Escolas de papel no espaço
Luso-Brasileiro: Análise de pinturas,
painéis azulejares e seus modelos
Sílvia Barbosa Guimarães Borges
Mestranda – Universidade Federal do Rio de Janeiro
Jorge Victor de Araújo Souza
Mestrando – Universidade Federal do Rio de Janeiro
Em 1719, nas suas Réflexions critiques sur la Poësie et sur la peinture, fazendo
uma comparação entre poesia e pintura com uma abordagem propriamente estética, Jean Baptiste Dubos exclamou que: “As estampas multiplicam ao infinito os
quadros dos grandes mestres. Elas colocam ao alcance de desfrutar deles aqueles
que a distância dos locais condenava a vê-los nunca”. A pontencialização da divulgação de uma imagem através da circulação de estampas (gravuras), bem expressa por Dubos, toma um sentido de concretude, por exemplo, ao perceber-se
que uma bandeira processional, do século XVIII, da igreja de Nossa Senhora do
Bonsucesso, no Rio de Janeiro possui uma iconografia retirada de uma pintura de
Peter Paul Rubens ou que a azulejaria portuguesa de um claustro franciscano em
Recife possui representações criadas por Rafael Sanzio.
Esse texto pretende, ao apontar um fator já conhecido pela historiografia brasileira
desde a década de 1940, ampliar o grau de complexidade das reflexões sobre obras
artísticas produzidas no espaço Luso-brasileiro, durante o Antigo regime. Esquecido
pela historiografia durante um período, o uso de modelos europeus, especificamente
gravuras, para representações pictóricas de natureza religiosa vem retomando seu espaço nas preocupações dos historiadores da arte Luso-brasileira. A constatação do uso
de modelos leva a um questionamento: como classificar em estilos (barroco, rococó,
Bolsista do Programa Nota 10 da FAPERJ.
Apud. LESSING, G. E. Laocoonte ou sobre as fronteiras da pintura e da poesia: Com esclarecimentos ocasionais sobre diferentes pontos da história da arte antiga. São Paulo: Iluminuras, 1998. p. 26.
676 - Atas do IV Congresso Internacional do Barroco Íbero-Americano
maneirista, renascentista...) obras cujos suportes comportam, graças ao uso de diversos
modelos gravados, uma combinação variada de elementos?
Gravuras como meio de divulgação religiosa
A circulação de livros ilustrados com gravuras religiosas foi ampla em todo
mundo cristão, principalmente no período da Contra-Reforma, sendo Antuérpia
seu principal centro difusor. Antuérpia, por sua privilegiada situação portuária,
propiciava um incessante intercâmbio de mercadorias, sendo a principal exportadora de gravuras neste período. Desde o início dos “Descobrimentos” a cidade
contava com gravadores que se dedicavam principalmente à criação de cartografias e que depois se voltaram para as gravuras religiosas.
A combinação de gravura e leitura era excelente para uma empreitada pedagógica, pois atingiam letrados e não letrados. A Igreja logo compreendeu sua potencialidade:
...o instruir de forma mais universal, pois não estavam condicionadas as diversidades lingüísticas ou ao próprio domínio da leitura; o deleitar, pois forneciam matéria de encantamento estético, e uma capacidade afectiva de provocar emoções de maior intensidade e mais directamente do que o texto
escrito.
As gravuras iam ao encontro dos intentos contrareformistas: ajudavam os fiéis a
compreender as doutrinas das Escrituras posto que a Igreja Católica exigia sua apresentação em Latim, e poucos compreendiam esta língua. Auxiliavam na prática de
uma devoção mais intimista uma vez que eram facilmente carregadas por indivíduos,
e também podiam ser penduradas em qualquer parede. Formando “quadros devocionais”, elas produziam um contato mais pessoal entre o fiel e sua figura de culto,
lembrando-o constantemente das coisas santas. Por fim, divulgavam e reafirmavam a
importância do culto dos santos, contrariando um dos pontos mais importantes da
SEBÁSTIAN, Santiago. Contrarreforma y Barroco. Madrid: Alianza Editorial, 1989. p. 15.
BOTEY, Francisco Esteve. Historia del Grabado. Barcelona: Editorial Labor, 1935. p. 169-170.
CETANO, Joaquim Oliveira. As imagens do Texto. In: ____. (Org,). Gravura e Conhecimento
do Mundo – O Livro Impresso Ilustrado nas Coleções da BN. Lisboa: Ed. BN, 1998. p.19.
“O termo ´quadros devocionais` (quadri di devotione) era corrente no período, quando
imagens e fervor religioso parecem ter tido uma associação mais próxima que a usual, fossem as imagens crucifixos recomendados por pregadores importantes como Bernardino de
Siena e Savanorala) ou o novo meio da gravura em madeira, ou um tipo de pintura religiosa, pequeno e íntimo, próprio para casas particulares, não tanto um ícone, mas uma
narrativa, que funcionava como estímulo para a meditação sobre a Bíblia e sobre as vidas
de santos.”In: BURKE, Peter. O Renascimento Italiano – Cultura e Sociedade na Itália. São
Paulo: Nova Alexandria, 2001. p.151.
Sílvia Barbosa Guimarães Borges / Jorge Victor de Araújo Souza - 677
Reforma Protestante. As gravuras, com seus preços relativamente baratos e com sua
grande reprodutibilidade, se coadunaram com um “cristianismo de massas”, caracterizado pela ascensão de uma devoção popular que a Contra-Reforma incentivou.
