RAFAEL KUNZLER PARUCKER
DIREITO À EDUCAÇÃO:
O Distrito Federal e a implementação integral da
educação infantil.
.
Monografia apresentada como requisito
para conclusão do curso de pós-graduação
da Fundação Escola Superior do Ministério
Público do Distrito Federal e Territórios
Orientador: Prof. Paulo Afonso Cavichioli
Carmona
BRASÍLIA
2009
2
3
Se tens planos para um ano, plante arroz.
Se tens planos para dez anos, plante árvores.
Se tens para cem anos, instrua o povo.
Provérbio chinês
Apud MUNIZ, Regina Maria Fonseca. O Direito à
Educação. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p. VIII.
4
RESUMO
O trabalho aborda o direito fundamental à educação e a deficiência na
oferta gratuita pelo Governo do Distrito Federal de vagas em creche e pré-escola. O
embate jurídico decorre da interpretação que extrai o Governo do Distrito Federal do
disposto no art. 208, IV c/c 211, § 3º, ambos da Constituição Federal, que o eximiria do
dever de atendimento de crianças de até 5 (cinco) anos em creches e pré-escola. A esta
posição contrapõe-se o Ministério Público do Distrito Federal, que entende ser dever
constitucional inescusável daquele ente federativo a efetivação deste direito. O estudo
trata de temas relacionados ao direito à educação, como a sua inclusão nos direitos
fundamentais, normas programáticas, a “reserva do possível”, as questões filosóficonormativas envolvidas, os instrumentos jurídicos garantidores, questões específicas,
estudos de casos e jurisprudência. Conclui, pelo equívoco do entendimento do Governo
do Distrito Federal.
Palavras – chaves: Direito fundamental à educação. Educação infantil. Creche e préescola. Constituição Federal. Estatuto da Criança e do Adolescente. Lei de Diretrizes e
Bases da Educação. Dever do Estado. Reserva do possível. Ação Civil Pública nº.
61.425/93. Recurso Extraordinário nº. 229760. Jurisprudência. Distrito Federal.
5
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.......................................................................................................................... 7
1
DIREITO FUNDAMENTAL À EDUCAÇÃO................................................................. 9
1.1
1.2
1.3
1.4
2
Evolução dos direitos fundamentais.......................................................................... 9
Os direitos fundamentais de segunda geração........................................................... 9
As normas constitucionais programáticas.................................................................. 13
A reserva do possível................................................................................................. 17
O FUNDAMENTO FILOSÓFICO-NORMATIVO.......................................................... 22
2.1
2.2
2.2.1
2.2.2
2.3
2.3.1
2.3.1.1
2.3.1.2
2.3.1.3
2.3.1.4
2.3.1.5
3
Considerações............................................................................................................ 22
Da Doutrina da Situação Irregular à Doutrina da Proteção Integral.......................... 22
A Doutrina da Situação Irregular............................................................................... 22
A Doutrina da Proteção Integral................................................................................ 26
O Estatuto da Criança e do Adolescente.................................................................... 30
Os responsáveis pela garantia do direito à educação................................................. 32
O Poder Público......................................................................................................... 33
O Poder Judiciário...................................................................................................... 36
O Ministério Público.................................................................................................. 38
A Sociedade................................................................................................................ 40
A Família.................................................................................................................... 42
INSTRUMENTOS JURÍDICOS....................................................................................... 47
3.1
3.2
3.2.1
3.2.2
3.2.3
3.2.4
3.2.5
3.2.6
3.3
3.3.1
3.3.2
3.3.3
3.3.3.1
3.3.3.2
3.3.3.3
3.3.4
3.3.5
3.3.6
3.4
4
Considerações............................................................................................................ 47
Dos mecanismos extrajudiciais................................................................................ 47
A atuação extrajudicial do Ministério Público........................................................... 47
As gestões de ordem administrativa........................................................................... 48
A audiência pública.................................................................................................... 49
O compromisso de ajustamento de conduta............................................................... 50
A recomendação administrativa................................................................................. 51
O inquérito civil......................................................................................................... 52
Os instrumentos judiciais........................................................................................... 54
A ação de rito sumário prevista na Lei 9.394/1996................................................... 55
A ação civil pública.................................................................................................... 55
O mandado de segurança........................................................................................... 57
O mandado de segurança individual.......................................................................... 58
O mandado de segurança coletivo............................................................................. 59
A ação mandamental.................................................................................................. 59
A ação popular........................................................................................................... 60
O mandado de injunção.............................................................................................. 61
A intervenção federal e estadual................................................................................ 62
Considerações finais.................................................................................................. 64
EDUCAÇÃO INFANTIL.................................................................................................. 65
4.1
4.2
4.3
4.4
Considerações............................................................................................................
Responsabilidade pela oferta da educação infantil....................................................
Gratuidade e obrigatoriedade..................................................................................
O financiamento da educação básica.........................................................................
65
67
68
70
6
4.4.1
4.4.2
FUNDEF e FUNDEB................................................................................................ 71
Considerações finais acerca do financiamento........................................................ 75
5
O CONTEXTO DA EDUCAÇÃO INFANTIL NO DISTRITO FEDERAL
..................................................................................................................................................... 76
5.1
5.2
5.2.1
5.2.2
5.3
6
Contexto..................................................................................................................... 76
A posição do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios............................ 77
A ação civil pública nº. 61.425/93............................................................................. 77
O recurso extraordinário nº. 229760.......................................................................... 84
A posição do Governo do Distrito Federal................................................................ 86
JURISPRUDÊNCIA RELACIONADA............................................................................ 93
6.1
6.2
6.3
Supremo Tribunal Federal......................................................................................... 93
Superior Tribunal de Justiça...................................................................................... 98
Tribunais do Distrito Federal e Estados..................................................................... 98
CONCLUSÃO............................................................................................................................ 103
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS........................................................................................ 107
7
INTRODUÇÃO
No séc. XVIII europeu, quando da afirmação dos direitos
fundamentais, estes se limitavam à garantia da liberdade do indivíduo frente ao Estado.
Com a evolução do pensamento jurídico, entretanto, percebeu-se que a liberdade das
pessoas não restava plenamente satisfeita pela simples negativa do Estado em imiscuirse na vida dos indivíduos, porquanto estes, apesar de possuírem uma liberdade formal,
garantida por lei, não possuíam meios materiais para exercer tal liberdade. Essa
necessidade de liberdade concreta demandou o reconhecimento de direitos dos
indivíduos ao suprimento de suas necessidades sociais pelo Estado. Assim, surgiram à
cena histórica os direitos sociais fundamentais.
São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer,
a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância e a assistência
aos desamparados, como estatui a Constituição Federal.
De todos esses direitos, para tema deste trabalho elegeu-se o direito à
educação. Primeiro, pela sua suprema relevância social, porquanto é instrumento capaz
de garantir a plena liberdade e dignidade dos indivíduos, garantindo-lhes chances iguais
de acesso à própria cidadania e ao mercado de trabalho – além de assegurar o
combustível para iluminar as mentes das futuras gerações, para que saibam bem cuidar
do mundo por vir. Em segundo lugar, pelo fato da educação, em nosso País, encontrar
obstáculos concretos no que tange à sua efetivação, notadamente no que se refere à
oferta para crianças de 0 a 5 anos, legalmente designada educação infantil, prestada em
creche e pré-escola.
8
Nesta esfera, no Distrito Federal, um problema inquietante parece ser
o não atendimento pleno ao direito de acesso “à educação infantil, em creche e préescola, às crianças até 5 (cinco) anos de idade” (art. 208, IV, CF/88).
O presente trabalho pretende examinar temas relacionados ao direito à
educação, como a sua inserção nos direitos fundamentais – mais especificamente os
sociais ou de 2ª geração –, e nas normas programáticas, a teoria da “reserva do possível”
e as questões filosófico-normativas envolvidas, além de algumas questões específicas,
estudo de caso e a jurisprudência.
O assunto é atual e importante, posto que o tema é presente no
cotidiano forense do DF; tem extrema relevância social, porque envolve o direito ao
desenvolvimento de milhares de crianças brasilienses. No âmbito acadêmico, nos
limites desta instituição de ensino, é original, porquanto dá enfoque à questão da
educação infantil no DF, salvo engano ainda não invocada diretamente em nenhuma
monografia da FESMPDFT. Possui viabilidade, ante a considerável variedade
bibliográfica, legal e jurisprudencial que se encontra à disposição. Ademais, é científico,
visto que possui uma metodologia baseada em estudo de bibliografia, casos e
jurisprudência, além de buscar trazer, na medida necessária da imparcialidade, os
aspectos jurídicos, econômicos, políticos e sociais que envolvem a efetivação do direito
à educação infantil no Distrito Federal.
Por fim, com o intuito de resumir o consenso quanto à necessidade de
valorizar a educação das nossas crianças, ficam as palavras de um antigo provérbio
africano: “O mundo que temos hoje nas mãos não nos foi dado por nossos pais, ele nos
foi emprestado por nossos filhos”.
9
1. O DIREITO FUNDAMENTAL À EDUCAÇÃO
1.1. Evolução dos direitos fundamentais
Parte da doutrina, como nos ensina Fabiani Oliveira de Medeiros1,
distingue os direitos fundamentais em quatro gerações ou dimensões, das quais nos
limitaremos ao estudo apenas das duas primeiras, posto que satisfazem ao objeto do
estudo (o direito social à educação). Para a autora, “os direitos de primeira dimensão são
apresentados como os de cunho “negativo”, já que são dirigidos a uma abstenção e não
a uma conduta positiva por parte dos Poderes Públicos”.
Os de terceira dimensão, também denominados de direitos de
solidariedade e de fraternidade, caracterizam-se como direitos de titularidade coletiva
ou difusa, como o direito à paz, ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e ao
consumo2.
Por fim, há os direitos de quarta dimensão, que surgem como
resultado da globalização dos direitos fundamentais, dentre os quais podemos citar o
direito à democracia e ao pluralismo3.
Já os direitos de segunda dimensão são conhecidos como direitos
econômicos, sociais e culturais. Sua origem remonta ao século XIX, quando a
intensificação da industrialização passou a gerar graves problemas sociais e econômicos
a exigir do Estado um comportamento positivo na realização da justiça social4. É sobre
1
MEDEIROS, Fabiani Oliveira de. A eficácia dos direitos sociais em face da reserva do possível.
Revista de Administração Municipal – ano 52. nº 260. outubro/novembro/dezembro de 2006. p. 69.
2
Ibidem. p. 69.
3
Ibidem. p. 69.
4
Ibidem. p. 69.
10
esses direitos que aprofundaremos nosso estudo, porquanto é neles (direitos de segunda
geração), que se encontra o direito à educação.
1.2. Os direitos fundamentais de segunda geração.
Valemo-nos do conceito dado por Alexy5:
Os direitos a prestações em sentido estrito (direitos sociais
fundamentais) são direitos do indivíduo frente ao Estado a algo que –
se o indivíduo possuísse meios financeiros suficientes e se encontrasse
no mercado uma oferta suficiente – poderia obter também de
particulares.
Nesse contexto social, o Estado, que antes tinha o dever de não
intervir em virtude do princípio da liberdade de todos perante a lei, passa a ter a
obrigação de promover ativamente a liberdade de todos na lei. A igualdade formal cede
lugar à igualdade material, a qual somente é possível com a intervenção constante do
Estado por meio da concessão de prestações sociais, como assistência social, saúde,
educação, trabalho, etc. Ocorre que estes direitos, por serem prestacionais, estão
diretamente vinculados às tarefas estatais de distribuição dos recursos existentes por
meio de políticas públicas, como nos ensina, mais uma vez, Fabiani Oliveira de
Medeiros6.
5
Apud COELHO, Helena Beatriz Cesarino Mendes. Direitos Fundamentais Sociais: Reserva do
Possível e Controle Jurisdicional. Revista da Procuradoria-Geral do Estado/Procuradoria-Geral do
Estado do Rio Grande do Sul – RPGE, Porto Alegre, v. 30, nº. 63, p. 99-122, jan./jun. 2006. p. 124.
6
MEDEIROS, Fabiani Oliveira de. A eficácia dos direitos sociais em face da reserva do possível.
Revista de Administração Municipal – ano 52. nº. 260. outubro/novembro/dezembro de 2006. p. 69.
11
Ao tratar do tema, Norberto Bobbio7 observa que “na Constituição
italiana, as normas que se referem a direitos sociais foram chamadas puramente de
programáticas”. Ante a constatação, o autor italiano indaga:
Será que já nos perguntamos alguma vez que gênero de normas são
essas que não ordenam, proíbem e permitem um futuro indefinido e
sem prazo de coerência claramente delimitado? E, sobretudo, já nos
perguntamos alguma vez que gêneros de direitos são esses que tais
normas definem? Um direito cujo reconhecimento e cuja efetiva
proteção são adiados “sine die”, além de confinados à vontade de
sujeitos cuja obrigação de executar o ‘programa’ é apenas uma
obrigação moral ou, no máximo, política, pode ainda ser chamado
corretamente de ‘direito’?
Nacionalizando o tema, alguns ilustres juristas brasileiros sustentam
que “a alegação de que os direitos sociais não consubstanciem direito subjetivo
individual é de cunho meramente ideológico”, como diz Helena Beatriz Coelho8.
Argumentam eles que a natureza aberta e a forma vaga das normas que tratam dos
direitos sociais “não acarretam, por si só, o impedimento de sua imediata aplicabilidade
e plena eficácia, já que constitui tarefa precípua dos tribunais a determinação do
conteúdo dos preceitos normativos, por ocasião de sua aplicação9”.
Outros, a seu turno, argumentam que os direitos sociais, por força do
art. 5º, § 1º, da Constituição Federal, têm caráter de autênticos direito subjetivos, pois a
citada norma, combinada com mandamento constitucional do art. 5º, inc. XXXV
(inafastabilidade do controle judiciário), autorizaria os tribunais a assegurar, no caso
concreto, a efetiva fruição da prestação. Nesse caso, a lacuna oriunda de ausência de
7
Apud BIGOLIN, Giovani. A reserva do possível como limite à eficácia e efetividade dos direitos
sociais. Revista do Ministério Público. Porto Alegre. Nº. 51. maio/set/2004. p. 1 a 288 p. 51/52.
8
Apud COELHO, Helena Beatriz Cesarino Mendes. Direitos Fundamentais Sociais: Reserva do
Possível e Controle Jurisdicional. Revista da Procuradoria-Geral do Estado/Procuradoria-Geral do
Estado do Rio Grande do Sul – RPGE, Porto Alegre, v. 30, nº. 63, p. 99-122, jan./jun. 2006. p. 127/128.
9
COELHO, Helena Beatriz Cesarino Mendes. Direitos Fundamentais Sociais: Reserva do Possível e
Controle Jurisdicional. Revista da Procuradoria-Geral do Estado/Procuradoria-Geral do Estado do Rio
Grande do Sul – RPGE, Porto Alegre, v. 30, nº. 63, p. 99-122, jan./jun. 2006. p. 127/128.
12
atuação do legislador poderia ser suprida pelo Poder Judiciário mediante o recurso à
analogia, aos costumes e aos princípios gerais do direito, como autorizado pela Lei de
Introdução ao Código Civil, art. 4º, sem que houvesse afronta ao princípio da separação
dos Poderes10.
Para Jorge Miranda:
Imbricada como está com a vida econômica e social – e esta avaliável
sempre no âmbito do contraditório político – a realização dos direitos
sociais aparece, por conseguinte, indissociável da política econômica e
social de cada momento (ao passo que a realização dos direitos,
liberdades e garantias dir-se-ia, “prima facie”, actividade
eminentemente jurídica) 11.
Muitos alegam, também, argumentos contrários ao reconhecimento de
direitos subjetivos a prestações com base na “reserva do possível”, a ser estudada mais à
frente12. Os que seguem esta compreensão destacam que a questão envolve o tema da
competência, porquanto compete precipuamente ao legislador ordinário decidir sobre a
aplicação e destinação dos recursos públicos, incluindo-se a eleição das prioridades das
políticas públicas. Em sendo assim, a concretização dos direitos sociais pelo Poder
Judiciário, à revelia do legislador, acarretaria afronta ao princípio da separação dos
Poderes e, pois, ao próprio Estado de Direito. Ressaltam que a concretização dos
direitos sociais depende, no mais das vezes, de condições de natureza macroeconômica,
as quais fogem da análise meramente jurídica elaborada pelos juízes, como diz Helena
Beatriz Cesarino Mendes Coelho13.
10
COELHO, op. cit., p. 127/128.
Idem, p. 126.
12
Item 1.4, infra.
13
COELHO, op. cit., p. 128.
11
13
Contrapondo-se às correntes que não concebem os direitos sociais
como verdadeiros direitos, mas como garantias institucionais, negando-lhes a
característica de direitos fundamentais, no dizer de José Afonso da Silva, há uma
“doutrina mais conseqüente que, contudo, vem refutando essa tese, e reconhece neles a
natureza de direitos fundamentais, ao lado dos direitos individuais, políticos e do direito
à nacionalidade”. Assim, são direitos fundamentais do “homem-social”, e até “se estima
que, mais que uma categoria de direitos fundamentais, constituem um meio positivo
para dar um conteúdo real e uma possibilidade de exercício eficaz de todos os direitos e
liberdades.”14
E continua o autor, dizendo que a Constituição segue essa doutrina,
incluindo os direitos sociais entre os direitos fundamentais no seu título II. Não lhes tira
essa natureza o fato de sua realização poder depender de providências positivas do
Poder Público. Por isso, caracterizam-se como prestações positivas impostas às
autoridades públicas pela Constituição15.
Segundo Paulo Bonavides:
Os direitos fundamentais de segunda geração passaram por um ciclo
de baixa normatividade ou tiveram eficácia duvidosa, em virtude de
sua própria natureza de direitos que exigiam do Estado determinadas
prestações materiais nem sempre resgatáveis por exigüidade, carência
ou limitação essencial de meios e recursos.16
E, aprofundando a tese de Bonavides, José Afonso da Silva afirma:
14
SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das Normas Constitucionais. 6ª Ed. 2ª Tiragem. Malheiros
Editores. São Paulo: 2003. p. 151.
15
Ibidem. p. 151.
16
Apud BIGOLIN, Giovani. A reserva do possível como limite á eficácia e efetividade dos direitos
sociais. Revista do Ministério Público. Porto Alegre. Nº. 51. maio/set/2004. p 52.
14
De juridicidade questionada nesta fase, foram eles remetidos à
chamada esfera programática, em virtude de não terem, para sua
concretização, aquelas garantias habitualmente ministradas pelos
instrumentos processuais de proteção aos direitos de liberdade.
Atravessaram, a seguir, uma crise de observância e execução, cujo fim
parece estar perto, desde que recentes Constituições, inclusive a do
Brasil, formularam o preceito de aplicabilidade imediata dos direitos
fundamentais.17
Destarte, percebemos que é assumida uma posição firme sobre os
direitos sociais fundamentais. Passemos a analisar, portanto, alguns de seus aspectos
mais importantes para o nosso tema. Avancemos para nova esfera de discussão, qual
seja a relativa às normas programáticas, onde se inclui como nos mostraram os autores,
boa parte dos direitos fundamentais de 2ª geração, entre eles, o direito à educação.
1.3. Das normas constitucionais programáticas
Para explicar o tema com acerto e segurança, beberemos na fonte da
doutrina brasileira que trata da natureza dos direitos previstos em normas
constitucionais programáticas. Trata-se da corrente esposada pelo ilustre doutrinador
José Afonso da Silva, que com mestria debruçou-se sobre o tema da aplicabilidade das
normas constitucionais18, a que acompanharemos na maior parte deste tópico.
Ao detalhar as normas constitucionais de princípio programático, o
autor lembra-nos que, historicamente, “as constituições contemporâneas constituem
documentos jurídicos de compromisso entre o liberalismo capitalista e o
intervencionismo.” 19 Assim:
17
Apud BIGOLIN, Giovani. A reserva do possível como limite á eficácia e efetividade dos direitos
sociais. Revista do Ministério Público. Porto Alegre. Nº. 51. maio/set/2004. p. 52.
18
SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das Normas Constitucionais. 6ª Ed. 2ª Tiragem. Malheiros
Editores. São Paulo: 2003.
19
Ibidem. p. 135.
15
Esse embate entre o liberalismo, com seu conceito de democracia
política, e o intervencionismo ou o socialismo repercute nos textos das
constituições contemporâneas, com seus princípios de direitos
econômicos e sociais, comportando um conjunto de disposições
concernentes tanto aos direitos dos trabalhadores como à estrutura da
economia e ao estatuto dos cidadãos20.
Prossegue Silva dizendo que “o conjunto desses princípios formam o
chamado conteúdo social das constituições.”
21
Acrescenta que “vem daí o conceito de
‘constituição-dirigente’22, de que a Constituição de 1988 é exemplo destacado,
porquanto define fins e programas de ação futura no sentido de uma orientação social
democrática23.
Destarte, ao citar José Horácio Meirelles Teixeira, José Afonso
escreve que programáticas são aquelas “normas constitucionais através das quais o
constituinte”, em vez de regular, direta e imediatamente, determinados interesses,
“limitou-se a traçar-lhes os princípios para serem cumpridos pelos seus órgãos, como
programas das respectivas atividades, visando à realização dos fins sociais do Estado24”.
Ademais, destaca o autor que “o estudo da eficácia e aplicabilidade
das normas constitucionais manifesta-se mais acentuadamente na sua consideração em
relação às chamadas normas programáticas”.25 Para ele, existem três razões que
destacam essa relevância: A primeira é que “se ouve em relação à Constituição de 1988
20
Ibidem. p. 135.
Sobre o assunto, José Afonso indica a leitura de LUCAS, Fábio. Conteúdo social das Constituições
brasileiras, Belo Horizonte, Ed. Da Faculdade de Ciências Econômicas da UMG, 1959.
22
O referido autor alude também a CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição dirigente e
vinculação do legislador: contribuição para a compreensão das normas constitucionais programáticas.
Coimbra, Coimbra Editora, 1983.
23
Ibidem. p.136.
24
Apud SILVA, op. cit.. p. 138.
25
SILVA, op. cit., p.138-139.
21
16
que ela está repleta de normas de intenção, como se jurídicas e imperativas não
fossem26”.
Outra razão aduzida pelo constitucionalista é que tais normas
“traduzem os elementos sócio-ideológicos da constituição”. Uma terceira razão é que
“indicam os fins e objetivos do Estado”. Com efeito, concordamos com a constatação
do autor, no sentido de que o tema da efetividade das normas de conteúdo programático
é polêmico por natureza.
