TRANSGÊNICOS, RECURSOS GENÉTICOS E SEGURANÇA
ALIMENTAR: O DEBATE POR DETRÁS DA JUDICIALIZAÇÃO DA
LIBERAÇÃO DA SOJA RR DEBATE SOBRE1
Lavínia Davis Rangel Pessanha2
RESUMO
O Brasil formulou seu quadro regulatório para o sistema agroalimentar, propriedade intelectual para
biotecnologias e sementes, e acesso e controle à biodiversidade, num processo intensamente debatido
entre os setores atuantes neste campo. A judicialização ocorreu quando as organizações de defesa do
consumidor e do meio ambiente entraram no debate frente à iminente liberação da produção e do
consumo de sementes e alimentos transgênicos em território nacional. Evidenciou-se conflito entre
interesses públicos e privados, bem como disputa de autoridade, competências e atribuições entre os
Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, e as instâncias governamentais - União e Estados. O
artigo analisa os argumentos do debate que está por trás da a judicialização das atividades envolvendo
o acesso, utilização e propriedade dos recursos genéticos no Brasil, buscando demonstrar sua relação
com a segurança alimentar, haja vista a percepção pública dos riscos e incertezas envolvidos na
aplicação das novas biotecnologias ao sistema agroalimentar. Como as batalhas travadas têm como
mote de fundo a garantia do Direito Humano à Alimentação Adequada - DHAA, concluo que é
indispensável uma postura ativa dos Estados e governos na defesa dos direitos humanos básicos e dos
interesses públicos, e na sua prevalência frente aos direitos econômicos e interesses privados.
ABSTRACT
Brazil formulated its legal framework regulating the agrifood system, the intellectual property rights
for biotechnology and seeds, and access and control of biodiversity. It was an intensely debated
process between different sectors with specific interests in this field. The judicial conflict arose when
consumers and environmental advocacy organizations joined the debate when they saw the threat of
liberation of licenses for the production and consumption of transgenic seeds and food within the
national territory. Therefore, conflicts between public and private interest, competition for scope of
authority between Executive, Legislativo and Judiciary, and between the Federal Government and the
1 Trabalho apresentado no II Encontro da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ambiente e
Sociedade – ANPPAS, Campinas, 26 a 29 de maio de 2004, GT 6, agricultura riscos e conflitos ambientais.
1
States began. The article analyses the argumentation behind the judicial conflict over the access, use
and property of genetic resources in Brazil. It relates these issues to food security and safety principles.
Also, it will discuss the mass perception on the risks and uncertainties involved in the application of
new biotechnologies in the agrifood sector. As the right to adequate food underlay the debate, the
paper concludes that States and Governments play an active role in the defense of basic human rights
and public interest. These should also prevail in relation to private interest and economics rights.
INTRODUÇÃO
Garantir o direito à alimentação adequada implica em diversos objetivos de políticas, tendo em vista a
amplitude e a abrangência das questões envolvidas na garantia permanente da alimentação e nutrição
a todos os cidadãos. Em linhas gerais, podemos organizar os problemas envolvidos em quatro
conteúdos e campos de políticas distintos: 1) a garantia da produção e da oferta agrícola; 2) a garantia
do direito de acesso aos alimentos; 3) a garantia de qualidade sanitária e nutricional dos alimentos; e 4)
a garantia de conservação e controle da base genética do sistema agroalimentar, que se refere à falta de
acesso. Grosso modo, os dois primeiros conteúdos se vinculam aos temas relacionados à expressão
inglesa food security, enquanto que os demais refletem as discussões expressas no âmbito do termo
food safety (Pessanha:1998).
O Brasil reformulou seu quadro regulatório para o setor agroalimentar, propriedade intelectual para
biotecnologias e sementes, e acesso e controle à biodiversidade, num processo que gerou debate entre
os setores empresariais e de pesquisa públicos e privados atuantes neste campo. Trata-se da transição
do status dos recursos genéticos, que passam de uma condição de bens livres sem valor econômico
para uma condição de bens privados de alto valor; e da percepção pública dos riscos e incertezas
envolvidos na aplicação das novas biotecnologias ao sistema agroalimentar. A judicialização da
política e dos conflitos é uma das conseqüências do processo de positivação dos direitos. Os processos
judiciais envolvendo a produção, comercialização de sementes e grãos transgênicos, demonstram a
magnitude dos conflitos de interesses públicos e privados em torno seja do status dos recursos
genéticos; seja dos riscos envolvendo a aplicação da engenharia genética ao sistema agroalimentar e
seus efeitos sobre o meio ambiente.
No Brasil, a judicialização do conflito ocorreu quando as organizações de defesa do consumidor e do
meio ambiente entraram no debate frente à iminente liberação da produção e do consumo de sementes
2
Cientista Social, Dra. em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade, professora e pesquisadora do Mestrado
em Estudos Populacionais e Pesquisa Social da Escola Nacional de Ciências Estatísticas - ENCE do Instituto
2
e alimentos transgênicos em território nacional. A partir daí, evidenciou-se conflito entre interesses
públicos e privados na esfera judicial, bem como disputa de autoridade, competências e atribuições
entre os Poderes Judiciário, Legislativo e Executivo, e entre as distintas instâncias governamentais União e Estados, no campo da regulação e controle sobre recursos genéticos, sementes e transgênicos.
O artigo analisa os pontos de vista por detrás da judicialização das atividades envolvendo o acesso,
utilização e propriedade dos recursos genéticos no Brasil, buscando principalmente demonstrar sua
relação com a segurança alimentar, haja vista a percepção pública dos riscos e incertezas envolvidos
na aplicação das novas biotecnologias ao sistema agroalimentar. A primeira seção aborda o tema da
segurança alimentar nos aspectos relacionados ao acesso e controle dos recursos genéticos e dos
vegetais geneticamente modificados; a segunda analisa os argumentos acerca da qualidade sanitária e
nutricional dos alimentos; e a terceira seção os debates sobre as análises de risco. Ao final, nossas
considerações à guisa de conclusão.
