Um Diálogo Entre Boaventura de Souza Santos e Milton Santos: Por Um Outro
Olhar a Produção do Social
Autoria: Ketlle Duarte Paes, Eloise Helena Livramento Dellagnelo
Resumo
Este ensaio faz parte de um conjunto de estudos que discute o uso de abordagens
influenciadas pelo pensamento único, fundamentadas no paradigma funcionalista, como
lentes para compreender práticas sociais atravessadas por múltiplas racionalidades.
Neste ensaio partimos dessa preocupação, buscando marcos teóricos não-ortodoxos em
Estudos Organizacionais. Para tanto nos propomos a esboçar um diálogo entre as
abordagens teóricas propostas por Boaventura Santos e Milton Santos. Isso com o
objetivo de demonstrar pontos de contato entre os autores com o propósito de contribuir
para as discussões em Estudos Organizacionais que buscam outras lentes de análise.
Pretendemos também complementar essa discussão por meio da ideia da redução
sociológica de Guerreiro Ramos. A partir daí se pode inferir que os autores em análise
possuem pontos de contato em suas abordagens e que a inclusão de referenciais teóricos
heterodoxos em Estudos Organizacionais poderia abrir espaço para reconhecer o novo,
o que está em construção, e o que ainda não é.
Introdução
1
O processo de depuração pelo qual passou a sociedade nos últimos séculos
engendrou a emergência de um tipo particular de racionalidade que subordinou o
pensamento múltiplo ao pensamento único (DELEUZE e GUATTARRI, 2007).
Conforme os autores, durante esse processo, estabeleceu-se o pensamento binário que
produziu a metafísica, privilegiando a transcendência em detrimento à imanência.
Assim, como forma de transgredir o pensamento único, os autores propõem o
pensamento múltiplo, baseado na noção de rizoma. Para os autores, o rizoma seria uma
maneira de expressar as multiplicidades sem recair sobre o pensamento dialético ou
binário com relação ao uno. Por rizoma os autores entendem:
O rizoma não se deixa reconduzir nem ao uno nem ao múltiplo.
Ele não é o uno que se torna dois, nem é um múltiplo que
deriva do uno, nem ao qual o uno se acrescentaria (n+1). Ele
não é feito de unidades, mas de dimensões, ou antes, de
direções movediças. Ele não tem começo nem fim, mas sempre
um meio pelo qual ele cresce e transborda. Ele constitui
multiplicidades lineares a n dimensões, sem sujeito nem objeto,
exibíveis num plano de consistência e do qual o uno é sempre
subtraído (n – 1). Uma tal multiplicidade não varia suas
dimensões sem mudar de natureza nela mesma e se
metamorfosear (...) O rizoma é feito somente de linhas: linhas
de segmentariedade, de estratificação, como dimensões, mas
também linhas de fuga ou de desterritorialização como
dimensão máxima segundo a qual a multiplicidade se
metamorfoseia, mudando de natureza (DELEUZE e
GUATARRI, 2007, p. 32).
Referências desse pensamento podem ser encontradas também no trabalho de
Bruno Latour. Para Latour (1994), a modernidade produziu alguns paradoxos dentre os
quais, de um lado, a especialização dos saberes e experimentos e de outro, as
hibridações e misturas, compondo as redes sociotécnicas. Segundo o autor, as redes são
formadas por fluxos, misturas, conexões tendo sempre múltiplas entradas e saídas. Nas
redes não há hierarquias, todos são atores, não só os humanos, mas também os nãohumanos que são (re)produzidos a cada momento.
Em consonância com as transgressões citadas acima com relação a
epistemologia dominante na contemporaneidade, temos os pensamentos de Boaventura
de Souza Santos e Milton Santos. Para Boaventura Santos (2002), em termos científicos
e sociais vivemos no presente um tempo de ambigüidade e de transição, difícil de
entender e de percorrer.
Diante dessa constatação, o autor nos convida a refletir sobre novas
possibilidades de sociabilidade produzidas a partir de experiências alternativas a
globalização neoliberal que emergem dos subterrâneos do pensamento hegemônico. O
autor nos leva a questionar a racionalidade dominante que produz ativamente como não
existentes as experiências sociais alternativas numa operação de expansão do presente e
de contração do futuro, ocultando todas as temporalidades existentes e possíveis de
existir.
O autor destaca que a partir da epistemologia do norte, as ausências são
produzidas por meio de cinco monoculturas, a saber: a monocultura do saber, a do
tempo linear, a da naturalização das diferenças sociais, a da escala dominante e a do
produtivismo capitalista. Nessa lógica, tudo o que vai contra a esse pensamento é
considerado ignorante, residual, inferior, local e improdutivo. Assim, a ideia de
subverter a racionalidade dominante visa, essencialmente, questionar essa produção de
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ausências transformando-as em objetos presentes, num processo de substituir as
monoculturas por ecologias (dos saberes, das temporalidades, do reconhecimento, das
escalas locais e globais e das produtividades), apresentando inúmeras possibilidades de
outras sociabilidades.
Boaventura Santos (2002) destaca ainda que subjacente a sociologia das
ausências e a sociologia das emergências têm-se o trabalho de tradução. Para o autor, o
trabalho de tradução é o procedimento que permite criar inteligibilidade recíproca entre
as experiências do mundo, tanto as disponíveis como as possíveis, reveladas pela
sociologia das ausências e a sociologia das emergências. O trabalho de tradução se
realiza por meio dos saberes (hermenêutica diatópica) e das práticas sobre as quais visa
criar inteligibilidade recíproca entre formas de organização e entre objetivos de ação. O
autor argumenta ainda que, por meio do trabalho de tradução e da geração da zona de
contato entre as diferentes práticas e saberes não-hegemônicos é possível a emergência
de práticas contra-hegemônicas, uma vez que o potencial anti-sistêmico de qualquer
movimento social reside na sua capacidade de articulação com outros movimentos, com
suas formas de organização e com seus objetivos.