No curso da discussão sobre eficácia e aplicabilidade das normas
programáticas, o autor, contrariando a opinião comum, defende, com acerto, o caráter
imperativo e vinculativo das normas programáticas27. Citando Gomes Canotilho, José
Afonso explica que há muito se superou a denominada “regulamentação da liberdade”,
ou seja, “que as condições e os limites de sua aplicabilidade fossem determinados por
uma lei orgânica. Pois as normas constitucionais que enunciam os direitos individuais
são de aplicabilidade imediata e direta28”.
26
José Afonso pontua: “é bem verdade que essa é uma postura especialmente de privativistas, que,
quando escrevem sobre direito constitucional, insistem em dar efeitos diversos às normas constitucionais
em função de sua natureza material ou formal, como se lê no pranteado Prof. Carlos Alberto Bittar (“A
Constituição de 1988 e sua interpretação”, RT 635/33, setembro/88) (...) entendo que as materiais “têm
vigência imediata, independentemente de declaração formal do legislador constituinte”, enquanto, “as
demais – em que se encartam as relações privadas – somente produzem efeito em sua plenitude com a
adaptação da legislação correspondente”; assim, “as normas de Direito de Família somente terão eficácia
plena quando ajustado o Código próprio”. Não existem relações privadas reguladas pela Constituição. Se
ela regulou, nos limites por ela postos, a matéria passa a ser constitucional. Nela não há direito civil nem
comercial, mas normas constitucionais sobre matéria civil ou comercial, pondo princípios regedores da
sociedade civil.
27
Ibidem, p. 139.
28
Apud SILVA, op. cit., p. 139.
17
Logo, e resumidamente, o autor conclui que o problema atual consiste
em buscar mecanismos constitucionais e embasamentos teóricos para permitir sua
concretização prática.29
Sobre o direito à educação, o autor observa que a sua exigibilidade é
patente, posto que, nesse caso, há um dever correlato de um sujeito determinado: “o
Estado – que, por isso, tem a obrigação de satisfazer aquele direito. Se esta não é
satisfeita, não se trata de programacidade, mas de desrespeito ao direito, de
descumprimento da norma”.30
A questão da efetividade dos direitos sociais fundamentais e das
normas programáticas, como são classificados os primeiros, esbarra muitas vezes no
argumento da escassez de recursos para a sua concretização. Esse argumento originou
uma teoria, praticamente uma fórmula jurídica, por meio da qual o Estado logra
escafeder-se de seu dever constitucional de efetivar os direitos sociais.
O nome desta teoria jurídica é “teoria da reserva do possível”. Dela
que nos ocuparemos a partir de agora.
1.4. A reserva do possível
Andreas Krell leciona que o conceito de “reserva do possível” é
oriundo do direito alemão, fruto de uma decisão da Corte Constitucional daquele país,
em que ficou assente que “a construção de direitos subjetivos à prestação material de
serviços públicos do Estado está sujeita à condição da disponibilidade dos respectivos
29
30
SILVA, op. cit., p. 140.
SILVA, op. cit.. p. 150.
18
recursos.”31 Segundo tal entendimento, a disponibilidade desses recursos estaria
localizada no campo discricionário das decisões políticas, através da composição dos
orçamentos públicos.
A referida decisão da Corte Constitucional Alemã menciona que estes
direitos a prestações positivas do Estado (os direitos fundamentais sociais) “estão
sujeitos à reserva do possível no sentido daquilo que o indivíduo, de maneira racional,
pode esperar da sociedade.”32 Nesta deliberação foi recusada a tese de que o Estado
seria obrigado a criar uma quantidade suficiente de vagas nas universidades públicas
para atender a todos os candidatos.
Fernando Facury Scaff assinala que, apoiando-se nessa tese, vários
autores brasileiros alegam que não cabe aos juízes a análise de direitos fundamentais
sociais. Nessa ótica, trata-se de algo que depende de disponibilidade orçamentária, logo,
matéria de interesse público cujo alcance não caberia ao Poder Judiciário, mas apenas
ao Legislativo e ao Executivo33.
O autor denota que a Constituição brasileira estabeleceu vários
objetivos a serem alcançados, o que pode ser vislumbrado no art. 3º
34
. E, em face do
expresso na Carta Política, Scaff aduz que estes objetivos devem ser perseguidos pelos
governos que se sucederem no comando do Estado. Toda a estrutura de Estado deve
31
Apud SCAFF, Fernando Facury. Reserva do Possível, Mínimo Existencial e Direitos Humanos.
Interesse Público. Porto Alegre: Ano 2005. p. 89.
32
SCAFF, op. cit.. p. 89.
33
Ibidem, p. 89.
34
Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
I - construir uma sociedade livre, justa e solidária;
II - garantir o desenvolvimento nacional;
III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;
IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras
formas de discriminação.
19
servir à obtenção destes desígnios. Daí que todo o sistema de planejamento que a
Constituição de 1988 estabeleceu para o desenvolvimento nacional deve estar voltado
para a consecução desses objetivos35.
No âmbito orçamentário, fundamental para que o Estado demonstre a
origem das receitas (oriundas de seu patrimônio, de imposições fiscais e de
empréstimos) e o destino das despesas e investimentos, foi estabelecido um sistema de
planejamento constituído por um conjunto de 3 (três) leis que se sucedem e se
complementam: a Lei do Plano Plurianual (PPA), a Lei de Diretrizes Orçamentárias
(LDO) e a Lei Orçamentária Anual (LOA). Todos os planos e programas nacionais,
regionais e setoriais previstos na Constituição deverão ser elaborados em consonância
com o Plano Plurianual (art. 165, § 4º, CF), e a LDO deverá estar sempre em
consonância com o PPA (art. 166, § 4º, CF)36.
Explica Fernando Borges Mânica37 que, com o aparecimento do
Estado Social, surge, por meio de políticas públicas – e do orçamento –, a intervenção
positiva do Poder Público na ordem econômica e na ordem social. Portanto, o
orçamento instrumentaliza as políticas públicas e define o grau de concretização dos
valores fundamentais constantes do texto constitucional.
Existem limitações no âmbito da receita que se traduzem, por
exemplo, nos princípios da reserva legal tributária, da anterioridade, da irretroatividade
35
SCAFF, op. cit., p. 90.
Ibidem. p. 90/91.
37
MÂNICA, Fernando Borges. Teoria da Reserva do Possível: direitos fundamentais a prestações e a
intervenção do Poder Judiciário na implementação de políticas públicas. Revista Brasileira de Direto
Público – RBDP. Editora Fórum. Belo Horizonte. Ano: 5. nº. 18. p. 1.262. jul./set. 2007. p. 170.
36
20
tributária, entre vários outros. Existem também limitações no âmbito da despesa,
impedindo que o gasto público aconteça ao bel prazer dos legisladores.
Tais limites podem ser formais, especificados em normas positivas,
como a obrigatoriedade de gastos com educação (art. 122, CF), ou podem ser materiais,
fundados em princípios e interpretações das leis.
Materialmente, o uso de recursos públicos deve se dar de forma a
permitir que os objetivos estabelecidos no art. 3º da Constituição sejam alcançados.
Releva destacar, de tudo, que os gastos públicos não permitem que o legislador, e muito
menos o administrador, realizem gastos de forma desvinculada aos objetivos impostos
pela Carta, especialmente em seu art. 3º. 38
Assim, não há total e completa liberdade do legislador para incluir
neste sistema de planejamento o que bem entender. Ela é conformada pela supremacia
da Constituição39.
A reserva do possível é condicionada pelas disponibilidades
orçamentárias; porém os legisladores não possuem ampla liberdade de disposição, pois
estão vinculados ao princípio da supremacia constitucional, devendo implementar os
objetivos estabelecidos na Constituição de 1988, que se encontram no art. 3º, dentre
outras normas-objetivo.
38
39
SCAFF, op. cit., p. 92.
Ibidem. p. 91.
21
Esta teoria somente pode ser argüida quando for comprovado que os
recursos públicos estão sendo utilizados de forma proporcional aos problemas
enfrentados pela parcela da população que não puder exercer sua liberdade jurídica40.
Por outro lado, considerando-se a posição estatal, é forçoso buscar
outras alternativas, perante a própria comunidade, para o suprimento de parte dessas
carências sociais. Se é verdade que todos possuem, ilustrativamente, direito à saúde, à
segurança e a uma infra-estrutura adequada para transitar nas rodovias, não menos o é
que os membros da coletividade também têm o dever de procurar suprir as necessidades
dos seus pares, que não podem ser exaustivamente atendidas pelo Estado41. Aliás, como
dito por Guido Zanobini, “tudo aquilo que é juridicamente regulado, é também
juridicamente limitado42”.
Por fim, no entendimento adotado por nossos tribunais, a “reserva do
financeiramente possível” tem sido afastada como panacéia capaz de eximir a
obrigatoriedade de concretização dos direitos fundamentais pelo Poder Público. É que
as decisões têm exigido não a mera alegação de inexistência de recursos, mas a
comprovação de ausência de recursos, também denominada exaustão orçamentária43.
Assim deve ser entendida “a reserva do possível”.
40
Apud SCAFF, op. cit., p. 101/102.
OLIVEIRA NETTO, Sérgio de. O Princípio da Reserva do Possível e a eficácia das decisões
judiciais. Estudos Jurídicos – Revista da Procuradoria-Geral Federal junto à Universidade Federal
Fluminense. Niterói. N. 3. 2006. p. 109/110.
42
Apud OLIVEIRA NETTO, op. cit., p. 110.
43
MÂNICA, op. cit.. p. 182/183.
41
22
2. DO FUNDAMENTO FILOSÓFICO-NORMATIVO
2.1 Considerações
A luta pelos Direitos Humanos como meio para a construção de uma
sociedade mais justa e democrática se faz a todo o momento e em todos os campos,
teórico e prático. Igualmente, como ressalta José Ricardo Cunha, a luta pelos direitos
infanto-juvenis requer trabalhos constantes de caráter teórico e prático44.
O autor continua a explanação filosófica, denotando que “a teoria
ilumina a prática e a prática interpela a teoria, numa tal dialética que uma não pode ser
pensada sem a outra, pois a teoria sem a prática se torna estéril e a prática sem teoria se
torna cega45”.
Essa integração dialética ora serviu de fundamento à Doutrina da
Situação Irregular, que sustentou o extinto Código de Menores e ora à Doutrina da
Proteção Integral.
O que são tais doutrinas e quais são seus impactos sócio jurídicos é o
que passaremos a detalhar neste momento.
2.2. Da Doutrina da Situação Irregular à Doutrina da Proteção Integral
2.2.1. A Doutrina da Situação Irregular
A Doutrina da Situação Irregular, nas palavras de João Batista Costa
Saraiva, “é aquela em que os menores passam a ser objeto da norma quando se
44
CUNHA, José Ricardo. O Estatuto da Criança e do Adolescente no marco da Doutrina jurídica da
Proteção Integral. Revista da Faculdade de Direito Candido Mendes. V. 1, n. 1. (dez. 1996) – Rio de
Janeiro: SBI, FDCM, 1996 – Anual. P. 91.
45
Ibidem. P. 91.
23
encontrarem em estado de patologia social, assim definida legalmente (no revogado
Código de Menores)46”. Em outros termos, aquele adolescente considerado em
abandono ou na prática de delinqüência era tido como em situação irregular, ou seja,
incapaz de se adaptar à vida em sociedade, como salienta José Ricardo Cunha47.
Esta denominação oficializou-se somente no final da década de
setenta do século passado, mas designa um tipo de orientação ao atendimento que se
inicia cerca de cinco décadas antes, quando tornou-se necessária e urgente uma
reavaliação do atendimento aos então ditos “menores”.
Registra José Ricardo Cunha que, na esteira da Doutrina da Situação
Irregular, surge no Brasil, Rio de Janeiro, em 1923, o primeiro Juizado de Menores da
América Latina e, em 1927, nosso primeiro Código de Menores48. Na segunda metade
do séc. XX, mais precisamente em 1964, o governo militar “baixa” o Decreto-Lei
intitulado “Da Política Nacional do Bem Estar do Menor” e, com ele, cria a “Fundação
Nacional de Bem Estar do Menor – FUNABEM”. Aqui a Doutrina da Situação Irregular
encontrou seu ápice. A metodologia utilizada implicava na internação nas unidades da
FUNABEM de todo “menor” tido como em situação irregular (abandono-delinquência),
para que aprendesse a viver em sociedade. Cópia evidente do sistema carcerário, que,
com indica José Ricardo Cunha49, foi a tônica desse modelo de atendimento.
46
Apud LEITE, Carla Carvalho. Da doutrina da situação irregular à doutrina da proteção integral:
aspectos históricos e mudanças paradigmáticas. Revista do Ministério Público. Rio de Janeiro, nº 23,
jan./jun. 2006. p. 97.
47
CUNHA, op. cit., p. 98.
48
Ibidem. p. 99.
49
Ibidem. p. 99.
24
Posteriormente, em 1979, foi publicada a Lei Federal nº. 6.697/79, que instituiu o
“novo” Código de Menores50.
Sobre a disposição do Código de Menores, Carla Carvalho Leite51
nota que o referido Código não fazia qualquer distinção entre menor abandonado e
menor delinqüente, considerando ambos em situação irregular e, portanto, passíveis de
aplicação das mesmas medidas – geralmente a de internação, e pior: no mesmo
estabelecimento.
A autora percebe ainda que, sob a vigência do Código de Menores,
havia, portanto, uma clara e triste distinção entre “criança” e “menor”. Considerava-se
“criança” o(a) filho proveniente de família financeiramente abastada e “menor” o(a)
filho de família pobre52. Dessa forma, a assistência à infância consistia mais
especificamente aos menores – assim considerados os que se encontravam no vasto
conceito legal de “situação irregular” –, na proteção da criança contra a ação ou omissão
de sua família, vista pelo Poder Público, em suas três esferas (Executivo, Legislativo e
Judiciário), e, por vezes, pela própria família, como incapaz de educá-la.
50
Art. 1º - Este Código dispõe sobre assistência, proteção e vigilância a menores:
I – até 18 anos de idade, que se encontrem em situação irregular; II – entre 18 e 21 anos, nos casos
expressos em Lei. Parágrafo único – As medidas de caráter preventivo aplicam-se a todo menor de
dezoito anos, independentemente de sua situação.
Art. 2º - Para os efeitos deste Código, considera-se em situação irregular o menor:
I – privado de condições essenciais à sua subsistência, saúde e instrução obrigatória, ainda que
eventualmente, em razão de: a) falta, ação ou omissão dos pais ou responsáveis; b) manifesta
impossibilidade dos pais ou responsáveis de provê-los; II – vítima de maus tratos ou castigos imoderados
impostos pelos pais ou responsável; III – em perigo moral devido a: encontrar-se, de modo habitual, em
ambiente contrário aos bons costumes; exploração em atividade contrária aos bons costumes; IV –
privado de representação ou assistência legal, pela falta eventual dos pais ou responsável; V – com desvio
de conduta, em virtude de grave estado de inadaptação familiar ou comunitária; VI – autor de infração
penal. Parágrafo único – Entende-se por responsável aquele que, não sendo pai ou mãe, exerce, a
qualquer título, vigilância, direção ou educação de menor, ou voluntariamente o traz em seu poder ou
companhia, independemente de ato judicial.
51
LEITE, op. cit.. p. 97.
52
Ibidem. p. 97-98.
25
Nesse diapasão, cumpre lembrar o que disse, certa vez, o jurista
Pontes de Miranda. Segundo José Ricardo Cunha53, o famoso jurisconsulto teria
comentado que o direito civil fora criado para os ricos enquanto o direito penal, para os
pobres. Segundo o autor, essa máxima serve também para retratar a realidade infantojuvenil imbutida no país pelo Código de Menores: Vara de Família para as crianças
ricas e Vara de Menores para as crianças pobres.
No Brasil, conforme crítica de Márcio Thadeu Silva Marques54, o
Código de Menores foi o instrumento mais poderoso na consolidação da chamada
“doutrina da situação irregular”, com patente foco estigmatizante, alcançando
notadamente meninos e meninas habitantes de rua.
Dessa forma, perdia-se a oportunidade de construir a cidadania
infanto-juvenil, que ficava sufocada pelo arbítrio paternalista dos entes estatais.
Assim, no tocante à atuação do poder estatal sobre a infância e
juventude sob influência da Doutrina da Situação Irregular, é possível concluir, como o
faz Carla Carvalho Leite55, que:
a) uma vez constatada a “situação irregular”, o “menor” passava a ser
“objeto” de tutela do Estado, e;
b) basicamente, toda e qualquer criança ou adolescente pobre era
considerado “menor em situação irregular”, legitimando-se a
intervenção do Estado, através da ação direta do Juiz de Menores e
inclusão do “menor” no sistema de assistência adotado pela Política
Nacional de Bem-Estar do Menor.
53
CUNHA, op. cit., p. 99.
MARQUES, Márcio Thadeu Silva. Sistema de Garantia de Direitos da Infância e da Juventude. In
Direito à Educação: Uma Questão de Justiça. São Paulo: Malheiros Editores, 2004, p. 19. Renovar,
2000, P. 49.
55
LEITE, op. cit., p. 98.
54
26
E também, já por concluir este tópico, vale observar que foi curto o
período de vigência do Código de Menores de 1979. Diante de inúmeras denúncias
apontando injustiças cometidas contra crianças e adolescentes internados, emergiram
debates sobre os direitos infanto-juvenis. Surgiam no cenário político vozes não
isoladas que pregavam o fim do estigma decorrente da expressão “menor”, claramente
excludente e classista, e das situações (chamadas) de risco, pugnando pelo
reconhecimento da criança e do adolescente enquanto sujeitos de direitos56.
Tantas aspirações por mudanças acarretaram a criação, na Assembléia
Constituinte, da “Comissão Nacional Criança e Constituinte”, culminando com
alteraçõs de fundo na linha política institucional. São dessa época a inserção, na
Constituição da República, de princípios da Declaração Universal dos Direitos da
Criança (1959) e, especialmente, o acolhimento da Doutrina da Proteção Integral, que
passará a ser explicada a partir de agora.
2.2.2. A Doutrina da Proteção Integral
Doutrina da Proteção Integral, no dizer de José Ricardo Cunha, é uma
filosofia e uma normatividade, ou, ainda, uma filosofia normativa voltada para a
renovação de comportamentos, crenças e instituições da sociedade brasileira no que diz
respeito à defesa de direitos fundamentais de crianças e adolescentes, os quais passam a
ser tomados como direitos fundamentais de toda a sociedade57. A Doutrina da Proteção
Integral, instituída pela Constituição Cidadã e posteriormente regulamentada pelo
Estatuto da Criança e do Adolescente – Lei nº. 8.069/90 – rompeu de vez com os
56
RIZZINI, Irene (Org.). Olhares sobre a criança no Brasil: Perspectivas Históricas”, In Olhares
sobre a criança no Brasil – Séculos XIX e XX. Rio de Janeiro. Série Banco de Dados – 5ª Ed.
Universitária. Santa Úrsula, 1997, p. 26/27.
57
CUNHA, op. cit., p. 91.
27
paradigmas que lhe antecederam: da “situação irregular”, do “assistencialismo”, da
“estatalidade” e “centralização” das ações e das “funções anômalas” do Poder
Judiciário, com entende Carla Carvalho Leite58.
A autora anota ainda que, no cenário legislativo internacional, a
Doutrina da Proteção Integral veio a ser consagrada na Convenção da ONU sobre
Direitos da Criança, aprovada pela Assembléia Geral das Nações Unidas em 20 de
novembro de 1989. Observa que a Constituição da República Federativa do Brasil,
promulgada no dia 5 de outubro de 1988, para o orgulho jurídico dos brasileiros,
antecipou-se à convenção da ONU a respeito dos direitos infanto-juvenis59.
Prioridade, cabe enfatizar, segundo Aurélio Buarque de Holanda
Ferreira, é:
1. Qualidade do que está em primeiro lugar, ou do que aparece
primeiro; primazia. 2. Preferência dada a alguém relativamente o
tempo de realização de seu direito, com preterição do de outros;
primazia. 3. Qualidade de uma coisa que é posta em primeiro lugar,
numa série ou ordem60.
Focando ainda melhor o assunto, o Promotor de Justiça Wilson
Donizeti Liberati61, especialista na área de direitos da criança afirma que:
Por absoluta prioridade, devemos entender que a criança e o
adolescente deverão estar em primeiro lugar na escala de preocupação
dos governantes; devemos entender que, primeiro, devem ser
atendidas todas as necessidades das crianças e adolescentes (...) Por
absoluta prioridade, entende-se que, na área administrativa, enquanto
não existirem creches, escolas, postos de saúde, atendimento
preventivo e emergencial às gestantes, dignas moradias e trabalho, não
58
LEITE, op. cit., p. 98.
LEITE, op.cit., p. 100.
60
Novo dicionário da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, p. 1.393.
61
LIBERATI, Wilson Donizeti. O Estatuto da Criança e do Adolescente – Comentários. São Paulo:
IBPS. P. 4/5
59
28
se deveria asfaltar ruas, construir praças, sambódromos, monumentos
artísticos, etc., porque a vida, a saúde, o lar, a prevenção de doenças
são mais importantes que as obras de concreto que ficam para
demonstrar o poder do governante.
Depreende-se, portanto, que o Princípio da Prioridade Absoluta deverá
refletir, sem sombra de dúvidas, no orçamento público; assim, inconcebível falar em
“proteção integral” a crianças e adolescentes sem falar em políticas públicas voltadas à
população infanto-juvenil. Essas políticas públicas, por sua vez, deverão demandar a
utilização de recursos públicos em caráter prioritário e privilegiado, como bem assinala
Murillo José Digiácomo62.
O referido autor observa, igualmente, que a nova sistemática
idealizada para o atendimento de crianças e adolescentes, ao contrário do que ocorria
sob a égide do revogado “Código de Menores” de 1979, marca uma alteração de rumos.
De fato, ela encerra uma preocupação eminentemente preventiva e voltada às questões
coletivas, não sendo mais admissível que nos limitemos à análise de casos de violação
de direitos individuais de crianças e adolescentes63.
Ademais, a construção do atual modelo legal, que sustenta a visão
global da questão da criança e do adolescente, levou o problema a extrapolar o âmbito
estritamente jurídico. Estabeleceu-se, então, um regime de co-responsabilidade entre a
sociedade, a família e o Estado64, em caráter de prioridade absoluta, como aduz Márcio
Thadeu Silva Marques65.
62
DIGIÁCOMO, Murilo José. Planejamento e Garantia da Prioridade Absoluta à Criança e ao
Adolescente no Orçamento Público – Condição Indispensável para sua Proteção Integral. Cadernos
do Ministério Público do Paraná. V. 8. Nº. 1. Janeiro/Março – 2005. p. 16.