1. SEGURANÇA ALIMENTAR E QUALIDADE DOS ALIMENTOS GM
No que se refere à garantia da qualidade sanitária e nutricional dos alimentos, a segurança alimentar
significa garantir alimentos com os atributos adequados à saúde dos consumidores, implicando em
alimentos de boa qualidade, livre de contaminações de natureza química, biológica ou física, ou de
qualquer outra substância que possa acarretar problemas à saúde das populações. A importância deste
aspecto da segurança alimentar cresce constantemente, em virtude do desenvolvimento de novos
processos de industrialização de alimentos e das novas tendências de comportamento do consumidor.
Vários fatores têm contribuído para aumentar o interesse da população na qualidade dos alimentos,
entre outros, o crescimento das populações urbanas consumidoras de produtos industrializados, o
crescimento de demandas diferenciadas por produtos e serviços, e o aumento da informação
disponível sobre a saúde, o meio-ambiente e o bem-estar (Oliveira e Thébaud-Mony:1996).
Adulteração e contaminação alimentar constituem um problema sério de saúde pública, podendo
causar diversas enfermidades e agravar os problemas nutricionais, e isto faz com que o consumidor se
posicione mais ativamente, passando a exigir alimentos com atributos gastronômicos e nutricionais
considerados seguros. Por isso, as decisões de compra de alimentos, tradicionalmente baseadas em
aspectos como variedade, conveniência e preço, passam cada vez mais a envolver aspectos adicionais,
tais como qualidade, nutrição, segurança e sustentabilidade ambiental (Spers:1993).
Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE. Brasil. e-mail: [email protected]
3
O interesse em aspectos nutricionais e a demanda por produtos de melhor qualidade por parte do
consumidor aumentam de acordo com a renda, o grau de informação, a idade. Os fatores que influem
na formação das preferências pelos atributos alimentares são de várias naturezas: em primeiro lugar
podemos identificar as qualidades extrínsecas do produto, isto é, sua aparência, cor, tamanho e
formato; e em segundo qualidades intrínsecas, tais como ausência de resíduos químicos, aditivos ou
conservantes, valor nutricional. (Spers:1993). Ao mesmo tempo, a qualidade do produto pode ser
associada à reputação dos produtores ou da empresa ou a atributos simbólicos do produto.
Os atributos intrínsecos são exigidos por consumidores com maior informação e poder aquisitivo.
Neste caso, os atributos não são distinguíveis de modo evidente e visível, tendo em vista que
geralmente não há como verificar a segurança do alimento apenas pelo seu aspecto externo ou sabor
na ocasião da compra. A confiança que o consumidor deposita no produto se torna um elemento de
peso fundamental na decisão de compra, sendo cada vez maior a prática do uso de selos atestando e
ratificando a procedência, a qualidade e os atributos nutricionais dos alimentos comercializados no
mercado (Spers:1993).
Além disso, o reconhecimento dos direitos do consumidor, por meio da criação de legislação
específica que fortalece o sentido de qualidade do conceito de segurança alimentar e reduz a
vulnerabilidade dos consumidores nas relações de compra e venda. No caso dos alimentos, uma das
ações mais relevantes de defesa do consumidor tem sido justamente o reconhecimento dos seus
direitos de garantia de qualidade sanitária e nutricional e de informação quanto aos atributos
intrínsecos dos produtos a serem adquiridos para o consumo (Pessanha:1998).
Cada vez mais, as empresas do setor de alimentos utilizam a diferenciação de produtos por meio de
inovações nos aspectos de segurança e higiene como estratégias de consolidação de mercado e
elevação das vendas. Problemas como contaminações e adulterações nos alimentos podem acarretar
grandes perdas econômicas e comerciais, afetando a credibilidade das empresas perante o
consumidor, de modo que a qualidade dos alimentos se constitui até mesmo numa barreira ao
comércio internacional. Assim, a segurança sanitária e nutricional se constituiu num instrumento de
competitividade na cadeia agroalimentar, atingindo desde as etapas iniciais da produção até o
consumo final, passando pela indústria, distribuição e comercialização. Ressaltamos a necessidade de
uma forte inter-relação entre os diversos atores para o êxito das ações de segurança alimentar, pois é a
somatória das ações dos agentes ao longo da cadeia agroalimentar que determina a segurança do
produto final (Spers:1993).
4
A assimetria de informação que caracteriza certos atributos intrínsecos dos alimentos exige papel
ativo do Estado no controle e fiscalização da qualidade dos produtos alimentícios, seja estabelecendo
normas e padrões de segurança e informação obrigatórios com sanções e penalidades no caso do não
cumprimento das mesmas; seja atuando na fiscalização e na vigilância das normas e padrões
estabelecidos. Ademais, a coordenação dos diversos atores envolvidos torna-se uma questão
estratégica, na medida em que podem ocorrer conflitos na distribuição de custos e benefícios de um
programa de segurança alimentar dentro da cadeia agroalimentar. Por tudo isso, o papel ativo dos
governos é fundamental, seja na coordenação e na fiscalização da cadeia agroalimentar, seja na defesa
dos interesses do consumidor (Spers:1993).
A conscientização dos consumidores, dos governos, dos produtores agrícolas e das empresas do
sistema agroalimentar eleva os requisitos de qualidade e segurança dos alimentos. Esta demanda por
produtos seguros faz com que se formem mercados mais exigentes, e a competitividade leva as
empresas a buscar respostas aos novos anseios dos consumidores.
Um dos maiores efeitos de tais preocupações, tem sido a regulamentação de normas de rotulagem,
preservação de identidade e rastreabilidade de produtos alimentares - transgênicos, convencionais ou
orgânicos, com os objetivos de: a) facilitar o monitoramento e o fortalecimento da segurança
alimentar para assegurar a saúde pública, de modo a permitir a identificação de eventuais fontes de
contaminação alimentar, o subseqüente isolamento da causa da contaminação e a remoção do
alimento contaminado do mercado; b) reforçar a garantia do direito de informação sobre segurança e
qualidade dos alimentos aos consumidores, reduzindo a assimetria de informação por meio do
fornecimento de informações adicionais sobre qualidade e sanidade dos produtos, de tal modo que o
consumidor possa escolher os produtos a serem adquiridos de acordo com sua preferência; e c)
aumentar a proteção de consumidores contra fraudes e contra a concorrência desleal, por meio da
obrigatoriedade da constituição de sistemas de rastreabilidade pelas firmas produtoras de alimentos
com atributos alimentares substantivos e diferenciados, de modo a verificar e provar a existência de
tais atributos (Food Standards Agency:2002).
