(LEX - STF - 2010 - Volume 384 - Página 5)
Doutrina a Súmula Vinculante Nº 25: Consolidação do Entendimento
do Supremo Tribunal Federal Sobre a Questão da Prisão Civil do
Depositário Infiel (J., )
Gislene Barbosa da Costa*
Heitor Tales de Lima Fávaro**
SUMÁRIO
1. Introdução. 2. Prisão Civil do Depositário: Conceito e Panorama Histórico. 3. Influência Internacional no
Ordenamento Jurídico Interno. 3.1. Considerações acerca do nível hierárquico dos tratados internacionais.
3.2. A Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica) e o conflito
estabelecido no ordenamento jurídico interno. 4. A Súmula Vinculante nº 25 aprovada pelo STF. 5.
Conclusão. 6. Bibliografia
1.
INTRODUÇÃO
Questão que durante décadas foi objeto de incessantes discussões doutrinárias e jurisprudenciais, a prisão
civil do depositário infiel mereceu recentemente, com aplausos, a devida atenção do Supremo Tribunal
Federal, que consolidou seu entendimento sobre a matéria ao editar a Súmula Vinculante nº 25, a qual
será objeto do estudo deste trabalho.
Para um melhor desenvolvimento do tema e de toda celeuma que envolveu a questão, cumpre,
primeiramente, traçar um histórico do cenário jurídico que desencadeou os vários entendimentos que
nortearam os Tribunais.
Sob esse aspecto, o presente estudo tratará, ainda que de forma breve, do alcance e precedência dos
direitos fundamentais da pessoa humana; da hierarquia das normas; do processo crescente de
internacionalização dos direitos humanos; bem como traçará algumas considerações acerca do direito
positivo interno brasileiro e das normas internacionais que versam sobre direitos humanos, considerando,
ainda, a evolução constitucional que culminou na introdução do § 3º ao artigo 5º da Constituição Federal,
fator decisivo para consolidar a importância desse tipo de Tratado, dando-lhe paridade hierárquica de
Emenda Constitucional.
Traçar todos esses conceitos, bem como o histórico da evolução no tratamento dado pelos Tribunais à
questão da prisão civil do depositário ao longo das últimas décadas, será decisivo para que melhor se
entenda as razões jurídicas que motivaram o Supremo a editar o enunciado da Súmula Vinculante nº 25,
representando um grande passo no tratamento que deve ser dado aos direitos humanos.
2.
PRISÃO DO DEPOSITÁRIO INFIEL – CONCEITO E PANORAMA HISTÓRICO
Antes de adentrarmos no tema central do presente estudo, que é a recente edição do enunciado da
Súmula Vinculante nº 25 pelo Supremo Tribunal Federal – a firmar a ilicitude da prisão civil do depositário
infiel, qualquer que seja a modalidade de seu depósito –, cumpre traçar um breve panorama histórico
para elucidar a origem do instituto.
Nesse passo, insta ressaltar que a prisão do depositário infiel constitui uma das hipóteses excepcionais de
prisão civil por dívida expressa em nossa norma jurídica fundamental. Por sua vez, o ponto de partida da
prisão civil remonta aos primórdios do Direito.
Embora não se tenha com exatidão o momento em que se nivelou o direito à liberdade aos interesses
patrimoniais, a história demonstra que a depreciação da integridade física, com a assunção do corpo
humano como garantia para dívidas, nos remete às ideias de confusão dos Direitos Penal e Civil,
contraposição dos poderes entre as classes, bem como a decadência dos costumes sociais.
A exemplo da antiga Babilônia, a prisão civil por dívida foi instituída num momento em que o homem era
equiparado a um objeto e as penas poderiam, inclusive, passar do condenado aos entes de sua estrutura
familiar. A previsão do referido instituto estava nos parágrafos 115, 116 e 117 do Código de Hamurábi
(aproximadamente 1700 a.C), que dispunham sobre as hipóteses que envolviam a relação entre o credor,
o devedor e a assunção de pessoas como garantidoras de crédito.
Mais de um milênio depois, mais precisamente no século XIII a.C., na Índia regida pelos dísticos do
Código de Manu – que tanto versaram sobre verdade, justiça e respeito – a prisão civil e o emprego de
violência eram práticas triviais dos credores em busca do recebimento de seu crédito em uma sociedade
regida por forte influência religiosa e política, dividida por castas e por um abismo legal entre seus
membros.