Diante do exposto, sobre a produção das ausências pela razão dominante, cabem
algumas reflexões sobre o exercício da redução sociologia proposta por Guerreiro
Ramos. Para o autor, era fundamental o exercício da consciência crítica da realidade
nacional para a realização de uma sociologia a ela relevante, consubstanciada naquilo
que ele chamava “uma sociologia em mangas de camisa” (BARIANI, 2006). Em
Guerreiro Ramos (1996), a consciência crítica e a autoconsciência coletiva são produtos
históricos, emergindo de um projeto de existência. O autor passa então a analisar, para
fins da elaboração de uma sociologia nacional, especificamente; a) os efeitos
sociológicos da industrialização; b) os efeitos sociológicos da urbanização; e c) os
efeitos sociológicos das alterações do consumo popular.
Assim, para Guerreiro Ramos (1996, p. 68): “Até agora, considerável parcela de
estudiosos se conduziu sem se dar conta dos pressupostos históricos e ideológicos do
seu trabalho científico. Sua conduta era reflexa e se submetia passivamente e
mecanicamente a critérios oriundos de países plenamente desenvolvidos”, e, continua,
dizendo que “À assimilação literal e passiva dos produtos científicos importados ter-seá de opor a assimilação crítica desses produtos. Por isso, propõe-se aqui o termo
redução sociológica para designar o procedimento metodológico que procura tornar
sistemática assimilação crítica.”
Para proceder à redução, o autor, propõe a observação de algumas leis gerais:
Lei da universalidade dos enunciados gerais da ciência; Lei das fases; Lei do
comprometimento; Lei do caráter subsidiário da produção científica estrangeira;
Conforme Guerreiro Ramos (1996), teoria e prática são indissociáveis e
pressupõem um saber sobre a sociedade brasileira. Para ele os objetivos da produção do
conhecimento científico têm que ser práticos. Esse é o papel do pesquisador engajado e
comprometido com a geração de melhorias para a sociedade.
Diante do exposto, pretende-se com esse trabalho encontrar pontos de contato
entre os pensamentos de Boaventura de Souza Santos e Milton Santos a fim de
contribuir com as discussões a cerca de novas lentes de análise para a área de
Estudos Organizacionais, tendo como base a ideia da redução sociológica proposta
por Guerreiro Ramos. Dito isso, compartilhamos da premissa apresentada por
Misoczky (2009) de que a aplicação acrítica de teorias e modelos pré-construídos tende
a naturalizar as formas e práticas hegemônicas de organizar e complementa:
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Em oposição, acreditamos que os estudiosos críticos
das organizações têm como uma das tarefas políticas
mais urgentes explorar os processos de organização da
resistência e das lutas sociais, que tendem a ser
ignorados
pelo
discurso
organizacional
contemporâneo. Um modo de fazê-lo é refletir e tornar
visíveis esses processos de organização (Misoczky,
Flores e Böhm, 2008). Para fazê-lo, é preciso escolhas
seletivas e críticas dos referenciais a serem utilizados,
sob pena de (...) em vez de contribuirmos para tornar
visíveis organizações e práxis libertadoras, as calemos
submetendo-as a modelos gerados para apoiar o
desempenho de práticas e relações sociais que são o
seu alvo de contestação (MISOCZKY, 2009, p. 1550).
Assim, a importância desse estudo insere-se na perspectiva de contribuição
teórica para as pesquisas que buscam desnaturalizar os fundamentos epistemológicos da
área da administração (SERVA, 1992, 1997; CARVALHO e VIEIRA, 2007;
CARVALHO e DELLAGNELO, 2004; MISOCZKY E FLORES, 2009) que vêem no
management a única e melhor forma de organizar (PARKER, 2002) fundada nos
pressupostos de eficiência e do cálculo utilitário de conseqüência. Isso porque,
conforme apontam Serva et al (2009) apesar da necessidade urgente de desenvolver
teorias que tentem explicar as práticas organizacionais de uma forma mais complexa, a
grande maioria das pesquisas desenvolvidas na área ainda apresenta métodos
tradicionais de orientação positivista e funcionalista. Serva et al (2009) apontam os
estudos de Vergara e Peci (2003) em três revistas estrangeiras e três brasileiras, todas de
grande reputação que buscaram verificar essa afirmação.
Essa idéia de conhecimento dominante no campo da administração encontra eco
no que Boaventura chama de razão indolente que na modernidade se tornou a visão de
mundo predominante, influenciando, sobremaneira, a teoria das organizações.
Outro fator de relevo para se levar a diante tal empresa, consiste na dificuldade
de se encontrar estudos desse tipo na área de administração, refletindo também a
dificuldade de se encontrar interlocutores. Assim, esse estudo pretende contribuir para a
área de Estudos Organizacionais como mais uma opção não ortodoxa de análise para os
fenômenos organizacionais, lançando um novo olhar para realidades ininteligíveis pela
razão dominante, produzidas ativamente como não existentes, mas que se constituem
em práticas sociais dotadas de uma racionalidade própria com temporalidade própria
existentes no espaço social mais amplo.
Diante disso, podemos traçar um paralelo com a idéia de espaço banal de Milton
Santos (2008), para quem as experiências periféricas possuem um sentido tão particular
que foge à lógica da racionalidade hegemônica. Para esse autor o avanço das ciências
possibilitou a expansão das técnicas de informação assegurando ao sistema técnico uma
presença planetária e como implicação disso, tem-se a emergência de um mercado
pretensamente global que se arvora dos processos políticos e sociais com a intenção de
colonizá-los. Esse sistema de forças, destaca Santos (2008), gera discursos que
fornecem a base para uma dominação ideológica que legitima as ações ao mesmo tempo
em que busca conformar um novo ethos às relações sociais. O autor destaca também a
ampliação desfiguradora do papel das empresas na regulação da vida social.