No âmbito internacional, a regulação das normas de segurança para alimentos se institucionalizou por
meio das determinações do Codex Alimentarius, o código internacional voltado para a orientação da
indústria alimentar e para a proteção da saúde dos consumidores, criado em 1962, por iniciativa da
FAO e da Organização Mundial de Saúde – OMS. A rotulagem de alimentos transgênicos foi
debatida na 24ª reunião da Comissão do Codex (Genebra, 2 a 7 de julho de 2001) e, na inexistência de
5
consenso entre os países membros sobre o tema, determinou-se nova rodada de debates no próximo
encontro. Deste modo, atualmente, o Codex está discutindo normas de segurança para alimentos
transgênicos, incluindo a rastreabilidade e a rotulagem, em diversas instâncias. O Food Import and
Export Inspection and Certification System visa o estabelecimento de normas para os sistemas de
controle de importação de alimentos, os julgamentos de equivalência de medidas sanitárias, a
utilização de sistemas de garantia de qualidade em alimentos, e o controle de situações de emergência.
O Codex Committee On Food Labeling (CCFL) examina as questões relativas à rotulagem de
alimentos e as definições de conceitos, normas e provisões, com vistas a estabelecer os padrões de
rotulagem a serem aplicados internacionalmente a todos os alimentos.
2. SEGURANÇA ALIMENTAR, CONSERVAÇÃO E CONTROLE DA
BASE GENÉTICA E PLANTAS GM
A segurança alimentar, quando referida ao controle e ao acesso à base genética, se funde em alguns
aspectos com as preocupações ambientalistas, pois implica na implementação de políticas voltadas
para o conhecimento, a conservação e o controle público do acesso à biodiversidade.
2.1. SEGURANÇA ALIMENTAR E A CONSERVAÇÃO DA BASE GENÉTICA
No que se refere à conservação da base genética, a importância da biodiversidade para a segurança e a
dinâmica do sistema agroalimentar é evidente, já que os recursos genéticos vegetais são a base da
atividade agrícola. A semente melhorada é o principal fator da produtividade e o vetor da eficiência da
agricultura moderna, e pode ser considerada como o “coração” do sistema agroalimentar,
constituindo-se num núcleo emissor de progresso técnico para o todo o complexo agroindustrial
(Pessanha:1993).
A produção comercial de sementes tem como base o trabalho de melhoramento vegetal, cujo
principal objetivo é identificar os genótipos favoráveis às características agronômicas e econômicas
desejadas em um determinada variedade de cultivo. O melhoramento tradicional se faz pelo
cruzamento sexual das variedades, linhagens e cultivares de uma determinada espécie vegetal, que
permite tanto o desenvolvimento de novas cultivares portadoras de características desejáveis, sejam os
híbridos de plantas alógamas, ou as variedades de alto rendimento de plantas autógamas. (Joly, P-B.
& Ducos, C.:1993).
6
A inovação tem um status particular no melhoramento vegetal pois, por meio de técnicas de domínio
público que atuam sobre o pool genético encontrado na natureza3, produzem-se combinações
originais, que podem ter grande valor econômico. A inovação se faz sobre a utilização de sistemas
vivos, buscando a criação de novos sistemas vivos pois, nos métodos tradicionais, trabalha-se
buscando encontrar variações ou novas combinações dentro dos sistemas já existentes, já que não há a
possibilidade de criação de novos gens (Joly e Hermitte:1991).
De uma perspectiva pragmática, a criação varietal é uma atividade de caráter estocástico, cumulativo,
e de contínuo progresso de seus resultados, conforme observado na evolução das performance das
variedades melhoradas no que se refere à aumento de rendimentos. Em tese, o melhorista pode utilizar
livremente um pool genético público para a criação de novas variedades; concretamente, entretanto,
observa-se que a criação de variedades repousa sobre uma base genética cada vez mais estreita. Há
uma tendência, observada historicamente, à seleção de variedades a partir de um pequeno número de
genitores, o que se explica pela expectativa de obtenção de resultados positivos vis a vis projetos mais
originais. Os esquemas de seleção partem, em geral, das melhores variedades para criar novas
variedades, e a seleção se faz como que num funil, reduzindo progressivamente a base genética na
qual se funda, e deixando de utilizar a totalidade da variabilidade genética disponível.
Há, portanto, uma tensão no processo de melhoramento vegetal: a eficácia estática necessita da
redução da base genética, enquanto que a eficácia de longo prazo implicaria contrariamente na
manutenção de uma base genética larga, de modo que a escolha de técnicas mais eficazes no curto
prazo tem gerado o abandono das técnicas eficazes a longo prazo (Joly e Hermitte:1991).
Por outro lado, a manutenção de uma base genética larga é fundamental para melhoramento vegetal
no longo prazo, pois a diversidade de espécies e a variabilidade dentro de cada espécie são fatores
fundamentais para o melhoramento vegetal. A diversidade genética permite a adaptação das culturas
3
O termo germoplasma é utilizado para designar o conjunto dos recursos genéticos de uma espécie,
englobando material hereditário contido em toda célula viva e, portanto, toda e qualquer característica, mesmo
que potencial, transmitida geneticamente. Os recursos genéticos vegetais, por sua vez, englobam todo o
espectro de germoplasma do reino vegetal disponível no globo. Tais recursos não podem ser vistos como um
conjunto indiferenciado, sendo classificados em quatro categorias distintas: 1) coleções de variedades
modernas das espécies cultivadas, conjunto dos recursos genéticos de utilização imediata, empregados no
curto prazo; 2) materiais inacabados, populações muito heterogêneas de ampla possibilidade de utilização,
que constituem um reservatório genético partir do qual é possível criar variedades adaptadas a condições
específicas; 3) as variedades tradicionais de uma dada espécie nas quais é possível não somente buscar
qualidades desejadas mas inexistentes nas variedades modernas, como também encontrar variedades
esquecidas, mas suscetíveis de uma segunda carreira comercial; 4) variedades silvestres de espécies
cultivadas, são as variedades encontradas nas regiões de diversidade, onde se buscam as qualidades ausentes
na variedades modernas, sendo o principal meio de revigoramento destas (Joly e Hermitte:1991).