A maior singularidade da gravura é sua reprodutibilidade, assim como o seu
fácil manejo, tornando-a uma das formas artísticas de maior mobilidade. Dentro de
livros ou dobradas em um bolso, uma gravura poderia circular com muita facilidade. Sendo comparável a “mercadorias”, muitas vezes seu comércio foi feito em
toneladas.
De certa maneira, os grandes mercados do início da modernidade, principalmente da Itália e dos Países Baixos, tornaram-se pontos de divulgação dessa arte,
pois, como afirma o historiador Peter Burke, “as rotas de comércio eram rotas de
papel”. A partir da divulgação de tais gravuras, diversos artistas tiveram contato
com obras de grandes mestres, implementando uma incessante troca de técnicas,
informações, estilos e referências iconográficas. Percebe-se que, na Europa, a prática do uso de gravuras como modelos para a criação de pinturas começa a se estabelecer neste período inicial de grande circulação de papéis:
A arte da xilogravura e da estampa calcográfica logo se espalhou por toda a
Europa. Existem gravuras à maneira de Mantegna e Botticelli na Itália, e outras
dos Países Baixos e França. Essas estampas tornaram-se ainda mais um veículo
através do qual os artistas europeus tomavam conhecimento um dos outros.
Nessa época, ainda não era considerado desonroso aproveitar uma idéia ou
composição de outro artista, e muitos dos mestres mais humildes fizeram uso
de gravuras como livros de modelos em que se inspiravam. Assim como a invenção da imprensa acelerou a troca de idéias sem a qual a Reforma nunca
teria ocorrido, também a impressão de imagens assegurou o triunfo da arte da
Renascença italiana no resto da Europa. Foi uma das forças que pôs fim à arte
medieval do Norte e precipitou uma crise na arte desses países que somente os
grandes mestres puderam suportar10.
E mais tarde, em Portugal, não será diferente:
Conhecemos dados concretos sobre a chegada a Portugal, desde os portos
flamengos, de coleções de gravuras adquiridas pelos negociantes de arte portugueses aos seus colegas de Antuérpia, de Bruges ou de Gand. Em 1633, por
exemplo, André dos Santos, vendedor de obras de arte com loja aberta em
DELUMEAU, Jean. A Civilização do Renascimento. Lisboa: Editorial Estampa, 1994.
p.136.
HAUSER, Arnold. História Social da Arte e da Literatura. São Paulo: Martins Fontes, 1998. p. 271.
BURKE, Peter. Uma História Social do Conhecimento – De Gutenberg a Diderot. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 2003. p.141.
10
GOMBRICH, E. H. História da Arte. São Paulo: Círculo do Livro, S/D,. p. 216. (grifo nosso).
678 - Atas do IV Congresso Internacional do Barroco Íbero-Americano
Lisboa, mandou vir de Antuérpia através do negociante Paul du Jon duas caixas de estampas...11
O historiador da arte Max J. Friedländer salienta que constantemente vacilamos
ao usar a palavra “cópia”, pois é carregada por um tom pejorativo12. Friedländer demonstra que, mesmo para aplicar-se em uma cópia, um artista deve desprender uma
enorme paciência e possuir uma boa dose de talento e atenção13. Para Friedländer
todo o efeito que uma pintura imprime em outra obra deve ser denominado “influência”. Mas quando esta “influência” supera os limites da mera semelhança, alcançando uma reprodução “presa ao original”, passa a ser cópia, portanto, fruto das mãos
de um copista: “El copista, al contrario del maestro creador, no parte de la vida, sino
de una pintura, y tiene que trabajar sobre una visión ya materializada”14. A respeito
do uso de gravuras como modelos para outras obras, Friedländer afirma que:
Algunos maestros fueron imitados porque su manera pictórica despertó admiración, pero fué mucho mas vigorosa, se difundió com mayor amplitud, fué mas
modílica la influencia de los creadores de tipos de composición, narracions podríamos llamarles, especialmente porque el arte del grabado, empleado como
medio de difusión, permitió ofrecer cómodamente, como em compendio, las
composiciones dignas de ser imitadas. Por obra del grabado en cobre, tanto los
maestros originales como los grabadores lograron extender considerablemente su
dominio. Así Shongauer, Durero, Rafael, Rubens e Watteau15.
Em certo sentido, Friedländer libera o copista de sua carga pejorativa, dandolhe até certo status. Segundo este autor, copiar constitui uma atividade árdua que
requer sacrifício, paciência e atenção16. Ao que se refere às representações religiosas, aspecto particularmente importante, destaca que:
Antes se trataba de ilustrar para los fieles la historia de los Evangelios y las
leyendas, así como de hacer tangibles a las personas santas. Sólo si se presentaban en forma conocida podían ser compreendidas las situacionas y reconocidos los personajes. La necessidad de hacerse perfectamente comprensible
limitaba y restringía la liberdad de expresión. Ni el pintor, ni los demás, habían visto a San Pedro; pero conocían muchas imágenes que lo representaban.
SERRÃO. Vitor. A Pintura Protobarroca em Portugal 1612 – 1657 – O Triunfo do Naturalismo e do Tenebrismo. Lisboa: Edições Colibri, 2000. p. 184.