Contudo, segundo Silva et al. (2006) as conseqüências da lógica capitalista geram
um movimento de resistência por parte daqueles atores que buscam a inversão das
posições que ali se apresentam. Em relação a isso, Santos (2008) aponta para outras
possibilidades da produção de um novo organizar por meio de um movimento contra 4
hegemônico que venha de baixo, venha dos pobres, dos marginalizados e dos excluídos,
ou seja, do espaço banal. Segundo o autor, essa subversão é possível em virtude de que
o processo de globalização que influência os aspectos da vida social, econômica e
cultural, não perpetua sua ideologia de modo homogêneo, pois encontra a resistência da
cultura preexistente dentro da qual há a possibilidade, cada vez mais freqüente, de um
novo organizar por meio do discurso contra-hegemônico.
Essa perspectiva de Milton Santos está em sintonia com as idéias apresentadas
anteriormente de Boaventura Santos sobre a sociologia das ausências e das emergências.
O que nos indica possibilidade de conversação entre os autores a fim de imprimir um
olhar diferente daquele em que, costumeiramente, a ortodoxia em Estudos
Organizacionais analisa seus objetos.
REFERENCIAL TEÓRICO
Por uma sociologia das ausências e emergências
Boaventura Santos (2002) desenvolveu estudos teórico-emprírico nos últimos
anos, a fim de teorizar sobre a questão da emancipação social. Para tanto empreendeu
uma pesquisa cujo objetivo foi determinar em que medida a globalização alternativa
esta sendo produzida a partir de baixo e quais são as suas possibilidades e limites. O
autor escolheu como lócus de investigação seis países semiperiféricos, em diferentes
continentes. Como ponto de partida o autor trabalhou com a hipótese de que os conflitos
entre a globalização neoliberal hegemônica e a globalização contra-hegemônica são
mais intensos nestes países.
Para confirmar sua hipótese, o autor realizou pesquisas em Moçambique, um dos
países mais pobres do mundo. As pesquisas se realizaram em Moçambique, em África
do Sul, no Brasil, na Colômbia, na Índia e em Portugal. Conforme o autor, nestes países,
identificaram-se movimentos e experiências em cinco áreas temáticas em que mais
claramente se condensam os conflitos Norte/Sul: democracia participativa; sistemas de
produção alternativos e economia solidária; multiculturalismo, direitos coletivos,
pluralismo jurídico e cidadania cultural; alternativas aos direitos de propriedade
intelectual e biodiversidade capitalistas; novo internacionalismo operário
(BOAVENTURA SANTOS, 2002, p. 260).
Com relação a esse projeto, Boaventura Santos (2002) destaca a reflexão
epistemológica por que passou e chegou a algumas considerações tais como: tratou-se
de um projeto conduzido por fora dos centros hegemônicos de produção da ciência
social, com o objetivo de criar uma comunidade científica internacional independente
desses centros; o projeto implicou o cruzamento não apenas de diferentes tradições
teóricas e metodológicas das ciências sociais, mas também de diferentes culturas e
formas de interação entre a cultura e o conhecimento; o projeto debruçou-se sobre lutas,
iniciativas, movimentos alternativos, muitos dos quais locais, muitas vezes lugares
remotos do mundo e, assim, talvez fáceis de desacreditar como irrelevantes, ou
demasiado frágeis ou localizados para oferecer uma alternativa credível ao capitalismo
(BOAVENTURA SANTOS, 2002, p. 238).
Como conclusões de pesquisa, o autor aponta as seguintes: a experiência social
em todo mundo é muito mais ampla e variada do que o que a tradição cientifica ou
filosófica ocidental conhece e considera importante; esta riqueza social está sendo
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desperdiçada, o que leva a ideia de que não há alternativa; para combater o desperdício
da experiência, para tornar visíveis as iniciativas e os movimentos alternativos e para
lhes dar credibilidade, de pouco serve recorrer à ciência social tal como conhecemos.
Assim, conforme o autor, para combater o desperdício da experiência social, não basta
propor um outro tipo de ciência social. Há que se propor, isto sim, um modelo diferente
de racionalidade.
Para dar visibilidade as experiências sociais alternativas Boaventura Santos
(2002) realiza a crítica do modelo hegemônico de racionalidade que, seguindo Leibniz,
chama razão indolente, propondo como substituto um outro modelo, que designa como
razão cosmopolita. Para tanto o autor desenvolve três procedimentos sociológicos, a
partir da razão cosmopolita: a sociologia das ausências, a sociologia das emergências e
o trabalho de tradução. Para tanto, o autor expõe que a forma de compreensão do mundo
tem a ver com concepções do tempo. Além disso, o aspecto central da racionalidade
hegemônica é o fato de, por um lado, contrair o presente e, por outro, expandir o futuro.
Assim, o autor propõe uma racionalidade cosmopolita cujo fluxo é realizar a
trajetória inversa: expandir o presente e contrair o futuro com o fito de criar o espaçotempo necessário para conhecer e valorizar a inesgotável experiência social que está em
curso no mundo de hoje. O autor destaca que para expandir o presente, há a necessidade
de se fazer uma sociologia das ausências; pra contrair o futuro, uma sociologia das
emergências.
A sociologia das ausências parte de alguns questionamentos sobre às razões que
levaram a um tipo de racionalidade unilateral e excludente a dominar o cenário social
nos últimos duzentos anos. Para o autor, torna-se importante confrontar e superar essa
concepção de totalidade e a razão indolente que a sustenta. Esses questionamentos já
foram alvos de reflexão por várias vertentes da sociologia crítica, dos estudos sociais e
culturais da ciência, da critica feminista, da desconstrução, dos estudos pós-coloniais,
etc.