63
Ibidem. p. 15.
64
É o que advoga o Dês. Amaral Silva: “No novo modelo, a cada ator o seu papel. Nada de eufemismos
ou mitos. O juiz surge como magistrado que previne e compõe litígios. O Ministério público é o fiscal da
29
A Doutrina da Proteção Integral foi sintetizada no art. 227 da
Constituição Federal, in verbis:
Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à
criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à
saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à
cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e
comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência,
discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão66.
Destarte, pela leitura simples do texto constitucional, torna-se clara a
dimensão que se dá à criança e ao adolescente como indivíduos; mais: como cidadãos,
credores de direitos cujos responsáveis somos nós: Estado, sociedade e família.
Outrossim, José Ricardo Cunha67, lançado um olhar mais atento sobre
o referido artigo, destaca quatro pontos que dão substância à Doutrina da Proteção
Integral:
(1) ‘dever da família, da sociedade e do Estado’; quando a
Constituição faz este elenco como responsáveis pela garantia dos
direitos da criança e do adolescente, ninguém fica excluído;
(2) ‘absoluta prioridade’; a palavra “prioridade” aparece diversas
vezes no texto constitucional, contudo, uma única vez figura a
expressão ‘absoluta prioridade’. Firme-se aqui que ‘absoluta
prioridade’ não é apenas uma expressão, mas um princípio
constitucional. Assim, ao direito à educação que tem a criança,
corresponde o dever do Estado de garantir o ensino de boa qualidade e
corresponde o dever da família de matricular, acompanhar e estimular
o estudo. Tudo com absoluta prioridade. No art. 4º do ECA, estão
elencados certos itens, que conformam o princípio constitucional da
lei, titular da ação de pretensão sócio-educativa. O advogado aparece como causídico, defensor do jovem.
As questões de pobreza e assistência social deixam os Juizados e passam à responsabilidade das
Administrações locais, com os Conselhos Tutelares” (“O Judiciário e os novos paradigmas conceituais e
normativos da infância e da juventude”, in Ricardo Bustamante e Paulo César Sodré (coords.), Ensaios
Jurídicos: o Direito em Revista, p. 446).
65
MARQUES, op. cit., p. 46.
66
BRASIL. Constituição (1988) Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L8069Compilado.htm. Acesso em 21 de abril de 2008.
67
CUNHA, op. cit.. p. 101/102.
30
absoluta prioridade, entre eles a destinação privilegiada de recursos
nas áreas relacionadas à proteção da criança e do adolescente;
(3) ‘direitos fundamentais’; assim, quando se fala em garantir os
direitos infanto-juvenis está se falando em garantia de direitos
fundamentais;
(4) ‘proteção especial’; a salvo de toda forma de negligência,
discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
Esses quatro pontos sintetizam a Doutrina da Proteção Integral, no
âmbito constitucional.
A Doutrina da Proteção Integral trata do início de uma postura que
finalmente admite o direito da criança e do adolescente como um ramo do Direito com
seus princípios particulares. É, assim, um avanço expressivo em relação ao ordenamento
anterior, que considerava o “menor” não como esse novo sujeitos de direitos, mas como
objeto de medidas de proteção.
Todavia, para que a norma constitucional tivesse mais eficácia, foi
editada lei que dispôs sobre os seus meios de concreção. Trata-se da Lei nº. 8.069/90 –
Estatuto da Criança e do Adolescente, como veremos a seguir.
2.3. O Estatuto da Criança e do Adolescente
O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) não trata
particularmente da educação, mas sim da garantia deste e dos demais direitos da criança
e do adolescente, enunciados no art. 227 da CF, como vimos quando do estudo da
Doutrina da Proteção Integral. Destarte, apesar de não cobrir exatamente o tema, o ECA
regula detalhadamente o direito à educação, contendo, inclusive, dispositivos sobre a
31
matéria não contemplados na Lei de Diretrizes e Bases da Educação, cujo estudo será
mais à frente exposto68.
Acompanhando José Ricardo Cunha, pode-se considerar o Estatuto da
Criança e do Adolescente uma espécie de “regimento interno” da Doutrina da Proteção
Integral. Isso poderia justificar o fato de o ECA ser sempre o alvo preferido daqueles
chamados “menoristas”, ainda orientados pela Doutrina da Situação Irregular69.
O autor continua sua ponderação definindo que o ECA é constituído
por duas grandes partes: o Livro I e o Livro II. Em eficiente síntese, ele diz que “o Livro
I contém a declaração dos Direitos Fundamentais, de maneira mais detalhada do que no
artigo 227 da Constituição. Já o Livro II contém os mecanismos – órgãos e agentes –
necessários para a garantia dos direitos do Livro I70”. Dessa forma, o Estatuto é o
responsável pela operacionalização da Proteção Integral da Criança e do Adolescente no
Brasil.
Marisa Timm Sari observa que o Estatuto introduz um modelo
sistêmico e descentralizado de organização e de gestão das políticas públicas do setor,
trazendo inegáveis avanços e inúmeros desafios ao Poder Público e à sociedade71. Esta
operacionalização dá forma a um “Sistema de Garantia de Direitos no contexto de uma
Política de Atendimento”. Para tanto, vejamos o que, a respeito, diz o art. 86 do Estatuto
da Criança e do Adolescente:
68
Item 3, infra.
CUNHA, op. cit.. p. 104.
70
Ibidem, p. 105.
71
SARI, Marisa Timm. A Organização da Educação Nacional. In Direito à Educação: Uma Questão
de Justiça. São Paulo: Malheiros Editores, 2004. p. 72/73.
69
32
A política de atendimento dos direitos da criança e do adolescente farse-á através de um conjunto articulado de ações governamentais e
não-governamentais, da União, dos estados, do Distrito Federal e dos
municípios72.
Para aprofundar a compreensão do sistema, cabe refletir sobre alguns
dos atores desta Política de Atendimento.
2.3.1. Os responsáveis pela garantia do direito à educação
A responsabilidade pela oferta integral do direito à educação definida
no ordenamento jurídico brasileiro acaba por exprimir a já mencionada Doutrina da
Proteção Integral à Criança e ao Adolescente. De acordo com ela, é responsabilidade de
todos – Família, Sociedade e Poder Público – exercer com a mais absoluta prioridade a
educação de nossas crianças e adolescentes.
A totalidade dos responsáveis engloba o Poder Público, que abrange
os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário e o Ministério Público; a Sociedade,
representada pelos Conselhos da Criança e do Adolescente, os de Educação e os
Conselhos Tutelares, além, óbvio, da Sociedade Civil organizada e, por último, mas não
menos importante, a Família.
Como veremos, é inadmissível que o exercício desse encargo seja
negligenciado ou delegado por qualquer dos entes referidos acima. Eles deverão buscar,
através de uma ação conjunta e integrada, a solução dos problemas e obstáculos que
vierem a se opor ao fiel cumprimento de sua obrigação comum.
72
BRASIL. Constituição (1988) Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L8069Compilado.htm. Acesso em 21 de abril de 2008.
33
2.3.1.1. O Poder Público
A Constituição Federal Brasileira, em seu art. 227; o Estatuto da
Criança e do Adolescente, no art. 4º; e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB),
no art. 2º; prevêem, baseados nos princípios da cidadania e da dignidade humana, a
participação da Sociedade, da Família e do Estado na educação da criança, visando seu
pleno desenvolvimento.
A responsabilidade do Estado, perante seus cidadãos, está associada a
um dever, que lhe é imposto pelo ordenamento jurídico, quer no âmbito constitucional,
quer no infraconstitucional. No dizer de Regina Maria Fonseca Muniz, “a educação,
condição para a formação do homem e tarefa fundamental do Estado, é um de seus
deveres primordiais, sendo que, se não o cumprir, ou o fizer de maneira ilícita, pode ser
responsabilizado por dano moral e/ou patrimonial”.73
Entre os diversos integrantes do Sistema de Garantias da Educação,
não há dúvida quanto ao papel fundamental do Poder Público, em todos os níveis de
governo, (municipal, distrital, estadual e federal), porquanto é por intermédio dele que
são mantidos o Sistema Oficial de Ensino e os demais programas de atendimento por
ele financiados, como dispõe a Lei nº. 8.069/9074, da qual vale destacar seu art. 86, que
determina:
A política de atendimento dos direitos da criança e do adolescente farse-á através de um conjunto articulado de ações governamentais e
não-governamentais, da União, dos estados, do Distrito Federal e dos
municípios.
73
MUNIZ, Regina Maria Fonseca. O Direito à Educação. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. P. 211.
ESTATUTO
DA
CRIANÇA
E
DO
ADOLESCENTE,
disponível
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L8069Compilado.htm>. Acesso em 22 de abril de 2008.
74
em
34
Logo, é de clara compreensão que o Poder Público é o responsável
pela obtenção dos recursos financeiros, materiais e humanos indispensáveis à formação
e articulação da citada rede de atenção à criança e ao adolescente.
No tocante aos investimentos do Poder Público, cumpre esclarecer que
quando se fala em destinação privilegiada de recursos orçamentários próprios para a
área infanto-juvenil, não devemos ter como parâmetro apenas as disposições
constitucionais que estabelecem percentuais mínimos de investimento na educação (arts.
212 e 213 da CF). Trata-se, na verdade, de enfatizar o já mencionado princípio
constitucional da “prioridade absoluta à criança e ao adolescente”, esculpido no art. 227,
caput, da CF, com seu complemento legal contido no art. 4º, parágrafo único, do ECA,
pois , como já dito acima, a obrigação de educar não compreende apenas a garantia
formal do direito à educação.
No dizer de Murilo José Diácomo, “as disposições constitucionais (...)
estabelecem uma clara obrigação ao Poder Público de fazer com que isto ‘de fato’
aconteça (...), inclusive sob pena de responsabilidade do administrador ou agente
público que se omite no cumprimento de tal mister75”.
Ademais, cumpre a nós observarmos aqui tema de sensível
importância, conexo à responsabilidade dos Poderes Públicos. Trata-se da superação da
antiga noção de que a “discricionariedade coincide com a determinação ou a capacidade
de determinação no sentido de uma noção deixada imprecisa pela lei, havendo nisso a
possibilidade de escolher entre as diversas soluções, a melhor, ou a que for julgada
75
DIGIÁCOMO, op. cit., p. 281.
35
melhor, por motivos de conveniência, de oportunidade, de interesse público.”76 Tal
superação foi procedida pela melhor doutrina da atualidade (v.g Celso Antônio Bandeira
de Mello, Maria Sylvia Z. Di Pietro, Diogo de Figueiredo Moreira Neto, dentre outros).
Destarte, da ênfase que era dada à atividade discricionária, vinculada à idéia de poder,
evolui-se para a idéia de poder-dever.
Celso Antônio Bandeira de Mello77 é categórico ao analisar que “é o
dever que comanda toda a lógica do Direito Público. Assim, o dever assinalado pela lei,
a finalidade nela estampada, propõe-se, para qualquer agente público, como um imã,
como uma força atrativa inexorável do ponto de vista jurídico”.
Desse modo, trazendo a questão para a problemática do direito à
educação, conclui-se que: a) sendo o direito à educação um dos direitos sociais e,
estando estes últimos classificados como normas programáticas de “eficácia limitada” e;
b) sendo o poder discricionário do administrador público, na verdade, um poder-dever,
estando ele obrigado, dessa forma, a efetivar o disposto em Lei; Logo, estando o direito
à educação expresso na Constituição Federal (Cap. III, Seção I, do Título VIII da CF Arts. 205 a 214) e devidamente regulamentado por legislação infraconstitucional (ECA
– Lei nº. 8.069/90, LDB - Lei nº. 9.394/1996, Lei nº. 9.424/1996 – FUNDEF, entre
outras), não cabe ao administrador público escolher quando e de que forma efetivar o
direito à educação.
76
Apud MARCHESAN, Ana Maria Moreira. O Princípio da Prioridade Absoluta aos Direitos da
Criança e do Adolescente e a Discricionariedade Administrativa. Revista dos Tribunais, Ano 87. v.
749. março de 1998. p. 86.
77
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Discricionariedade Administrativa e Controle jurisdicional.
2. ed. São Paulo: Malheiros. 2003. p. 12/14.
36
É seu dever fazê-lo já e para todos. E, caso não o faça, é perfeitamente
possível, como veremos a seguir, a invocação do Judiciário em busca da concretização
desse direito social ferido.
2.3.1.2. O Poder Judiciário
Vivemos, atualmente, dentro de uma nova perspectiva conceitual de
proteção integral à criança e ao adolescente. Além de promover a criação de órgãos de
participação popular, como os Conselhos já estudados, essa nova perspectiva trouxe,
também, um papel reservado à Justiça da Infância e Juventude, completamente diferente
daquele previsto no revogado Código de Menores, de 1979.
Ocorreu, com a instituição da nova ordem constitucional/legal,
instaurada pela CF/88 e o ECA, uma radical mudança de paradigma. Porém, em alguns
casos essa mudança de orientação jurídica não foi acompanhada por parte daqueles
encarregados de interpretar e aplicar a lei, gerando uma situação ambígua, irregular.
No tocante a esse tema, de muita ajuda é a lição de Eugênio Couto
Terra78, que chamou essa ambigüidade de concepções de “crise paradigmática”:
A crise paradigmática é verificada, justamente, a partir dos sinais do
surgimento de um novo paradigma, então operado por uma revolução
conceitual e normativa no tratamento dos interesses das crianças e
adolescentes. Vivemos em um mundo globalizado – quer gostemos ou
não –, e cada vez mais há uma interação entre Direito Interno e Direito
Internacional. A introdução na Carta Magna da Doutrina da Proteção
Integral (...) decorreu da internacionalização da vertente protetora dos
direitos humanos de caráter internacional, dos quais a proteção da
criança e do adolescente é uma das facetas. Tanto é assim que o
disposto no art. 227 é reconhecido como síntese das diretrizes fixadas
pela Convenção Internacional dos Direitos da Criança. O Brasil, ao
78
Apud DIGIÁCOMO, op. cit., P. 313/315.
37
ratificar a Convenção – e fez isso sem qualquer ressalva de reserva –,
assumiu a obrigação de cumpri-la integralmente. Vale dizer, é vedado
ao Estado Brasileiro tomar qualquer iniciativa que venha a tornar
ineficaz ou contrariar qualquer dispositivo da Convenção sobre os
Direitos da Criança, que, entre nós, por força do art. 5º, § 2º, tem
status de norma constitucional. Isso porque a Carta Magna de 1988, na
esteira de outras Constituições, passou a considerar as normas de
tratados de direitos humanos como hierarquia constitucional. O
tratado em referência, inequivocamente, tem conteúdo de proteção de
direitos humanos.
E, conclui, por fim o autor, no sentido de que é inviável qualquer
interpretação que não passe por um debate principiológico, ou seja, só é possível a
aplicação/interpretação da lei (latu sensu) em consonância com os princípios
constitucionais que dão conformação do Estado Democrático de Direito. E assim é, pois
só se justifica o existir do “Estado –‘domínio dos homens sobre os homens’ –“ porque a
razão única de sua existência é o ser humano. O Estado que não tenha por fim a
promoção da “dignidade humana – ou, se preferindo, a realização dos direitos
fundamentais – não tem razão de ser”. A Constituição, ao determinar prioridade
absoluta na concretização das condições de uma existência digna para a infância e
juventude, estabelece que a promoção da dignidade humana dessa categoria de cidadão
tem natureza fundamental, posto que visceralmente ligada ao princípio da dignidade
humana.
Sobre as idéias de Eugênio Couto, Murilo José Diácomo reflete acerca
do “verdadeiro papel” da Justiça da Infância e Juventude dentro dessa nova sistemática.
Entendendo ele que a Justiça da Infância e Juventude, não pode mais permanecer inerte
ante a ameaça ou efetiva violação dos direitos infanto-juvenis, em especial quando
constatada a omissão do Poder Público em implementar e manter uma estrutura de
38
atendimento adequada às mais diversas demandas existentes, inclusive àquelas de
interesse de educadores e educandos79.
Nesse sentido, determina a Lei nº. 8.069/9080:
Art. 221. Se, no exercício de suas funções, os juízos e tribunais
tiverem conhecimento de fatos que possam ensejar a propositura de
ação civil, remeterão peças ao Ministério Público para as providências
cabíveis.
Destarte, o Judiciário pode, e deve, sempre que preciso, assumir o
papel de protagonista dessa imperiosa estruturação, provocando e fornecendo ao
Ministério Público os elementos de convicção que tiver, para fazer, da forma que puder,
com que, no caso, o Distrito Federal se ajuste ao que dispõem o Estatuto da Criança e
do Adolescente e a Constituição Federal.
2.3.1.3. O Ministério Público
O Ministério Público (MP) é o órgão responsável pela defesa da
sociedade, e, para tanto, reúne os requisitos necessários para a implementação da
cidadania. Para Maria Cristina de Brito Lima81, o papel do MP no contexto brasileiro é
muito forte, pois a lei lhe concede determinadas prerrogativas e não o faz aos
particulares. Por exemplo, só o MP pode instaurar inquérito civil e requisitar provas
diretamente, mediante ofício aos órgãos competentes.
O papel do Ministério Público nesse Sistema de Garantias dos
direitos infanto-juvenis pode ser valorado pela Constituição Federal em seus artigos
79
DIGIÁCOMO, op. cit., p. 315.
Estatuto
da
Criança
e
do
Adolescente,
disponível
em
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L8069Compilado.htm>. Acesso em 22 de abril de 2008.
81
LIMA, Maria Cristina de Brito. A Educação como Direito Fundamental. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2003. P. 130.
80
39
12782 e 12983 que definem algumas das funções institucionais do órgão. E, seguindo o
mesmo passo, o Estatuto da Criança e do Adolescente determina a sua competência para
atuar frente às questões da Infância e Juventude84.
Para melhor entendimento, interessante interpretar as disposições
referidas acima conjuntamente com os arts. 95, 191 e 194, todos da Lei nº. 8.069/90.
Nesse mesmo sentido é a jurisprudência do STF:
Cuidando-se
de
tema
ligado
à
educação,
amparada
constitucionalmente como dever do Estado e obrigação de todos, está
o Ministério Público investido da capacidade postulatória, patente a
legitimidade ad causam, quando o bem que se busca resguardar se
insere na órbita dos interesses coletivos, em segmento de extrema
delicadeza e de conteúdo social tal que, acima de tudo, recomenda-se
85
o abrigo estatal .
Em razão do exposto, Murilo José Digiácomo nos diz que luminosa é
a legitimidade do Ministério Público para a tomada de medidas administrativas e
82
Art. 127. O Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado,
incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais
indisponíveis.
83
Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público: (...) III - promover o inquérito civil e a ação
civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses
difusos e coletivos;
84
Art. 201. Compete ao Ministério Público: (...) V - promover o inquérito civil e a ação civil pública para
a proteção dos interesses individuais, difusos ou coletivos relativos à infância e à adolescência, inclusive
os definidos no art. 220, § 3º inciso II, da Constituição Federal; (...) VIII - zelar pelo efetivo respeito aos
direitos e garantias legais assegurados às crianças e adolescentes, promovendo as medidas judiciais e
extrajudiciais cabíveis; IX - impetrar mandado de segurança, de injunção e habeas corpus, em qualquer
juízo, instância ou tribunal, na defesa dos interesses sociais e individuais indisponíveis afetos à criança e
ao adolescente; (...) § 5º Para o exercício da atribuição de que trata o inciso VIII deste artigo, poderá o
representante do Ministério Público: (...) c) efetuar recomendações visando à melhoria dos serviços
públicos e de relevância pública afetos à criança e ao adolescente, fixando prazo razoável para sua
perfeita adequação. (...)
Art. 210. Para as ações cíveis fundadas em interesses coletivos ou difusos, consideram-se legitimados
concorrentemente: I - o Ministério Público;
85
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. RE 163.231, Rel. Min. Maurício Corrêa, DJ 29/06/01.
40
judiciais em defesa dos direitos e interesses infanto-juvenis no plano individual ou
coletivo86.
Por fim, vale lembrar que o Ministério Público, apesar de habilitado a
proteger os interesses individuais das crianças, encontra sua vocação natural nas
questões de interesse coletivo e difuso. Pode, através de um único procedimento
administrativo ou judicial, favorecer toda uma coletividade de crianças e adolescentes
do Município/Distrito Federal, como bem anota o douto Promotor de Justiça.87
2.3.1.4. A Sociedade
A
organização
da
população
em
associações
e
entidades
representativas é da natureza do nosso regime democrático, como dispõe o art. 5º, XVII,
entre tantos outros, da CF:
“É plena a liberdade de associação para fins lícitos, vedada a de
caráter paramilitar”.
Absorvendo a orientação constitucional, o Estatuto da Criança e do
Adolescente conferiu às organizações representativas da população não apenas a
possibilidade de participação nos já citados Conselhos de Direitos, mas também a
legitimidade para propor a ação civil pública, vejamos:
Art. 210. Para as ações cíveis fundadas em interesses coletivos
ou difusos, consideram-se legitimados concorrentemente:
(...)
III - as associações legalmente constituídas há pelo menos um
ano e que incluam entre seus fins institucionais a defesa dos
interesses e direitos protegidos por esta Lei, dispensada a
86
87
DIGIÁCOMO, op. cit., p. 318.
Ibidem. p. 319.
41
autorização da assembléia, se houver prévia autorização
estatutária.
Destarte, a sociedade civil organizada também se inclui no Sistema de
Garantias aos direitos infanto-juvenis, podendo intervir também em diversas ocasiões,
como classifica Murilo Digiácomo88; vejamos:
a) Por ocasião da política de atendimento, seja ou não integrante da
ala não-governamental do Conselho de Direitos da Criança e do Adolescente, propor
discussões, fornecendo informações ou contribuindo com a solução de problemas
atuais;
b) Caso falhe essa primeira abordagem, utilizando-se da permissão
legal contida no art. 220, do ECA, levando os mesmos elementos de convicção ao órgão
do Ministério Público;
c) Como última alternativa, propor ação civil pública, desde que
preenchidos os requisitos constantes do art. 210, III, da Lei das Crianças e Jovens.
Conclui-se, que o legislador buscou conferir a qualquer cidadão ou
entidade representativa da sociedade, os meios para que protagonize as transformações
que queira realizar em defesa dos direitos das crianças e adolescentes.
Ademais, sobre o dever de solidariedade social, consagrado no art. 3º,
I, da Constituição (Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa
do Brasil: (...) I - construir uma sociedade livre, justa e solidária), Orlando Carvalho
entende que o mesmo incide “sobre toda e qualquer pessoa que esteja em condições de
88
DIGIÁCOMO, Murilo José. Instrumentos Jurídicos para a Garantia do Direito à Educação, "In"
Direito à Educação: Uma Questão de Justiça. São Paulo : Malheiros , 2004.