12
FRIEDLÄNDER, Max J. Arte y sus secretos. Barcelona: Juventud, 1949. p. 190.
13
Ibidem. p. 186.
14
FRIEDLÄNDER, Max. Op.cit p. 186.
15
Ibidem. p. 177.
16
Ibidem. p. 186.
11
Sílvia Barbosa Guimarães Borges / Jorge Victor de Araújo Souza - 679
La imaginación y una vaga creencia relacionaban tales imágenes con arquetipos, hasta alcanzar la época del santo17.
Sobre a pintura sacra é preciso levar em conta as imposições tridentinas, e suas
preocupações com os erros heterodoxos que implicavam na existência de um cânone para as representações.
Historiografia da arte no Brasil e os
gravados
modelos
No Brasil, o primeiro pesquisador a apontar semelhanças entre gravuras européias e pinturas religiosas do período colonial foi Luís Jardim, em um artigo de
193918. O pesquisador, do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
(atual Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), descobriu em Minas
Gerais um missal impresso em Antuérpia no ano de 1744, que serviu de modelo
para a pintura do Nascimento de Jesus em um retábulo da Igreja de Bom Jesus de
Matosinhos19. Além disto, demonstrou que uma estampa avulsa representando a
Ressurreição de Cristo foi utilizada para uma pintura de Manuel da Costa Ataíde na
capela-mor da igreja Matriz de Santo Antônio, em Santa Bárbara20. Apesar destas
descobertas, o pesquisador não se aprofundou em análises iconográficas e na problemática do transplante do meio monocromático (gravura) para o policromático
(pintura). Um aspecto que marca o texto de Luís Jardim, que também aparece em
escritos de outros pesquisadores, é reafirmação da “originalidade” do pintor colonial, mesmo usando modelos europeus21.
Na década de 1940, chegou ao Brasil a historiadora da arte Hannah Levy, refugiada da Alemanha durante a Segunda Guerra22. Como Luis Jardim, trabalhou
para o então SPHAN e publicou quatro artigos na revista desta instituição. Percebese em seus textos a preocupação com a metodologia, destacando sempre a importância do tratamento documental. Em um artigo publicado originalmente em 1942,
ela destaca as inúmeras pinturas sem autoria definida e levanta alguns casos de
semelhanças entre painéis que estão no Rio de Janeiro e pinturas européias, como
por exemplo a Descida da Cruz da Igreja de Nossa Senhora de Bonsucesso e o
painel de Peter Paul Rubens na Catedral de Antuérpia; a Assunção de Nossa Senho-
Ibidem. p. 191.
JARDIM, Luís. A Pintura decorativa em algumas igrejas de antigas. Revista do SPHAN,
número 3: Rio de Janeiro, 1939.
19
Missale Romanum ex Decreto Sacrosancti Concilli Tridentini Restitutum. Antuérpia: Typographia Plantiniana, 1744.
20
JARDIM, Luis. Op. cit. p. 195-200.
21
Ibidem. p. 198-199.
22
Sobre a trajetória de Hannah Levy ver o comentário de Til Pestana em: Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Número 26. Rio de Janeiro: MEC, 1997. p. 217-219.
17
18
680 - Atas do IV Congresso Internacional do Barroco Íbero-Americano
ra no painel do retábulo de São Lourenço na capela de São Lourenço dos Índios,
em Niterói com a pintura de J. Palma na igreja de São Giuliano, em Veneza23. Neste estudo encontra-se o início de sua hipótese: baseada na análise estilística das
pinturas fluminenses, propõe que houve um largo uso de gravuras européias como
modelos para pintura colonial. Todavia, destaca que, mediante as condições de
sua pesquisa, seria pouco provável estabelecer uma ligação concreta entre as gravuras e as pinturas.
Em 1944, dois anos depois de ter iniciado sua pesquisa, Hannah Levy escreve
para a Revista do SPHAN o artigo intitulado Modelos Europeus na Pintura Colonial,
em que apresenta casos de pinturas que tiveram gravuras européias como base
iconográfica24. Dos mais de vinte casos apresentados, destacam-se, por sua beleza
artística e relevância na historiografia da arte brasileira, seis pinturas da Capelamor da igreja de São Francisco de Assis, pintadas por Manuel da Costa Ataíde25. A
autora demonstra que estas obras foram copiadas das gravuras da Bíblia de Demarne26 e que, parte delas, reproduz pinturas de Rafael Sanzio da segunda Loggia do
Vaticano, em Roma. Segundo a autora gravuras desta mesma bíblia também serviram para os mestres azulejadores que atenderam a encomenda da Capela da Jaqueira, em Recife.
No Rio de Janeiro, Levy aponta dezesseis pinturas representando a vida de
Jesus na Igreja de Nossa Senhora do Carmo (pertencente à Ordem Terceira do Carmo), feitas a partir de gravuras de três livros e uma estampa avulsa: Vita D.N. Jesu
Christi ex Verbis de Bartolomeu Ricci, publicado em Roma no ano de 1607;27 Vita
Passio, conhecida como a Bíblia de Sadeler, publicada em Antuérpia no ano de
1728; Hetnieuwe Verbondt, publicado em Amsterdã em 1648 e uma gravura avulsa
do Pentecostes, presente na Coleção de estampas da Biblioteca Nacional (Rio de Janeiro). Destaca, no levantamento das obras desta igreja, o uso de livros de diversas
procedências. Pode-se argumentar que não foram exatamente estes livros que serviram como fonte, mas é possível que tenham sido usadas gravuras na forma “avulsa”,
pois seria mais coerente o uso de um mesmo livro com uma seqüência inteira da
narrativa.