Boaventura Santos (2002) explica que para superar a hegemonia da razão
indolente faz-se necessário por em questão cada uma das lógicas ou modos de produção
de ausência que ela sustenta. Para tanto, propõe como alternativa epistemológica, à
partida descredibilizadas, as ecologias dos sabres, das temporalidades, dos
reconhecimentos, das trans-escalas e das produtividades, definidas como segue
(BOAVENTURA SANTOS, 2002, p. 250):
A ecologia de saberes. A primeira lógica, a lógica da monocultura do saber e do
rigor científicos, tem de ser questionada pela identificação de outros saberes e de outros
critérios de rigor que operam credivelmente em contextos e práticas sociais declarados
não-existentes pela razão indolente.
A ecologia das temporalidades. A segunda lógica, a lógica da monocultura do
tempo linear, deve ser confrontada com a ideia de que tempo linear é uma entre muitas
concepções do tempo. O domínio do tempo linear não resulta da sua primazia enquanto
concepção temporal, mas da primazia da modernidade ocidental que o adotou como seu.
Pela modernidade ocidental a partir da secularização da escatologia judaico-cristã, mas
nunca eliminou, nem mesmo no Ocidente, outras concepções como o tempo circular, a
doutrina do eterno retorno e outras concepções que não se deixam captar
adequadamente nem pela imagem nem pela imagem de círculo.
A ecologia dos reconhecimentos. A terceira lógica da produção de ausências é a
lógica da classificação social. A sociologia das ausências confronta-se com a
colonialidade, procurando uma nova articulação entre o princípio da igualdade e o
princípio da diferença e abrindo espaço para a possibilidade de diferenças iguais, uma
ecologia de diferenças feita de reconhecimentos recíprocos.
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A ecologia das trans-escalas. A quarta lógica, a lógica da escala global, é
confrontada pela sociologia das ausências através da recuperação do que no local não é
efeito da globalização hegemônica. Ao desglobalizar o local relativamente à
globalização hegemônica, a sociologia das ausências explora também a possibilidade de
uma globalização contra-hegemônica.
A ecologia da produtividade. A quinta lógica, a lógica produtivista, sobre essa
lógica a sociologia das ausências atua na recuperação e a valorização dos sistemas
alternativos de produção, das organizações econômicas populares, das cooperativas
operárias, das empresas autogeridas, da economia solidária, entre outros, que a
ortodoxia produtivista capitalista ocultou ou descredibilizou. Para Boaventura (2002)
este é o domínio mais controverso da sociologia das ausências, uma vez que põe
diretamente em questão o paradigma do desenvolvimento e do crescimento econômico
infinito que sustenta o capitalismo global. Entretanto, esta lógica nunca dispensou
outras formas de produção e apenas as desqualificaram para mantê-las na relação de
subalternidade.
A sociologia das emergências, conforme desenvolvida por Boaventura Santos
(2002) consiste em substituir o vazio do futuro segundo o tempo linear por um futuro de
possibilidade plural e concreto, simultaneamente utópico e realista. Para o autor o a
noção que preside à sociologia das emergências é o conceito de ainda-não proposto por
Ernst Bloch (1995). Conforme descreve Boaventura Santos, Bloch questiona o fato de a
filosofia ocidental ter sido dominada pelos conceitos de Tudo e Nada, nos quais tudo
parece estar contido como latência, mas de onde nada novo pode surgir.
Com essas idéias Bloch, salienta Boaventura Santos, introduz dois novos
conceitos o Não e o Ainda-não, sendo aquele a falta de algo e a expressão da vontade de
superar essa falta, pois dizer não é dizer sim a algo diferente. O Ainda-Não é uma
categoria mais complexa, porque exprime o que existe apenas como tendência, um
movimento latente no processo de se manifestar. O Ainda-Não é o modo como o futuro
se inscreve no presente e o dilata. Não é um futuro indeterminado nem infinito. É uma
possibilidade e uma capacidade concretas que nem existem no vácuo, nem estão
completamente determinadas (BOAVENTURA SANTOS, 2002, p. 255).
Assim, conforme o autor, a sociologia das emergências é a investigação das
alternativas que cabem no horizonte das possibilidades concretas. Tem-se com isso, que
enquanto a sociologia das ausências amplia o presente, juntando ao real existente o que
dele foi subtraído pela razão indolente, a sociologia das emergências amplia o presente,
juntando ao real amplo as possibilidades e expectativas futuras que ele comporta. Neste
caso, a ampliação do presente implica a contração do futuro, na medida em que o
Ainda-não, longe de ser um futuro vazio e infinito, é um futuro concreto, porém incerto.
Desse modo, para o autor, enquanto a sociologia das ausências expande o
domínio das experiências sociais disponíveis, a sociologia das emergências expande o
domínio das experiências sociais possíveis. É importante destacar, conforme
Boaventura Santos (2002) que as duas sociologias estão estreitamente associadas, visto
que quanto mais experiências estiverem disponíveis no mundo mais experiências são
possíveis no futuro. Quando maior for a multiplicidade e diversidade das experiências
disponíveis e possíveis, maior será a expansão do presente e a contração do futuro. Na
sociologia das ausências, essa multiplicação e diversificação ocorrem pela via da
ecologia dos saberes, dos tempos, das diferenças, das escalas e das produções, ao passo
que a sociologia das emergências as revela por vida da amplificação simbólica das
pistas ou sinais.
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Por uma outra globalização
Em seu livro Por uma outra globalização Milton Santos (2008) pretendeu
demonstrar o papel que a ideologia desempenha na produção e reprodução da
globalização atual. E, advoga a possibilidade de uma mudança histórica a partir de um
movimento de baixo para cima tendo como protagonista os países subdesenvolvidos na
subversão das regras do jogo.
Para Milton Santos (2008) a globalização é perversa na medida em que aumenta
a pobreza e o desemprego crônico, além da perda de poder aquisitivo da classe média.
