte de interpretar.
O que importa evidenciar, nesse momento, diante do que foi dito, é que a escrita, e por extensão
as interpretações e organizações sociais que atualizou, apesar de ter promovido maior controle
do homem ou de grupos de homens sobre o mundo, à medida que criou a necessidade de
interpretação também abriu brechas (HETKOWSKI, NASCIMENTO, 2009; SANTAELLA, 2003)
para o escapamento do saber já que liberta a mensagem do emissor, ampliando a possibilidade
de múltiplas interpretações, obliterações, redirecionamentos e alterações de acordo com as
subjetividades dos grupos e de cada indivíduo situado em determinado lugar-tempo da história
humana (LÉVY, 1993; LIMA JR, HETKOWSKI, 2006).
A resistência dos homens da oralidade primária à escrita explicita uma preocupação com a
preservação
da
validade-autenticidade
dos
conhecimentos
humanos
acumulados
pela
experiência oral ao serem desvinculados fisicamente do mestre, o emissor/produtor original, mas
também representa uma tentativa de preservação de poder já que a escrita descola o podersaber do orador, ampliando o poder do receptor capaz de decodificar seus códigos que ao
traduzir pode criar novos sentidos sem a interferência imediata do emissor. Ao mesmo tempo em
que amplia o controle, a escrita possibilita um escape.
Nesse contexto, diante da tentativa de imortalizar a verdade, nasce a base tecnológica para a
construção dos princípios universais do discurso e da argumentação racional que caracteriza a
ciência moderna. Com o método de exposição analítica, no século XVI, trazido pelo matemático e
filósofo francês Pierre de la Ramée, conforme explicita afirma Lévy (1993), nasce um novo gênero
de apresentação do saber, mais sistêmico, estruturado em paginação, sumários, cabeçalhos,
índice, tabelas, diagramas, árvores em redes, com elementos segmentados em função de uma
unidade geral maior.
EA + IM = CM ----> o matema equivale a: Exposição Analítica e Imprensa Mecânica produzindo a
Ciência Moderna. A cultura letrada organizada segundo a exposição analítica instaura um novo
gênero de representação/apresentação do saber humano, mais hierarquizado, e, portanto mais
controlado, e não por acaso, vale evidenciar, as estruturas sociais vigentes também se
constituíam bastante rígidas. Esse método aliado ao invento da imprensa mecânica de
Gutemberg, juntos, teriam instaurado o novo modelo cognitivo que fundamentou a epistemologia
da Ciência Moderna (LÉVY, 1993).
Livros a mancheias. A invenção de Gutenberg simplificou a produção e a interpretação dos
textos, libertando-os da heterogeneidade manuscrita, reduzindo os erros dos copistas na
reprodução do pensamento textual e gráfico, ampliou significativamente a disseminação e a
circulação de conhecimentos, valores, percepções do mundo. Solidificou, enfim, a cultura letrada.
Essa tecnologia causou uma revolução social, ampliando as mudanças já propiciadas pelo
advento da escrita, possibilitando maior disseminação do pensamento e da produção do
conhecimento das idéias, ideais e valores de quem detinha esse meio. Possuir maior influência
na produção de sentido, portanto, possibilita maior poder na construção da realidade. Não foi a
toa que muitos representantes das classes dominantes da época lutaram fervorosamente contra o
potencial da imprensa na disseminação do saber-poder, alegando temer a vulgarização do saber
humano, temiam também o deslocamento do poder-saber.
Tanto a escrita quanto a sua reprodução em larga escala estavam intimamente condicionadas ao
poder econômico (HETKOWSKI, NASCIMENTO, 2009; SANTAELLA, 2003) para se ter acesso
aos seus instrumentos materiais, era necessário também ter domínio técnico especializado para
manipular os artefatos, ou seja, era necessário saber-poder ler, interpretar e criar (escrever) a
escrita, bem como saber-poder reproduzi-la mecanicamente.
Sem dúvida os indivíduos que
tinham acesso a esses agenciamentos sócio-técnicos estavam em vantagem na produção de
sentido e na interpretação-criação da realidade. Eram (e são) os emissores, os ativos, os
agentes. Havia, portanto, maior dificuldade para os que não tinham acesso ao artefato ou não
possuíam o conhecimento de decodificação, criação e manipulação dessas técnicas. Eram (e
ainda são) os receptores, os passivos, os que sofrem a ação.
Esses instrumentos foram criados com o intuito de controlar o conhecimento, os homens, o
mundo, ampliar a disseminação de saberes, construir realidades, e estiveram quase que
exclusivamente nas mãos das classes mais poderosas política, econômica e culturalmente
(HETKOWSKI, NASCIMENTO, 2009; SILVA, 2001; MOREIRA, SILVA, 2002; SANTAELLA,
2003). Contudo ainda que dentro da comunicação unidirecional, na qual os interlocutores
exercem papeis de poder drasticamente diferentes e desequilibrados, por mais que a força da
estrutura social externa condicione fortemente (às vezes esmagadoramente), dado os recursos
materiais-simbólicos parcos nos quais são inseridos os preteridos sociais, há sempre um dado
momento em que o emissor perde a mensagem e o receptor fica cara a cara com a mesma,
sozinho, em seu infinito particular, e nessa curvatura ele tem poder de fazer algo. Ainda que se
configure em um poder relativo, há um deslocamento possível de ressignificação, uma brecha
para a singularidade (LIMA JR, HETKOWSKI, 2006).