Cf. LEVY, Hannah. A pintura colonial no Rio de Janeiro. Revista do SPHAN número 6: Rio
de Janeiro, 1942.
24
Cf. LEVY, Hannah. Modelos europeus na pintura colonial. Revista do SPHAN número 8:
Rio de Janeiro, 1944.
25
Ibidem. p. 99-103.
26
Este termo foi usado pela autora para referir-se à bíblia ilustrada Histoire Sacrée de la Providence et de La Conduite De Dieu Sur les Hommes Depuis le commencement du Monde
Jusqu’aux Temps préds dans l’Apocalypse. Publicada em Paris entre 1728 e 1730, possui
quinhentas estampas, divididas em três volumes, que representam passagens do Antigo e do
Novo Testamento.
27
Existente no acervo de obras raras da Biblioteca Nacional, ver: RICCIUM, Bartholomaeum.
Vita D. N. Jesu Christi ex uerbis evangeliorum in ipsismet conccinata. Roma, 1607. Localização BN: SOR 184, 5, 10.
23
Sílvia Barbosa Guimarães Borges / Jorge Victor de Araújo Souza - 681
Hannah Levy levanta algumas problemáticas interessantes. Ela aponta na pintura a hegemonia nas características dos gêneros humanos, as diferenças estilísticas
em várias obras de um mesmo artista, e a inserção de elementos diferentes do cotidiano “colonial”, como por exemplo, as arquiteturas européias. Afirma que estas
são características do uso indiscriminado de gravuras européias como modelos.
Porém, não faz uma análise iconográfica propriamente dita. Não se preocupa, por
exemplo, com a função destas pinturas ou com seus significados.
Contudo, pode-se considerá-la pioneira no estudo de influências européias na
pintura “colonial”, porque sistematizou as descobertas de Luis Jardim, ampliando o
número de casos em Minas Gerais e no Rio de Janeiro. Ela considera a maioria das
pinturas, mesmo sem autoria definida, como obras de pintores brasileiros, o que parece ser uma afirmação de grande imprecisão, considerando-se as parcas pesquisas
sobre autorias de pinturas na América portuguesa. Em suas análises, nota-se uma
preocupação em não macular a “áurea de originalidade” do artista colonial, o que
vai ao encontro do pensamento vigente. Após a “redescoberta” do Barroco pelos
modernistas, esse estilo foi alçado como a gênese da arte brasileira, e segundo alguns
autores, como Mario de Andrade, possuía uma singularidade extrema. Além disto,
sua opinião estava profundamente vinculada à instituição para qual trabalhava, criada em 1937, durante o Estado Novo, um período de aclamação nacionalista. Logo,
não era propício apontar que os pintores aclamados como a “gênese artística” brasileira copiavam modelos europeus.
O que se percebe nas publicações posteriores sobre o tema é uma excessiva
repetição dos casos descobertos por Hannah Levy e um desconhecimento da documentação contida nos arquivos e bibliotecas eclesiásticas, que poderiam elucidar
análises sobre o uso de gravuras por pintores, assim como, indicar um possível
circuito de circulação das estampas. Em Portugal, esse estudo arquivistíco já está
adiantado como demonstra o historiador Vitor Serrão: “A documentação recenseada do século XVII inclui referências às coleções de estampas nos inventários de
bens dos nossos artistas; ainda que quase sempre de definição imprecisa, mostram,
todavia, o peso da sua circulação entre as oficinas”28.
Se no Brasil a situação se encontra em tal estado, o mesmo não se pode dizer
de Portugal29 e de alguns países da América Latina, destacando-se Peru, Bolívia,
México e Argentina30, levando, na década de 1990, o historiador Sebastián López
SERRÃO, Vitor. A Pintura do Brutesco do Século XVII em Portugal e a suas Repercussões
no Brasil. In: ÁVILA, Afonso Barroco - Teoria e Análise. São Paulo; Belo Horizonte: Editora
Perspectiva, 1997. p. 109.
29
Cf. SOBRAL, Luís de Moura. As gravuras de Antuérpia e a pintura portuguesa no começo
do século XVII: O Missal Pontifical de Gonçalves Neto. In: Portugal e Flandres: Visões da
Europa. Lisboa: Edição do Instituto Português do Patrimônio Cultural, 1992. p. 55-65; SERRÃO, Vitor. A Pintura Protobarroca em Portugal 1612-1657 – O Triunfo do Naturalismo e
do Tenebrismo. Lisboa: Edições Colibri, 2000.
30
Sobre isto, ver: KELEMEN, Pal. Barroque and Rococo in Latin America, Vol.I. New York,
1967. p. 200-214; SORIA, Martins. Una nota sobre pintura colonial y estampas europeas. In:
28
682 - Atas do IV Congresso Internacional do Barroco Íbero-Americano
afirmar que, “dia a dia ganha mais interesse o estudo de livros ilustrados, cujas
gravuras serviram de fonte de inspiração, especialmente para a pintura...”31.
Em pesquisas recentes pudemos identificar outros casos do uso de gravuras
como modelos para pinturas e lançar o olhar para objetos ainda não estudados sob
o ponto de vista da circulação de estampas e sua larga utilização. Os casos que se
seguem foram objetos de monografias para conclusão do Curso de Bacharel em
História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro32.