No entanto, o autor fornece alguns indícios do que pode ser uma outra globalização,
mais humana, tendo como base as mesmas dimensões que fazem da atual globalização
uma perversidade, porém orientados por outros fundamentos sociais e políticos. Diante
disso, salienta que as condições históricas para isso se formaram no final do século XX
e que se dão tanto teórica quanto empiricamente. Nesse último caso, trata-se da enorme
mistura de povos, raças, culturas e gostos. Isso é potencializado pela aglomeração de
populações em pequenos espaços ensejando uma vizinhança dentro da qual se da uma
mistura de pessoas e filosofias. Já no plano teórico, para o autor, o que se verifica é a
possibilidade da produção de um novo discurso que se torne possível em virtude da
existência de uma universalidade empírica.
Milton Santos (2008) observa que vivemos sobre a tirania da informação cujas
técnicas são apropriadas por alguns Estados e empresas, em função de interesses
particulares gerando o aprofundamento das desigualdades. A informação é manipulada
ao ser transmitida à sociedade, diante disso, o autor fala de um novo “encantamento do
mundo” no qual o discurso e a retórica são um fim em si mesmos. Isso fica evidenciado
pelo trabalho da publicidade, na qual a linguagem ganha autonomia produzindo sua
própria lei. Nesse sentido, para o autor, há uma produção do consumidor antes mesmo
da produção dos produtos, conduzindo ao utilitarismo como regra de vida mediante a
exacerbação do consumo, do narcisismo, do egoísmo, e de uma ética pragmática.
No mundo globalizado, observa Milton Santos (2008) o espaço geográfico
ganha novos contornos e definições. Os atores hegemônicos servem-se dos melhores
espaços deixando o resto aos outros. A globalização com o auxilio da técnica da
informação subverte o antigo jogo da evolução territorial e impõe novas lógicas. O
território tende para uma compartimentação generalizada e vira palco dos choques entre
o movimento da sociedade mundial e o movimento particular de cada fração nacional.
Assim, todo e qualquer pedaço da superfície da Terra torna-se funcional as necessidades
e usos dos Estados e das empresas. Isso se realiza em nome da competitividade que
destroça as antigas solidariedades, frequentemente horizontais, para impor uma
solidariedade vertical, cujo irradiador é a empresa hegemônica obediente a interesses
globais e indiferente ao entorno.
As verticalidades, destaca o autor, dizem respeito a um conjunto de pontos
formando um espaço de fluxos sobre o território. O sistema de produção que se serve
desse espaço é constituído de redes, na qual a empresa ganha um papel de regulador do
espaço em conjunto com a ação dissimulada do Estado no controle de todo o território.
Além disso, esse é o espaço do tempo rápido mediado por uma solidariedade do tipo
organizacional. Essa integração vertical é alienadora já que as decisões essenciais
concernentes aos processos locais são estranhas ao lugar e obedecem à interesses
distantes. Tal dominância, para o autor, é portadora da racionalidade hegemônica cujo
poder de contágio facilita a busca por uma homogeneização (MILTON SANTOS,
2008).
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Quanto às horizontalidades, para o autor, são zonas de contigüidade que formam
vizinhanças. Para descrever esse espaço o autor faz uso do vocabulário de François
Perroux. Dito isso, o espaço banal seria o espaço de todos: empresas, instituições,
pessoas; o espaço das vivencias. É o espaço de produções localizadas e
interdependentes, cujos agentes estão imbricados numa solidariedade orgânica. Tal
conjunto indissociável evolui e muda seguindo uma lógica ditada pelo meio geográfico
local (MILTON SANTOS, 2008).
Nesse espaço a ação do Estado, além de suas funções banais, é limitada, mas é
nesse espaço que o Estado encontraria as melhores condições para sua intervenção. As
horizontalidades, para o autor, além das racionalidades típicas das verticalidades,
admitem a presença de outras racionalidades contra-hegemônicas. Assim ao contrário
da ordem imposta pelos atores hegemônicos aos atores subalternizados, nos espaços
banais se recria a idéia e o fato político. Aqui o autor fala também de uma esquizofrenia
do território, no qual, de um lado, têm-se os vetores da globalização que nele se instaura
para impor uma nova ordem, e de outro lado, a produção de uma conta-ordem, porque
há um acelerado aumento da pobreza, da marginalização e da exclusão (MILTON
SANTOS, 2008).
Por uma sociologia em mangas de camisa
A idéia central da obra “A Redução Sociológica” diz respeito a elaboração
conceitual de uma “sociologia em mangas de camisa” (BARIANI, 2006) rejeitando o
saber neutro. Para Guerreiro Ramos a nossa formação econômica, política e social
dependente foi engendrada pelo colonialismo cultural, a partir da subordinação da elite
nativa em relação a cultura dos países dominantes. Assim, a assimilação da cultura
européia e norte-americana levou a nação canarinho a uma concepção alienada da
“realidade nacional”, homogeneizadora que distorce a realidade.
Diante dessa constatação, para Guerreiro Ramos (1996, p. 11) era fundamental
por em prática a razão sociológica como um instrumento de reflexão a respeito de si
com relação à estrutura social à qual estava vinculada. Desse modo, ao método crítico
capaz de proceder a uma reflexão dessa natureza, assimilando criticamente as
contribuições teorias “importadas”, Guerreiro Ramos chamou “redução sociológica”.
Assim, para o autor, era fundamental o exercício da consciência crítica da
realidade nacional para a realização de uma sociologia a ela relevante, e , defende que a
consciência crítica e a autoconsciência coletiva são produtos históricos. A redução
sociológica, segundo Guerreiro Ramos (1996, p. 11), é uma “atitude parentética”, não
espontânea que põe entre parênteses os fenômenos, recusando a afirmação ou aceitação
imediata das percepções. Conforme o autor, a realidade se constitui por relações sociais
não fortuitas, mas referidas umas as outras por vínculos de significação.
Guerreiro Ramos (1996), defende a prática da autoconsciência da sociedade
brasileira por meio de uma sociologia engajada com a realidade nacional. O autor travou
combates com vários intelectuais, como Florestan Fernandes, Darci Ribeiro, Costa
Pinto, Roger Bastide, na luta contra a transplantação irrefletida de idéias estrangeiras em
prol da autonomia da sociedade brasileira, não poupando o que chamou de “sociologia
importada”, “consular”, “enlatada” (GUERREIRO RAMOS, 1996, p. 10).