Para não ser seguido como exemplo, o inadimplemento foi colocado em pé de igualdade com o furto, pelo
que nas castas inferiores a pena alcançou, além do credor, também seus animais, mulheres e filhos.
No Egito Antigo, sob outro ponto de vista e momento histórico, a religião motivou uma migração
temporária da execução patrimonial dos bens do devedor à sua pessoa. Isso porque, sendo o faraó
proprietário do território, dos homens e das mulheres, em diversas oportunidades se aboliu a execução
pessoal do devedor, para proteção daquele que era considerado mera propriedade do Estado, o ser
humano.
No entanto, foi no Direito Romano que a execução pessoal tomou a forma que mais se aproxima ao
instituto da prisão civil por dívida que figura em nosso ordenamento jurídico atual.
Nos primórdios do Direito Romano a execução se processava contra a pessoa do devedor. Em síntese,
quando comprovada a dívida, com a confissão ou condenação ao seu pagamento, e não satisfeita no
prazo legal de 30 dias, o devedor era adjudicado, pelo magistrado, ao credor, que o conduzia algemado
ou amarrado para redução a cárcere por 60 dias. Nesse período, o credor poderia submeter o devedor a
três feiras sucessivas para apregoar o crédito. Não aparecendo nenhum parente ou amigo do devedor
para pagar a dívida, poderia o credor vendê-lo como escravo e até mesmo aplicar-lhe a pena capital.1
Ainda, em determinadas situações, na coexistência de vários credores, o corpo do executado poderia ser
retalhado e dividido em tantos pedaços quantos fossem os credores.
Contudo, tamanha brutalidade e barbárie compreendida em toda sorte de maltrato físico aos quais eram
sujeitados os nexi (devedores que haviam vinculado sua própria pessoa como garantia) revoltaram a
plebe e resultaram na publicação da Lex Poetelia Papiria, de 326 a.C, a ensejar a execução do patrimônio
do devedor e não mais de sua pessoa.
Diz-se que a partir dessa Lei, apenas as obrigações provenientes de delito possibilitavam a escravização
dos devedores, o que constituiu um marco na evolução do sistema jurídico romano, culminando com a
publicação de um novo sistema processual (per formulas), em que a execução pessoal não mais implicava
a morte do devedor ou sua redução à condição de escravo.2
No entanto, as evoluções supracitadas não perduraram, uma vez que, com a decadência dos costumes
sociais ante o declínio do Império Romano e a invasão dos bárbaros, no sombrio período medieval,
resgataram-se com maior entusiasmo a execução pessoal do devedor e consigo a prisão por dívida.
A atual consciência da barbárie acerca dos preceitos aduzidos acima comprova a evolução de nossa
sociedade em caminhar para uma fase compassiva e sadia. Todavia, a existência de resquícios desse
passado nos tempos atuais revela a eterna estrada que o Direito há de percorrer em prol da dignidade
humana, estrada esta que percorre um caminho sinuoso, cheio de idas e retornos.
O instituto da prisão civil por dívida é emblemático nesse sentido. E no Brasil, como não poderia ser
diferente, tal instituto também integrou nosso ordenamento jurídico por meio de idas e vindas. Senão
vejamos:
Enquanto as Constituições de 1824 e 1891 nada dispunham sobre a prisão civil por dívida, a Constituição
de 1934 abraçou sua impossibilidade ao estabelecer, em seu artigo 113, nº 30, que: “não haverá prisão
por dívidas, multas ou custas”.
Diferentemente dela, a Constituição de 1937 tornou a suprimir o tratamento do instituto, assim como
havia ocorrido nas Constituições anteriores.
Já a Constituição de 1946, por seu turno, restringia as hipóteses de prisão civil por dívida, multa ou custas
aos casos do depositário infiel e o de inadimplemento de obrigação alimentar (consoante § 30, art. 141).
Embora a redação do supracitado dispositivo constitucional tenha sofrido leves alterações nas
Constituições ulteriores de 1967 e 1988, manteve-se a regra da proibição de sua decretação, salvo nas
duas hipóteses excepcionais antes aludidas.
Na redação do inciso LXVII do artigo 5º da atual Constituição, consta que: “não haverá prisão civil por
dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a
do depositário infiel”.