Assunção de Maria
O pintor anônimo do painel do retábulo-mor da igreja de São Lourenço dos
Índios, em Niterói (RJ), utilizou uma gravura de um missal de oficina Plantinense:
Officium Beatae Mariae Virginis33. Este retábulo é considerado uma obra jesuítica,
de estilo maneirista, do século XVII34. Na pintura que o encima, vê-se Maria ascendendo aos céus em uma nuvem sustentada por anjos35. Sua mão direita está sobre
o peito, enquanto o braço esquerdo está esticado e seus olhos estão voltados para
Anales del Instituto de Arte Americano e Investigaciones Esteticas de Buenos Aires. Buenos
Aires: Universidad de Buenos Aires, 1955. p.43-49; IÑIGUEZ, Diego Ângulo. Pereyns y
Martin de Vos: El Retablo de Huejotzingo. In: Anales del Instituto de Arte Americano e Investigaciones Esteticas de Buenos Aires. Buenos Aires: Universidad de Buenos Aires, 1949, p.
25-27; MESA, José de; GISBERT, Teresa. Martin de Vos em America. In: Anales del Instituto
de Arte Americano e Investigaciones Esteticas de Buenos Aires. Buenos Aires: Universidade
de Buenos Aires, 1970, p.
31
LÓPES, Santiago Sebastián. A Edição Espanhola do “Teatro Moral da Vida Humana” e sua
influência nas Artes Plásticas do Brasil e Portugal. In: ÁVILA, Affonso. Op. cit. p. 315.
32
Cf. BORGES, Sílvia B. G. Antigo Testamento em Azulejos: Uma análise do programa iconográfico dos painéis azulejares do claustro do Convento de Santo Antônio em Recife. Rio
de Janeiro, 2005. 96 f. Monografia (Bacharelado em História) - Instituto de Filosofia e Ciências
Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro; SOUZA, Jorge Victor de Araújo. Escolas de
papel – As influências de gravuras européias na pintura colonial brasileira. Rio de Janeiro,
2004. 76 f. Monografia (Bacharelado em História) - Instituto de Filosofia e Ciências Sociais,
Universidade Federal do Rio de Janeiro. A fusão das principais questões das duas monografias,
ver: ARAÚJO SOUZA, Jorge Victor de; BORGES, Silvia Barbosa Guimarães. Espelho da fé.
Revista de História da Biblioteca Nacional, ano 2, Nº 13. Rio de Janeiro: Sociedade de Amigos
da Biblioteca Nacional, Out. 2006. p. 62-67.
33
Officium Beatae Mariae Virginis. Antuérpia: Typographia Plantiniana, 1774. p. 224.
34
Cf. OLIVEIRA, Myriam Andrade Ribeiro de. Escultura colonial brasileira: um estudo preliminar. In: ÁVILA, Afonso. Op. cit. p. 265-267; COSTA, Lúcio. A Arquitetura dos Jesuítas
no Brasil. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Número 26, 1997. p. 131;
BONNET, Marcia. A talha Filipina em madeira na colônia: influências e mutações. In: PEREIRA, Sonia Gomes (Org.). Anais do VI Colóquio Luso-Brasileiro de História da Arte (Vol.1).
Rio de Janeiro: CBHA/PUC-Rio/UERJ/UFRJ, 2004, p.451-461.
35
O tema da Assunção não possui nenhuma referência bíblica de forma explicita e só se
transformaria em dogma com a emissão da bula papal Munificentíssimo Deus, em 1950.
Sílvia Barbosa Guimarães Borges / Jorge Victor de Araújo Souza - 683
cima. Sua postura denota um sinal de puro êxtase. Seus trajes, cabelo e manto estão
agitados pelos ventos em um movimento típico de figuras barrocas. Nossa Senhora
está na mesma postura da gravura, e também é sustentada por anjos que seguram
a nuvem. A semelhança é muito grande, principalmente se as zonas de luz forem
comparadas. No traje de Maria, sobretudo, no “y” formado no manto logo abaixo
do braço estendido, é possível identificar esta similaridade. Outros pontos claramente idênticos são formados pelos detalhes das mãos, do cabelo da Virgem e
dos anjos. Um exemplar do Officium Beatae, edição do século XVIII, cuja gravura serviu de modelo para a pintura pode ser encontrado na Biblioteca Brasiliana
Guita e José Mindlin.
Bíblia de Demarne
As várias edições do Officium Beatae foram muito usadas, mas o conjunto de
estampas que influenciou o trabalho de muitos artistas foi o do francês M. Demarne. Sobre ele há pouquíssimas informações. Sabe-se apenas que foi arquiteto e
gravador e que viveu no século XVIII. Uma série de gravuras que possui sua assinatura é Histoire Sacrée de la Providence et de La Conduite De Dieu Sur les Hommes
Depuis le commencement du Monde Jusqu’aux Temps préds dans l’Apocalypse,
que ficou conhecida como Bíblia de Demarne36. Publicada em Paris, entre 1728 e
1730, foi dedicada à rainha da França, Maria Leszczynska (1703-1768). Seus três
volumes, com quinhentas estampas, podem ser encontrados na Biblioteca Nacional (Rio de Janeiro) e em outras grandes bibliotecas da Europa. Na folha de rosto da
Bíblia de Demarne há uma inscrição onde o gravador declara que poderá oferecer
as gravuras separadamente e no tamanho de papel que se quiser. Fato interessante
é que cinqüenta e duas destas gravuras são cópias das pinturas que Rafael Sanzio
(1483-1520) e seus colaboradores realizaram em 1518, para a segunda Loggia do
Vaticano, longa galeria (65 metros), dividida por treze arcadas. Em cada uma das
abóbadas há quatro cenas que narram passagens do Antigo ao Novo Testamento.