7
aos diferentes ambientes e condições de stress, e o material genético procedente das variedades
distintas de uma espécie constitui a matéria-prima para a produção de novas variedades de cultivos. O
trabalho de melhoramento vegetal está vinculado à diversidade genética, e a produtividade da
agricultura moderna é sustentada pela permanente incorporação de germoplasma de espécies
selvagens, raças locais ou variedades de cultivo tradicionais. A alimentação humana e a indústria
alimentar são dependentes da variabilidade genética encontrada nas espécies parentes das variedades
de cultivos modernas [Hobbelink:1987/15)].
Erosão e uniformidade genética são problemas ambientais intrinsecamente relacionados que afetam a
sociedade humana em seu conjunto e tem se intensificado nas últimas décadas. Sinteticamente, os
principais fatores que contribuem para o processo de erosão e uniformização da base genética do
sistema agroalimentar, são: a) a substituição de variedades de cultivo tradicionais, primitivas, por
variedades de cultivo melhoradas; b) a destruição do habitat natural de espécies vegetais, resultante de
alterações no padrão de uso do solo e políticas de urbanização; c) erosão e desertificação de
importantes ecossistemas; d) manutenção inadequada dos germoplasmas já coletados e armazenados
nos bancos de germoplasma vegetal; e) o descarte de germoplasma básico e material de
melhoramento na atividade de melhoramento vegetal; f) a legislação sobre os direitos dos melhoristas,
que exige uniformidade genética para a concessão de proteção para variedades melhoradas
(Velho:1991/4-5).
Posteriormente, o desenvolvimento das novas cultivares comerciais incorporou as novas biotécnicas
como ferramentas estratégicas diversas etapas do processo de melhoramento tradicional. As técnicas
de engenharia genética possibilitaram a transferência de genes de um organismo para outro, inclusive
entre organismos de espécies diferentes, trazendo aparentemente ganhos de eficiência e eficácia ao
processo de melhoramento, tais como maior precisão e qualidade da intervenção, maior previsão na
obtenção das características desejáveis, e redução do tempo de duração aos programas. Supera-se
ainda a barreira do cruzamento sexual na obtenção de características desejáveis ao melhoramento
vegetal.
É importante destacar que, ainda que a recombinação genética se faça em novas bases, o problema da
criação de combinações genéticas dentro do pool de genes existente na natureza persiste mesmo com
o advento da engenharia genética, já que não está dada a possibilidade de criação de novos genes.
Consequentemente, permanece também a necessidade de conservação da variabilidade genética intra
e interespecífica. pois a agroindústria e a alimentação humana permanecem dependentes da
8
variabilidade genética encontrada na natureza (Kloppenburg:1988). Existem fortes indicações de que
as novas sementes transgênicas acentuam o processo de erosão e uniformização da base genética
anteriomente mencionado (ver Hickey and Mittal:2003)
Um outro aspecto fundamental é a questão geopolítica envolvida no intercâmbio de recursos
genéticos vegetais. A diversidade genética não se distribui homogeneamente em termos geográficos,
já que se concentra, na maior parte, concentra-se em áreas tropicais, situadas nos países pobres e em
desenvolvimento. Por outro lado, a maior parte do desenvolvimento científico e tecnológico em
biotecnologias se concentra nos países industrializados, onde se concentram também as grandes
firmas produtoras de sementes melhoradas em bases comerciais [(Wilkinson e German:2000 )
(Mayers:1988)].
Deste modo, o mundo é altamente interdependente em termos de recursos genéticos vegetais pois,
ainda que existam importantes padrões de variação em termos de interdependência regional, não há
uma região totalmente independente em termos de germoplasma e nenhuma região pode ser isolada
do acesso ao germoplasma vegetal de outras regiões de diversidade. Na visão de alguns autores, como
Kloppenburg (1988), ocorre uma assimetria no fluxo internacional de recursos genéticos vegetais, já
que os países industrializados tem maior capacidade de obter os recursos genéticos dos países em
desenvolvimento e maior capacidade científica para utilizá-los.
2.2. CONTROLE E APROPRIAÇÃO DA BASE GENÉTICA
Por sua vez, a tendência geral de fortalecimento das legislações de propriedade industrial, gerada pelo
advento dos novos produtos e processos biotecnológicos, tem também efeitos significativos sobre a
segurança alimentar. Historicamente, é possível afirmar que fortalecimento dos direitos de
propriedade intelectual sobre biotecnologias e recursos genéticos refletem uma tendência de longo
prazo, de transição do status dos recursos genéticos, que passam de uma condição de bens livres sem
valor monetário para uma condição de bens privados de alto valor (Pessanha: 1993).
Os problemas relativos à apropriação econômica do esforço de inovação em plantas são elementos
constitutivos do mercado de sementes. A garantia de apropriabilidade é estratégica para a constituição
do mercado de sementes, em virtude das especificidades da semente como produto a ser
comercializado: a semente é um produto vivo e auto-reprodutível, encontrado na natureza e
manipulado por técnicas humanas, que para se tornar uma mercadoria precisa ser passível de
apropriação privada.
9
O caráter de bem público da informação genética veiculada pelas sementes faz com que, por si só, os
mecanismos de mercado não sejam capazes de garantir a total apropriação e o retorno remunerado da
atividade inventiva de melhoramento de sementes. No início do século 20, quando o mercado de
sementes se encontrava em formação, já se verificavam problemas quanto à apropriação privada dos
recursos genéticos e das variedades lançadas no mercado. A semente se tornou uma mercadoria
paulatinamente, por meio de variáveis técnicas, com o desenvolvimento de hibridação, que rompe a
identidade entre a semente para plantio e o grão colhido, e forjando a separação entre o agricultor e o
produtor de sementes; e por força de mecanismos institucionais e instrumentos jurídicos legalmente
sancionados4 - por meio da criação de sistemas de direitos de propriedade intelectual, que
possibilitaram a apropriação privada de variedades de alto rendimento [(Kloppenburg Jr., J.R.:1988)
(Joly e Ducos:1993).
A especificidade das sementes como produto - vivo e autoreprodutível - levou à criação de sistemas
sui generis para a proteção dos direitos dos melhoristas de plantas, tais como o Plant Protection Act,
estabelecido nos Estados Unidos na década de 30 para plantas reproduzidas assexuadamente; o Plant
Breeders Rights (sistema UPOV) na Europa nos anos 60 para sementes de cultivares comerciais em
geral; e o Plant Variety Protection Act para variedades comerciais, nos Estados Unidos, nos anos 70.