Bem verdade, portanto, que a Constituição Federal apenas “autoriza” ao legislador infraconstitucional a
criação de normas que possibilitem a prisão civil por dívida nos casos supracitados, o que nos leva à
conclusão bem sintetizada por Luiz Alberto David Araújo3 de que a prisão civil está normatizada na lei e
não na Constituição, eis que esta última tão somente torna possível ao legislador ordinário criar a
hipótese.
Embora a conclusão acima pareça simples, por anos o debate acerca da possibilidade da prisão do
depositário infiel dividiu opinião entre doutrinadores e operadores do Direito.
Sem o intuito de depreciar o argumento daqueles que sempre salientaram pela inconstitucionalidade da
prisão do depositário infiel, nos parece que o debate, seguindo o mesmo raciocínio já exposto, possui
mais estima no âmbito infraconstitucional. Até porque, neste campo é que se fixaram as dimensões do
contrato de depósito, bem como a figura do infiel depositário.
Como ensina Silvio de Salvo Venosa, o termo “depósito” é utilizado para nomear o contrato que tem como
finalidade a entrega de bem para guardar, de forma que o depositário é aquele em que é investida a
obrigação de guarda e conservação da coisa depositada. E o renomado autor prossegue, expondo que:
“embora parte da doutrina refute a noção, o depositário exerce a posse direta sobre o bem enquanto em
seu poder. Não se trata de mera detenção. Trata-se de posse precária com relação ao depositante porque
lhe é inerente a obrigação de restituir. O depositante tem pretensão à restituição. Essa obrigação
complementa o dever de guarda e conservação”4.
Tendo em mente que essa obrigação compreende um dever de guarda e conservação da coisa, é
intuitivo dizer que a figura do depositário infiel aparece a partir do momento em que o depositário não
restitui, quando exigido, a coisa depositada.
O arcabouço normativo que cerca as disposições acima está contido no Capítulo IX, artigos 627 e
seguintes do Código Civil, de forma que o artigo 652 praticamente reproduziu o contido no artigo 1.287
do Código Civil anterior, ao traçar que, sendo voluntário ou necessário, o depositário que não restituir o
bem quando exigido será compelido a fazê-lo mediante prisão não excedente a um ano e ressarcir os
prejuízos.
Além do Código Civil, insta salientar que a questão foi tratada ainda na esfera internacional, pelo Pacto
Internacional dos Direitos Civis e Políticos e na Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San
José da Costa Rica), incorporados em nosso sistema jurídico em julho e novembro de 1992,
respectivamente.
O estudo da influência desses Tratados no ordenamento jurídico interno, dada sua relevância para análise
do tema, será objeto de capítulo próprio, a seguir.
3.
A INFLUÊNCIA INTERNACIONAL NO ORDENAMENTO JURÍDICO INTERNO
3.1.
Considerações acerca do nível hierárquico dos tratados internacionais
A regra tradicionalmente seguida pela grande maioria dos ordenamentos jurídicos coloca a Constituição
como estatuto fundamental do Estado-Nação. Assim, todas as normas internas e tratados internacionais
firmados pelo país estariam subordinados às disposições constantes de sua Carta Magna, não tendo
validade e eficácia o tratado que dispuser contrariamente ao quanto por ela determinado.
Para ilustrar o conceito acima, a prática habitual nos ensina a visualizar o ordenamento jurídico como uma
pirâmide. No topo dela encontra-se a Constituição pairando sobre as demais normas que dela tiram seu
fundamento de validade.
Tal ideia traduz o conceito da Supremacia da Constituição, que corresponde a uma das pedras basilares
do Estado Social e Democrático do Direito.5
Nessa esteira, diz-se que acima das leis produzidas pelo próprio Estado, uma vez que a Constituição
deriva de um Poder Constituinte que lhe atribui autoridade, a norma fundamental, que não é feita nem
alterada por ele, estabelece os termos essenciais do relacionamento entre as autoridades e entre estas e
os indivíduos, definindo quem pode fazer leis, como fazê-las e quais seus limites.
Assim, é usual que a própria Constituição disponha sobre a possibilidade de sua reforma, bem como a
forma de incorporação de normas no ordenamento jurídico do Estado.
No Brasil, no que diz respeito à incorporação de normas internacionais ao sistema jurídico interno, o
§ 2º do artigo 5º da Constituição Federal determina que os “direitos e garantias expressos nesta
Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados
internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”.