As decorações “em grotescos” completam o espaço. A série de pinturas conhecida
como “Bíblia de Rafael” é composta por afrescos, cujo traço bem delimitado e
desenho preciso são características fundamentais. Por estas qualidades era apreciado por gravadores que multiplicaram e divulgaram suas pinturas em forma de estampas, desde Marcantonio Raimondi.
As gravuras de Demarne serviram de inspiração para uma das mais importantes obras sacras do Brasil, pois foi através destas imagens que Manuel da Costa
Ataíde (1762-1830), fez, entre 1803 e 1804, as pinturas da igreja de São Francisco
de Assis em Ouro Preto (Minas Gerais)37. Este artista ornou as paredes com pinturas
que ilustram seis cenas do Antigo Testamento, todas retiradas da História de Abraão.
SIMÔES, J. M. S. Azulejaria em Portugal no século XVIII. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1979. p. 43-48.
37
Como foi dito anteriormente, este caso foi estudado por Hanna Levy, na década de 1940.
36
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Ataíde não alterou as composições das gravuras de Demarne. Todavia, fez pequenas modificações, como, por exemplo, na cena que retrata os três anjos com
Abraão. Em comparação com as gravuras, Ataíde também simplificou os planos de
fundo das pinturas, mantendo apenas os elementos centrais de cada cena.
Ataíde pintou estas obras de maneira muito semelhante aos painéis de azulejos portugueses, tão comuns em igrejas da Ordem Franciscana. Isto pode ser facilmente observado através de três aspectos: o formato da moldura que envolve as
cenas, a localização especifica na parte inferior da parede e a cor azul em várias
tonalidades. É preciso destacar as dificuldades que envolviam o transporte seguro
de peças delicadas como os azulejos para uma igreja em Minas Gerais exigindo,
assim, o embelezamento das paredes por meio de uma adaptação. Por este motivo,
as pinturas de Ataíde são uma inovação e uma intrigante apropriação das características azulejares. Através de gravuras de Demarne, Ataíde conseguiu um modelo
para suas obras e reproduziu algumas pinturas de Rafael.
Gravuras de Demarne também serviram de modelo para os azulejadores portugueses que produziram, no século XVIII, os painéis de azulejos do claustro do convento franciscano de Recife. São vinte e sete cenas que representam passagens do
Gênesis, entre elas a Expulsão do paraíso. A cena da expulsão ilustra a passagem:
E Iahweh o expulsou do jardim do Éden para cultivar o solo de onde fora tirado. Ele baniu o homem e colocou, diante do jardim do Éden, os querubins e
a chama da espada fulgurante para guardar o caminho da árvore da vida
(Gen. 3:23,24).
Na cena, vê-se um homem andando com as mãos na face, num gesto que é
um misto de desespero e vergonha. Ao seu lado caminha uma mulher que tenta
tapar seu corpo com as mãos. Atrás do infortunado casal segue um anjo segurando
uma espada com a mão direita. O ser celestial está com a mão esquerda pousada
no ombro do homem, em um gesto ambíguo, quase a consolá-lo.
Comparando a cena da expulsão de Adão e Eva no painel de azulejos com a
gravura de Demarne e com a pintura de Rafael é possível atentar para inegáveis semelhanças: os degraus da escada, a vestimenta e a leve curvatura dos ombros do anjo
e as posições de Adão e Eva. A luminosidade é marcadamente semelhante nestas três
obras. Nos suportes – afresco, papel e azulejo – é possível perceber que os raios de
luz vêm de trás do anjo. Em Rafael, a luminosidade é expressa pelo jogo de cores que
o gravador Demarne traduz em riscos finos, reproduzidos pelo azulejador. No fundo,
que também é sutilmente modificado nos azulejos, é possível perceber com clareza
o “alargamento” feito pelo artista. Ao copiar os três personagens, o azulejador retirou
o tronco de árvore de trás da mulher e o colocou mais à frente, ampliando a cena
para limitá-la com a moldura em estilo rococó do painel azulejar.
Sílvia Barbosa Guimarães Borges / Jorge Victor de Araújo Souza - 685
São Miguel
Na gravura, presente na seção de iconografia da Biblioteca Nacional, São Miguel está de pé sobre nuvens, sua mão esquerda segura um estandarte com o símbolo da Santíssima Trindade, enquanto aponta para cima com a mão direita. Sua
perna esquerda está ligeiramente flexionada em contraposto, dando graça e harmonia ao conjunto. Ao lado de seus pés surgem, entre as nuvens, dois orantes de meio
corpo. Acima de sua cabeça vê-se o mesmo símbolo da Trindade que ornamenta o
estandarte. O triângulo eqüilátero era o que freqüentemente representava a Trindade. Este símbolo, presente no estandarte de São Miguel, ia ao encontro do que
postulava o Catecismo Tridentino: não ser pecado mostrar a Santíssima Trindade
ou uma de suas pessoas, mesmo que em referência simbólica ligada a uma figura
geométrica38. São Miguel veste uma calça acima dos joelhos, um colete e uma túnica esvoaçante, e usa um capacete com penacho virado para frente. Por trás de
sua figura saem raios de luz típicos da iconografia barroca. Abaixo das nuvens lê-se
a inscrição: “O Emº Snrº Cardeal Patriarcha concede 100 dias de indulgência a
quem rezar hum pai nosso diante desta imagem”39.