O autor, em seus estudos sobre a construção do pensamento social brasileiro
buscou uma relação tanto próxima quanto crítica com a herança cultural e a prática
intelectual, e, combateu duramente o que considerava alienação e inautenticidade
(GUERREIRO RAMOS, 1996). A partir disso, o autor elaborou uma série de quatro
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leis ao qual denominou de Leis da redução sociologia, descritas a seguir, tendo em vista
a prática de uma atitude metódica da redução.
Conforme Guerreiro Ramos (1996, p. 72-74), são sete os componentes da
redução sociológica:
I. Atitude metódica: trata-se de uma forma de ver, que obedece a regras e busca depurar
os objetos de elementos que dificultem a percepção exaustiva e radical de seu
significado;
II. Realidade com pressuposto: não admite a existência de objetos, na realidade social,
sem pressupostos, pois tal realidade é sistemática, dotada de sentido, visto que sua
matéria é vida humana permeada de valorações. Os “fatos da realidade social fazem
parte necessariamente de conexões de sentido, [estando] referidos uns aos outros por um
vínculo de significações”;
III. Noção de mundo: “considera a consciência à luz da reciprocidade de perspectivas. O
essencial da ideia de mundo é a admissão de que a consciência e os objetos estão
reciprocamente relacionados. Toda a consciência é intencional porque estruturalmente
se refere a objetos. Todo objeto, enquanto conhecido, necessariamente está referido à
consciência”;
IV. Perspectivismo: os objetos são, em parte, constituídos a partir da perspectiva em que
se encontram. Transferidos para outras perspectivas, deixam de ser o que eram, pois o
sentido de um objeto jamais está desligado de um determinado contexto;
V. Suportes coletivos: a redução sociológica é limitada por uma situação e é
instrumento de um saber operativo, sendo por aí que o caráter coletivo de seus suportes
se revela. Para praticá-la, é necessário "viver numa sociedade cuja autoconsciência
assuma as proporções de processo coletivo";
VI. Procedimento crítico-assimilativo da experiência estrangeira: não se trata de
isolacionismo, mas da aspiração ao universal mediatizado. Não se opõe à prática das
transplantações, mas deseja submetê-la a apurados critérios de seletividade, pois uma
sociedade em que se desenvolve a capacidade de auto-articulação torna-se
conscientemente seletiva;
VII. Atitude altamente elaborada: embora seus suportes sejam vivências populares, a
redução sociológica deve se desenvolver com base em estudo sistemático e raciocínio
rigoroso, recorrendo a conhecimentos diversos, especialmente, de história.
Relacionados aos componentes citados, Guerreiro Ramos apresenta, então, as
leis da redução sociológica, como segue.
A primeira lei, a lei do comprometimento, foi enunciada pelo autor da seguinte
maneira: nos países periféricos, a idéia e a prática da redução sociológica somente
poderiam ocorrer ao cientista social que tivesse adotado sistematicamente uma posição
de engajamento ou de compromisso consciente com o seu contexto. Isso quer dizer que,
uma visão do mundo não seria adquirida, apenas, por meio do esforço intelectivo, sendo
difícil para qualquer cientista, em especial o cientista social (GUERREIRO RAMOS,
1996, p. 111).
A segunda lei da redução sociológica afirma que “toda a produção científica
estrangeira era de caráter subsidiário para o sociólogo que tenha adotado
sistematicamente uma posição de engajamento ou de compromisso consciente com o
seu contexto” (GUERREIRO RAMOS, 1996, p. 113). A terceira lei, a lei da
universalidade dos enunciados gerais da ciência, prega: "a redução sociológica admite a
universalidade da ciência tão somente no domínio dos enunciados gerais, não
implicando de modo algum, negar a universalidade da ciência. Seu propósito é, apenas,
levar o cientista a submeter-se à exigência de referir o trabalho científico à comunidade
em que vive" (GUERREIRO RAMOS, 1996, p. 121). Por fim, a quarta lei, a lei das
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fases diz o seguinte: "à luz da redução sociológica, a razão dos problemas de uma
sociedade particular é sempre dada pela fase em que tal sociedade se encontra"
(GUERREIRO RAMOS, 1996, p. 129). Assim, conforme Guerreiro Ramos (1996, p.
135) “sob a espécie da fase, o sentido dos acontecimentos se clarifica. Os
acontecimentos não podem ser compreendidos senão quando referidos à totalidade
(fase) que os transcende e a que são pertinentes. Por isso que não se verificam de modo
arbitrário, estão sujeitos às determinações particulares de cada seção do fluxo históricosocial em que transcorrem” (GUERREIRO RAMOS, 1996, p. 135).
A postura redutora sempre foi utilizada por Guerreiro Ramos em sua trajetória.
Por meio dessas quatro leis, ele começaria a elaborar estudos com vistas à formulação
de uma teoria da sociedade brasileira, apropriando-se, principalmente, das perspectivas
sociológicas, política e administrativa que contornavam nossa realidade social (FARIA,
2009, AZEVEDO, 2006, BARIANI, 2006).
Uma conversa entre Boaventura de Souza Santos, Milton Santos e Guerreiro
Ramos: Por um outro olhar a produção do social
Ao tentar refletir sobre as obras desses grandes pensadores nos deparamos com
preocupações convergentes tais como uma vontade de dar visibilidade e voz para
realidades sociais locais, contextualizadas e periféricas. No caso dos estudos de
Boaventura Santos e Milton Santos é possível perceber um paralelo entre suas idéias no
que tange ao fazer crer e ver as experiências marginalizadas no dizer de Milton Santos e
descredibilizadas no léxico de Boaventura Santos. Para Boaventura Santos a teoria e a
prática social são apresentadas como discrepantes, instaurando um hiato de
possibilidades para o pensamento e a ação especialmente nas realidades dos chamados
países periféricos.