O sistema UPOV está na isenção do melhorista – essencial para a dinâmica da atividade, sem o que
não haveria inovação vegetal – e no privilégio do agricultor – que possibilita ao produtor agrícola a
utilização do produto da sua colheita em plantios posteriores. O sistema americano é mais rígido,
aproximando-se da proteção patentária: o proprietário tem direitos exclusivos sobre a produção, uso e
comercialização do cultivar protegido, sendo vedada a terceiros sua posse para quaisquer das
atividades mencionadas (Pessanha: 1993). 5
Já nos anos 80, os pesados investimentos das grandes empresas transnacionais em pesquisa e
desenvolvimento de biotecnologias modernas geraram pressões para o fortalecimento dos direitos de
propriedade intelectual para o setor de sementes no âmbito internacional. O patenteamento de
4
A estes, adiocionaram-se também outros mecanismos institucionais e estratégias empresariais de
apropriação econômica do esforço de inovação no mercado de sementes, descritos em Carvalho e Pessanha:
2001.
5 De acordo com Joly e Hermitte (1991), o sistema Plant Breeders Right se distinguem do sistema patentário
por 3 características essenciais: 1) a definição do objeto da proteção. O PBR protege uma variedade, enquanto
a patente protege uma invenção; 2) as condições de proteção. O PBR concede proteção com base em 3
critérios: distinção homogeneidade e estabilidade, enquanto a patente exige outras três condições: novidade,
atividade inventiva e utilidade industrial. 3) a extensão da proteção. O PBR, em sua versão inicial, não acatou
o direito de continuidade (derivação) ou dependência, existente no sistema patentário, de modo que, para fins
10
produtos e processos biotecnológicos se iniciou nos Estados-Unidos, e ganhou força rapidamente nos
países desenvolvidos. Há microorganismos, vegetais e animais patenteados6.
A pressão internacional pelo fortalecimento dos direitos de propriedade levou à revisão da Convenção
UPOV e ao fortalecimento dos direitos dos melhoristas em 1991, tendo em vista a necessidade de
aumentar a atratividade do sistema de proteção de variedades frente ao sistema patentário. Na revisão,
fica estabelecido que o PBR poderá ser estendido à colheita produzida por material de propagação
cujo uso não tenha sido autorizado pelo melhorista, de modo que o sistema poderá ser usado para
restringir a importação de material colhido que resulte do uso desautorizado de material de
propagação de uma variedade protegida. A permissão do melhorista passou a ser requerida para a
exploração de qualquer variedade que seja essencialmente derivada de uma variedade protegida.7 O
privilégio do agricultor também foi atingido pela revisão, pois estabeleceu-se que dentro de certos
limites e com o objetivo de salvaguardar os legítimos interesses dos melhoristas, o Estado poderá
restringir-lo. Ademais, na versão anterior, requeria-se aos países membros que não concedessem
patentes para espécies para as quais o sistema UPOV fosse disponível. Esta provisão não consta da
revisão, que estabeleceu que os membros da convenção poderão oferecer patentes como uma
alternativa opcional para o sistema UPOV ou ainda acumular ambos os sistemas para uma mesma
variedade 8(Pessanha:1993).
De um modo geral, os países detentores de tecnologias de ponta têm lutado pelo fortalecimento e
uniformização da proteção à propriedade intelectual em instâncias internacionais de negociações. A
World Intellectual Property Organization - WIPO, a organização da ONU que administra as
convenções sobre a PPI, tem vários comitês que estudam as opções para a proteção legal das novas
tecnologias e a harmonização dos direitos de propriedade intelectual, mas vem perdendo força, já que
o fórum das principais discussões foi deslocado para o âmbito das instituições comerciais. Na rodada
do Uruguai do GATT, o tema da propriedade intelectual foi incluído no grupo de negociação TradeRelated Aspects of Intellectual Property, including Trade in Counterfeit Goods (TRIPs), sendo o tema
de pesquisa, uma variedade protegida pode ser livremente utilizada como fonte de variabilidade inicial, sendo
o seu produto (uma nova variedade) totalmente independente da variedade inicial.
6
Em linhas gerais, a patente é um privilégio de monopólio, concedido com o propósito de fomentar a
inovação. O sistema concede certos direitos exclusivos de produção e comercialização ao detentor de uma
patente por um período limitado, normalmente de 15 a 20 anos, no país onde a licença foi concedida. Quatro
requisitos estão na base do sistema de patentes: novidade, atividade inventiva, utilidade industrial; e
disclosure, descrição e reprodutibilidade (Penrose: 1974).
7
Na Convenção, define-se que a variedade é considerada essencialmente derivada quando é derivada de uma
variedade protegida e contém virtualmente toda a estrutura genética da variedade protegida.
11
da propriedade intelectual merecedor de grande atenção na Organização Mundial do Comércio OMC.
Com tudo isto, os recursos genéticos recebem um status dúbio sob a ótica econômica: como fonte de
variabilidade, os recursos genéticos, em quaisquer formas, são vistos como uma herança comum da
humanidade, um bem público de utilização livre, imediata e gratuita; já como um objeto comercial –
na forma de variedade – os recursos genéticos são bens privados, de uso exclusivo. Por isto, muitos
pesquisadores e ativistas tomam os direitos de propriedade intelectual no setor como uma tentativa,
por parte das empresas privadas, de retirar do mercado de sementes seus concorrentes diretos - os
produtores agrícolas e o setor público de pesquisa. Nesta perspectiva, a concessão de direitos de
propriedade intelectual para as sementes fere o direito dos agricultores ("farmers rights"), que
milenarmente vêm desenvolvendo o trabalho de seleção, melhoramento e conservação de variedades
de cultivos, cujo germoplasma foi freqüentemente incorporado às variedades de elite da indústria
sementeira com vistas à introdução de novos traços desejados, sem qualquer ônus para a indústria.
Esta corrente luta pelo reconhecimento em âmbito internacional dos direitos dos agricultores e pela
manutenção do status dos recursos genéticos como uma herança comum da humanidade
(Shiva::1992).
