Anúncios do século XIX:
Matrizes para a compreensão dos gêneros publicitários modernos
19/01/2008
Roseane B. Feitosa Nicolau*
Neste trabalho, que faz parte de um projeto maior denominado História do
Português do Brasil (PHPB), analisam-se os anúncios do Século XIX, coletados em
jornais paraibanos que se encontram no acervo da Fundação Casa José Américo (FCJA),
como o objetivo de reconhecer e ver como esses anúncios se legitimam com base nas
funções que exercem enquanto formas de interação da época.
O século XIX é visto como um século fundante por ser a base de uma civilização
que forma opinião ao ler e escrever jornais e que cria, assim, novas atividades
discursivas.
Esse século, no Brasil, se inicia com a vinda da Coroa de Portugal em 1808 para
cá, e com a sua permissão para o funcionamento de tipografias e conseqüentemente a
circulação de jornais impressos em todas as províncias do Brasil da época. Nas
tipografias do Brasil Império, deixavam-se ou redigiam-se os anúncios e também se
faziam diversas transações comerciais, e já se fazia um exercício de protesto ao regime,
tendo, por isso, muitos jornais vida efêmera.
Nos jornais pesquisados, encontramos um exercício de todas as camadas da
linguagem vigente no meio social no século XIX ,como uma enciclopédia de todos os
veios e formas de linguagem desde a eloqüência da nobreza e do poder jurídico até o
vocabulário árido, simples dos homens do campo e de negócio; as bisbilhotices das
comadres, a sabedoria popular, enfim os falares concretos e socialmente definidos da
época.
O exercício de uma linguagem publicitária tem início, de maneira mais intensa,
nesses meios impressos. Porém essa linguagem não estava ainda bem definida enquanto
exercício de um gênero publicitário/propagandístico, como nos dias atuais
No início, o principal elemento do anúncio era o texto. Aos poucos é introduzido o
desenho para apresentar o produto ou, por vezes, também a fábrica e, só mais tarde,
aparece a figura humana.
No nosso trabalho trataremos de analisar um gênero que ainda estava se definindo
como uma das práticas dos jornais, a de divulgar produtos e serviços, ou seja, gêneros
propagandísticos e publicitários que retratam, dão a conhecer, fazem circular
preocupações e desejos da comunidade paraibana.
Para Bakhtin (2000), qualquer enunciado está ligado a uma situação material
concreta, bem como a uma esfera mais ampla que constitui o conjunto das condições de
vida de uma comunidade lingüística. Cada esfera elabora “tipos relativamente estáveis
de enunciados”, isto é, gêneros do discurso, que se caracterizam por seu conteúdo
temático, estilo e unidades composicionais – dimensões que refletem a esfera social em
que são produzidos e modificados.
Os gêneros do discurso apresentam uma variedade infinita que vai sendo
modificada e ampliada à medida que a própria esfera se desenvolve e fica mais
complexa, originando os gêneros que estão sempre se permeando e se permutando e,
assim, formam-se outros gêneros em função de propostos comunicativos.
Um gênero surge de outros gêneros e é a partir dessa observação apresentada
por Todorov (1980, p. 46) que pretendemos analisar a evolução do gênero anúncio em
jornais de século XIX até os dias atuais. Perseguindo os vários processos ocorridos no
gênero anúncio, durante esse percurso evolutivo, percebemos como os gêneros se
comunicam com a sociedade de cada época, de atuar em função do próprio meio e
também em sua linguagem. Consideremos que o gênero anúncio do século XIX servia
para aquele universo, tal como foi produzido e visto como o papel de mediar a relação
produtor – produto/serviço – receptor na cultura da época, sendo susceptível, segundo o
próprio Bakhtin (1992, p. 285) de refletir “a menor mudança na vida social”
No Brasil do século XIX, os anúncios eram pequenos textos quase sempre sem
ilustração, alguns sem títulos, assemelhando-se nos dias atuais aos “classificados”. Estes
tipos de anúncios eram em número insignificante, pois as cidades eram pequenas e o
seu comércio também. Além de esta divulgação ser um custo a mais para o comerciante
que não via ainda a propaganda como “a alma do negócio”.
Para percebemos a evolução dos gêneros propagandísticos - a título de
amostragem - selecionamos e propomo-nos a observar os anúncios de jornais
paraibanos coletados por nós, que se encontra no acervo da FCJA (Fundação Casa José
Américo e que refletiam a vida da província paraibana e do Brasil neste período
histórico.
Nesta análise, a partir da teoria dos gêneros veremos como os gêneros se forma a
partir de atividades discursivas próprias em consonância com a sociedade, conforme
suas condições de produção e seus parâmetros ideológicos.
Selecionamos quatro anúncios – o primeiro, trata de escravos; o segundo, trata de
trabalho de sapateiro; o terceiro, de uma liquidação de negócio; para fazer um estudo de
aspectos lingüísticos e discursivos que caracterizam esses textos como gêneros
propagandísticos, e também, conhecer aspectos do Português do Brasil do século XIX,
tendo como base teórica a análise dialógica do discurso por considerar o enunciado um
produto da interação social.