Em seu trabalho, A reinvenção da emancipação social, Boaventura Santos expõe
seu objetivo de verificar em que medida a globalização alternativa está sendo produzida
de baixo e quais são suas possibilidades e limites. Para tanto o autor pesquisou práticas
sociais de alguns países periféricos com o pressuposto de que nesses locais os embates
entre a globalização hegemônica e as possibilidades de globalização contrahegemônicas são mais intensas. De modo semelhante Milton Santos em seu trabalho,
Por uma outra globalização, buscou demonstrar o papel que a ideologia desempenha na
produção e reprodução da globalização atual. E dentro desse contexto como será
possível uma mudança histórica a partir de um movimento de baixo para cima tendo
como protagonista os países subdesenvolvidos na subversão das regras do jogo.
Os autores também tem em comum o desenvolvimento de uma abordagem
heterodoxa como lente para refletir sobre os limites do pensamento hegemônico. Para
Boaventura Santos (2002) a lente proposta se baseia em suas formulações sobre o que
denomina “sociologia das ausências e das emergências”, fundamentadas nas ecologias
dos saberes e das temporalidades. Isso, a partir de novas formas de racionalidade que
surgem nas periferias do mundo como forma de resistência a uma “razão indolente” que
não se abre para a inesgotável diversidade de experiências sociais.
Para o autor a sociologia das ausências consiste num procedimento transgressivo
e insurgente “para tentar mostrar que o que não existe é produzido ativamente como
não-existente, como uma alternativa não-crível, como uma alternativa descartável,
invisível à realidade hegemônica do mundo” (BOAVENTURA SANTOS, 2002, p.
249). A sociologia das ausências visa, essencialmente, subverter essa produção de
ausências transformando-as em objetos presentes, tornando visível aquilo que vem
sendo ocultado pela sociologia dominante. Substituindo as monoculturas por
11
“ecologias”, tais como: a ecologia dos saberes; a das temporalidades; a do
reconhecimento; a das escalas locais e globais; e aquela das produtividades
(BOAVENTURA SANTOS, 2002, p. 249).
Outrossim, Boaventura Santos (2002) tentando identificar os sinais já existentes
no presente como possibilidade do futuro, destaca que a sociologia das emergências
busca trocar indicadores seguros por pistas incipientes, propondo o “ainda não” para
pensar a realidade como aquilo que não existe mas está emergindo. O autor, afirma
também que as duas sociologias produzirão diversas realidades antes não existentes,
mais fragmentadas e plurais. Nesse sentido, um outro desafio se coloca na tentativa de
compreender e ressignificar essas outras experiências. Para cumpri-lo Boaventura
Santos (2002) defende o que chama de trabalho de tradução com vistas a apontar a
heterogeneidade das práticas sociais, e apontar, sobretudo, a multiplicidade de sentidos
no mundo contemporâneo.
Com objetivos similares aos de Boaventura Santos, em termos teórico, e aos de
Guerreiro Ramos em termos metodológicos, Milton Santos, em seus últimos trabalhos,
procurou delinear os fundamentos epistemológicos para uma geografia política
nacional. Para tanto, empreendeu uma reflexão profunda sobre a sociedade moderna no
que se refere ao processo de globalização, a qual denominou de perversa, movida por
um discurso ideológico que faz as engrenagens do sistema reproduzi-la. Diante desse
contexto que se pretende homogeneizador, Milton santos (2008) chama a atenção para o
mito de espaço e tempo contraídos salientando que a velocidade está na realidade ao
alcance de poucos. Do mesmo modo, o autor adverte contra a falácia de um mercado
avassalador capaz de homogeneizar o planeta quando na verdade aprofunda as
desigualdades locais.
Como contra partida, do mesmo modo que Boaventura Santos, Milton Santos
fornece alguns indícios do que pode ser uma outra globalização, mais humana, tendo
como base as mesmas dimensões que fazem da atual globalização uma perversidade,
porém orientados por outros fundamentos sociais e políticos. O autor salienta que as
condições históricas para isso se formaram no final do século XX e que se dão tanto
teórica quanto empiricamente. Nesse último caso, trata-se da enorme mistura de povos,
raças, culturas e gostos. Isso é potencializado pela aglomeração de populações em
pequenos espaços ensejando uma vizinhança dentro da qual se da uma mistura de
pessoas e filosofias. Já no plano teórico, para o autor, o que se verifica é a possibilidade
da produção de um novo discurso em prol da multiplicidade de racionalidades e práticas
sociais.
Assim, como em Boaventura Santos (2002), o geógrafo brasileiro observou as
várias racionalidades e lógicas de ação que permeia o espaço social. Nesse sentido,
Milton santos (2008) expõe que no mundo globalizado o espaço geográfico ganham
novos contornos e definições. Os atores hegemônicos servem-se dos melhores espaços
deixando o resto aos outros. A globalização com o auxilio da técnica da informação
subverte o antigo jogo da evolução territorial e impõe novas lógicas. O território tende
para uma compartimentação generalizada e vira palco dos choques entre o movimento
da sociedade mundial e o movimento particular de cada fração nacional (MILTON
SANTOS, 2008).
Assim, todo e qualquer pedaço da superfície da Terra torna-se funcional as
necessidades e usos dos Estados e das empresas. Isso se realiza em nome da
competitividade que destroça as antigas solidariedades horizontais, para impor uma
solidariedade vertical, cujo irradiador é a empresa hegemônica obediente a interesses
globais e indiferente ao entorno (MILTON SANTOS, 2008). Quanto às
horizontalidades, para o autor, são zonas de contigüidade que formam vizinhanças nas
12
os agentes estão imbricados numa solidariedade orgânica. As horizontalidades, para o
autor, além das racionalidades típicas das verticalidades, admitem a presença de outras
racionalidades contra-hegemônicas ou para falar como Boaventura Santos admite a
presença das múltiplas ecologias.