Acerca do problema da apropriabilidade das cultivares comerciais, cabe ressaltar que ainda o
desenvolvimento das sementes "terminator", isto é, sementes geneticamente modificadas para se
tornarem estéreis na segunda geração, é uma das rotas tecnológicas perseguidas pelas empresas
transnacionais que estão na ponta da pesquisa e desenvolvimento do setor sementeiro. O anúncio do
investimento privado nesta trajetória tecnológica causou protestos por parte das organizações nãogovernamentais ligadas ao setor agrícola na comunidade internacional, o que levou a sua suspensão
temporária por parte das empresas. A entrada destas sementes no mercado poderia revolucionar as
estratégias de apropriação privada das empresas sementeiras, diferenciando definitivamente, por meio
de recursos tecnológicos, as sementes para plantio e os grãos colhidos, retirando totalmente a
autonomia dos agricultores no que se refere à reprodução e reutilização da matéria-prima básica9.
8
No texto da revisão, ficou facultado aos países em desenvolvimento a adesão ao sistema UPOV na sua
versão anterior até 2001.
9
A este respeito, ver o site da Rural Advancement Foundation International (RAFI); http//:www.rafi.org.
12
3. PLANTAS E ALIMENTOS GM, ANÁLISE DE RISCO E SEGURANÇA
ALIMENTAR
O debate sobre a segurança alimentar e ambiental dos alimentos geneticamente modificados envolve
a comunidade internacional de cientistas. Os grupos de posição contrária e favorável falam de
distintos pontos de vistas, que refletem visões de mundo e concepções acerca do papel e do processo
de desenvolvimento científico e tecnológico antagônicas.
De um lado, estão os autores que relançam a ameaça da "armadilha malthusiana" do crescimento
populacional vis a vis o crescimento da produção de alimentos, e retomam os argumentos da
necessidade de modernização tecnológica da agricultura - previamente desenvolvidos pelos teóricos
da Revolução Verde. Nesta perspectiva, a fome é conseqüência do gap entre a produção de alimentos
e as taxas de crescimento da população humana. Os atuais patamares de crescimento da produtividade
das sementes agrícolas são insuficientes frente ao desafio de alimentar a crescente população do
Terceiro Mundo nos próximos 50 anos, de tal modo que se faz indispensável uma nova revolução
tecnológica com a adoção em larga escala das técnicas de engenharia genética para o melhoramento
de sementes como uma saída para a crise alimentar iminente [Conko, G. & Smith, F., Jr. (1999) e
McGloughlin, M. (1999)].
De outro lado, os autores que, numa perspectiva crítica à abordagem quantitativa, afirmam que não há
relação entre a prevalência de fome em um determinado país e a taxa de crescimento ou tamanho da
sua população, sendo esta gerada por processos políticos de distribuição de recursos entre países e
indivíduos. A verdadeira causa da fome está na pobreza, na desigualdade e na falta de acesso à terra e
aos alimentos, como mostra o "paradoxo da plenitude", observado na Revolução Verde, pelo qual a
maior quantidade de alimentos é acompanhada pelo recrudescimento da fome (Altieri, M. & Rosset,
P.:1999). Ademais, destacam os riscos potenciais de danos ao meio ambiente e à saúde humana
derivados da produção e consumo das novas sementes.
No que se refere à qualidade e aos fatores de riscos dos alimentos engenheirados para o consumo
humano, os pesquisadores ressaltam entre os possíveis efeitos das novas proteínas (transgênicas):
atuarem como alergenos ou toxinas; alterar o metabolismo da planta ou animal fazendo com que
produzam novos alergenos ou toxinas; alterar a composição nutricional dos alimentos, reduzindo as
quantidades disponíveis de nutrientes essenciais ou elevando a quantidade de elementos danosos à
saúde humana (Altieri, M. & Rosset, P.:1999).
Os principais casos anunciados até agora são a soja transgênica, da qual testes específicos
evidenciaram maior quantidade de hormônios e ou menor quantidade de isoflavona, e o milho
13
Starlink, ao qual foram atribuídas reações alérgicas decorrentes do seu consumo. Os defensores da
tecnologia afirmam que as condições de realização destes testes não são suficientes para comprovar
que tais alterações derivam de fato da transgenicidade destes produtos.
De acordo com os procedimentos técnicos de biossegurança, a avaliação da segurança de um
alimento geneticamente modificado deve envolver a investigação das seguintes variáveis: quantidades
prováveis do alimento a serem consumidas pela população, incluindo o consumo médio e o extremo;
descrição do alimento e do seu processo produtivo; histórico e qualquer possível efeito adverso à
saúde humana relacionada ao organismo que está sendo modificado; descrição do processo de
modificação genética; avaliação de possíveis efeitos adversos - nutricional, toxicológico ou
microbiológico do alimento modificado; e a avaliação de dados obtidos com pessoas alimentadas com
o alimento modificado em condições controladas (Nutti,M.R.e Watanabe,E.:2002). Por outro lado,
pesquisadores consideram que a normatização vigente é insuficiente e a estrutura regulatória atual é
inadequada, não transparente e, em alguns casos, completamente ausente, de tal modo que os
resultados destes estudos devem ser considerados restritos (Altieri, M. & Rosset, P.:1999).
Há uma disputa entre interesses econômicos e pontos de vistas opostos, que se confrontam inclusive
no que se refere à adoção de princípios jurídicos para a tomada pública e governamental de decisões
sobre a produção e consumo de alimentos transgênicos. Em geral, os atores favoráveis à liberação
imediata dos transgênicos fundamentam sua posição nos princípios da equivalência substantiva e do
benefício da dúvida, como no caso dos EUA e das empresas transnacionais detentoras da tecnologia,
enquanto os atores contrários a esta liberação aderem ao princípio da precaução, como no caso dos
governos, algumas empresas alimentares, organizações civis e a população européia.
No sistema de biossegurança vigente, a avaliação da segurança de um alimento GM visa o
estabelecimento de sua equivalência substancial e não trata de segurança absoluta, vista como uma
meta inatingível. O objetivo é garantir que o alimento, e quaisquer substâncias que tenham sido nele
introduzidas sejam tão seguros quanto seus análogos convencionais. Para a determinação da
equivalência substancial, o alimento geneticamente modificado é comparado ao seu análogo
convencional, com histórico de uso seguro, identificando-se similaridades e diferenças. Os resultados
dessa comparação direcionam o processo de avaliação que segue um procedimento padronizado
(Nutti,M.R.e Watanabe,E.:2002).