No entanto, essa disposição constitucional não aclara a questão da posição hierárquica do tratado
internacional perante as normas internas. Ao contrário, dá azo para diversos entendimentos, podendo-se
citar quatro correntes6 que classificam sua hierarquia como sendo: (i) supraconstitucional; (ii)
constitucional; (iii) infraconstitucional, mas supralegal; e (iv) paridade hierárquica entre tratado e lei
federal.
Com fundamento no artigo 102, III, alínea “b” da Constituição Federal de 19887 (e no julgamento do RE
nº 80.004-SE8), a posição majoritária do Supremo Tribunal Federal era de que os tratados ratificados pelo
Brasil ingressavam no ordenamento jurídico pátrio com status de lei ordinária, subordinando-se, assim, às
regras de vigência dispostas na Lei de Introdução ao Código Civil (lei posterior revoga a anterior).
No entanto, especificamente com relação aos direitos fundamentais do indivíduo, o direito comparado
passou a dar contornos mais flexíveis à regra da Supremacia da Constituição do Estado-Nação9, para
atribuir, aos tratados internacionais que versavam sobre direitos humanos, status de norma constitucional,
o que foi imediatamente bem quisto por alguns doutrinadores como Osvaldo Luiz Palu10, para quem a
Constituição “não deve ser demasiadamente rígida ou detalhista, deve possuir elasticidade suficiente para
poder assumir a realidade e manejá-la”, e também Cançado Trindade11, segundo o qual “a tendência
constitucional contemporânea de dispensar um tratamento especial aos tratados de direitos humanos é,
pois, sintomática de uma escala de valores na qual o ser humano passa a ocupar posição central”.
Embora louvável a expectativa por essa mudança também em nosso ordenamento, a ideia de um
instrumento normativo repercutir com status de norma constitucional sempre encontrou resistência no
Brasil, principalmente pelo fato de nossa Constituição ser rígida. De fato, não seria fácil aceitar a ideia de
um decreto legislativo (que pode ser o veículo de ingresso de um tratado internacional) ingressar na
posição de norma constitucional, quando no seu próprio processo de emenda a Constituição exige quorum
qualificado e dois turnos de votação (§ 2º, art. 60).
De qualquer forma, a ideia de assumir a realidade e manejá-la de forma a melhor adequar o
ordenamento jurídico aos ideais de justiça tornou imperiosa uma mudança na forma de visão e aceitação
dos tratados internacionais, culminando na promulgação da Emenda Constitucional nº 45/04 que, dentre
outras alterações, inseriu o § 3º ao artigo 5º da Constituição Federal, a dispor que: “os tratados e
convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso
Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às
emendas constitucionais”.
Como consequência da inclusão desse parágrafo, aqueles que adotavam a teoria da paridade hierárquica
entre tratados e leis infraconstitucionais passaram a visualizar, agora, a possibilidade de um tratado
ascender ao status constitucional, o que teria representado significativa mudança nas regras até então
dispostas no ordenamento para o tratamento da questão.
Outra parte da doutrina entendeu que a adição do § 3º não trouxe inovação material, mas apenas
esclarecimento aos termos do § 2º do artigo 5º da Constituição. Conforme assevera Celso Lafer12, “o novo
§ 3º do art. 5º pode ser considerado uma lei interpretativa destinada a encerrar as controvérsias
jurisprudenciais e doutrinárias suscitadas pelo § 2º do art. 5º. De acordo com a opinião doutrinária
tradicional, uma lei interpretativa nada mais faz do que declarar o que preexiste, ao clarificar a lei
existente”.
Flávia Piovesan13 também defende esse entendimento, asseverando que “em face de todos os
argumentos já expostos, sustenta-se que a hierarquia constitucional já se extrai de interpretação
conferida ao próprio art. 5º, § 2º, da Constituição de 1988. Vale dizer, seria mais adequado que a redação
do aludido § 3º do art. 5º endossasse a hierarquia formalmente constitucional de todos os tratados
internacionais de proteção de direitos humanos ratificados, afirmando – tal como o fez o texto argentino –
que os tratados internacionais de proteção de direitos humanos ratificados pelo Estado brasileiro têm
hierarquia constitucional”.
Vale dizer que, conforme esse entendimento, todos os tratados internacionais de direitos humanos já
ocupavam um nível hierárquico materialmente constitucional diante dos termos do § 2º do artigo 5º da
Constituição Federal. Com o advento do § 3º, surgiram duas categorias de tratados internacionais de
proteção aos direitos humanos: (i) os materialmente constitucionais, conforme preceitos do § 2º; e os (ii)
material e formalmente constitucionais, conforme preceitos do § 3º.