42
prestar o auxílio em causa”, e completa dizendo que “os direitos da personalidade
implicam uma obrigação tout court, na medida em que a pessoa implica respeito
(Achtung) – como diz Laurenz – que está longe de ser meramente passiva, até porque
suporá, conforme defende a doutrina mais próxima, um dever geral de auxílio que é o
inverso da indiferença89”.
Assim, anota Regina Maria Fonseca Muniz que, em função do dever
social da educação, imposto pelas legislações em vigor (arts. 3º, I, e 205 da CF/88, e 4º
do ECA), é que se exige dos estabelecimentos de ensino uma boa formação moral,
cultural e profissional para o educando, respondendo civilmente pelos danos causados a
seus alunos, pela má administração educacional90.
E, no mesmo sentido, Carlos Roberto Gonçalves aduz que “o papel do
educador (...) está, em grande parte, dividido com o Estado, os educadores profissionais
e os meios de comunicação. Desde os três anos, são muitas as crianças que têm, hoje, a
formá-los outras figuras além de pai e mãe91”.
2.3.1.5. A Família
O 6º Princípio da Declaração dos Direitos da Criança, primeira parte,
proclamada pela ONU, em 20/11/59, assegura que, para o desenvolvimento completo da
personalidade infantil, é necessário que a criança receba amor e compreensão, sendo
que os pais, sempre que possível, deverão oferecer aos filhos um ambiente de afeto,
segurança moral e material. Assim dispõe o 6º Princípio: “A criança, para pleno e
89
CARVALHO, Orlando de, “in” Capelo de Souza, in Direito geral de personalidade, Coimbra,
Editora Limitada, 1ª Ed., 1995.
90
MUNIZ, Regina Maria Fonseca. O Direito à Educação. Rio de Janeiro: Renovar, 2002.
91
GONÇALVES, Carlos Roberto. Responsabilidade civil, São Paulo, Saraiva, 6ª Ed., 1995.
43
harmonioso desenvolvimento de sua personalidade, necessita amor e compreensão.
Sempre que seja possível, deverá crescer ao amparo e sob responsabilidade de seus pais
e, em todo o caso, em um ambiente de afeto e segurança material”.
No art. 10 do Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e
Culturais92, de 16 de dezembro de 1996, o dever da família também se encontra
presente: “Deve-se conceder à família, que é elemento natural e fundamental da
sociedade, a mais ampla proteção e assistência possíveis, especialmente para sua
constituição e enquanto ela for responsável pela criação e educação dos filhos”.
Nesse diapasão, a Convenção Americana Sobre os Direitos Humanos
(Pacto de San José da Costa Rica), de 1969, em seu art 19, dispõe: “Toda criança tem
direito às medidas de proteção que sua condição de menor requer por parte da família,
da sociedade e do Estado”.
O preâmbulo da Convenção sobre os Direitos da Criança de 1989
(Nova York)93 reconhece que “a criança, para pleno e harmonioso desenvolvimento de
sua personalidade, deve crescer no seio de sua família em um ambiente de felicidade,
amor e compreensão”.
A Constituição Federal, art. 227 e o Estatuto da Criança e do
Adolescente (Lei nº. 8.069/90), em seus arts. 4º e 22, reforçam o apelo das declarações e
convenções, de modo especial a de Nova York (1989), estabelecendo o art. 4º que “é
dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com
92
Ratificado pelo Brasil pelo Decreto Legislativo nº 226, de 12 de dezembro de 1991, e promulgado pelo
Decreto nº 592, de 6 de dezembro de 1992.
93
Ratificada pelo Governo brasileiro em 24/9/1990 (DOU de 22/11/90).
44
absoluta prioridade, o direito à vida, à alimentação, à educação, ao lazer, à
profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência
familiar e comunitária, além de colocá-los à salvo de toda forma de negligência,
discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”; e no art. 22, que “aos pais
incumbe o dever de sustento, guarda e educação dos filhos menores, cabendo-lhes
ainda, no interesse destes, a obrigação de cumprir e fazer cumprir as determinações
judiciais”.
Do mesmo modo, o art. 1º da Lei nº. 9.394 (Lei de Diretrizes e Bases),
de 20 de dezembro de 1996, atribui à família e ao Estado a tarefa da educação integral,
assim dispondo: “A educação, dever da família e do Estado, inspirada nos princípios de
liberdade e nos ideais de solidariedade humana, tem por finalidade o pleno exercício da
cidadania e sua qualificação para o trabalho”.
No tocante ao Código Civil, os artigos 231, IV, 233, IV e 384, I e II,
dizem respeito às obrigações dos pais, oriundas do pátrio poder94, este conferido pelo
art. 380 do nosso Código e pelo art. 21 do ECA ( Lei nº. 8.069/90): “o pátrio poder será
exercido igualmente pelo pai e pela mãe”, no sustento, guarda e educação dos filhos,
tornando-os independentes, capacitando-os física e moralmente para viver em
sociedade, de conformidade com o art. 22 da citada Lei.
Sobre o assunto, Regina Maria Fonseca Muniz nota, em relação à
legislação aqui apresentada “a preocupação constante com a formação educacional da
criança na família, pois é nela que o indivíduo nasce, vive e cresce, surgindo, assim, as
primeiras relações de convivência humana. (...) A criança tem nela, espontaneamente,
94
Novo Código Civil, arts. 1.630 a 1634, I a VII.
45
sua primeira escola. É ali que se formam os primeiros traços de caráter, sendo os pais os
primeiros responsáveis para a formação sólida e garantidora de um equilíbrio social
perfeito. A escola apenas supre a família, mas jamais a suplanta95”.
O art. 21 do ECA reforça o princípio da isonomia elencado no art.
226, § 5º, da Constituição, incumbindo aos pais em igualdade de condições “o dever de
sustento, guarda e educação dos filhos menores, cabendo-lhe ainda, no interesse destes,
a obrigação de cumprir e fazer cumprir as determinações judiciais”.
Nesse sentido, é a jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado de
São Paulo, na Apelação Cível nº. 34145-0/5, relatada pelo Des. Rebouças de Carvalho,
que realçou aos pais “que não possuem as mínimas condições sociais para prestar
atendimento necessário aos seus filhos, impõe-se a destituição do pátrio poder visando
exclusivamente o interesse maior dos infantes, que se sobrepõe a todo e qualquer outro
interesse96”.
O Código Penal também pune, nos arts. 244 e 246, os pais que
abandonam seus filhos, sem justa causa, não lhes dando a necessária assistência material
ou intelectual, negligenciando a sua educação:
Art. 244. Deixar, sem justa causa, de prover a subsistência do cônjuge,
ou de filho menor de 18 (dezoito) anos ou inapto para o trabalho, ou
de ascendente inválido ou maior de 60 (sessenta) anos, não lhes
proporcionando os recursos necessários ou faltando ao pagamento de
pensão alimentícia judicialmente acordada, fixada ou majorada;
deixar, sem justa causa, de socorrer descendente ou ascendente,
gravemente enfermo:
Pena - detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos e multa, de uma a dez
vezes o maior salário mínimo vigente no País.
95
96
MUNIZ, Regina Maria Fonseca. O Direito à Educação. Rio de Janeiro: Renovar, 2002.
RT 138/277.
46
Parágrafo único - Nas mesmas penas incide quem, sendo
solvente, frustra ou ilide, de qualquer modo, inclusive por abandono
injustificado de emprego ou função, o pagamento de pensão
alimentícia judicialmente acordada, fixada ou majorada.
(...)
Art. 246 - Deixar, sem justa causa, de prover à instrução primária
de filho em idade escolar:
Pena - detenção, de quinze dias a um mês, ou multa.
Mas antes de discutirmos a punição dos pais ou responsáveis por
descuidar ou abusar no cuidado de seus filhos, devemos lembrar o dito no enunciado do
art. 226 da CF:
Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do
Estado.
(...)
§ 7º - Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e
da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre
decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos
educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada
qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou
privadas.
§ 8º - O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de
cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a
violência no âmbito de suas relações.
Nesse contexto, fica clara a existência de uma “rede” de atenção aos
direitos infanto-juvenis,a serem garantidos, no caso, não apenas pela família, mas
também pelo Estado.
Assim, o Estado deve garantir condições para que os pais ou
responsáveis possam, bem e fielmente, cumprir seus deveres para com seus filhos e
pupilos.
47
3. INSTRUMENTOS JURÍDICOS
3.1. CONSIDERAÇÕES
Como se procurou demonstrar, a conquista de uma educação
verdadeiramente de qualidade – e para todos (aí compreendidos mesmo aqueles que não
se enquadram no conceito jurídico de crianças e adolescentes) – é uma tarefa grandiosa,
que fica a cargo de inúmeros órgãos, instâncias, poderes e instituições.
Todos são igualmente responsáveis, não sendo dado a qualquer deles
se omitir, seja no que diz respeito à identificação de uma demanda e/ou deficiência
estrutural específica, a ser solucionada por intermédio da implementação, por iniciativa
do Conselho de Direitos da Criança e do Adolescente, de políticas e programas de
atendimento idôneos e adequados, seja no acionamento do Poder Judiciário para que
este, na condição de último bastião do Sistema de Garantias – e, com ele, da proteção
integral dos direitos infanto-juvenis –, faça prevalecer o império da lei e dos princípios
constitucionais que a inspiram.97
3.2. DOS INSTRUMENTOS EXTRAJUDICIAIS
3.2.1. A atuação extrajudicial do Ministério Público
Nem todos os mecanismos “jurídicos” criados para defesa do direito
fundamental à educação e outros a ele correlatos são “judiciais”, ou seja, manejados
junto ao Poder Judiciário – que deve realmente figurar como derradeira distância a ser
acionada nesse sentido.98
97
DIGIÁCOMO, Murilo José. Instrumentos Jurídicos para Garantia do Direito à Educação. In
Direito à Educação: Uma Questão de Justiça. São Paulo: Malheiros Editores, 2004, p. 332.
98
Ibidem, p. 332.
48
Como vimos, inúmeros são os órgãos encarregados da proteção
integral dos direitos infanto-juvenis. Dentre estes, no entanto, o Ministério Público foi o
que recebeu maior destaque por parte do legislador estatutário, que para tanto lhe
conferiu uma ampla gama de atribuições e responsabilidades, às quais correspondem
poderes específicos, a serem manejados após a noticia da presença de situação
periclitante ou lesiva aos interesses afetos a crianças e adolescentes que cabe ao Órgão
defender.99
3.2.2. As gestões de ordem administrativa
De posse de elementos que apontem para a mencionada ocorrência de
ameaça ou violação dos direitos infanto-juvenis, poderá o órgão do Ministério Público
(e recomenda-se que o faça) tentar solucionar o problema através de gestões de ordem
administrativa sem que tenha que recorrer ao Poder Judiciário.100
A primeira dessas abordagens “alternativas” se dará através do contato
direto com a pessoa, autoridade ou representante de órgão ou entidade, pública ou
privada, a que se atribui a ação ou omissão potencial ou efetivamente lesiva aos
interesses infanto-juvenis.101
E, tentando, através de argumentos de ordem jurídica e também
técnica, deverá o órgão ministerial alertá-lo da ilegalidade da situação apurada e
99
DIGIÁCOMO, op. cit., p. 333.
DIGIÁCOMO, op. cit., p. 335.
101
Nesse sentido, dispõe o § 5º do art. 201 da Lei nº. 8.069/90: § 5º Para o exercício da atribuição de que
trata o inciso VIII deste artigo, poderá o representante do Ministério Público: a) reduzir a termo as
declarações do reclamante, instaurando o competente procedimento, sob sua presidência; b) entender-se
diretamente com a pessoa ou autoridade reclamada, em dia, local e horário previamente notificados ou
acertados; c) efetuar recomendações visando à melhoria dos serviços públicos e de relevância pública
afetos à criança e ao adolescente, fixando prazo razoável para sua perfeita adequação.
100
49
conceder-lhe um “prazo razoável” para eliminação do risco e/ou reparação do dano
causado.102
3.2.3. A audiência pública
Geisa de Assis Rodrigues103 ensina que, o que caracteriza a audiência
pública é a existência do debate oral e informal, embora ordenado pelo órgão que a
preside, sobre uma medida administrativa qualquer que tenha repercussão social. Na
audiência pública, ao mesmo tempo que se informa o teor e implicações da medida
administrativa analisada, se consulta a opinião sobre o assunto, sem contudo haver a
vinculação da vontade do administrador, posto que na audiência pública se tem voz mas
não voto. Não se confunde com os atos de colegiados públicos nos quais só participa
quem e formalmente autorizado.
No caso de problemas envolvendo as escolas e/ou o Sistema de
Ensino, nada mais adequado que uma audiência pública com o Secretário de Educação e
seu gabinete, realizada em uma das escolas da “rede”, na presença de pais, professores,
servidores e comunidade em geral, onde lhe poderão ser “apresentadas” as pichações e
outros atos de vandalismo, goteiras, mau estado de conservação do estabelecimento,
falta de docentes, etc.104
Todo desenrolar da audiência deve ser documentado e, de preferência,
gravado em áudio ou vídeo, podendo naquele mesmo ato ser colhido, junto ao acusado
da ação ou omissão lesiva aos interesses infanto-juvenis, um Compromisso de
102
DIGIÁCOMO, op. cit., p. 335.
RODRIGUES, Geisa de Assis. Ação Civil Pública e Termo de Ajustamento de Conduta: Teoria e
Prática. Rio de Janeiro : Forense , 2002, p. 95.
104
DIGIÁCOMO, op. cit., p. 336.
103
50
Ajustamento de Conduta, na forma do previsto no art. 211 da Lei nº. 8.069/90, que será
adiante analisado.105
3.2.4. O compromisso de ajustamento de conduta
Outro instrumento jurídico a ser manejado – agora, não apenas pelo
Ministério Público, mas também por qualquer outro órgão público legitimado, na forma
do disposto nos arts. 210 c/c 211, ambos da Lei nº. 8.069/1990 – é precisamente o
Compromisso de Ajustamento de Conduta.106
Na forma da lei, o Compromisso de Ajustamento, uma vez firmado,
“terá eficácia de título executivo extrajudicial”, podendo seu adimplemento, vencidos os
prazos ajustados, ser exigido em juízo, onde não mais se discutirá se a obrigação é ou
não devida, reconhecida que já foi pelo demandado.107
Segundo Hugo Nigro Mazzili: “Esses Compromissos de Ajustamento
não são, a rigor, verdadeiras transações, pois que os órgãos públicos legitimados a
tomá-los não são titulares do direito lesado(...), de forma que não têm como dispor do
que não lhes pertence. Limitam-se apenas a tomar, dos acusados do dano, o
compromisso de que estes ajustem suas condutas às exigências legais, dentro dos termos
e condições fixadas.”108
105
DIGIÁCOMO, op. cit., p. 337.
DIGIÁCOMO, op. cit., p. 340.
107
Em caso de inadimplência, por se tratar de execução de obrigação de fazer ou não fazer respaldada em
título executivo extrajudicial, o procedimento a ser adotado para compelir o devedor a faze-lo será aquele
previsto nos arts. 632 a 645 do CPC, de aplicação subsidiária por força do disposto no art. 152 da Lei nº.
8.069/90.
108
MAZZILI, Hugo Nigro. Os interesses transindividuais – sua defesa judicial e extrajudicial. Pela
Justiça na Educação, pp. 703-704.
106
51
Em outras palavras: não se negocia o direito invocado, mas apenas a
forma e os prazos necessários para seu pleno atendimento pelo acusado de tê-lo
ameaçado ou violado.109
3.2.5. A recomendação administrativa
Com ou sem a celebração de um Compromisso de Ajustamento na
audiência pública ou entrevista realizada com a pessoa ou autoridade investigada, é
facultado ao Ministério Público, pelo art. 201, §5º, “c”, da Lei nº. 8.069/90, “efetuar
recomendações visando à melhoria dos serviços públicos e de relevância pública afetos
à criança e ao adolescente, fixando prazo razoável para sua perfeita adequação”, a
expedição da chamada “recomendação administrativa”, que deverá relacionar as
irregularidades detectadas (nela podendo ser indicados os fundamentos técnico e
jurídicos correspondentes110) e apontar alternativas para sua solução, concedendo “prazo
razoável para sua perfeita adequação”. Registre-se que a depender da complexidade do
problema, podem ser concedidos prazos diversos, estabelecendo-se uma espécie de
“cronograma” a ser cumprido.111
A recomendação é um instrumento previsto, também, na Lei
Complementar 75/93112 e na Lei Orgânica Nacional do Ministério Público dos
Estados.113
109
DIGIÁCOMO, op. cit., p. 341.
A opção pela indicação, ou não, no todo ou em parte, dos fundamentos técnicos e jurídicos a embasar a
recomendação deve ficar a cargo do agente ministerial, que pode preferir apresenta-los apenas por ocasião
de eventual demanda judicial.
111
DIGIÁCOMO, op. cit., p. 339/340.
112
Artigo 6º da Lei Complementar 75/93 – XX – expedir recomendações, visando a melhoria dos
serviços públicos e de relevância pública, bem como o respeito, aos interesses, direitos e bens cuja defesa
lhe cabe promover, fixando prazo razoável para a adoção das providências cabíveis.
110
52
Geisa de Assis Rodrigues114 nos lembra que a recomendação não
obriga o recomendado a cumprir os seus termos, mas serve como advertência a respeito
das sanções cabíveis pela sua inobservância. É importante que a recomendação seja
devidamente justificada, de modo a que possa convencer o recomendado de sua justeza.
Em regra, é expedida nos autos do inquérito após sua instrução, como forma de evitar a
propositura de medida judicial e quando não seja caso de ajustamento de conduta, mas
nada impede que a recomendação seja feita fora de uma investigação, ou até inicie o
inquérito civil.115
A recomendação é, no dizer de Celso Barroso Leite, uma tarefa típica
de ombudsman.116
3.2.6. O inquérito civil
O inquérito civil ingressou em nossa ordem jurídica por intermédio do
art. 8º, §1º, da LACP, sendo posteriormente consagrado pelo art. 129, III, da
Constituição Federal. Também tratam desse instrumento administrativo os arts. 90 do
CDC, 6º da Lei Federal 7.853/89, 201, V, do ECA, 25, IV, da Lei Orgânica Nacional do
Ministério Público – LONMP (8.625/93), dentre outros.
113
Art. 27, parágrafo único, IV – promover audiências públicas e emitir relatórios, anual ou especiais, e
recomendações dirigidas aos órgãos e entidades mencionadas no caput deste artigo, requisitando ao
destinatário sua divulgação adequada e imediata, assim como resposta por escrito.
114
RODRIGUES, Geisa de Assis. Ação Civil Pública e Termo de Ajustamento de Conduta: Teoria e
Prática. Rio de Janeiro : Forense , 2002, p. 89.
115
Nesse sentido ROTHENBURG, Walter Claudius. “Recomendação: publicidade e publicação”. Tese
apresentada no XVI Encontro nacional dos Procuradores da República. Caderno de Teses. ANPR.
Rio de janeiro, 28/10 a 2/11/99, pp. 19/22.
116
Cf. Celso Barroso Leite: “As conclusões a que ele chega com relação a reclamações investigadas,
casos apurados por sua própria iniciativa, fatos verificados por ocasião de visitas de inspeção, e assim por
diante, são transmitidas ás repartições interessadas sob a forma de críticas, censuras ou recomendações.
Em qualquer hipótese, seus pronunciamentos não têm cunho coercitivo, mas, sobretudo efeito moral – de
resto mais forte do que poderia parecer. Não raro suas manifestações, em vez de se limitarem aos casos
concretos que as motivaram, cogitam de medidas de caráter geral: alterações de normas, simplificação de
rotinas, abrandamento de critérios, etc.” Op. Cit., p. 62.
53
O inquérito civil foi concebido na Lei da Ação Civil Pública como um
procedimento de investigação de atribuição exclusiva do Ministério Público para a
verificação da existência de lesão ou ameaça de lesão a direito transindividual.117 É
considerado um instituto genuinamente brasileiro118, e se distingue do inquérito policial
e do procedimento administrativo que antecede a prática de determinados atos da
Administração Pública. Ao contrário do inquérito policial, e até da primeira idéia de
inquérito civil,119quem preside a investigação é o membro do Ministério Público com
atribuição para adotar as medidas judiciais e extrajudiciais cabíveis ao caso.
O inquérito civil é um verdadeiro “instrumento de cidadania”120, e
muitas vezes a sua própria instauração aborta a possibilidade do conflito
transindividual, ensejando a participação da sociedade, organizada ou não, na esfera
pública. Ademais, o seu adequado manejo evita a propositura de lides temerárias, além
de ser palco de alternativas à movimentação da máquina jurisdicional, posto que
117
Consoante Mazzili: “o inquérito civil é uma investigação administrativa prévia a cargo do Ministério
Público, que se destina basicamente a colher elementos de convicção para que o próprio órgão ministerial
possa identificar se ocorre circunstância que enseja eventual propositura de ação civil pública ou
coletiva”, p. 46. O inquérito civil. São Paulo: Saraiva, 1999.
118
Cf. MÔNACO, José Luiz. Inquérito civil. Bauru: Edipro, 2000 p. 22. A singularidade do inquérito
civil é se constituir investigação para a tomada de decisões relacionadas à defesa judicial e extrajudicial
de direitos difusos, nos moldes do inquérito policial. Não se confunde com o procedimento administrativo
prévio existente para algumas decisões da Administração, este existente há muito no direito
administrativo.
119
Cf. lembra Mazzilli: “Dentro desse quadro, mas ainda sem a visão do que viria a ser o inquérito civil
de hoje, e bastante influenciado pelo sistema então vigente do inquérito policial, em palestra proferida em
1980, no Grupo de Estudos de Ourinhos, o Promotor de Justiça paulista José Fernando da Silva Lopes
sugeriu, então, a criação de um inquérito civil, à guisa do já existente inquérito policial. Não previra ele o
instituto como passou a existir na Lei nº. 7.347/1985, mas sim como procedimento investigatório dirigido
por organismos administrativos, a ser encaminhado ao Ministério Público para servir de base à
propositura da ação civil pública. P. 42. Op. Cit.
120
Nesse sentido Antônio Augusto Mello de Camargo, no artigo “Inquérito civil público: dez anos de
um instrumento de cidadania.” In Ação Civil Pública (Lei 7.347/85 – reminiscências e reflexões após
dez anos de aplicação). Coordenador Edis Milaré. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995, pp. 62/69.