Com a digitalização e sua disposição em rede surge uma possibilidade mais ampla de autoria, coautoria e bidirecionalidade nos processos formativos humanos. Um exemplo cabal desse tipo de
agenciamento é a forma como as pessoas produzem e veiculam conteúdos audiovisuais, na
atualidade, diferente do audiovisual clássico, massivo e unidirecional, ainda mais concentrado nas
mãos dos conglomerados midiáticos (SANTAELLA, 2003). Essas comunidades digitais
audiovisuais, a exemplo do YOUTUBE, em suas dimensões hipertextual, hipermidiática e
multimidiático-interativa “oferece(m) um domínio mais rápido e mais fácil do que através do
audiovisual clássico (analógico) ou do suporte impresso.” (LÉVY, 1993). Sem dúvida a forma de
produção audiovisual mudou. O que se verifica atualmente é que as pessoas estão produzindo
conteúdo audiovisual na rede, por conta própria, em ambientes colaborativos e coletivos, como
nunca antes puderam fazer, em decorrência de mudanças tecnosociais e econômicas.
Surge, em torno desta produção audiovisual no ciberespaço, diferente da produção clássica
massiva, novas formas e categorias artísticas, novas formas de se comunicar, de comercializar,
de fazer publicidade, de se representar, de disseminar valores e ideologias, de dar evasão a
desejos e sonhos, de promover idéias, de viver e de representar a vida. Daí a relevância de um
estudo sobre algumas das possibilidades (re)significativas e instituintes trazidas pela digitalização
audiovisual e sua disponibilização em rede, enquanto novos processos formativos informais. Esse
artigo surge enquanto constructo teórico que vem discutir as novas possibilidades de autoria e
como elas podem instituir uma nova relação saber-poder na contemporaneidade.
Esses novos agenciamentos podem provocar uma mudança qualitativa na dinâmica social,
podendo gerar microrupturas e subversões na sociedade capitalista, instaurando um novo modus
operandi paralelo, com maior potencial solidário, colaborativo, crítico, criativo e transformativo
(ALVES, 2005; HETKOWSKI; LÉVY, 1993; LIMA JR, 2006; LIMA JR, 2007; SANTAELLA, 2003).
As TIC não mudam apenas a forma como nos comunicamos, ou armazenamos dados, ou
fazemos compras e nos relacionamos, elas alteram a forma de ser e pensar, e
consequentemente, a forma de aprender, de representar o pensamento humano e de construir
nossa forma de existir (ALVES, 2002; 2009; LÉVY, 1993; LIMA JR; HETKOWSKI, 2006; LIMA JR,
2006; 2005; SANTAELLA, 2003). Em suma, mudam o processo de formação do homem do
século XXI e, por conseguinte, mudam a forma como construímos nossa realidade social coletiva
e íntima, elaborando novas formas de pensar e conviver. Isso ocorre porque as conexões
artificiais desses dispositivos materiais se assemelham, em sua estrutura, ao “processo reticular
da inteligência humana”, desencadeando uma “nova economia cognitiva” (“rede neural conexiva”)
(LIMA JR, 2007).
Há ainda um vasto caminho a percorrer quando se trata de discutir e pesquisar fenômenos
trazidos por essa nova onda. Qual o papel das oligarquias nessa nova dinâmica? E os indivíduos,
como estão utilizando esse maior potencial de autoria para se auto-representarem? Quais os
desejos, valores, ideologias, idéias, sentimentos, produtos estão sendo divulgados no
ciberespaço por meio do recurso audiovisual digital e dos ambientes que armazenam e
socializam esses conteúdos em rede mundial? Quais as influências estéticas que subjazem essas
produções, e suas narrativas? Quais os recursos de produção utilizados? O que muda no direito
autoral e como esse fato interfere nas futuras estratégias de marketing da indústria da
informação, comunicação e entretenimento?
Se as TIC mudam o homem, mudam sua forma de ser e pensar. Mudam, portanto, sua forma de
conhecer e produzir conhecimento (ALVES, 2005; HETKOWSKI; LÉVY, 1993; LIMA JR, 2006;
LIMA JR, 2007; SANTAELLA, 2003). Por conta desse contexto surge o desejo de pesquisar a
produção audiovisual digital em rede enquanto recente agenciamento sócio-técnico com potencial
de modificar os novos processos formativos contemporâneos. Surge assim, a necessidade da
busca por uma apropriação desse fenômeno tecnosocial, compreendendo a forma como os
grupos e os sujeitos sociais operam essas novas estruturas materiais e o impacto que esses
novos agenciamentos causam, na formação das próximas gerações (LIMA JR, 2007).
A expressiva produção audiovisual digital com seu maior potencial de autoria, autonomia,
sociabilidade e disseminação, me instiga a abrir novos canais de investigação, evidenciando a
necessidade de maior apropriação da fundamentação teórica em questões que dêem conta da
relação saber-poder, questões sobre a linguagem e o papel da singularidade instituindo esse
processo, bem como um maior mergulho nesse campo de pesquisa.
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