Percebemos durante a coleta dos anúncios de jornais paraibanos do século XIX
que há uma grande quantidade de anúncios relativos à procura de escravos fugidos,
venda de escravos, que reflete uma prática discursiva, de um modo de vida do povo
brasileiro, ainda sob o regime monárquico e escravocrata, como ilustrado no seguinte
anúncio:
No dia 14 de setembro do anno passado fugio do abaixo assignado uma escrava de
sua propriedade, de nome Cândida, de 20 a 22 annos de idade, e com os seguintes
signaes: criôla fula, boca grande, dentes limados e bem alvos, olhos grandes e muito
vivos, estatura alta e não muito secca, e andando estalam-lhe as juntas dos pés; a
referida escrava foi da Sr.a D. Joanna, sogra do Sr. Barbalho, da Serra d’Araruna, em
cujo lugar tem ella pais, irmãos e mais parentes, e por conseguinte apoio, foi também ao
Sr. Capitão Justiniano, morador na mesma Serra, que com ella fez pagamento n’esta
praça ao Sr. José d’Azevedo Maia, a quem comprei-a. Em conseqüência de muitas
recommendações e annuncios, foi presa em dias de junho no engelho Sucurú em
Goianinha, província do Rio Grande do Norte, pelo proprietario de dito engenho, o Sr.
Antonio Bento de Araújo Lima, que m’a remetteu sob a guarda de Antonio Felix de Lima,
o qual pernoitando em Miriri no dia 13 de julho, ali a deixou novamente fugir.
O mesmo abaixo assignado não só recommenda a prisão da referida escrava,
como gratifica com cem mil réis a quem a pegar, e trouxer à sua casa nesta capiatal, rua
das Convertidas. n.37. Parahyba, 2 de setembro de 1862. Antonio Francisco Ramos
(O Publicador, 3 de setembro de 1862)
Toda palavra, todo enunciado, deste anúncio, conforme Bakhtin, deve ser visto da
perspectiva da sua vida “concreta” de seu ato de produção, da sua prática discursiva e
de sua historicidade. A escravidão foi instituída no Brasil Colonial como a principal força
de trabalho. O escravo trabalhava na lavoura e/ou na casa dos seus Senhores como
cozinheiro, ama de leite etc, e era vistos como um produto.
Nesses anúncios eram dadas - como podemos ver acima - as características físicas
e temperamentais, bem como a origem da escrava, que ajudariam na sua identificação,
uma vez que essa (escrava) havia fugido de seu dono. Mesmo sendo desumana a forma
como era anunciada essas características, elas contribuíram e, ainda contribuem, para
conhecermos melhor esta raça que formou, juntamente com outras raças, o povo
brasileiro na atualidade.
Esta estrutura de anúncios de escravos procurados: características físicas e
psicológicas, o último percurso feito por ele e a recompensa para quem encontrá-lo,
ainda hoje, se faz presente como um dos tipos de anúncios lidos nos classificados.
Felizmente os procurados de hoje são animais de estimação ou pessoas desaparecidas e
não seres humanos na condição de escravos.
Percebemos claramente que “o real da História se apresenta no real da língua”
(Brandão, s/d), nesses anúncios, através de enunciados concretos, fazendo circular
discursos de uma sociedade escravocrata que via o negro como uma propriedade, “uma
coisa sem alma”. Só muito tempo depois, os jornais despertam para a chaga da
escravidão e começa a combatê-la e exalta a ação dos senhores da sociedade que não
queriam mais serem vistos como senhores de escravo.
E o que pode ser comprovado no anúncio que segue do jornal A verdade. Jornal de
Areia (município da Paraíba) que se considerava “Órgão abolicionista e noticioso”:
O Dr. Braz Augusto Monteiro de Barros, fazendeiro da freguesia de Aparecida,
município de Sapucaia, liberou gratuitamente 218 escravos o mez passado.
(A Verdade. 24 de abril de 1888)
Para Brandão (s/d), “todo enunciado deve mostrar um mundo cuja representação
se faz adequadamente ao ritual discursivo do gênero em que se inscreve”. No caso dos
anúncios apresentados em jornais paraibanos, estes estão em conformidade como a
época e com sua função, ao informar um fato ou objetivar a procura ou a venda de algo,
próprio da época e dos costumes vigentes.
O sujeito, dono da fala, que mandou pôr o anúncio no jornal e que, muitas vezes
vem, abaixo assinado, são os senhores dos escravos, com poder instituído pela
sociedade escravocrata, como primeiro anúncio, aqui exposto ou, ainda, donos de
estabelecimentos comerciais como no anúncio que segue:
LIQUIDAÇÃO
Victoriano Pereira Maia
Faz sciente ao responsável publico que tendo de retira-se desta cidade, liquida o
seu negocio de fazendas e outros artigos.
Convida a comparecerem no seu estabelecimento onde acharão agrado e
sinceridade.