54
importantes medidas extrajudiciais de composição do conflito coletivo são adotadas nos
autos do inquérito, como demonstraremos a seguir.121
3.3. OS INSTRUMENTOS JUDICIAIS
Caso vencidas todas as etapas anteriormente mencionadas e não se
tenha obtido, através de gestões junto aos Conselhos de Direitos da Criança e do
Adolescente – órgãos da Administração Pública com atuação nas áreas da educação,
dentre outras –, a elaboração das políticas e programas necessários à implementação de
uma verdadeira “rede” de atendimento que priorize a criança e o adolescente, tal qual
determinam a lei e a Constituição Federal, dando-lhe condições dignas e reais para o
acesso, permanência e, acima de tudo, sucesso na escola, não restará alternativa outra
além da busca de socorro junto ao Poder Judiciário, que deverá, então, fazer valer as
regras e princípios legais e constitucionais estabelecidos com tal finalidade.122
De modo a tornar efetivos os referidos comandos legal e
constitucional voltados à proteção integral de crianças e adolescentes, o art. 212 do
ECA teve a cautela de estabelecer que, “para defesa dos direitos e interesses protegidos
por esta Lei, são admissíveis todas as espécies de ações pertinentes” – abrindo, assim,
todo um “leque” de opções para o acionamento da máquina judiciária, à qual caberá, em
última análise, garantir o império da lei e da Constituição Federal.123
121
RODRIGUES, Geisa de Assis. Ação Civil Pública e Termo de Ajustamento de Conduta: Teoria e
Prática. Rio de Janeiro : Forense , 2002, p. 88.
122
DIGIÁCOMO, op. cit., p. 343.
123
DIGIÁCOMO, op. cit., p. 344.
55
3.3.1. A ação de rito sumário prevista na Lei 9.394/1996
O primeiro – e, seguramente, o mais peculiar – dos mecanismos
judiciais colocados à disposição da educação é a ação de rito sumário a que se refere o
art. 5º, caput, e §3º, da Lei 9.394/1996, que pode seu manejada por “qualquer cidadão,
grupo de cidadãos, associação comunitária, organização sindical, entidade de classe ou
outra legalmente constituída, e, ainda, o Ministério Público”, para o fim de compelir o
Poder Público a garantir o acesso ao ensino fundamental a todos que assim o
desejarem.124
Dadas sua natureza jurídica, relevância e urgência, a ação deve ser
processada e julgada de forma prioritária (atendendo também ao disposto no art. 4º,
parágrafo único, “b”, da Lei 8.069/1990), de modo a minimizar as conseqüências
deletérias da oferta irregular do ensino infantil por qualquer dos coobrigados.125
3.3.2. A ação civil pública
Outro remédio jurídico adequado para a defesa dos direitos
indisponíveis de crianças e adolescentes – dentre os quais se inclui, como visto, a
educação – é a ação civil pública.
Prevista na Lei 7.347/1985, a ação civil pública rege a possibilidade
de o Ministério Público e os demais legitimados disjuntivos e concorrentes proporem
uma ação de natureza civil face àqueles que causarem danos ao meio ambiente, ao
consumidor, a bens e direitos de valor estético, histórico, turístico e paisagístico,
124
125
DIGIÁCOMO, op. cit., p. 349.
DIGIÁCOMO, op. cit., p. 350.
56
patrimônio público e qualquer outro interesse difuso ou coletivos; e ainda por infração
da ordem econômica e da economia popular.126
A Constituição Federal – em seu art. 129, III e IX – estabelece ser
função do Ministério Público promover o inquérito civil público e a ação civil pública
para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses
difusos e coletivos, bem como outras funções que forem conferidas por outros diplomas
legais.127
Por se destinar, em regra, à proteção dos chamados “interesses
transindividuais”128, que dizem respeito a toda a coletividade, é que a sentença produz
efeitos erga omnes129, salvo se julgada improcedente por insuficiência de prova.130
Dada a amplitude que lhe conferem tanto a Lei 7.347/1985 quanto a
Lei 8.069/1990, a ação civil pública presta-se não apenas para garantir a oferta do
ensino infantil e demais níveis de ensino, mas também, como dissemos anteriormente,
para assegurar que a educação básica, como um todo, atenda aos princípios e objetivos
estabelecidos pela Constituição Federal131 e Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional. Tendo em vista que a garantia de acesso, permanência e sucesso na escola faz
126
FRANCO, Fábio Luis, MARTINS, Antonio Darienso. A ação civil pública como instrumento de
controle das políticas públicas. REVISTA DE PROCESSO - v.31 n.135 maio / 2006, p. 34.
127
Ibidem, p. 35.
128
Também chamados “metaindividuais”, de cunho coletivo ou difuso. Sobre a matéria, escreve José dos
Santos Carvalho Filho: “Entre os interesses difusos e coletivos, merecem destaque dois pontos de
identificação existentes em seu perfil conceitual. O primeiro diz respeito aos destinatários: em ambos os
direitos presente está a natureza de transindividualidade, de forma que hão de ser tratados em seu
conjunto e não levando em conta os integrantes do universo titular do interesse. O segundo consiste na
indivisibilidade do direito, o que está a significar que não se pode identificar o quinhão do direito, de que
cada integrante do grupo possa ser titular. O direito, como já se disse, merece a proteção legal como um
todo, abstraindo-se da situação jurídica individual de cada beneficiário” *Ação Civil Pública.
Comentários por Artigo, p. 31).
129
Atingindo toda a coletividade.
130
DIGIÁCOMO, op. cit., p. 351.
131
Notadamente o disposto em seus arts. 206, 208, 210 e 214.
57
parte de um contexto mais amplo de proteção integral aos direitos infanto-juvenis, a
ação civil pública pode ser também manejada de modo a compelir o Sistema de Ensino
a, nesse sentido, desenvolver ações e programas específicos, de forma articulada com
outros órgãos e serviços públicos e particulares, no mais puro espírito do previsto no art.
86 da Lei 8.069/1990.132
Merece destaque o alerta sempre lembrado José dos Santos Carvalho
Filho133, para o fato de que a ação civil pública não é instrumento idôneo para criação
de normas de direito material, cabendo ao autor pedir providências concretas à luz do
direito material que previamente já ampara os interesses difusos e coletivos, objetos do
pleito.
3.3.3. O mandado de segurança
Um dos mais antigos instrumentos colocados à disposição do
indivíduo contra o arbítrio do Estado e de seus agentes é o mandado de segurança, cujo
manejo se constitui numa das garantias fundamentais relacionados no art. 5º, LXIX, da
CF: LXIX - conceder-se-á mandado de segurança para proteger direito líquido e certo,
não amparado por "habeas-corpus" ou "habeas-data", quando o responsável pela
ilegalidade ou abuso de poder for autoridade pública ou agente de pessoa jurídica no
exercício de atribuições do Poder Público.”134
A Constituição Federal contempla duas formas de mandado de
segurança: o individual e o coletivo. Vejamos, em separado, cada um.
132
DIGIÁCOMO, op. cit., p. 352/353.
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Ação civil pública: comentários por artigo. Lei 7.347, de
24.07/1985. 2ª ed. ampl. e atual. Rio de janeiro: Lúmen Júris, 1999, p. 71-2.
134
DIGIÁCOMO, op. cit., p. 358.
133
58
3.3.3.1. O mandado de segurança individual
Trata-se de uma ação de rito sumaríssimo colocada à disposição de
qualquer pessoa, física ou jurídica, pública ou privada, que tenha seus direitos
fundamentais ameaçados ou violados por ato ilegal ou abusivo de autoridade pública ou
agente de pessoa jurídica no exercício de atribuições do Poder Público.135
Além dos pressupostos processuais e das condições da ação
indispensáveis a qualquer tipo de demanda judicial, O Objeto do MS coloca logo uma
questão básica – o que é direito liquido e certo – este direito é requisito de
admissibilidade ou é o próprio mérito do MS.
O direito se ele existe ele é sempre liquido e certo – mas a questão não
é esta – o que precisa ser liquido e certo não é o direito, são os fatos que geram o direito
– o direito deverá poder ser provado de plano – os fatos deverão ser demonstrados no
inicio.
O problema não é a complexidade jurídica da situação – mesmo que a
questão seja complexa, se ela puder ser provada de plano não há que se falar em falta de
direito liquido e certo.
No tocante à educação, vale lembrar que a jurisprudência vem
admitindo, inclusive, mandado de segurança contra dirigentes de estabelecimentos
135
DIGIÁCOMO, op. cit., p. 359.
59
particulares de ensino, embora estes exerçam funções apenas autorizadas, e não
delegadas pelo Poder Público.136
3.3.3.2. O mandado de segurança coletivo
De início, o mandado de segurança era destinado apenas à defesa de
direitos individuais. Porém, com a evolução natural do instituto, passou também à
defesa de direitos coletivos, tal qual previsto no art. 5º, LXX, da CF.
Assim, no tocante ao direito à educação, pode o Ministério Público
“na defesa dos interesses sociais e individuais indisponíveis afetos à criança e ao
adolescente” (art. 201, IX, da Lei 8.069/1990), impetrar tanto o mandado de segurança
individual quanto o coletivo, em benefício de uma ou de toda a coletividade de crianças
e adolescentes que tenham seus direitos ameaçados ou violados por ação ou omissão
legal ou abusiva de autoridade pública ou de agente de pessoa jurídica no exercício de
atribuições do Poder Público.137
3.3.3.3. A ação mandamental
Não satisfeito com as disposições legais e constitucionais relativas ao
mandado de segurança, o ECA previu, em seu art. 212, § 2º, um outro tipo de ação a ser
manejada em situações similares: a chamada “ação mandamental”: §2º. Contra atos
ilegais ou abusivos de autoridade pública ou agente de pessoa jurídica no exercício de
136
137
Cf. Acórdãos publicados in RT 496/77, 497/84 e 502/55.
DIGIÁCOMO, op. cit., p. 361.
60
atribuições do Poder Público, que lesem direito líquido e certo previsto nesta Lei, caberá
ação mandamental, que se regerá pelas normas da Lei do Mandado de Segurança”.138
O que sobressai da análise conjunta de ambos os institutos é a
sistemática preocupação do legislador em ampliar o número de legitimados para
propositura de ações de cunho coletivo, e que, o acesso ao poder Judiciário fosse
facilitado ao máximo, cabendo a este, por óbvio, corresponder à expectativa do
legislador e coibir com rigor e prontidão os desmandos praticados.139
3.3.4. A ação popular
Um importante instrumento judicial que pode ser utilizado pelo
cidadão comum para defesa do direito fundamental à educação é, sem dúvida, a ação
popular, que tem por fundamento o disposto no art. 5º, LXXIII, da CF: LXXIII qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular140 que vise a anular ato
lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade
administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural, ficando o autor,
salvo comprovada má-fé, isento de custas judiciais e do ônus da sucumbência;
Embora à primeira vista possa parecer que a ação popular se destina
apenas a combater a malversação dos recursos públicos (que pode ocorrer no que diz
respeito ao emprego das verbas do FUNDEF/FUNDEB, da merenda escolar e outras
destinadas à manutenção e desenvolvimento do ensino), na verdade sua utilização pode
extrapolar em muito este âmbito, na medida em que também se presta a anular os atos
138
DIGIÁCOMO, op. cit., p. 362.
DIGIÁCOMO, op. cit., p. 363.
140
No plano infraconstitucional a ação popular é regulada pela Lei 4.717, de 29.6.1965.
139
61
que atentem contra a moralidade administrativa – neste caso, independentemente da
ocorrência de lesão ao patrimônio público. 141
A norma constitucional é explícita ao determinar que a educação se
constitui “direito de todos e dever do Estado e da família” (art. 205) e que “é dever da
família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta
prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação” (art. 227, caput). Isto
significa dizer que o Estado tem que se aparelhar adequada e suficientemente para o
oferecimento de ensino, especialmente quando se trata de crianças e adolescentes. A
própria Constituição considera a educação como direito público subjetivo, atribuindo à
norma eficácia plena e aplicabilidade imediata e elevando-a à categoria de serviço
público essencial. Daí por que o não-cumprimento ou o simples afastamento dos
ditames constitucionais e legais relativos à educação por parte da Administração Pública
dá ensejo à propositura de ação popular, por atentar contra o princípio da moralidade
administrativa.142
3.3.5. O mandado de injunção
José Afonso da Silva, em sua obra Curso de Direito Constitucional
Positivo143, conceitua o mandado de injunção144 como sendo “um remédio ou ação
constitucional posto à disposição de que se considere titular de qualquer dos direitos,
liberdades ou prerrogativas inviáveis por falta de norma regulamentadora exigida ou
suposta pela Constituição. Sua principal finalidade consiste assim em conferir imediata
141
DIGIÁCOMO, op. cit., p. 364.
DIGIÁCOMO, op. cit., p. 365.
143
27ª ed., pp. 446-447.
144
Instituído pela Constituição Federal de 1988, que, em seu art. 5º, LXXI, dispôs que: Conceder-se-á
mandado de injunção sempre que a falta de norma regulamentadora torne inviável o exercício de direitos
e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania.
142
62
aplicabilidade à norma constitucional portadora daqueles direitos e prerrogativas, inerte
em virtude de ausência de regulamentação. Revela-se, neste quadrante, como um
instrumento de realização prática da disposição do art. 5º, §1ºda CF”, segundo o qual
“as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata” –
dentre estas se inclui o direito à educação.
As normas regulamentadoras existentes hoje, consubstanciadas na Lei
de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, Plano Nacional de Educação, bem como
outras leis, decretos e resoluções expedidos por autoridades diversas em todos os níveis
de governo, muitas vezes se mostram insuficientes para permitir o integral cumprimento
do mandamento constitucional no pluricitado art. 205 de nossa Carta Magna, segundo o
qual, como visto, a educação é direito de todos e sua oferta irrestrita é dever do Poder
Público.145
Nesse contexto, caso alguém se veja prejudicado no exercício de seu
direito à educação ante a falta de norma regulamentadora específica que assim o
permita, pode se valer do mandado de injunção para ver garantido seu acesso ao
Sistema de Ensino.
3.3.6. A intervenção federal e estadual
Dentre o instrumental judicial, por fim, um derradeiro – e drástico –
utensílio jurídico a ser manejado como forma de garantir o regular exercício do direito à
145
DIGIÁCOMO, op. cit., p. 370.
63
educação é a chamada “intervenção”, prevista nos arts. 34 a 36146 da nossa Carta
Política.
Embora se constitua em medida extrema, de difícil aplicação e
eficácia prática questionável, a intervenção federal nos Estados e Distrito Federal bem
como a intervenção dos Estados nos Municípios, quando do não-cumprimento das
disposições contidas nas leis federais que tratam da educação (notadamente a Lei de
Diretrizes e Bases da Educação Nacional e o Plano Nacional de Educação), bem como
quando da não-aplicação dos percentuais constitucionais mínimos na manutenção e
desenvolvimento do ensino, merecem ser mencionadas, por constituírem uma das
sanções passíveis de serem aplicadas à espécie.147
146
Art. 34. A União não intervirá nos Estados nem no Distrito Federal, exceto para: (...) VI - prover a
execução de lei federal, ordem ou decisão judicial; VII - assegurar a observância dos seguintes princípios
constitucionais: (...) e) aplicação do mínimo exigido da receita resultante de impostos estaduais,
compreendida a proveniente de transferências, na manutenção e desenvolvimento do ensino e nas ações e
serviços públicos de saúde. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 29, de 2000)
Art. 35. O Estado não intervirá em seus Municípios, nem a União nos Municípios localizados em
Território Federal, exceto quando: (...) III – não tiver sido aplicado o mínimo exigido da receita municipal
na manutenção e desenvolvimento do ensino e nas ações e serviços públicos de saúde; (Redação dada
pela Emenda Constitucional nº 29, de 2000); IV - o Tribunal de Justiça der provimento a representação
para assegurar a observância de princípios indicados na Constituição Estadual, ou para prover a execução
de lei, de ordem ou de decisão judicial.
Art. 36. A decretação da intervenção dependerá: I - no caso do art. 34, IV, de solicitação do Poder
Legislativo ou do Poder Executivo coacto ou impedido, ou de requisição do Supremo Tribunal Federal, se
a coação for exercida contra o Poder Judiciário; II - no caso de desobediência a ordem ou decisão
judiciária, de requisição do Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal de Justiça ou do Tribunal
Superior Eleitoral; III - de provimento, pelo Supremo Tribunal Federal, de representação do ProcuradorGeral da República, na hipótese do art. 34, VII, e no caso de recusa à execução de lei federal. (Redação
dada pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004). § 1º - O decreto de intervenção, que especificará a
amplitude, o prazo e as condições de execução e que, se couber, nomeará o interventor, será submetido à
apreciação do Congresso Nacional ou da Assembléia Legislativa do Estado, no prazo de vinte e quatro
horas. § 2º - Se não estiver funcionando o Congresso Nacional ou a Assembléia Legislativa, far-se-á
convocação extraordinária, no mesmo prazo de vinte e quatro horas. § 3º - Nos casos do art. 34, VI e VII,
ou do art. 35, IV, dispensada a apreciação pelo Congresso Nacional ou pela Assembléia Legislativa, o
decreto limitar-se-á a suspender a execução do ato impugnado, se essa medida bastar ao restabelecimento
da normalidade. § 4º - Cessados os motivos da intervenção, as autoridades afastadas de seus cargos a
estes voltarão, salvo impedimento legal.
147
DIGIÁCOMO, Op. Cit., p. 372.
64
A inclusão de disposições relativas à educação dentre as restritas
hipóteses previstas para a intervenção federal/estadual permite-nos visualizar a
relevância com que o tema foi tratado pela Constituição Federal – o que é de particular
interesse quando uma análise sistemática de todo o texto de nossa Lei Maior, para fins
de avaliação dos temas que foram objeto de maior atenção por parte do constituinte e
que, portanto, merecem um tratamento também prioritário por parte do Poder Público e
dos operadores jurídicos.148
3.4. Considerações finais
Como pudemos observar, foi criado um arcabouço jurídico no sentido
de assegurar a rápida intervenção do Poder Judiciário – e em especial da Justiça da
Infância e Juventude – no sentido de garantir às crianças e adolescentes o efetivo
exercício de todos os direitos a eles conferidos pela lei e pela Constituição Federal, com
especial enfoque no direito fundamental à educação, tanto no que diz respeito a seu
aspecto meramente formal quanto em toda a amplitude do art. 205 da CF.149
Assim, cabe ao Poder Judiciário corresponder à expectativa do
legislador, fazendo da Justiça da Infância e Juventude, uma verdadeira Justiça para a
Infância e Juventude, que realmente se preste à defesa de seus direitos fundamentais –
dentre os quais avulta o direito à uma educação universal e de qualidade, voltada à
formação da cidadania de nossa juventude.150
148
DIGIÁCOMO, op. cit., p. 372.
DIGIÁCOMO, op. cit., p. 373.
150
Op. Cit., p. 373.
149
65
4. EDUCAÇÃO INFANTIL
4.1 Posicionamento na legislação
A educação escolar compõem-se de dois grandes níveis: a educação
básica e a educação superior. A educação básica, por sua vez, é constituída por três
etapas: educação infantil, ensino fundamental e médio, sendo as duas últimas
denominadas níveis de ensino. O foco do presente estudo é a educação infantil, razão
pela qual os demais níveis da educação não serão tratados.
A educação infantil está prevista constitucionalmente no art. 208,
IV151; o Estatuto da Criança e do Adolescente inscreve o mesmo mandamento, em seu
art. 54, IV152; e, no mesmo sentido, determina o art. 4º, IV, da Lei de Diretrizes e Bases
da Educação153. Como os dispositivos constitucionais, e os expressos no Estatuto da
Criança e do Adolescente já foram anteriormente discutidos, passemos a estudar o que
diz a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (Lei nº. 9.394/1996) 154.
Sobre o assunto, Elias de Oliveira Mota observa que “a maioria dos
especialistas das áreas de saúde considera, tradicionalmente, como lactente a criança do
151
Art. 208. O dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de: (...) IV - educação
infantil, em creche e pré-escola, às crianças até 5 (cinco) anos de idade
152
Art. 54. É dever do Estado assegurar à criança e ao adolescente: (...)IV - atendimento em creche e préescola às crianças de zero a seis anos de idade;
153
Art. 4º O dever do Estado com educação escolar pública será efetivado mediante a garantia de: (...) IV
- atendimento gratuito em creches e pré-escolas às crianças de zero a seis anos de idade;
154
Art. 29. A educação infantil, primeira etapa da educação básica, tem como finalidade o
desenvolvimento integral da criança até seis anos de idade, em seus aspectos físico, psicológico,
intelectual e social, complementando a ação da família e da comunidade.
Art. 30. A educação infantil será oferecida em:
I - creches, ou entidades equivalentes, para crianças de até três anos de idade;
II - pré-escolas, para as crianças de quatro a seis anos de idade
66
nascimento até um ano de idade, e, de um até dois anos, é ela denominada
ablactente”.155
Continua o autor, dizendo que os educadores, apesar de respeitarem a
opinião daqueles especialistas, preferem orientar-se pelos estudos psicológicos e
educacionais recentes que identificam a criança desde seu nascimento até os seis anos
de idade como infantil, e a consideram como pronta para ser aceita em uma creche
desde o nascimento até os três anos de idade, e como apta para o pré-escolar dos quatro
aos seis anos156. Esta preferência foi também adotada pelos nossos legisladores, na Lei
de Diretrizes e Bases.
Eurides Brito da Silva denota, nesse sentido, que médicos,
educadores, antropólogos, psicólogos, economistas e outros especialistas são unânimes
em reconhecer a importância do devido atendimento às crianças de zero a seis anos de
idade. Além do quê, trabalhos científicos mais recentes confirmaram os mais antigos e
comprovaram ser este período da vida o de maior crescimento, tanto físico quanto
mental, o que levou, inclusive, à conclusão de que a educação infantil representa, como
diz M. Selowsky, “investimento em capital humano157”.
Vale a observação, entretanto, que o FUNDEB158 (inscrito no
ordenamento pátrio pela EC nº. 53/2006) alterou a idade referente à educação infantil,
que antes era de zero a seis, para zero a cinco anos. Observe-se também que, apesar
disto, a LDB mantém em sua redação os mesmos seis anos de idade.
155
MOTA, Elias de Oliveira. Direito Educacional e Educação no Século XXI. Brasília: Unesco, Una,
1997. p. 301.
156
Ibidem. p. 301.
157
Apud SILVA, Eurides Brito da. “A antecipação do início da escolarização”, In Reunião Conjunta
dos Conselhos de Educação; 1963/1978. Brasília: CFE/MEC/DDD. 1980. p. 780.