Os fatores considerados incluem a identidade, fonte e composição do organismo geneticamente
modificado, os efeitos do processamento/cocção sobre o alimento geneticamente modificado,
14
(incluindo os efeitos na função, a toxidade e a alergenicidade), possíveis efeitos secundários da
expressão do gene (que incluem a composição de macro e micronutrientes críticos, antinutrientes,
fatores tóxicos endógenos, alergenos e substâncias fisiologicamente ativas), e o impacto da introdução
do alimento GM na dieta. O tipo e a extensão de estudos adicionais dependem da natureza das
diferenças observadas e se estas podem ou não ser bem caracterizadas (Nutti,M.R.e
Watanabe,E.:2002).
A análise de equivalência substancial pode resultar em três possíveis conclusões: 1) o alimento ou
ingrediente alimentar GM é substancialmente equivalente ao análogo convencional quanto a sua
composição e quanto aos seus aspectos agronômicos e toxicológicos; 2) o alimento GM ou
ingrediente alimentar é substancialmente equivalente ao análogo convencional, exceto por algumas
poucas diferenças claramente definidas; e 3) o alimento GM ou ingrediente alimentar não é
substancialmente equivalente, porque diferenças podem ser claramente definidas, ou porque o
análogo convencional não existe (Nutti,M.R.e Watanabe,E.:2002).10
Contudo, o importante a ser ressaltado é que, nas palavras de Nutti e Watanabe, (2002/125), "o fato de
um alimento GM ser substancialmente equivalente ao análogo convencional não significa que o
mesmo seja seguro, nem elimina a necessidade de se conduzir uma avaliação rigorosa para garantir a
segurança do mesmo antes que sua comercialização seja permitida. Por outro lado, a não constatação
do ES não significa que o alimento geneticamente modificado não seja seguro, mas que há a
necessidade de se prover dados de maneira extensiva, que demonstrem sua segurança." Isto indica a
incapacidade dos estudos de equivalência substancial em determinarem a segurança dos alimentos e
substâncias avaliados e, portanto, garantir que os mesmos não venham a gerar problemas de saúde
pública às populações expostas ao seu consumo, seja no curto, médio ou longo prazo. No entanto, o
resultado do estudo de equivalência substancial é suficiente para que o produtor do alimento receba o
"benefício da dúvida", e desfrute da permissão do Food and Drugs Administration - FDA de liberar o
10
É importante ressaltar, as potenciais ameaças advindas da produção e consumo dos alimentos transgênicos,
apontados pelos pesquisadores, vão muito além dos aspectos da segurança nutricional dos alimentos estrito
senso: a) a introdução de genes capazes de tornar estéreis uma segunda geração de sementes, por meio da
tecnologia terminator; b) a alteração genetica de uma planta pela tecnologia traitor, que condiciona expressão
de determinadas proteínas esteja condicionada à aplicação de uma substância capaz de ativar ou desativar
características específicas da planta; c) a eliminação de insetos e microorganismos do ecossistema, devido à
exposição a substâncias tóxicas; d) a contaminação de culturas convencionais; a transferência horizontal de
genes, ou seja, entre espécies que não se relacionam na natureza; e) a geração de superpragas – ervas daninhas
e insetos resistentes a herbicidas e inseticidas; f) o aumento do uso de defensivos; a redução da produtividade
das colheitas transgênicas em relação às convencionais; g) o surgimento de novas substancias não previstas;
h) a oligopolização do mercado de sementes; o aumento do preço final do produto; e i) a elevação da
dependência e a intensificação do processo de exclusão dos pequenos agricultores.
15
referido alimento para consumo nos Estados Unidos, dada a incapacidade de comprovar os efeitos
negativos à saúde humana do seu consumo (Abramson:2002).
Em decorrência deste ambiente de incerteza, e contrariamente à posição norteamericana, muitos
países preferem aderir ao princípio da precaução no que se refere à liberação dos transgênicos no meio
ambiente e ao consumo humano. De acordo com este princípio, a ausência de certeza, levando em
conta os conhecimentos científicos e técnicos do momento, não deve retardar a adoção de medidas
efetivas e proporcionais visando prevenir o risco de danos graves e irreversíveis ao meio ambiente
(Altieri, M. & Rosset, P.:1999). O princípio da precaução visa a durabilidade da qualidade de vida das
gerações, presentes e futuras, e a conservação da natureza planetária, e não pretende imobilizar as
atividades humanas.
De acordo com os fundamentos do direito ambiental, o princípio da precaução é um dos marcos
orientadores da moderna política do meio ambiente, e significa que deve ser dada prioridade às
medidas que evitem atentados ao meio ambiente. Nesta perspectiva, ações com efeitos imediatos ou a
prazo no meio ambiente devem ser antecipadamente consideradas, priorizando-se a correção daqueles
efeitos susceptíveis de alterarem a qualidade do ambiente. O posicionamento preventivo fundamentase na responsabilidade de prevenir o que causa perigo ao meio ambiente, da qual decorrem obrigações
de fazer e não fazer. Deste modo, não é preciso que se tenha prova científica absoluta de que ocorrerá
dano ambiental. Basta existir o risco de que o dano seja irreversível ou grave para que não se adiem as
medidas efetivas de proteção ao ambiente. Ao existir dúvida sobre a possibilidade futura de dano ao
homem e ao ambiente, a solução deve ser favorável ao ambiente e não do lucro imediato, por menos
atraente que pareça esta atitude preventiva para as gerações presentes [(Machado:1998)
(Freitas:1998)].
Pesquisadores do campo da biossegurança destacam que os riscos11 e impactos da liberação no meio
ambiente, plantio e consumo de alimentos geneticamente modificados são imprevisíveis, tendo em
vista o escasso conhecimento e a falta de controle sobre as construções genéticas após a sua inserção
no genoma da célula hospedeira no atual estágio de conhecimento (Nodari e outros: 2003).