A pintura correspondente a esta gravura encontra-se em Minas Gerais, na igreja de São Miguel, no Arraial de Arcângelo40. Nela, nota-se que o pintor seguiu o
mesmo esquema compositivo presente na gravura, repetindo a postura da figura
central, porém, retirando os orantes e o símbolo da Trindade que aparecia acima
de São Miguel, além de ter simplificado suas vestes. Houve de certa forma uma
simplificação na totalidade, mas, observando-se os detalhes como o caimento do
drapejamento, a inclinação e posicionamento do estandarte, a posição da mão erguida em relação à asa direita, e os raios de luz que emanam do centro, fica inegável a semelhança entre as obras. Sua postura é parecida com as duas imagens da
Igreja do Santíssimo Sacramento no Rio de Janeiro41.
De acordo com Luís Chaves, especialista em iconografia, existem quatro tipos
característicos nas representações de São Miguel: combatendo Satã, em atitude de
vencedor, em socorro das almas do purgatório e pesando as almas42. A iconografia
da pintura está próxima do segundo tipo, que de acordo com este autor é uma re-
DELUMEAU, Jean. O que sobrou do Paraíso? p. 324.
Esta estampa é idêntica à feita pelo gravador Manoel da Silva Godinho, em Portugal, no
século XVIII e “vendida em casa de Francisco Manoel no fim da rua do Passeio”. Reproduzida em: CHAVES, Luís. São Miguel na Terra Portuguesa e na alma dos Portugueses. Guimarães, 1956. p. 29.
40
Este forro é um belo exemplo da pintura rococó produzida em Minas Gerais de setecentos.
Sobre este estilo, ver: OLIVEIRA, Myriam Andrade Ribeiro de. O Rococó Religioso no Brasil
e seus Antecedentes Europeus. São Paulo: Cosac & Naify, 2003. p. 273-293.
41
Reproduzidas em: JUSTINIANO, Fatima. São Miguel Arcanjo – Duas Esculturas Policromadas. Arte e Ensaios, Revista do Mestrado em História da Arte. Rio de Janeiro: EBA-UFRJ,
2º Semestre, 1996, p. 28-29.
42
É muito comum ver sua iconografia associada com a passagem do Apocalipse: “Houve
então uma batalha no céu: Miguel e seus Anjos guerrearam contra o dragão.”
38
39
686 - Atas do IV Congresso Internacional do Barroco Íbero-Americano
ferência a Daniel, onde Miguel aparece como um príncipe: “O Príncipe do reino
da Pérsia me resistiu durante vinte e um dias, mas Miguel, um dos primeiros Príncipes, veio em meu auxílio”; “Nesse tempo levantar-se-á Miguel, o grande Príncipe, que se conserva junto dos filhos do teu povo”43.
Por que São Miguel está de pé sobre as nuvens e com raios de luz por detrás,
como o esplendor do firmamento? Essa representação, que estava de acordo com o
discurso da Contra-Reforma44, possui uma composição que vai ao encontro do que
postulava o teólogo de Louvain, Molanus, e que influenciou a iconografia ocidental de São Miguel. Em 1570 ele escreveu o Tratado das Santas Imagens, onde se
refere ao modo como os anjos se apresentam:
Eles estão rodeados de muitas nuvens, seja porque sua residência é nos céus,
seja porque às vezes sustentaram a pessoa de Deus nas nuvens, seja porque,
da mesma maneira que o esplendor do sol se comunica ao olhar humano por
intermédio das nuvens, a luz divina da verdade que eles recebem do alto
com respeito difunde-se, por derivação segunda, para os mortais, na proporção da faculdade de cada um deles45.
A associação entre o sol divino e os anjos também se encontrará na obra de
Louis Abelly, bispo de Rodez, que escreveu em 1691:
os anjos e outros espíritos celestes foram como os primeiros raios que o sol da
Divindade lançou de si e como os primeiros regatos (como fala São Gregório
Nazanzieno) que emanaram desse oceano infinito de luz que está em Deus,
o qual, desde os primeiros instantes da criação, os ornou e os enriqueceu de
vários excelentes dons de natureza e graça [...]46.
São Miguel, cujo nome em hebraico Mî Kã’El significa, grosso modo, “Quem é
como Deus?”, segundo a hierarquia celeste, é um Arcanjo47. Ele possuiu uma enorme
devoção na América portuguesa, principalmente na região das Minas. Devoção esta
que pode ser constatada observando-se a toponímia de várias freguesias com suas paróquias dedicadas a São Miguel, como o do próprio local onde se encontra esta pintura – São Miguel do Cajuru. A historiadora Adalgisa Arantes Campos, levantou, somente em Minas Gerais, mais de cinqüenta localidades que possuíram irmandades de São
Cf. Daniel, 10:13; 12:1.
DELUMEAU, Jean. O que sobrou do Paraíso? São Paulo: Cia. das Letras, 2003. p. 347.