158
O FUNDEB será devidamente dissecado mais à frente (item 3.4.1)
67
Ademais, lembrou Afonso Armando Konzen159 que a Lei de Diretrizes
e Bases
retirou a creche e a pré-escola do âmbito das políticas de proteção
especial e transferiu todo o encargo para o sistema educacional.
Assim, a creche e a pré-escola não podem mais ser consideradas uma
espécie de programas de apoio sócio-familiar (art. 90, inciso I, do
Estatuto), como até então, em geral, vinham entendendo os Conselhos
de Direitos da Criança e do Adolescente, e tampouco integram as
políticas de assistência social de caráter supletivo, mas passaram a se
constituir em política social básica de educação.
Nesse passo, como adverte bem o tão presente Elias Mota, a Lei
houve por bem integrar a educação infantil aos sistemas municipais de educação, como
parte inicial da educação básica160.
Adentrando agora o tema da Responsabilidade dos entes no tocante ao
Sistema de Ensino, vejamos o que diz a Lei de Diretrizes e Bases.
4.2. Responsabilidade pela oferta da educação infantil
Cabe à União, além de coordenar a política nacional, manter e
organizar seu próprio Sistema de Ensino, exercer funções normativa, redistributiva e
supletiva, prestar assistência técnica e financeira às demais instâncias. Cabe-lhe ainda
articular os diferentes níveis e sistemas, garantindo equalização de oportunidades
educacionais e padrão mínimo de qualidade do ensino. Os Estados são responsáveis
pelo ensino médio; e os Municípios, pela educação infantil (creches e pré-escolas),
sendo o ensino fundamental uma competência comum, ou seja, uma responsabilidade
compartilhada de Estados e Municípios (CF, art. 211, §§ 2º e 4º). O Distrito Federal, por
159
Apud LIBERATI. Wilson Donizeti. Conteúdo Material do Direito à Educação Escolar. In Direito à
Educação: Uma Questão de Justiça. São Paulo: Malheiros Editores, 2004, p. 237.
160
MOTA, op. cit., p. 303.
68
sua vez, tem as competências tanto de Estado como de Município (LDB, art. 10,
parágrafo único161), como bem lembra Márcio Thadeu Marques162.
E da mesma forma entende Ricardo Chavez de Rezende, segundo o
qual “cabe observar que o Distrito federal ocupa posição ‘sui generis’: não sendo
dividido em Municípios, cabe-lhe dar atendimento direto em todas as etapas da
educação básica”163.
Dessa forma, cumpre a nós constatar que, uma vez recaindo sobre os
municípios a tarefa de zelar pelo desenvolvimento e manutenção da educação infantil,
ante a natureza dupla do Distrito Federal (de Estado e Município em um só ente), a este
último também cumpre naturalmente o mesmo mandamento.
4.3. Gratuidade e obrigatoriedade
A LDB reforça que o atendimento será gratuito, confirmando o
princípio constitucional da educação expresso no art. 206, IV, da Carta da República.
Neste particular, ao ver de Wilson Donizeti Liberati, “a LDB avança
mais que a Constituição Federal ao anunciar, com todas as letras, a gratuidade da
educação infantil”. O art. 29 da LDB dispõe que a educação infantil é a “primeira etapa
da educação básica, tem como finalidade o desenvolvimento integral da criança até seis
161
Art. 10. Os Estados incumbir-se-ão de: (...) Parágrafo único. Ao Distrito Federal aplicar-se-ão as
competências referentes aos Estados e aos Municípios.
162
MARQUES, Márcio Thadeu Silva. Sistema de Garantia de Direitos da Infância e da Juventude. In
Direito à Educação: Uma Questão de Justiça. São Paulo: Malheiros Editores, 2004, p. 19. Renovar,
2000- p. 75-89.
163
MARTINS, Ricardo Chaves de Rezende. Financiamento da Educação Pública no Brasil In Direito á
Educação: Uma Questão de Justiça. São Paulo: 2004. Malheiros. 1ª Ed. p. 181.
69
anos de idade, em seus aspectos físico, psicológico, intelectual e social,
complementando a ação da família e da comunidade164”.
O autor observa uma grande questão que tem chamado atenção dos
analistas jurídicos: a obrigatoriedade e gratuidade da educação infantil. Lembra também
que a mesma indagação é feita para o ensino médio. O argumento principal é o de que a
gratuidade está explicita na CF para todos os níveis de ensino, como se depreende do
art. 206, IV165.
Além disso, exsurge a questão da obrigatoriedade. Nesse diapasão,
dispõe o Plano Nacional de Educação (PNE, Lei nº 10.172, de 9 de janeiro de 2001),
reiterando a CF/88, que “a educação infantil é um direito de toda criança e uma
obrigação do Estado (CF, art. 208, inciso IV)”. Logo, a criança não está obrigada a
freqüentar uma instituição de educação infantil, mas, sempre que sua família deseje ou
necessite, o poder Público tem o dever de atendê-la166. Em outras palavras, conclui
Wilson Donizeti:
Havendo demanda ou procura do serviço essencial da educação
infantil (pelos pais ou responsáveis), nasce o dever do Estado em
disponibilizar o referido serviço. O impedimento do acesso da criança
à educação infantil em instituições públicas fez gerar a
responsabilidade do administrador público, obrigado a proporcionar a
concretização da educação infantil em sua área de competência167.
E, para complementar esses comentários, Elias de Oliveira Mota
ressalta sua convicção de que os países que, no final do século XX e nos primeiros anos
do atual milênio, atacarem com tentativas ousadas os problemas da educação infantil e
164
LIBERATI, op. cit., p. 236.
Ibidem. p. 237.
166
Ibidem. p. 237.
167
Ibidem. p. 237-238.
165
70
do ensino fundamental e conseguirem o atendimento em massa de suas populações na
faixa etária do nascimento até quatorze anos, vencerão com mais facilidade os
obstáculos de seus processos de desenvolvimento. Assim, muito sentido fazem as
palavras de Everett L. Schostrom: “Quando for escrita a história da Guerra à Pobreza,
estou certo de que uma das batalhas mais bem sucedidas será a da proteção ao préescolar168”.
4.4. O financiamento da educação básica
Para iniciar o tema, Patrícia Collat Feijó169 nos diz que:
Um país que tem como objetivos fundamentais a construção de uma
sociedade livre e solidária, o desenvolvimento nacional, a erradicação
da pobreza, da marginalização, do preconceito e das desigualdades
sociais deve tratar com seriedade, organização e planejamento o
desenvolvimento de suas políticas educacionais.
Recorda a autora que, desde a década de 90, o governo, cumprindo
esse mandamento, vem implementando uma série de medidas de caráter normativo e de
controle administrativo-financeiro que caracterizam uma reforma educacional no país.
Ainda que o conjunto não seja suficiente, as modificações realizadas propiciaram maior
acesso e permanência do educando na escola, em especial no ensino fundamental170.
E, para implementação da já referida “reforma educacional”, o
governo federal tomou iniciativas que resultaram na alteração da Constituição através
da Emenda nº 14/96 e na edição das Leis Federais nº. 9.394/1996 (Lei de Diretrizes e
Bases da Educação Nacional), 9.424/1996 (Lei do FUNDEF), e 10.172/2001 (Plano
168
Apud MOTA, op. cit, p. 311.
FEIJÓ, op. cit., p. 293.
170
Ibidem. p. 284.
169
71
Nacional de Educação)171, bem como na adoção da Emenda Constitucional nº 53/2006,
que criou o FUNDEB (regulamentado pela Medida Provisória nº 339, de 2006, a qual
foi convertida na Lei nº 11.494, de 2007).
No tocante à referida normatização, Martisa Timm Sari resume que,
no seu conjunto, o principal avanço refere-se à ampliação do compromisso do Estado
com o ensino público, mais precisamente quanto ao seu financiamento.
Para ela, através da Emenda Constitucional nº. 14/2006, foram
inseridas modificações referentes às responsabilidades dos diferentes níveis de governo,
além de restar alterado o art. 60 do ADCT, determinando a vinculação de 60% dos
recursos dos Estados e Municípios para o ensino fundamental172.
Além disso, foi criado, no âmbito de cada estado, o Fundo de
Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do
Magistério – FUNDEF, a ser mais bem explicado à seguir.
4.4.1. FUNDEF e FUNDEB
Fundo público pode ser conceituado a partir da noção de um
“conjunto de recursos utilizados como instrumento de distribuição de riqueza, cujas
fontes de receita lhe são destinadas para uma finalidade determinada ou para serem
redistribuídas segundo critérios pré-estabelecidos173.
171
FEIJÓ, op. cit., p. 284.
SARI, Marisa Timm. A Organização da Educação Nacional In Direito á Educação: Uma Questão de
Justiça. São Paulo: 2004. Malheiros. 1ª Ed. p. 71.
173
NUNES, Cleucio Santos. FUNDEF: a polêmica interpretação jurídica do cálculo do valor mínimo
e sua desproporcionalidade com o FUNDEB. Fórum de Contratação e Gestão Pública – FCGP, Belo
Horizonte. Ano 6. nº. 64. abril 2007. p. 32.
172
72
O FUNDEF é uma sigla para a instituição de vinte e seis fundos
estaduais e um distrital, todos de natureza contábil e independentes (ADCT, art. 60, §
1º, combinado com o artigo 1º da Lei nº. 9.424/96)174.
Se, por um lado, a instituição do FUNDEF garantiu recursos
específicos e maiores investimentos no ensino fundamental, por outro lado, provocou
nos Municípios concretas dificuldades em relação à oferta e à manutenção da educação
infantil. Os recursos vinculados à educação que ficavam de fora da subvinculação do
Fundo tornaram-se escassos para suprir a crescente demanda de matrículas nas creches e
pré-escolas, atividades que recaíram essencialmente sobre o Município175.
Estes aspectos colaboraram para dificultar a ação dos Municípios em
suas respectivas áreas de atuação e serviram como argumento na luta para a criação de
um novo Fundo que também pudesse priorizar ou incentivar o ensino fundamental, mas
que não inviabilizasse o investimento e o desenvolvimento de outros níveis de ensino.
Através da análise e discussões feitas pelos dirigentes públicos e entidades
representativas, muitas propostas surgiram, entre elas as de prorrogação do FUNDEF,
de criação de um Fundo único e da instituição de três distintos Fundos (para educação
infantil, ensino fundamental e ensino médio)176.
Após várias propostas de Emendas Constitucionais e muita discussão
parlamentar, foi aprovada e promulgada a Emenda nº. 53, de 19 de dezembro de 2006,
174
NUNES, op. cit., p. 37.
FEIJÓ, op. cit., p. 285.
176
Ibidem. p. 286.
175
73
que criou o FUNDEB – Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica
e Valorização dos Profissionais de Educação177.
A partir da Emenda Constitucional nº. 53, o art. 60 do Ato das
Disposições Constitucionais Transitórias passou a vigorar com nova redação:
Art. 60. Até o 14º (décimo quarto) ano a partir da promulgação desta
Emenda Constitucional, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios
destinarão parte dos recursos a que se refere o caput do art. 212 da
Constituição Federal à manutenção e desenvolvimento da educação
básica e à remuneração condigna dos trabalhadores da educação,
respeitadas as seguintes disposições:
I - a distribuição dos recursos e de responsabilidades entre o Distrito
Federal, os Estados e seus Municípios é assegurada mediante a
criação, no âmbito de cada Estado e do Distrito Federal, de um Fundo
de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de
Valorização dos Profissionais da Educação - FUNDEB, de natureza
contábil;
II - os Fundos referidos no inciso I do caput deste artigo serão
constituídos por 20% (vinte por cento) dos recursos a que se referem
os incisos I, II e III do art. 155; o inciso II do caput do art. 157; os
incisos II, III e IV do caput do art. 158; e as alíneas a e b do inciso I e
o inciso II do caput do art. 159, todos da Constituição Federal, e
distribuídos entre cada Estado e seus Municípios, proporcionalmente
ao número de alunos das diversas etapas e modalidades da educação
básica presencial, matriculados nas respectivas redes, nos respectivos
âmbitos de atuação prioritária estabelecidos nos §§ 2º e 3º do art. 211
da Constituição Federal;
(...)
IV - os recursos recebidos à conta dos Fundos instituídos nos termos
do inciso I do caput deste artigo serão aplicados pelos Estados e
Municípios exclusivamente nos respectivos âmbitos de atuação
prioritária, conforme estabelecido nos §§ 2º e 3º do art. 211 da
Constituição Federal;
(...)
XII - proporção não inferior a 60% (sessenta por cento) de cada Fundo
referido no inciso I do caput deste artigo será destinada ao pagamento
177
FEIJÓ, op. cit., p. 287.
74
dos profissionais do magistério da educação básica em efetivo
exercício.
E, sobre esta nova redação, Patrícia Collat Bento Feijó resume que,
além de criar o FUNDEB, a Emenda trouxe outras modificações à CF. Vejamos:
I - alteração da idade escolar para educação infantil, até os 5 (cinco)
anos de idade (arts. 7º, inciso XXV, e 208, inciso IV);
II – ampliação da obrigatoriedade da União e do Estado em oferecer
aos Municípios cooperação técnica e financeira para educação infantil e para o Ensino
Fundamental (inciso VI do art. 30);
III – alteração da expressão “profissionais do ensino” para
“profissionais da educação escolar” (inciso VI do art. 30);
IV – determinação de posterior fixação de um piso salarial
profissional nacional para os profissionais da educação escolar (inciso VIII do art. 206);
V – necessidade de definição em lei específica das categorias de
trabalhadores considerados profissionais da educação e de prazos para elaboração de
planos de carreira;
VI – determinação de que a educação básica pública atenda
prioritariamente ao ensino regular (§§ 5º e 6º do art. 212).
75
4.4.2. Considerações finais acerca do financiamento
É razoável que devam ser consideradas as condições concretas das
finanças de um ente federado com relação às necessidades de atendimento educacional
de sua população. Mas ele não pode deixar de cumprir com as suas obrigações
constitucionais em relação ao ensino fundamental. No entanto, há a possibilidade de que
os recursos mínimos vinculados ao ensino fundamental sejam insuficientes para a
manutenção desta etapa educacional178.
Assim sendo, pelo § 3º do art. 212 da CF, deverá o ente federado
alocar mais recursos, até a satisfação mínima das necessidades de atendimento ao
ensino fundamental. No caso de um Município, o saldo remanescente deverá ser
aplicado, então, na educação infantil. Mas é possível que a demanda por este tipo de
atendimento educacional esteja crescendo e a população pressionando por vagas em
creches e pré-escolas. E tem direito a esse atendimento179.
A oferta da educação infantil deve ser garantida pelo Poder Público,
nos termos do art. 208, IV, da CF. As eventuais demandas, judiciais ou não, com
relação à oferta desta etapa da educação básica deverão, necessariamente, levar em
conta este conjunto de elementos, buscando distinguir o que de fato seria omissão do
Poder Público do Município180.
178
MARTINS, op.cit., p. 181.
Ibidem. p. 181.
180
Ibidem. p. 181.
179
76
5. O CONTEXTO DA EDUCAÇÃO INFANTIL NO DISTRITO
FEDERAL
5.1 Contexto
Há cerca de 16 anos, quando a Promotoria da Infância e da Juventude
do Distrito Federal propôs a Ação Civil Pública nº. 61.425/93181, a situação da educação
infantil no DF era desoladora. Diversos membros da sociedade brasiliense procuraram o
Ministério Público Distrital, exprimindo indignação com o fato de não conseguirem
matricular seus filhos menores de seis anos em creches e pré-escolas oficiais, ante a
inexistência de vagas. Esses cidadãos entendiam – e continuam entendendo, em face do
crescente número de idênticas requisições correntes na atual Promotoria da Educação182,
vinculada ao MPDFT – que o Distrito Federal vem descumprindo o dever que lhe é
imposto pelo art. 208, IV, da Constituição Federal, e, pelo art. 54, IV, do Estatuto da
Criança e do Adolescente.
Prestando informações ao juízo, a então Secretária de Educação do
Distrito Federal, Eurides Brito, admitiu a inexistência de vagas para crianças de zero a
seis anos em creches e pré-escolas183, como se perceberá da fundamentação da
contestação apresentada pelo DF à pretensão ministerial (item 4.3 e infra). E afirmou
que o Estado estava compelido a garantir vagas e asseverar gratuidade apenas em
relação ao ensino fundamental, acrescentando que este dever seria desdobrado
progressivamente ao ensino médio (Art. 208, I e II, da CF/88). Destarte, concluiu que o
Distrito Federal não está obrigado a garantir vagas ou assegurar a gratuidade no nível de
ensino em foco.
181
Ação Civil Pública Nº. 61.425/93.
Ministério Público do Distrito Federal. Promotoria da Educação – PROEDUC: Registros de
Atendimentos nº. 163336/07-56 e 016424/07-11.
183
Ação Civil Pública Nº. 61.425/93 p. 03.
182
77
Atualmente, a situação pouco se modificou, permanecendo em sua
essência o embate hermenêutico, constitucional e infraconstitucional, quanto à
obrigatoriedade e gratuidade do ensino infantil neste Distrito da Federação.
5.2. A posição do Ministério Público do Distrito Federal e dos Territórios
5.2.1 A Ação Civil Pública nº. 61.425/93
Nos termos da Ação Civil Pública nº. 61.245/93, proposta pelo
Ministério Público do Distrito Federal junto à Vara da Infância e Juventude, do Tribunal
de Justiça do Distrito Federal e Territórios, o autor entende que a interpretação dada ao
dispositivo constitucional pelo Distrito Federal não é a que melhor se harmoniza com o
próprio espírito de uma Constituição que garante ser o Brasil um Estado Democrático, e
fere o ordenamento jurídico brasileiro, que tanto prioriza a educação.
A Constituição Federal de 1988 proclama que o Brasil é um Estado
Democrático, ante o expresso em seu preâmbulo e princípios fundamentais.
O parquet alega que uma sociedade democrática é, por excelência,
aquela que oferece aos seus membros igualdade de oportunidades educativas. Exemplo
disso ocorre na declaração da CF/88 no sentido de ser a educação um direito de todos e
dever do Estado (arts. 205 a 214).
O Ministério Público, encorpando tal entendimento, lembrou a lição
de José Carlos Cal Garcia:
A democracia é, assim, o regime em que a educação é o supremo
dever, a suprema função do Estado. Fala-se em justiça social, mas é
necessário que seja sublinhado e entendido o sentido de justiça social
na democracia. Nascemos diferentes e desiguais. Biologicamente
78
desiguais. Se a democracia é um ideal, um programa para o
desenvolvimento da própria sociedade humana, é que a democracia
resolve o problema dessa dilacerante desigualdade. Oferecendo a
todos, e a cada um, oportunidades iguais para defrontar o mundo, a
sociedade e a luta pela vida, a democracia aplaina as desigualdades
nativas e cria o saudável ambiente de emulação em que os ricos e
pobres se sentem irmanados nas mesmas possibilidades de destino e
de êxito. Essa é a justiça social da democracia. A educação é, destarte,
não somente a base da democracia, mas a própria justiça social184.
No tocante à realidade social do DF, o MPDFT lembra o fato de nossa
população (do DF) não constituir exceção em relação ao restante do país.
Nesse passo, aduz que boa parte da população local é constituída por
famílias cuja renda não ultrapassa o salário mínimo; dessa forma, ante a real dificuldade
dessas famílias em alimentar-se adequadamente, o que dizer da sua capacidade de pagar
o atendimento em creche ou pré-escola? Inocência seria crer em tal possibilidade...
Entende o Ministério Público local que a CF/88 não descuidou da
questão social da educação; e fê-lo ao dedicar-lhe o seu art. 208, aposto no capítulo III,
Seção I, tratante da educação em especial185.
Ademais, visando a instrumentalização desse direito, a Carta da
República determinou, ainda, em seu art. 212 que A União aplicará, anualmente, nunca
menos de dezoito, e os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, vinte e cinco por
cento, no mínimo, da receita resultante de impostos, compreendida a proveniente de
transferências, na manutenção e desenvolvimento do ensino.
184
GARCIA, José Carlos Cal. Linhas Mestras da Constituição de 1988, Saraiva: 1989, pág. 199.
Art. 208. O dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de: I - ensino
fundamental, obrigatório e gratuito, assegurada, inclusive, sua oferta gratuita para todos os que a ele não
tiveram acesso na idade própria; (...)IV - educação infantil, em creche e pré-escola, às crianças até 5
(cinco) anos de idade185.
185
79
Destarte, conclui o MPDFT que ao dever de garantir a educação
infantil no DF corresponde uma dotação orçamentária da Receita Pública, a seu ver,
suficiente para o adimplemento da obrigação.
Atentando-se à máxima (resultante da combinação do “caput” do art.
54 do ECA com o 208 da CF): “A educação é direito de todos e dever do Estado;
garantia assegurada a qualquer pessoa, e exigível do Estado a sua efetivação”, o órgão
ministerial compreende que argumentar que “o Estado apenas deverá estar presente
(como “observador”, e não “garantidor”) no atendimento às crianças de zero a seis
anos”, como pretende o DF, é sinônimo de afirmar que o direito instaurado no caput do
art. 208 da Constituição e no art. 54 do Estatuto da Criança e do Adolescente é
meramente retórico. Ou seja, o direito e o respectivo dever existiriam, mas não
poderiam ser exercidos ou exigidos...
Se assim o fosse, toda a estrutura da CF/88 e do Estado Democrático
cairia por terra, na medida em que não seria assegurada a igualdade de oportunidades de
acesso da criança carente à educação, desde o seu nascimento.
A esse respeito, José Afonso da Silva diz que:
É aí que se situa a injustiça e a desigualdade de tratamento, pois
compete ao Poder Público, desde a pré-escola, ou até antes,
proporcionar aos alunos carentes condições de igualização, para que
possam concorrer com os mais abastados em igualdade de situação
(...). A verdade é que, se a Constituição estabeleceu que a educação é
direito de todos e dever do Estado, significa que a elevou à condição
de serviço público a ser prestado pelo Poder Público,
80
indiscriminadamente e, portanto, gratuitamente aos usuários, ficando
seu custeio por conta das arrecadações gerais do Estado186.
O patrono da Ação em tela cita também Paulo Lúcio Nogueira, que
exorta a ilusão, pois, para ele, dificilmente será alterado esse quadro que aí está, já que
sempre dominou em nosso sistema o poder econômico. Segundo o autor, é esse poder
econômico que manobra todos os interesses, inclusive os educacionais, que continuarão
do mesmo jeito e com tendências a piorar, salvo para os comerciantes do ensino, o que é
lamentável, pois o que se “ensina” na escola desenvolve-se ou aprimora-se na escola da
vida187.