11
Segundo Freitas (2003: 114) o conceito de risco que se conhece atualmente (...) implica na consideração de
previsibilidade determinadas situações ou eventos, por meio do conhecimento - ou, pelo menos, possibilidade
de conhecimento - dos parâmetros de uma distribuição de probabilidade de acontecimentos futuros". Para
cientistas sociais como Giddens (1991), os riscos são inerentes à condição moderna, tendo em vista o
reconhecimento da complexidade da natureza e da impossibilidade de determinação de todas as
conseqüências advindas da ação humana sobre a natureza.
16
Deste modo, a avaliação da segurança alimentar e ambiental dos vegetais geneticamente modificados
devem se basear nos princípios da prevenção e da precaução, levando em consideração aspectos
como: a) a vantagem seletiva conferida a um parente silvestre decorrente da transferência de genes
para plantas sexualmente compatíveis; b) a possibilidade de transferência horizontal ou lateral do
transgene; c) a possibilidade de alergenicidade e toxidade mediada pelo pólen; d) o aumento da
sobrevivência, estabelecimento e disseminação de plantas transgênicas; e) os efeitos adversos em
organismos não-alvo e a toxidade, devido aos efeitos diretos ou indiretos do transgenes. De acordo
com Nodari e outros (2003:85), "rigor na contenção, precaução e prevenção são ingredientes
indispensáveis para evitar acidentes indesejáveis à saúde humana e ao meio ambiente e à
sustentabilidade da própria engenharia genética".
Para Freitas (2003), é necessário o reconhecimento e a aceitação dos limites do conhecimento
prospectivo e uma mudança na estratégia preventiva. Na sua forma atual, as metodologias de
avaliação de riscos estão centrada na ponta final do processo ou sobre o produto. No caso das novas
biotecnologias e dos alimentos transgênicos, o principal problema é o de que avaliações mais
conclusivas só podem surgir após o produto ter sido produzido e consumido em larga escala pela
sociedade, como num experimento prático em tempo real.
Diversos documentos internacionais, tais como a Declaração do Rio, a Convenção da Diversidade
Biológica e o protocolo de Cartágena sobre Biossegurança da Convenção de Diversidade Biológica
12
, acatam o princípio da precaução. A Declaração do Rio é a mais importante referência para avaliar
os futuros desdobramentos do direito internacional ao prover as bases para a definição do
desenvolvimento sustentável e sua aplicação no plano do direito interno. Suas regras refletem
princípios do direito costumeiro internacional, princípios emergentes no direito internacional e
prevêem orientações a serem incorporadas nos sistemas normativos internos e internacionais.
O Protocolo de Cartágena faz referência ao princípio da precaução em diversos de seus artigos. O
artigo I determina a aplicação do princípio da precaução à introdução de ogms para uso direto como
alimento humano ou animal, ou para o seu processamento. No artigo 10, estabelece que o mesmo
deve ser aplicado às decisões relativas à concessão de licenças para a importação de qualquer Ogm
que seja introduzido no meio ambiente. No anexo III, adverte que a falta de conhecimento e de
consenso científico não seria interpretada necessariamente como indicador de um determinado nível
de risco, da ausência de risco ou da existência de um risco aceitável. Pelo disposto no Protocolo, o
12
Ver www.biodiv.org./oorkd/parties.asp?lg=1.
17
princípio da precaução regula os movimentos transfronteiriços dos alimentos agrícolas transgênicos,
para evitar riscos ambientais e sanitários, possibilitando aos países a imposição de restrições e
garantias ao comércio de Ogms quando existe insuficiente informação científica e potenciais riscos á
biodiversidade e á biossegurança. Entretanto, o Protocolo não regula todos aspectos da biossegurança,
que são de competência das leis nacionais.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Está em curso um processo de reorganização das relações sociais envolvendo as atividades
econômicas utilizadoras dos recursos genéticos vegetais, tendo em vista tanto a tendência de transição
do status dos recursos, que passam de uma condição de bens livres sem valor econômico para uma
condição de bens privados de alto valor. Na perspectiva polanyana, a criação de "mercadorias
fictícias" exige previamente uma ativa atuação do Estado na criação do quadro institucional normativo e organizacional - indispensável ao funcionamento do livre mercado. Na criação do
mercado de sementes, a questão central que se colocava aos potenciais investidores privados, era a sua
apropriabilidade, solucionada a partir de inovações tecnológicas e institucionais. Na sua
reestruturação, decorrente da aplicação das novas biotecnologias ao setor, os interesses dos
investidores privados ultrapassam os limites institucionais anteriormente estabelecidos aos direitos de
propriedade, atingindo não somente os novos produtos e os processos, mas também o genoma.
No Brasil, a judicialização do debate em torno dos alimentos geneticamente modificados indica a
paulatina constituição um amplo conflito de interesses envolvendo os setores público e privado e as
organizações sociais, bem como uma disputa de autoridade, competência e atribuições na alçada dos
poderes federais – Judiciário, Legislativo e Executivo, e nas distintas instâncias autônomas de governo
– União e Estados, sobre a regulação da pesquisa e desenvolvimento de produtos e processos
biotecnológicos no campo alimentar. Tal debate decorre de interesses e pontos de vistas diferenciados
quanto ao status dos recursos genéticos - de bens públicos ou bens privados; bem como da percepção
pública dos riscos e incertezas envolvidos na aplicação das novas biotecnologias ao sistema
agroalimentar. O que está em jogo é o estabelecimento de limites éticos e legais às possibilidades
técnicas e econômicas delineadas pela engenharia genética. Neste aspecto, o caminho escolhido pelo
Brasil tem caráter estratégico, inclusive na definição das possibilidades de uma oferta diversificada
(transgênicos, não-transgênicos, tradicionais e orgânicos) de commodities alimentares pelo sistema
agroalimentar em âmbito mundial.
18
Ademais, as batalhas travadas têm como mote de fundo a garantia do Direito Humano À Alimentação
Adequada - DHAA, reconhecido pelas Nações Unidas, e no âmbito do direito constitucional
brasileiro em vigor como decorrência do direito à vida. Por vezes, a cumulatividade dos direitos,
confirmados por convenções internacionais e aplicados em nível nacional, cria uma distância entre a
realidade discursiva e sua aplicação, mas considero indispensável uma postura ativa dos Estados e
governos na defesa e garantia dos direitos humanos básicos e dos interesses públicos, e na sua
prevalência frente aos direitos econômicos e interesses privados.
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