Mesmo que a hierarquia constitucional material dos tratados internacionais que versam sobre direitos
humanos seja reconhecida em ambas as categorias acima expostas, essa divisão se faz necessária, pois
implica diversidade de regime jurídico atinente ao instituto da denúncia, que é o ato unilateral por meio
do qual o Estado se retira do tratado.
No que diz respeito ao ponto acima aludido, Fernando Luiz Ximenes Rocha14 ensina que: “enquanto os
tratados materialmente constitucionais são suscetíveis de ser denunciados, os material e formalmente
constitucionais, ainda que prevejam expressamente a hipótese de denúncia, essa não poderá ser
realizada, uma vez que tais documentos equivalem a emendas constitucionais, e, por tratarem de matéria
de direitos humanos, são cláusulas pétreas, não podendo ser suas normas abolidas”.
Assim, no caso dos tratados material e formalmente constitucionais, não se admitiria a renúncia, uma vez
que se equiparariam às Emendas Constitucionais.
Foi em consequência de uma decisão histórica proferida no julgamento do RE nº 466.343-SP e HC
nº 87.585-TO, em 12/03/08, a qual foi submetida matéria semelhante ao foco do presente estudo, que o
Supremo Tribunal Federal passou a conferir valor supralegal (acima das leis ordinárias e abaixo da
Constituição) aos tratados de direitos humanos não aprovados sob a égide do § 3º do artigo 5º da
Constituição.
3.2.
A Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto da San José da Costa
Rica) e o conflito estabelecido no ordenamento jurídico interno
No julgamento do RE nº 466.343-SP, que marcou o posicionamento do Supremo Tribunal Federal sobre o
tema, a questão que reclamou reflexão mais profunda sobre a prisão civil do depositário infiel, autorizada
pela Constituição Federal de 1988 em seu artigo 5º, inciso LXVII, residiu na repercussão e alcance, no
ordenamento jurídico interno, do Pacto de San José da Costa Rica (Convenção Americana de Direitos
Humanos).
O referido tratado, ao qual o Brasil aderiu em 25 de setembro de 1992 e foi incorporado ao nosso direito
positivo em 6 de novembro de 1992, por meio do Decreto Presidencial nº 678, estabelece uma proteção
aos direitos humanos fundamentais. Determina que os direitos essenciais do indivíduo devem ser
observados com fundamento na própria atribuição de ser humano e repudia qualquer discriminação
quanto à nacionalidade da pessoa para que esses direitos lhe sejam conferidos.
Nesse sentido, essa Convenção reafirmou o propósito dos Estados americanos de fazer consolidar no
Continente, “dentro do quadro das instituições democráticas, um regime de liberdade pessoal e de justiça
social, fundado no respeito dos direitos essenciais do Homem”15.
O artigo 7º desse Tratado, no item 7, dispõe que: “ninguém deve ser detido por dívida. Este princípio não
limita os mandados de autoridades judiciária competente expedidos em virtude de inadimplemento de
obrigação alimentar”.
Parênteses devem ser abertos para destacar que, da leitura da citada norma, uma questão interessante a
se perquirir seria o alcance, nos termos do Tratado, do vocábulo “dívida”. Sob esse prisma, deve ser
destacado que, pela intenção e objetivo da Convenção, a expressão “dívida” também abarca, sim, a
situação do fiel depositário. E não poderia ser diferente, já que pelos próprios termos da Constituição
Federal (art. 5º, inciso LXVII), “dívida” tem um sentido genérico que engloba a dívida alimentar e a dívida
pela infidelidade do depósito16.
Pois bem: o Tratado veio a restringir a possibilidade de prisão, tornando-a aceitável apenas no caso do
devedor alimentante. Nenhum outro tipo de dívida poderá ensejar a prisão do devedor.
Ocorre que, conforme visto nos capítulos anteriores desse trabalho, o entendimento firmado pelo
Supremo Tribunal Federal desde 1977, conforme julgamento do RE nº 80.004-SE, era no sentido de que o
tratado internacional ratificado pelo Brasil seria internado no ordenamento jurídico no mesmo nível
hierárquico da legislação ordinária. Sob esse prisma, aos tratados ratificados se aplicava a máxima lex
posterior derogat priori, pela qual estariam revogados os dispositivos de leis internas anteriores à sua
incorporação, se contrários aos seus termos.