E o parquet continua disparando, dessa vez, municiado com o art. 7º
da Constituição Federal, que dispõe:
Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros
que visem à melhoria de sua condição social:
(...)
XXV - assistência gratuita aos filhos e dependentes desde o
nascimento até 5 (cinco) anos de idade em creches e pré-escolas.
O artigo supracitado refere-se à assistência gratuita dos filhos de
trabalhadores; o MP toca nesse dispositivo com vista a lembrar-nos que, ao interpretar
determinada norma constitucional, é necessário observar o conjunto normativo
fundamental sistematicamente, não bastando a interpretação literal da norma para que
ela atinja o seu melhor sentido.
186
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. Ed. Revista dos Tribunais: 1990,
pág. 706.
187
NOGUEIRA, Paulo Lúcio. Estatuto da Criança e Adolescente Comentado, Saraiva: 1991, pág. 71.
81
Assim, se ambos direitos sociais (“educação infantil universal” e
“educação infantil para filhos de trabalhadores”) estão previstos seguidamente no
mesmo Capítulo II, tratando da mesma matéria (educação infantil), incongruente seria
afirmar que o atendimento em creches e pré-escolas seria gratuita para aqueles que
trabalham e, por outro lado, mediante pagamento para aqueles que não trabalham.
Afinal, o que se tutela são as crianças de até 5 (cinco) anos,
independentemente de sua classe social.
Nesse sentido, discorre Pontes de Miranda: “A interpretação restritiva
é excepcional. Se há mais de uma interpretação da mesma regra jurídica inserta na
Constituição, tem de preferir-se aquela que se insufle a mais ampla extensão188...”.
O órgão ministerial, mais uma vez buscando demonstrar que o Estado
está obrigado a prestar o atendimento gratuito em creches e pré-escolas, indica o exame
do Capítulo VII, do Título VI, Livro II, do Estatuto da Criança e do Adolescente, que
trata da proteção judicial dos interesses individuais, difusos ou coletivos189.
Assim, pretende o MP demonstrar que se a lei admite poder o Estado
figurar no pólo passivo de uma Ação Civil Pública (ou qualquer outra ação de
responsabilidade) quando inexiste atendimento ou quando este é deficiente, é porque
reconhece o seu dever de prestar tal serviço. E, no presente caso, o Distrito Federal, de
acordo com o entendimento do MP, não oferece atendimento suficiente em creches
(não-oferecimento) e com relação às pré-escolas há deficiência (oferecimento irregular).
188
Apud Nagib Slaibi Filho, Anotações à Constituição de 1988, Forense: 1989, pág. 87.
Art. 208. Regem-se pelas disposições desta Lei as ações de responsabilidade por ofensa aos direitos
assegurados à criança e ao adolescente, referentes ao não oferecimento ou oferta irregular: I - do ensino
obrigatório; (...) III - de atendimento em creche e pré-escola às crianças de zero a seis anos de idade.
189
82
Nesse diapasão, o MPDFT entende que, ante o dever do Estado de
prestar atendimento gratuito às crianças de zero a seis anos de idade em creches e préescolas, o Distrito Federal, por descumprir o referido preceito constitucional e
infraconstitucional, deve ser compelido, por via judicial, a assegurar a gratuidade do
serviço a esta clientela infantil.
É trazida à baila, também, a discussão referente à auto-aplicabilidade
do tão discutido art. 208 da Constituição Federal. Cita-se, nessa ilustrativa Ação Civil
Pública, que Manoel Gonçalves Ferreira Filho190, adotando posição antagônica a José
Afonso da Silva, discorda da classificação dessas regras constitucionais em
programáticas, de eficácia limitada, porquanto, para ele, ambas são normas completas,
que incidem imediatamente.
Dessa forma, o Ministério Público adota a razão do douto educador no
sentido de que os direitos assegurados no art. 208 da CF/88 não precisam de lei para
serem exercidos. Mas precisam, em verdade, a seu ver, de vontade política dos
governantes.
Nesse caminho, o MP se posiciona em defesa do entendimento de que
nenhuma lei poderá restringir o alcance do direito previsto no inciso IV do artigo 208 da
CF e o correspondente dever imposto ao Estado para com a educação.
Assim também entende Nagib Slaibi Filho:
Em uma tentativa de resguardar a efetividade, a Constituição
proclama, em seu art. 5º, § 1º, que as normas definidoras dos direitos e
190
FILHO, Manoel Gonçalves Ferreira, “Os Princípios do Direito Constitucional e o art. 192 da Carta
Magna”, RDP.88/163.
83
garantias fundamentais têm aplicação imediata. Vale notar que os
direitos e garantias fundamentais são aqueles previstos no Título II da
Constituição, englobando os direitos individuais e coletivos (art. 5º),
os direitos sociais (arts. 6º a 11º), os direitos da nacionalidade (arts. 12
e 13), os direitos políticos e, (...) outros derivados dos direitos
fundamentais, como, por exemplo, o direito à educação (art. 205)191.
E, acompanhando essa percepção normativa, José Cretela Júnior
assevera:
O poder-dever do Estado, relativamente à educação, será efetivo,
garantindo o Poder Público, mediante expressa regra jurídica
constitucional, o atendimento desde a mais tenra idade, em creche e
pré-escola, para que os pais e, preferencialmente, a mãe, possam
trabalhar fora, sem preocupações, sabendo de antemão que a criança
se encontra sob a guarda e custódia de pessoas especializadas192.
Ainda, para o parquet, mesmo que se considere a norma
constitucional como de eficácia limitada, de princípio programático, para que a
prioridade absoluta reservada à educação prevista na Constituição seja cumprida,
bastaria a iniciativa do Poder Executivo. Além disso, observa que o direito ora
perseguido não tem por base apenas a CF/88, mas também a lei específica: o Estatuto da
Criança e do Adolescente.
Assim, perspicazmente, questiona: será que se trata de uma “lei de
eficácia limitada”? Haverá necessidade de uma lei para regulamentar outra? E rebate:
seria um verdadeiro disparate a lei traçar mecanismos para acionar o Estado omisso
(arts. 205 e ss.), obrigando-o a cumprir um dever que sequer existe.
191
Ação Civil Pública nº 61.425/93. p. 12.
JÚNIOR, José Cretela, Comentários à Constituição Brasileira de 1988, Vol. VIII – Forense, pág.
4.411.
192
84
Sobre o assunto, por vezes, jurisconsultos vêm afirmar que o
dispositivo é de difícil concretização, utópico, porquanto divorciado da realidade
brasileira e que, como muitos outros, acabará transmutando-se em letra morta.
Porém, o MP investido de sua função irremediavelmente defensora
dos interesses coletivos, não pode submeter-se a este tacanho raciocínio.
Concluindo o entendimento esposado pelo MPDFT, em dezembro de
1993, o então Promotor de Justiça José Valdenor Queiroz Júnior, bem colocou que:
Manter-se inerte, repousado no tranqüilo argumento de que o
dispositivo constitucional jamais fará parte de nossa realidade é
compactuar com aqueles que lutam para que se perpetue a política
educacional da improvisação, a incompetência e o descaso político
sustentados pela concepção estereotipada de que o povo deve ser
mantido na ignorância193.
A referida Ação Civil Pública, acima tomada de exemplo para ilustrar
a posição do MPDFT, foi outrora julgada improcedente. O Tribunal competente
entendeu, em síntese, que a norma contida no art. 208, inciso IV, da CF/88, é
programática e, por esta razão, os direitos dela decorrentes não poderiam ser
imediatamente exigidos.
5.2.2. O recurso extraordinário nº. 229760
Em face do resultado da Ação Civil Pública em análise, irresignado, o
MPDFT interpôs o Recurso Extraordinário (RE) nº. 229760, que nos servirá de base
para melhor compreender o posicionamento do parquet sobre o tema do direito à
educação infantil gratuita no Distrito Federal.
193
Ação Civil Pública nº 61.425/93, fls. 66.
85
Inicialmente, bem lembra o Órgão Ministerial, neste recurso, que o
tema é de grande relevância e possui forte repercussão na sociedade, pois que atinge
milhares de crianças, com idade entre 0 (zero) e 6 (seis) anos (atualmente, 0 a 5 anos,
conforme a EC nº. 53/2006), que, por vontade da sociedade brasileira, expressa em
nossa Lei Fundamental, tem direito a creches e pré-escolas gratuitas.
Posiciona-se o MP no rumo de que a eficácia jurídica das normas
programáticas é inquestionável, dependendo apenas, para sua efetivação, de atos
administrativos de concretização. Logo, o Distrito Federal, para que suporte o
atendimento em creches e pré-escolas para todas as crianças de zero a seis anos,
prescinde da elaboração de leis ou decretos específicos, bastando, portanto, a decisão
política e o planejamento desta atividade, incluindo medidas administrativas e prévia
dotação orçamentária.
E, mais uma vez, o parquet utiliza-se da interpretação sistemática para
concluir pela exigibilidade do direito à educação infantil no DF. Deste modo, fundindose os artigos: a) 205, que declara que a educação, direito de todos e dever do Estado e da
família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao
pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua
qualificação para o trabalho; b) 208, que estabelece como o Estado efetivará o direito à
educação; c) 212, que dispõe sobre a dotação orçamentária reservada à educação pela
União, Municípios, Estados e Distrito Federal, e, por fim, d) 1º e 3º, que fazem
considerações aos fundamentos e objetivos da República Federativa do Brasil; concluise que a declaração de que “a educação é um direito de todos e dever da família” é, de
fato, um enunciado político, ao passo que a imposição do Estado para atender
86
gratuitamente as crianças de zero a seis anos em creche e pré-escolas é norma de
eficácia plena e aplicação imediata.
Por fim, aponta o Ministério Público do Distrito Federal que, se um
direito subjetivo está previsto na Constituição e legislação ordinária, inexistindo
necessidade de maior regulamentação, mas do Poder Judiciário aparece como incapaz
de garantir o seu exercício, há que se reconhecer um campo da vida, um espaço isolado,
onde o Direito não pode ir. Existiriam, portanto, situações intangíveis e os cidadãos
ficariam eternamente à espera da boa vontade e iniciativa dos governantes para que a
Constituição tivesse eficácia jurídica.
Por tamanhas razões, comprovada a ofensa ao art. 208, IV, da Magna
Carta, o MPDFT entende que deve ser reconhecida a obrigação do Distrito Federal em
assegurar o atendimento pleno e gratuito em creches e pré-escolas.
5.3. A posição do Governo do Distrito Federal
Já de antemão, o Governo do Distrito Federal (GDF) considera
impossível a realização do pedido do Ministério Público do Distrito Federal, consistente
no reconhecimento, para o DF, da obrigação de oferecer gratuitamente creches e préescola a todas as crianças de zero a seis anos desta unidade da Federação. Para tanto, o
GDF defende que, com base na realidade econômica que enfrenta assola, assim como
ante os parcos recursos (reserva do possível) de que o erário do Distrito Federal dispõe,
é inviável a pretensão da população distrital e, por conseguinte, impossível de ser
realizado juridicamente o pedido ministerial.
87
Além disso, interpretando os dispositivos constitucionais relativos à
educação, o GDF entende que, apesar de a CF/88 utilizar-se de um vocábulo de maior
significância como é a “educação”, o texto constitucional se preocupou exclusivamente,
ou quase, com a educação escolarizada, ou seja, a fundamental.
Para tanto, o GDF cita, nos autos da Ação Civil Pública nº. 61.425/93,
o educador paraibano José Perez, que diz ser possível explicar a tese de restrição à
educação escolarizada por quatro razões: 1) dificuldade de abordagem satisfatória de
educação “latu sensu”; 2) preocupação imediata com a escola (em detrimento da creche
e pré-escola), instituição mais tangível e mais reclamada; 3) intangibilidade de muitos
aspectos em que se desdobra a educação (ex: alimentação e transporte); e 4) maior
importância social, política e econômica dada à instituição escolar e aos serviços por ela
prestados.
O Governo Distrital concorda que a educação só poderá ser
considerada como um direito de todos se houver escolas para todos. Porém, questiona:
“Tratando da educação da criança de zero a seis anos de idade até a universidade,
passando pelo ensino fundamental e médio, pela educação especial e de adultos, quis o
constituinte de 1988 estabelecer o direito integral à educação?” E responde:
“Efetivamente não194”.
Após, o GDF entra no mérito da natureza constitucional da norma
definida no art. 208, inciso IV da Lei Fundamental, que entende ser uma regra de
conteúdo programático, logo, inexigível imediatamente.
194
Ação Civil Pública nº 61.425/93, p. 33.
88
Fundamentando tal posição, encontramos nos autos da contestação à
Ação Civil Pública nº. 61.425/93, o dizer de Wolgran Junqueira Ferreira:
IV – ATENDIMENTO EM CRECHE E PRÉ-ESCOLA ÀS
CRIANÇAS DE ZERO A SEIS ANOS DE IDADE;
De antemão sabe-se que trata este inciso de uma regra programática.
Há necessidade de muitos recursos financeiros para o atendimento ao
previsto neste inciso, salvo se o governo entender que as creches
mantidas por associações filantrópicas é que poderão dar o
atendimento às crianças de zero a seis anos e passar a ajudar de fato
com verbas suficientes tais entidades. Deixar por conta do governo tal
tarefa parece ser o mesmo que deixar sem realizá-la.
Nesse passo, e nos mesmos autos processuais acima referidos, José
Joaquim Gomes Canotilho é citado, definindo que estas normas seriam “normas-fins e
normas-tarefas (normas programáticas) que justificam a necessidade de intervenção dos
órgãos legiferantes”, acrescentando que:
A positividade jurídico constitucional das normas programáticas
significa fundamentalmente: (I) Vinculação do legislador, de forma
permanente à sua realização (imposição constitucional); (II) Como
directivas materiais permanentes, elas vinculam positivamente todos
os órgãos concretizadores, devendo estes tomá-las em consideração
em qualquer dos momentos da atividade concretizadora (legislação,
execução, jurisdição); (III) Como limites negativos, justificam a
eventual censura, sob a forma de inconstitucionalidade em relação aos
atos que as contrariam.
Acompanhando Canotilho, ainda em sede de contestação à Ação Civil
Pública nº.61.425/93, o Poder Executivo do Distrito Federal cita Celso Ribeiro Bastos
que define serem normas programáticas aquelas que “não reúnem condições de uma
integral aplicação de imediato, voltam-se às transformações não só da ordem jurídica,
mas também de estruturas sociais e da própria realidade constitucional195”.
195
Ação Civil Pública nº. 61.425/93. p. 34.
89
Ainda sobre normas programáticas, explica Paulo Bonavides que, a
rigor, a norma programática vincula comportamentos públicos futuros. Mediante
disposições desse teor, o constituinte estabelece premissas destinadas, formalmente, a
vincular o desdobramento da ação legislativa dos órgãos estatais e, materialmente, a
regulamentar uma certa ordem de relações196.
No mesmo sentido, José Afonso da Silva pensa que essas normas
integram
elementos sócio-ideológicos; normas que revelam o caráter de
compromisso das Constituições modernas entre o Estado
individualista e o Estado social, intervencionista e fazendo alusão a
Canotilho, o douto constitucionalista escreve que “os princípios
constitucionais são basicamente de duas categorias: os princípios
político-constitucionais e os princípios jurídico-constitucionais”, e
define que: “princípios jurídico-constitucionais são princípios
constitucionais gerais informadores da ordem jurídica nacional”
exemplificando, dentre outros, “o da proteção da família, do ensino e
da cultura”.197
Ainda tratando de hermenêutica constitucional, o GDF compreende
que a gratuidade do ensino público em estabelecimento oficial é um princípio
constitucional e, como tal, não é auto-aplicável.
Outrossim, a garantia constitucional ao direito à educação infantil
deve ser entendida dentro dos parâmetros da Carta Magna. Dessa forma, as regras
constitucionais devem ser interpretadas com o seu respectivo valor, eis que, do ponto de
vista da eficácia, as mesmas não têm peso idêntico. As normas programáticas, como
entende o GDF, não valem por si mesmas, senão como indutoras de todo um sistema, a
ser implementado pela legislação e pelas ações políticas conseqüentes.
196
197
Ação Civil Pública nº. 61.425/93. p. 34.
Idem . p. 35.
90
Nesse patamar, o princípio da gratuidade descrito no art. 208, IV,
estaria no mesmo pé do princípio expresso no inciso III do mesmo artigo, que assegura
o “pluralismo de idéias e de concepções pedagógicas, e coexistência de instituições
públicas e privadas de ensino”, ou seja, não como um direito subjetivo, mas sim, uma
orientação política.
Por outro lado, o tratamento da gratuidade dado ao ensino médio e de
creches e pré-escolas seria diferente, porquanto, nos termos do art. 208198, I, a
obrigatoriedade e a gratuidade do ensino fundamental abrangeriam a todos, inclusive
aqueles que não tiveram acesso na idade própria. De acordo com o item II do mesmo
artigo, esta obrigatoriedade e essa gratuidade serão progressivamente implantadas, do
que se infere a igualdade de usufruir desse direito através de sua progressiva extensão.
Já no item IV, o atendimento às atividades ali elencadas dependeria da capacidade
financeira de cada Estado. Destarte, o texto não seria tão taxativo, pois não se falaria
mais na obrigatoriedade e gratuidade como preceito inarredável, mas de uma
progressiva extensão dessa obrigatoriedade e dessa gratuidade ao ensino médio e de
possível atendimento em creches. A gratuidade/obrigatoriedade pautar-se-ia, então, na
medida da possibilidade governamental e na existência de recursos financeiros; tese
comumente chamada de “reserva do possível”.
As medidas constitucionais relativas ao ensino médio, creches e préescola seriam, assim, situações completamente diferentes das que refletem no ensino
fundamental (este sim, obrigatório e gratuito).
198
Art. 208. O dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de: I - ensino
fundamental, obrigatório e gratuito, assegurada, inclusive, sua oferta gratuita para todos os que a ele não
tiveram acesso na idade própria; II - progressiva universalização do ensino médio gratuito; (...)
IV - educação infantil, em creche e pré-escola, às crianças até 5 (cinco) anos de idade.
91
O GDF questiona como é possível que, sem recursos financeiros, ele
seja capaz de atender o dever de oferecer creches e pré-escolas gratuitamente? Que
fazer com as necessidades do ensino fundamental? E a saúde? Abdica-se de tudo para
dar creche e pré-escola à população necessitada do DF?
Finalmente, argumenta que tem feito tudo para diminuir o sofrimento
das classes mais pobres, seja dando lotes, seja prestando assistência médica, escolar,
serviços públicos a preço reduzido, mas não pode realizar “o impossível”, e não pode
ser condenado por “não-fazer” a obrigação educacional, mas desobrigado por “nãopoder”, ante a inexistência material de recursos.
Diz, também, que é indubitável que o provimento do pedido do
Ministério Público do DF acarretaria o desmantelamento de todo o sistema educacional
distrital. Pois, embora obrigue a criar vagas, a decisão judicial não terá o condão de
gerar os recursos materiais necessários para a admissão de tais crianças no sistema de
creches e pré-escolas. Vale lembrar, contrariando essa tese jurídica, que é possível que
os recursos necessários para a oferta plena de educação infantil sejam garantidos
judicialmente, separando-se, do total do erário, a quantia necessária para tanto.
Assim, o GDF conclui pela improcedência do pedido do MPDFT, de
garantir a oferta gratuita e obrigatória de creches e pré-escolas para a população infantil
desta unidade-sede da federação, por inexistência de direito a amparar tal pretensão.
O Tribunal, para tristeza ou revolta dos demandantes, abraçou a tese
esposada pelo Poder Executivo do DF. Sabemos que a justiça se faz de acordo com cada
92
conjuntura política e social em que esta se insere. Resta saber se, hoje, aquele
entendimento ainda prevalece.
93
6. JURISPRUDÊNCIA RELACIONADA
6.1. Supremo Tribunal Federal
O direito à educação infantil já foi alvo de debates no Supremo
Tribunal Federal, foi esse o caso, mais precisamente, no julgamento da Ação de Agravo
Regimental no Recurso Ordinário nº. 410.715/SP, de autoria do Município de Santo
André/SP, em face da pretensão do Ministério Público do Estado de São Paulo de
garantir atendimento em creche e pré-escola para crianças de até seis anos de idade199
residentes naquele Município.
No julgado em foco, o Município alegou a inexistência de vagas nas
creches locais, além da falta de recursos para cumprir devidamente o mandato
constitucional a ele imposto (arts. 208, IV c/c 211, § 2º), qual seja o de oferecer
educação infantil naquele Município.
O Supremo Tribunal Federal, entretanto, decidiu favoravelmente à
pretensão ministerial paulista, como podemos constatar na ementa do referido julgado:
RECURSO EXTRAORDINÁRIO - CRIANÇA DE ATÉ SEIS ANOS
DE IDADE - ATENDIMENTO EM CRECHE E EM PRÉ-ESCOLA EDUCAÇÃO INFANTIL - DIREITO ASSEGURADO PELO
PRÓPRIO TEXTO CONSTITUCIONAL (CF, ART. 208, IV) COMPREENSÃO GLOBAL DO DIREITO CONSTITUCIONAL À
EDUCAÇÃO - DEVER JURÍDICO CUJA EXECUÇÃO SE IMPÕE
AO PODER PÚBLICO, NOTADAMENTE AO MUNICÍPIO (CF,
ART. 211, § 2º) - RECURSO IMPROVIDO. - A educação infantil
representa prerrogativa constitucional indisponível, que, deferida às
crianças, a estas assegura, para efeito de seu desenvolvimento integral,
e como primeira etapa do processo de educação básica, o atendimento
em creche e o acesso à pré-escola (CF, art. 208, IV). - Essa
prerrogativa jurídica, em conseqüência, impõe, ao Estado, por efeito
da alta significação social de que se reveste a educação infantil, a
obrigação constitucional de criar condições objetivas que possibilitem,
199
Observe-se, que à época do julgamento ainda não vigorava a EC nº. 53/2006, que diminuiu a idade
limite para 5 (cinco) anos.
94
de maneira concreta, em favor das "crianças de zero a seis anos de
idade" (CF, art. 208, IV), o efetivo acesso e atendimento em creches e
unidades de pré-escola, sob pena de configurar-se inaceitável omissão
governamental, apta a frustrar, injustamente, por inércia, o integral
adimplemento, pelo Poder Público, de prestação estatal que lhe impôs
o próprio texto da Constituição Federal. - A educação infantil, por
qualificar-se como direito fundamental de toda criança, não se expõe,
em seu processo de concretização, a avaliações meramente
discricionárias da Administração Pública, nem se subordina a razões
de puro pragmatismo governamental. - Os Municípios - que atuarão,
prioritariamente, no ensino fundamental e na educação infantil (CF,
art. 211, § 2º) - não poderão demitir-se do mandato constitucional,
juridicamente vinculante, que lhes foi outorgado pelo art. 208, IV, da
Lei Fundamental da República, e que representa fator de limitação da
discricionariedade político-administrativa dos entes municipais, cujas
opções, tratando-se do atendimento das crianças em creche (CF, art.