(A verdade, Areia, 10 de outubro de 1888)
Neste anúncio percebe-se que o comércio da época ainda era muito precário
sobretudo em cidades pequenas e, por isso, o discurso propagandístico de venda de
produtos mostra-se modesto, e suas palavras carregadas, habitadas, atravessadas por
outros discursos. Ver-se claramente a linguagem própria do domínio burocrático,
exercitada nos documentos oficiais e convites da época.
BAZAR DO LIMOEIRO
Nesta casa executa-se qualquer trabalho tendente a arte de sapateiro, e acceita-se
encommendas garantindo comodidade nos preços, muita perfeição e presteza
extraordinária.
O dono deste estabelecimento previne aos seus freguezes que cuidem em
satisfazer seus débitos, pois tem grande precisão e não esta disposto a esperar mais do
que tem esperado. Depois não se queixem.
(A verdade, Areia, 13 de outubro de 1888)
Neste anúncio acima, é oferecido o serviço de sapateiro por meio de BAZAR DO
LIMOEIRO, mas no seu fecho, o anunciante do Bazar faz uma advertência aos seus
fregueses: “que cuidem em satisfazer seus débitos” com um tom forte, deixando claro
que atitudes, para essa falta, serão tomadas.Há nesse anúncio dois gêneros com funções
diferentes – divulgar um serviço e alertar os maus pagadores. É muito comum esse
procedimento em anúncios desse século, de anunciar produtos e fazer a cobrança de
devedores, devido ao pouco espaço que os jornais apresentavam e dispunha para esse
serviço e, também devido aos custos da divulgação. Porém, no primeiro momento deste
anúncio percebe-se, por meio das expressões: “comodidade nos preços”, “muita
perfeição e presteza extraordinária”, um exercício muito comum nos anúncios atuais: a
prática da persuasão, que no nosso século é própria do discurso publicitário.
Havia, portanto, de forma geral neste gênero propagandístico do século XIX,
práticas de sociabilidade – na apresentação dos produtos e serviços -, como também de
exercícios de poder - dos senhores de escravos.
Vale ressaltar que, como não havia jornais-empresas como hoje, o local de
elaboração e impressão desses jornais e seus anúncios eram as tipografias que, muitas
vezes, servia de ponto de encontro para a compra do produto anunciado e para o
estabelecimento de serviço entre o anunciante e o público interessado.
E, por meio deste gênero, que resulta de uma amalgama de discursos próprios da
comunidade, de formas de dizer que circulavam socialmente, passamos a conhecer uma
época, melhor dizendo, fragmentos do século XIX, considerado por alguns historiadores
como um século fundante, base formadora da nossa civilização atual.
Sob a ótica da Análise dialógica do discurso, percebemos que uma grande
quantidade de anúncios do século XIX reflete uma prática discursiva, de um modo de
vida do povo brasileiro em formação, ainda sob imperialista e escravocrata, ainda sem
os vícios das relações comerciais capitalistas pós-revolução industrial, com práticas
comerciais primárias na qual reinavam uma linguagem não ainda de todo publicitária,
mais informativa, noticiosa do que persuasiva, traço marcante do fazer da divulgação de
produtos e serviço do nosso século que sobre o apoio midiático, constrói um discurso
publicitário.
Os anúncios desta época se prestavam a circular informação (fugas, roubos,
perdas etc) ou promover a venda de produtos (escravos, medicamentos, casas etc.) e
serviços (aulas, aluguel etc) sendo um dos poucos gêneros propagandísticos da época
que atingia uma grande massa.
Desta forma, pudemos apreender aspectos lingüísticos e sociais de uma
comunidade do século XIX representantes de um contexto, de uma forma de vida social,
bem como ver a prática de um gênero que vai ser firmar nas páginas dos jornais nos
século subseqüentes.
REFERÊNCIAS
BAKHTIN, M. Discurso na vida e discurso na arte (sobre a poética sociológica) trad.
Carlos Faraco e Cristivão Tezza, a partir da tradução inglesa de I. R. Titunik “Discourse in
life and, discourse in art – concerning sociologial poetics” . In: Freudism. New York:
Academic Press, 1976 (cópia xerox).
______. Marxismo e Filosofia da linguagem. Trad. M. Lahud, Y. F. Vieira e outros. São
Paulo: Hucitec, 1999.
______. Estética da Criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
BRAIT, Beth. Interação, gêneros e estilo. In: Dino Preti (org.) Interação na fala e na
escrita. São Paulo: Humanitas, projetos paralelos, vol 5, 2001.
BRANDÃO, Helena H. Nagamine (USP) O Cotidiano em anúncios de Jornais do Século
XIX. (mimeo)
ODOROV, Tzvetan. Os Gêneros do Discurso. Trad. Elisa A. Kossovitch. São Paulo:
Martins Fontes, 1981.
100 anos de propaganda – São Paulo: Abril Cultural, 1980. Anúncios publicitários de
1875 a 1980.
* Roseane B. Feitosa Nicolau é professora da Faculdade IESP. Doutora em Letras pela
UFPB. Este artigo foi apresentado no Encontro Língua(s) e Povos: unidade e diversidade,
em 2006.
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