Assim, para parte da doutrina, o Pacto de San José da Costa Rica teria revogado os dispositivos, no
âmbito da legislação ordinária, que permitiam a prisão civil do depositário infiel, contidos no Código Civil
de 1916.
Conforme Valerio de Oliveira Mazzuoli17, “sendo a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto
de San José da Costa Rica) norma de caráter geral, capaz somente de revogar normas de caráter também
geral, é de se entender, sem muito esforço que, sendo o Código Civil de 1916 e o Código de Processo Civil
leis gerais, tanto o art. 1.287 do primeiro diploma, quanto os arts. 902, § 1º e 904, parágrafo único, do
diploma processual, reputam-se derrogados pelo referido Pacto, que a eles sobreveio”.
Assim, derrogado o artigo 1.287 do Código Civil de 1916, pelo Pacto da San José da Costa Rica, e não
tendo o artigo 5º, inciso LXVII da Constituição Federal caráter de norma autoaplicável, uma vez que traça
apenas um preceito a ser concebido pela legislação ordinária18, todas as disposições infraconstitucionais
que faziam remissão ao tema, direta ou indiretamente, perderam seu conteúdo compulsivo prisional.
Assim sendo, a Constituição teve de aguardar lei posterior que viesse novamente preencher o preceito no
tocante à prisão civil.
Esse preceito foi novamente preenchido com a edição do Novo Código Civil de 2002, que em seu artigo
652 manteve a mesma disposição do artigo 1.287 do diploma civil revogado, nos seguintes termos: “seja
voluntário ou necessário o depósito, o depositário, que não restituir, quando exigido, será compelido a
fazê-lo mediante prisão não excedente a um ano, e ressarcir os prejuízos”.
A esse ponto, não é preciso dizer que o advento do Código Civil de 2002 estabeleceu nova polêmica a
respeito do tema.
Esse entendimento foi, no entanto, revisto pelo Supremo Tribunal Federal com o julgamento do RE
nº 466.343-SP, ocasião em que, definitivamente, foi abraçada a tendência contemporânea do Direito
moderno para prestigiar as normas internacionais destinadas à proteção do ser humano e,
consequentemente, inviabilizar a prisão civil do depositário infiel na prática.
Ante a transparência lógica exarada pelo Ilustríssimo Ministro Gilmar Mendes na histórica decisão acima
citada, destacamos trecho que fundamentou seu voto:
“Nesse sentido, é possível concluir que, diante da supremacia da Constituição sobre os atos
normativos internacionais, a previsão constitucional da prisão civil do depositário infiel
(art. 5º, inciso LXVII) não foi revogada pelo ato de adesão do Brasil ao Pacto Internacional dos
Direitos Civis e Políticos (art. 11) e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos – Pacto de San
José da Costa Rica (art. 7º, 7), mas deixou de ter aplicabilidade diante do efeito
paralisante desses tratados em relação à legislação infraconstitucional que disciplina a
matéria, incluídos o art. 1.287 do Código Civil de 1916 e o Decreto-Lei nº 911, de 1º de outubro
de 1969.
Tendo em vista o caráter supralegal desses diplomas normativos internacionais, a legislação
infraconstitucional posterior que com eles seja conflitante também tem sua eficácia
paralisada. É o que ocorre, por exemplo, com o art. 652 do Novo Código Civil (Lei
nº 10.406/02), que reproduz disposição idêntica ao art. 1.287 do Código Civil de 1916.
Enfim, desde a adesão do Brasil, no ano de 1992, ao Pacto Internacional dos Direitos Civis e
Políticos (art. 11) e à Convenção Americana sobre Direitos Humanos – Pacto San José da Costa Rica
(art. 7º, 7), não há base legal para aplicação da parte final do art. 5º, inciso LXVII, da
Constituição, ou seja, para a prisão civil do depositário infiel.”
4.
A SÚMULA VINCULANTE Nº 25 APROVADA PELO STF
Traçando agora uma breve retrospectiva, em 30 de dezembro de 2004 foi promulgada a Emenda
Constitucional nº 45, como parte da tão esperada Reforma do Judiciário. Essa Reforma teve como escopo
dotar o Judiciário de instrumentos hábeis a assegurar a tão almejada celeridade processual, por meio de
mecanismos que alargassem as possibilidades de sua ação de forma responsável.