Por fim, os autores em análise concordam também que na esfera da
racionalidade hegemônica, pequena margem é deixada para a variedade, a criatividade e
a espontaneidade. Porém surgem nas outras esferas, contra-racionalidades e
racionalidade paralelas que são produzidas e mantidas pelos que estão embaixo, e,
sobretudo pelos marginalizados, que, desse modo, conseguem escapar ao totalitarismo
da racionalidade dominante. Na medida em que as técnicas hegemônicas fundadas na
ciência e obedientes aos imperativos do mercado geram necessidades crescentes criamse desigualdades porque não há a satisfação de todos (BOAVENTURA SANTOS,
2002; MILTON SANTOS, 2008).
Diante do que foi discutido acima, os autores apontam para outras possibilidades
da produção de um novo organizar social por meio de uma outra globalização e da
valorização de outras ecologias de saberes e temporalidades cujo movimento contrahegemônico venha de baixo, venha dos pobres, dos marginalizados e dos excluídos.
E o que tem haver a sociologia em mangas de camisa de Guerreiro Ramos
com tudo isso? Dizemos assim, porque a nosso ver a abordagem guerreirista da
redução sociológica complementa as reflexões dos intelectuais analisados, preocupados
com um novo organizar do mundo social em busca de uma possível emancipação social.
Acreditamos que a observação das leis da redução sociológica proposta por Guerreiro
Ramos são o substrato por meio do qual qualquer pesquisa que se pretenda crítica
precisa observar.
Isso porque a produção de experiências não hegemônicas e a teorização sobre
elas só fazem sentido se contextualizadas nas realidades interessadas por meio do
exercício da consciência crítica da realidade nacional para a realização de uma
sociologia a ela relevante. Conforme coloca Guerreiro Ramos (1996) a consciência
crítica e a autoconsciência coletiva são produtos históricos possíveis a partir da
realização de um projeto de existência.
Conclusões
Esse trabalho nos permitiu refletir sobre os modos como o organizar é pensado
na contemporaneidade. Diante de uma realidade construída por uma racionalidade
ocidental indolente e fortemente refletida na produção acadêmica da área de
organizações (VERGARA e PECI, 2003), se torna importante a busca por referenciais
teóricos que nos permitam ver experiências organizativas diferentes daquelas próprias
da racionalidade instrumental. Isso porque, por meio de outras lentes, torna-se possível
desnaturalizar os fundamentos epistemológicos da administração cujas bases
funcionalistas imprimiram um modo particular de visão de mundo sobre o objeto dessa
disciplina.
Desse modo, cabe destacar que outros modos pensar e agir que fogem das
dicotomias do pensamento único acabam sendo construídas como inexistentes. Tal fato
já foi sinalizado por Clegg (1990) em seus estudos sobre a realidade oriental, na qual o
autor apontou para tipos de organização da produção que não obedecem a lógica
instrumental tão costumeira em empreendimentos mercantis no ocidente. Isso posto,
chamamos a atenção para que no próprio ocidente, segundo Boaventura Santos e Milton
Santos, são produzidas ativamente experiências sociais criativas e estranhas a lógica
13
utilitarista. São experiências ricas se vistas a partir do que Boaventura chama de
ecologias, pois apresentam uma multiplicidade de racionalidades e de temporalidades,
dentro do espaço/local o qual Milton Santos denomina espaço banal.
Segundo os autores é nesses espaços que mais facilmente podem surgir práticas
contra-hegemônicas que em algum momento podem ocasionar mudanças sociais no
sentido de se alcançar microemamcipações. Nesse sentido, essa ampliação de visão para
ver as divisões, diferenças e multiplicidades de práticas que comportam o mundo social
se faz importante para a área de Estudos Organizacionais já que as novas formas
organizacionais representam a operacionalização de modos de racionalidade diferentes
daquele descrito por Weber como típico do modelo burocrático (CLEGG, 1990). As
discussões neste assunto caracterizavam a abertura de espaço para novas perspectivas de
compreensão do universo organizacional, apresentando formulações alternativas,
segundo as quais as organizações são reproduzidas e transformadas por meio de
processos políticos e culturais que não conseguem ser captados pelo conjunto de
preceitos analíticos proporcionados pelas teorias até então dominantes.
Assim, a conversação entre pensadores como Boaventura Santos e Milton
Santos, ambos preocupados em dar visibilidade a realidades subterrâneas,
marginalizadas pelo paradigma dominante podem se constituir em pistas valiosas para o
estudo dos fenômenos organizacionais de modo que possamos ver as diversas
racionalidades que agem sobre as práticas organizativas. Fazer isso é realizar uma
subversão herética sobre a doxa, conforme Bourdieu (2005). Com isso contribuímos
para uma crítica orgânica que conforme Wacquant (2004, p. 2):
(...) realiza a crítica social e epistemológica,
questionando, de um modo ativo, contínuo e radical,
tanto as formas estabelecidas de pensamento quanto as
formas estabelecidas da vida coletiva (...) ou doxa (...)
e, assim, nos colocar em uma posição de nos
projetarmos mentalmente para fora do mundo como ele
nos é dado, de modo a inventar, concretamente, outros
futuros que não os já inscritos na ordem das coisas. Em
resumo, o pensamento crítico é aquele que nos dá os
meios para pensar o mundo como ele é e como ele
poderia ser.
Com isso, a partir das idéias dos autores comentados podemos ampliar nossa
visão sobre realidades marginalizadas, mas fonte inesgotável de produção de organizar
alheio à lógica da acumulação e da eficiência. O espaço banal como o lugar da
contigüidade da vizinhança, prenhe de experiências emergentes, subterrâneas,
rizomáticas é o lugar das ecologias que se constituem pelas múltiplas racionalidade e
temporalidades que a razão indolente, e, a epistemologia a ela inerente não pode dar
conta.
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Um Diálogo Entre Boaventura de Souza Santos e Milton