45
Apud. Ibidem. p. 347. (grifo nosso).
46
Apud. Ibidem. p. 350.
47
Na hierarquia celeste os anjos foram agrupados em nove ordens, a saber: Serafins, Querubins,
Tronos, Potestades, Virtudes, Dominações, Principados, Arcanjos e Anjos. A terminação “El”,
que em semita significa Deus, indica a ordem dos Arcanjos, como Uriel, Rafael, Zaquiel etc.
43
44
Sílvia Barbosa Guimarães Borges / Jorge Victor de Araújo Souza - 687
Miguel48. Já o historiador Caio Cesar Boschi afirmou que as irmandades de São
Miguel e Almas representavam 10,9% das devoções mineiras, perdendo somente
para as do Santíssimo Sacramento e as de Nossa Senhora do Rosário49. Essa devoção importou-se da metrópole, como observa Flávio Gonçalves: “Outro tanto
aconteceu em relação ao Arcanjo São Miguel, cujo culto, bastante antigo no âmbito oficial do país, se alargou por reflexo de devoções dos finais da Idade Média e
mesmo por interferência do rei D. Manuel...”50.
Nesta pintura mineira, a iconografia de São Miguel tem pouco sentido escatológico, ou seja, ele não luta contra o dragão (Apocalipse) e tão pouco pesa as almas. Como porta-estandarte sua postura é mais triunfante. Seu estandarte demonstra a causa em que milita – a devoção à Santíssima Trindade. Apesar de ligeiras
modificações, a pintura em Minas é fiel a seu modelo de origem.
Conclusão
As comparações em si, como num “jogo da memória”, são infrutíferas. Devese atentar para os questionamentos que elas propõem. As pequenas modificações
que os pintores executam nas iconografias, partindo de uma gravura, podem assinalar mudanças nos gostos e contingências de determinadas sociedades. Um exemplo: Adão na pintura de Rafael Sanzio, não possui folha de parreira tapando o sexo,
diferentemente do que se vê na gravura e no painel azulejar. Este pequeno elemento permite perceber que também era possível ao gravador implementar modificações a partir de seu modelo. O detalhe da folha de parreira aponta, e aqui está a
questão da importância comparativa, para o tipo de tratamento que passou a ser
dado à nudez nas obras religiosas posteriores ao Concilio de Trento, quando o
corpo nu voltou a ser visto com receio. Outro exemplo da ação do pintor diante do
modelo gravado é o que Manoel da Costa Ataíde fez ao pintar a cena da morte de
Abraão (Igreja de São Francisco – Ouro Preto). O pintor acrescentou em baixo da
cama do patriarca uma escarradeira, fazendo com que a representação se tornasse
mais próxima ao expectador na medida em que a aproximava do cotidiano dos
indivíduos na época.
Não é grande surpresa perceber entre pinturas de nossas igrejas cópias de artistas consagrados como Peter Paul Rubens, Annibale Carracci ou mesmo Rafael
Sanzio, provas da crença católica espalhada pelo mundo. No processo de circula-
CAMPOS, Adalgisa Arantes. A Portada da Capela de São Miguel e a Veneração às almas
do Purgatório, Vila Rica – Brasil (século XVIII). In: SCHUMM, Petra (ed.) Barrocos y Modernos. Frankfurt/Madrid: Vervuert/Iberoamericana, 1998. p. 235.
49
BOSCHI, Caio Cesar. Os Leigos e o Poder – Irmandades Leigas e Política Colonizadora em
Minas Gerais. São Paulo: Ed. Ática, 1986. p.187.
50
GONÇALVES, Flavio. Breve Ensaio Sobre a Iconografia da Pintura Religiosa em Portugal.
Lisboa: 1973. p. 12.
48
688 - Atas do IV Congresso Internacional do Barroco Íbero-Americano
ção de idéias e práticas religiosas, as gravuras cumpriram um papel fundamental
como modelos legitimados aos artistas que atuaram no espaço luso-brasileiro.
Apontar a assimilação desses modelos é reconhecer um aspecto da mundialização
em constante processo na monarquia católica e a complexidade que pode envolver
a categorização de estilos artísticos. Através do uso de gravuras, amalgamando
modelos de diferentes tradições pictóricas, as obras que foram concebidas no espaço luso-brasileiro nestas condições teriam como característica a assimilação de
vários temas, desenhos e estilos. São obras que reúnem, por exemplo, temática
barroca, desenho renascentista, e moldura rococó.
Expulsão do Paraíso. Afresco de Rafael Sanzio. Loggia do Vaticano (Roma).
Sílvia Barbosa Guimarães Borges / Jorge Victor de Araújo Souza - 689
Expulsão do Paraíso. Gravura em metal de M. Demarne. Histoire
Sacrée de la Providence et de La Conduite De Dieu Sur les Hommes
Depuis le commencement du Monde Jusqu’aux Temps préds dans
l’Apocalypse.
Expulsão do Paraíso. Painel azulejar anônimo. Claustro do Convento
de Santo Antônio (Recife – PE).
690 - Atas do IV Congresso Internacional do Barroco Íbero-Americano
Expulsão do Paraíso – Anjo (detalhe). Painel azulejar anônimo. Claustro do Convento de Santo Antônio (Recife – PE).
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Sílvia Barbosa Guimarães Borges e Jorge