Nesse sentido, foi positivado em nosso ordenamento o instituto da Súmula Vinculante, a qual visa
pacificar a discussão de questões sobre as quais há entendimento divergente entre os Tribunais e que,
dado o grau de importância e repercussão, reclamam unificação pelo Poder Judiciário, sendo que o
entendimento nela contido representa norma cogente, devendo ser seguido por todos os Magistrados.
Criou-se, na verdade, uma Súmula com efeito de lei, atribuindo ao Poder Judiciário uma competência
legislativa. Não obstante as críticas que possam ser feitas a esse instituto, fato é que, especificamente
com relação ao tema tratado nesse trabalho, o Supremo Tribunal Federal, se valendo desse novel
instituto, pôs termo à discussão que se seguia por décadas.
Isso porque, não obstante a posição doutrinária e jurisprudencial seguida pelo Supremo Tribunal Federal
desde o julgamento do RE nº 466.343-SP, no sentido de entender vigente o Pacto de San José da Costa
Rica – e dotado de eficácia em sobreposição às leis ordinárias internas (caráter de norma supralegal) –
esse entendimento não era pacificado nos Tribunais inferiores.
Sob esse aspecto, vale destacar que, de uma forma geral, a divergência de entendimentos entre os
diversos tribunais do País é absolutamente admissível em nosso ordenamento jurídico e saudável à
manutenção dos ideais democráticos do Estado.
No entanto, afronta aos princípios constitucionais fundamentais a divergência de entendimentos sobre
questão de tamanha relevância, que toca a própria liberdade do indivíduo.
A fim de consolidar seu entendimento e fazer com que este seja seguido por todos os Tribunais, em todas
as decisões a serem proferidas sobre a matéria, o Supremo Tribunal Federal aprovou, em 16/12/09, a
Proposta de Súmula Vinculante nº 31, o que importou na edição do enunciado da Súmula Vinculante
nº 25, a qual, definitivamente, veda a prisão civil de depositário infiel, considerando “ilícita a prisão civil
de depositário infiel, qualquer que seja a modalidade do depósito”.
A edição dessa Súmula põe termo em toda celeuma que pairou sobre esse assunto durante as últimas
décadas.
Deve ser destacado, por fim, que a Súmula Vinculante nº 25 veda a prisão civil do depositário infiel, mas
mantém a possibilidade de prisão civil por dívida alimentar.
5.
CONCLUSÃO
Com o fim da ditadura militar e o restabelecimento da democracia em nosso País, houve um verdadeiro
movimento em prol da defesa dos direitos humanos.
A Constituição de 1988 foi uma abertura a esse movimento, assim como também o foram as sucessivas
ratificações de tratados internacionais de proteção aos direitos humanos ocorridos após a promulgação da
Carta Magna.
Não obstante esse cenário que visivelmente clamava por mudanças estruturais no que dizia respeito aos
direitos fundamentais do indivíduo, fervorosos conservadores ainda resistiam a esse ideal.
Mais precisamente na área do Direito, juristas e doutrinadores se mantinham fiéis à antiga corrente.
Esse dogmatismo influenciou em muito a forma de tratamento jurídico dada aos tratados internacionais
e, consequentemente, à questão da prisão civil do depositário infiel, objeto do Pacto de San José da Costa
Rica, ratificado pelo Brasil em 1992.
Não obstante vedada pelo Pacto, a doutrina e jurisprudência interna não deram atenção a essa proibição,
pois negavam ao referido Tratado autoridade de norma constitucional, uma vez que não aprovado sob o
rigorismo formal do processo de emenda, conforme disposto no § 3º do artigo 5º da Constituição, nem
mesmo caráter supralegal, não obstante os termos do § 2º do mesmo artigo.
Após amadurecimento suficiente, o Supremo Tribunal Federal, no julgamento do RE nº 466.343-SP,
reconheceu a supralegalidade do Tratado e acolheu a tese de que a prisão civil do depositário infiel é
vedada em nosso ordenamento jurídico.
Não bastasse esse entendimento, a divergência entre os julgados perdurou, o que foi finalmente sanado
com a recente edição do enunciado da Súmula Vinculante nº 25 que, reduzida a termo, dipõe que é ilícita
a prisão civil de depositário infiel, qualquer que seja a modalidade do depósito.
6.
BIBLIOGRAFIA
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(Coleção direito civil).
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Doutrina a Súmula Vinculante Nº 25 - LO Baptista