208, IV), não podem ser exercidas de modo a comprometer, com
apoio em juízo de simples conveniência ou de mera oportunidade, a
eficácia desse direito básico de índole social. - Embora resida,
primariamente, nos Poderes Legislativo e Executivo, a prerrogativa de
formular e executar políticas públicas, revela-se possível, no entanto,
ao Poder Judiciário, determinar, ainda que em bases excepcionais,
especialmente nas hipóteses de políticas públicas definidas pela
própria Constituição, sejam estas implementadas pelos órgãos estatais
inadimplentes, cuja omissão - por importar em descumprimento dos
encargos político-jurídicos que sobre eles incidem em caráter
mandatório - mostra-se apta a comprometer a eficácia e a integridade
de direitos sociais e culturais impregnados de estatura constitucional.
200
A questão pertinente à "reserva do possível". Doutrina.
A citação, ainda que extensa, vale pelo vigor da construção
argumentativa. O Relator do caso foi o Ministro Celso de Mello, que em seu voto201,
fundamentou a decisão da seguinte maneira:
Não assiste razão à parte ora recorrente, eis que a decisão agravada
ajusta-se, com integral fidelidade, aos postulados constitucionais que
informam, de um lado, o direito público subjetivo à educação e que
impõem, de outro, ao Poder Público, notadamente ao Município (CF,
art. 211, § 2º), o dever jurídico-social de viabilizar, em favor das
crianças de zero a seis anos de idade” (CF, art. 208, IV), o efetivo
acesso e atendimento em creches e unidades de pré-escola. É preciso
assinalar, neste ponto, por relevante, que o direito à educação – que
representa prerrogativa constitucional deferida a todos (CF, art. 205),
notadamente às crianças (CF, arts. 208, IV e 227, “caput”) – qualifica200
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. 2ª Turma. RE-AgR 410715 / SP. Relator(a): Min. CELSO DE
MELLO; Brasília, DF, 22 nov. 2005; DJ 03-02-2006 PP-00076.
201
Disponível em < http://www.stf.gov.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp> acesso em 28 de
abril de 2008.
95
se como um dos direitos sociais mais expressivos, subsumindo-se á
noção dos direitos de segunda geração (RTJ 164/158-161), cujo
adimplemento impõe, ao Poder Público a satisfação de um dever de
prestação positiva, consistente num “facere”, pois o Estado dele só se
desimcumbirá criando condições objetivas que propiciem, aos titulares
desse mesmo direito, o acesso pleno ao sistema educacional, inclusive
ao atendimento, em creche e pré-escola, “às crianças de zero a seis
anos de idade” (CF, art. 208, IV).
O Douto Ministro cita também Wilson Donizeti Liberati202, que, como
vimos nos capítulos anteriores, entende que:
O alto significado social e o irrecusável valor constitucional de que se
reveste o direito à educação infantil – ainda mais se considerado em
face do dever que incumbe ao Poder Público, de torná-lo real,
mediante concreta efetivação da garantia de “atendimento em creche e
pré-escola às crianças de zero a seis anos de idade” (CF, art. 208, IV)
– não podem ser menosprezados pelo Estado, “obrigado a
proporcionar a concretização da educação infantil em sua área de
competência”, sob pena de grave e injusta frustração de um
inafastável compromisso constitucional, que tem, no aparelho estatal,
o seu precípuo destinatário.
O tema da garantia do direito à educação, no âmbito do Supremo
Tribunal Federal, quedou por desaguar na questão da possibilidade de intervenção do
Poder judiciário na implementação de Políticas Públicas, que foi, por sua vez, discutido
no julgamento da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental nº. 45/DF, onde o
Ministro Celso de Mello foi, mais uma vez, relator.
Vejamos o que diz a ementa:
EMENTA: ARGÜIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO
FUNDAMENTAL.
A
QUESTÃO
DA
LEGITIMIDADE
CONSTITUCIONAL DO CONTROLE E DA INTERVENÇÃO DO
PODER JUDICIÁRIO EM TEMA DE IMPLEMENTAÇÃO DE
POLÍTICAS PÚBLICAS, QUANDO CONFIGURADA HIPÓTESE
DE ABUSIVIDADE GOVERNAMENTAL. DIMENSÃO POLÍTICA
DA JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL ATRIBUÍDA AO
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. INOPONIBILIDADE DO
ARBÍTRIO ESTATAL À EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS
202
LIBERATI, op. cit., p. 236/238.
96
SOCIAIS, ECONÔMICOS E CULTURAIS. CARÁTER RELATIVO
DA LIBERDADE DE CONFORMAÇÃO DO LEGISLADOR.
CONSIDERAÇÕES EM TORNO DA CLÁUSULA DA "RESERVA
DO POSSÍVEL". NECESSIDADE DE PRESERVAÇÃO, EM
FAVOR DOS INDIVÍDUOS, DA INTEGRIDADE E DA
INTANGIBILIDADE DO NÚCLEO CONSUBSTANCIADOR DO
"MÍNIMO EXISTENCIAL". VIABILIDADE INSTRUMENTAL DA
ARGÜIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO NO PROCESSO DE
CONCRETIZAÇÃO DAS LIBERDADES POSITIVAS (DIREITOS
203
CONSTITUCIONAIS DE SEGUNDA GERAÇÃO) .
Nesta última decisão, entendeu o eminente relator, em seu voto, que:
Considerada a dimensão política da jurisdição constitucional
outorgada a esta Corte, não pode demitir-se do gravíssimo encargo de
tornar efetivos os direitos econômicos, sociais e culturais, que se
identificam – enquanto direitos de segunda geração (como o direito à
204
educação, p.ex.) – com as liberdades positivas, reais ou concretas .
E, nesse mesmo sentido, da possibilidade de efetivar judicialmente os
direitos sociais, já se decidiu na Suprema Corte que:
DESRESPEITO À CONSTITUIÇÃO - MODALIDADES DE
COMPORTAMENTOS INCONSTITUCIONAIS DO PODER
PÚBLICO. - O desrespeito à Constituição - O desrespeito à
Constituição tanto pode ocorrer mediante ação estatal quanto mediante
inércia governamental. A situação de inconstitucionalidade pode
derivar de um comportamento ativo do Poder Público, que age ou
edita normas em desacordo com o que dispõe a Constituição,
ofendendo-lhe, assim, os preceitos e os princípios que nela se acham
consignados. Essa conduta estatal, que importa em um facere (atuação
positiva), gera a inconstitucionalidade por ação. - Se o Estado deixar
de adotar as medidas necessárias à realização concreta dos preceitos
da Constituição, em ordem a torná-los efetivos, operantes e
exeqüíveis, abstendo-se, em conseqüência, de cumprir o dever de
prestação que a Constituição lhe impôs, incidirá em violação negativa
do texto constitucional. Desse non facere ou non praestare, resultará a
inconstitucionalidade por omissão, que pode ser total, quando é
nenhuma a providência adotada, ou parcial, quando é insuficiente a
medida efetivada pelo Poder Público. - A omissão do Estado - que
deixa de cumprir, em maior ou em menor extensão, a imposição
ditada pelo texto constitucional - qualifica-se como comportamento
revestido da maior gravidade político-jurídica, eis que, mediante
inércia, o Poder Público também desrespeita a Constituição, também
203
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Decisão Monocrática. ADPF 45 MC / DF. Relator(a): Min.
CELSO DE MELLO. Brasília, DF, 29 abr. 2004. Publicação: DJ 04/05/2004.
204
RTJ 164/158-161, Rel. Min. CELSO DE MELLO.
97
ofende direitos que nela se fundam e também impede, por ausência de
medidas concretizadoras, a própria aplicabilidade dos postulados e
205
princípios da Lei Fundamental .
Ademais, retirando o monopólio relatorial do Ministro Celso de Mello
sobre o ementário ora colacionado, porém, coadunando com a mesma linha de
pensamento, o Ministro Marco Aurélio, relator do julgamento do RE nº. 431.773/SP,
decidiu que:
CRECHE E PRÉ-ESCOLA - OBRIGAÇÃO DO ESTADO
IMPOSIÇÃO - INCONSTITUCIONALIDADE NÃO VERIFICADA
RECURSO
EXTRAORDINÁRIO
NEGATIVA
DE
SEGUIMENTO.1. Conforme preceitua o artigo 208, inciso IV, da
Carta Federal, consubstancia dever do Estado a educação, garantindo
o atendimento em creche e pré-escola às crianças de zero a seis anos
de idade. O Estado - União, Estados propriamente ditos, ou seja,
unidades federadas, e Municípios - deve aparelhar-se para a
observância irrestrita dos ditames constitucionais, não cabendo
tergiversar mediante escusas relacionadas com a deficiência de caixa.
Eis a enorme carga tributária suportada no Brasil a contrariar essa
eterna lengalenga. O recurso não merece prosperar, lamentando-se a
insistência do Município em ver preservada prática, a todos os títulos
nefasta, de menosprezo àqueles que não têm como prover as despesas
necessárias a uma vida em sociedade que se mostre consentânea com
a natureza humana.2. Pelas razões acima, nego seguimento a este
extraordinário, ressaltando que o acórdão proferido pela Corte de
origem limitou-se a ferir o tema à luz do artigo 208, inciso IV, da
Constituição Federal, reportando-se, mais, a compromissos reiterados
na Lei Orgânica do Município - artigo 247, inciso I, e no Estatuto da
Criança e do Adolescente - artigo 54, inciso IV.3. Publique-se206.
Destarte, na esfera da nossa Corte Constitucional, o entendimento no
tocante ao direito à educação infantil e suas implicações é pacífica, como vimos nas
ementas de julgamento encabeçadas pelos Ministros Celso de Mello e Marco Aurélio.
205
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Decisão Monocrática. ADPF 45 MC / DF. Relator(a): Min.
CELSO DE MELLO. Brasília, DF, 29 abr. 2004. Publicação: DJ 04/05/2004.
206
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Decisão Monocrática. RE nº. 431.773/SP. Relator: Ministro
MARCO AURÉLIO. Brasília, DF, 15 set. 2004. Publicação: DJ 22/10/2004 P – 00077.
98
Por fim, cumpre observar que é possível que com a implementação
das súmulas vinculantes se consiga reverter o quadro de inadimplência do Distrito
Federal.
6.2. Superior Tribunal de Justiça
No âmbito do Superior Tribunal de Justiça, por outro lado, a matéria
relacionada ao direito à educação, no que toca à intervenção do Judiciário no orçamento
público, é contraditória.
Em uma primeira análise, este Tribunal Superior decidiu pela
possibilidade de exame de oportunidade na escolha das prioridades orçamentárias:
ADMINISTRATIVO E PROCESSO CIVIL – AÇÃO CIVIL
PÚBLICA – ATO ADMINISTRATIVO DISCRICIONÁRIO: NOVA
VISÃO.1. Na atualidade, o império da lei e o seu controle, a cargo do
Judiciário, autoriza que se examinem, inclusive, as razões de
conveniência e oportunidade do administrador.2. Legitimidade do
Ministério Público para exigir do Município a execução de política
específica, a qual se tornou obrigatória por meio de resolução do
Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente.3.
Tutela específica para que seja incluída verba no próximo orçamento,
a fim de atender a propostas políticas certas e determinadas.4. Recurso
especial provido207.
Em uma segunda decisão, porém, afastou tal hipótese:
RECURSO ESPECIAL - AÇÃO CIVIL PÚBLICA COM
PRECEITOS COMINATÓRIOS DE OBRIGAÇÃO DE FAZER DISCRICIONARIEDADE DA MUNICIPALIDADE - NÃO
CABIMENTO DE INTERFERÊNCIA DO PODER JUDICIÁRIO
NAS PRIORIDADES ORÇAMENTÁRIAS DO MUNICÍPIO CONCLUSÃO DA CORTE DE ORIGEM DE AUSÊNCIA DE
CONDIÇÕES ORÇAMENTÁRIAS DE REALIZAÇÃO DA OBRA INCIDÊNCIA DA SÚMULA N. 07/STJ - DIVERGÊNCIA
JURISPRUDENCIAL
AFASTADA
AUSÊNCIA
DE
207
SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. 2º Turma. REsp 493811/SP, Relatora: Ministra ELIANA
CALMON, Brasília, 11 nov. 2003, Publicação: 15.03.2004 p. 236.
99
PREQUESTIONAMENTO DE DISPOSITIVOS DO ECA
APONTADOS COMO VIOLADOS. Requer o Ministério Público do
Estado do Paraná, autor da ação civil pública, seja determinado ao
Município de Cambará/PR que destine um imóvel para a instalação de
um abrigo para menores carentes, com recursos materiais e humanos
essenciais, e elabore programas de proteção às crianças e aos
adolescentes em regime de abrigo. Na lição de Hely Lopes Meirelles,
"só o administrador, em contato com a realidade, está em condições de
bem apreciar os motivos ocorrentes de oportunidade e conveniência
na prática de certos atos, que seria impossível ao legislador, dispondo
na regra jurídica - lei - de maneira geral e abstrata, prover com justiça
e acerto. Só os órgãos executivos é que estão, em muitos casos, em
condições de sentir e decidir administrativamente o que convém e o
que não convém ao interesse coletivo". Dessa forma, com fulcro no
princípio da discricionariedade, a Municipalidade tem liberdade para,
com a finalidade de assegurar o interesse público, escolher onde
devem ser aplicadas as verbas orçamentárias e em quais obras deve
investir. Não cabe, assim, ao Poder Judiciário interferir nas
prioridades orçamentárias do Município e determinar a construção de
obra especificada. Ainda que assim não fosse, entendeu a Corte de
origem que o Município recorrido "demonstrou não ter, no momento,
condições para efetivar a obra pretendida, sem prejudicar as demais
atividades do Município". No mesmo sentido, o r. Juízo de primeiro
grau asseverou que "a Prefeitura já destina parte considerável de sua
verba orçamentária aos menores carentes, não tendo condições de
ampliar essa ajuda, que, diga-se de passagem, é sua atribuição e está
sendo cumprida". Adotar entendimento diverso do esposado pelo
Tribunal de origem, bem como pelo Juízo a quo, envolveria,
necessariamente, reexame de provas, o que é vedado em recurso
especial pelo comando da Súmula n. 07/STJ. No que toca à
divergência pretoriana, melhor sorte não assiste ao recorrente, uma
vez que a tese defendida no julgado paradigma não prevalece, diante
do posicionamento adotado por este egrégio Superior Tribunal de
Justiça. Ausência de prequestionamento dos artigos 4º, parágrafo
único, alíneas "c" e "d", 86, 87, 88, incisos I a III, 90, inciso IV, e 101,
incisos II, IV, V a VII, todos da Lei n. 8.069/90. Recurso especial não
208
provido .
6.3. Tribunais do Distrito Federal e dos Estados
No que diz respeito ao Princípio da Prioridade Absoluta nas questões
relativas à infância e juventude (exemplarmente sintetizado no art. 227, CF), o Tribunal
de Justiça do Distrito Federal e Territórios tem a honra de ter presenteado a comunidade
208 SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. 2º Turma. REsp 208893/PR, Relator: Ministro
FRANCIULLI NETTO, Brasília, 19 dez. 2003, Publicação: 22.03.2004 p. 263.
100
judiciária com um verdadeiro “leading case”, relatado pelo Desembargador Luiz
Cláudio Abreu, na Apelação Cível nº. 62, de 19.04.93, no Acórdão de nº. 3.835:
Do estudo atento desses dispositivos legais e constitucionais,
dessume-se que não é facultado à Administração alegar falta de
recursos orçamentários para a construção dos estabelecimentos
aludidos, uma vez que a Lei maior exige prioridade absoluta – art. 227
– e determina a inclusão de recursos no orçamento. Se, de fato, não os
há, é porque houve desobediência, consciente ou não, pouco importa,
aos dispositivos constitucionais precitados, encabeçados pelo § 7º, do
art. 227209.
E, concluindo também pela prevalência dos interesses infanto-juvenis
sobre os demais, decidiu também o Tribunal de Justiça gaúcho, em sua 7ª Câmara Cível,
nos termos da Apelação Cível nº. 596017897:
A exigência de absoluta prioridade não deve ser conteúdo meramente
retórico, mas se confunde com uma regra direcionada,
especificamente, ao Administrador Público210.
E, por fim, sobre a questão da evolução da concepção clássica de
discricionariedade administrativa (de um poder discricionário para um poder-dever),
cumpre transcrever a lição do Desembargador Sérgio Gischkow Pereira, também do
Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul211, nos autos da Apelação nº. 569.017.897, da
7ª Vara Cível de Santo Ângelo, publicado em 12.3.1997:
“Sabe-se que a atividade administrativa caracteriza-se menos como
um poder do que como um dever, encaixando-se na idéia jurídica de
‘função’. Função, em linguagem jurídica, designa um tipo de situação
jurídica em que existe, previamente assinalada por um comando
normativo, uma finalidade a cumprir e que deve ser obrigatoriamente
cumprida por alguém, mas a interesse de outrem, sendo que este
sujeito – o obrigado - , para desincumbir-se de tal dever , necessita
209
Apud MARCHESAN, Ana Maria Moreira. O princípio da Prioridade Absoluta aos Direitos da
Criança e do Adolescente e a Discricionaridade Adminitrativa. In Revista dos Tribunais. Ano 87. v.
749. Março de 1998. p. 94.
210
Ibidem. p. 95.
211
Ibidem. p. 95.
101
manejar poderes indispensáveis à satisfação do interesse alheio, que
está a seu cargo prover”.
Nesse sentido, continua o magistrado, citando Celso Antonio Bandeira
de Mello212 :
“Existe uma distinção clara entre a função e a faculdade ou o direito
que alguém exercita em seu prol. Na função, o sujeito exercita um
poder, porém, o faz em proveito alheio, e o exercita não porque caso
queira ou não queira. Exercita-o porque é um dever. Então, pode-se
perceber que o eixo metodológico do direito público não gira entorno
da idéia de poder, mas gira entorno da idéia de dever.
Conscientizando-se dessas premissas, constata-se que do caráter
funcional da atividade administrativa, desta necessária submissão da
Administração à Lei, o chamado poder discricionário tem que ser
somente o cumprimento do dever de alcançar a finalidade legal, ou
seja, sempre e sempre o bem público, o interesse comum”.
Sobre a possibilidade do controle judicial da discricionariedade do
administrador, o douto julgador, com tremenda perspicácia, assevera:
“Pois bem, assentando-se que o Judiciário também é órgão de poder
(e, portanto também comprometido, teleologicamente, com o bem
comum), e que é inafastável o caráter político de sua atuação (não,
evidentemente, no sentido partidário do termo, mas entendida a
política como a arte do bem comum), não há como afastar o juiz,
apriorasticamente, do conhecimento de opções ditas discricionárias
dos demais Poderes. O que jamais se poderá permitir é que o juiz
busque substituir o critério do administrador ou do legislador pelo seu
próprio. Não é disso que se trata. O que se defende é a impossibilidade
comportada (diria, até, exigida) pelo sistema de o juiz apreciar as
manifestações de vontade política (no sentido supra-assinalado) dos
demais Poderes, confrontando-o com o sistema legal, especialmente
constitucional, para verificar sua adequação ao mesmo”.
Do contingente jurisprudencial proposto é possível concluir que o
direito à educação infantil é um direito subjetivo público que, trazendo para o campo da
nossa monografia, gera consequentemente, no Distrito Federal, o dever de ofertá-lo
obrigatória e gratuitamente, porquanto, como exaustivamente lembramos, este ente
212
MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Discricionariedade e Controle Jurisdicional, 2ª Ed., 6ª tir. São
Paulo, Malheiros Editores, 2003.
102
federativo (o Distrito Federal) possui natureza político-administrativa híbrida (de
Município e Estado em um só ente).
Assim, a Constituição Federal, em seu artigo 208 c/c 211, § 2º, ao
conferir ao Município o dever da referida oferta, como, aliás, decidiu o STF (RE AgR
nº. 410.715/SP), terminou conferindo, indiretamente, idêntico dever ao Distrito Federal.
Ademais, entendemos, como o fez o Superior Tribunal de Justiça (REsp nº. 493811/SP)
e os Tribunais do Distrito Federal e Rio Grande do Sul, que o Poder Público (no caso, o
Distrito Federal) tem o poder-dever de garantir, prioritariamente, recursos à educação
infantil, nem que, para isso, seja necessária a intervenção do Poder Judiciário na escolha
das prioridades orçamentárias (ou seja, conferindo o orçamento necessário para a oferta
plena da educação infantil no Distrito Federal).
103
CONCLUSÃO
O direito fundamental à educação é, de fato, tema que merece a devida
atenção, notadamente quando diante de possível descumprimento, pelo Estado, das
obrigações que lhe são próprias.
No Distrito Federal, como visto, o ponto mais gritante em relação à
efetivação do direito à educação é a deficiência na oferta plena e gratuita da educação
infantil (em creches a pré-escolas), decorrente da interpretação que dá o Governo do
Distrito Federal ao disposto no art. 208, IV c/c 211, § 3º, ambos da Constituição
Federal, opondo-se à plenitude da oferta da educação infantil. Com isso, entende não ser
de sua responsabilidade o dever de garantir o acesso obrigatório e gratuito ao ensino
infantil, mas apenas ao ensino fundamental.
A análise dos aspectos jurídicos envolvidos, conduzida neste trabalho,
resulta na conclusão de que a posição desse ente federativo é equivocada. Isto por várias
razões, a seguir descritas.
O direito à educação é um direito fundamental do homem e está
classificado, dentre os direitos fundamentais, como direito social fundamental, ou de
segunda dimensão (ou geração, como preferem alguns doutrinadores).
No tocante às normas programáticas, a exigibilidade das normas
relativas ao direito à educação é patente, posto que instituem um dever correspondente
de um sujeito determinado, o Estado, para com a população. De forma que, em razão
disto, está compromissado com a satisfação desse direito. Caso a obrigação não seja
104
cumprida, a questão deixa de ser a programacidade da norma, passando então ao
desrespeito do direito, à ofensa à lei.
A reserva do possível, na posição de nossos tribunais, tem sido
afastada como argumento frágil, incapaz, portanto, de retirar do Poder Público o dever
de concretizar os direitos fundamentais. Isso porque as decisões judiciais têm exigido
não apenas a alegação de insuficiência de recursos, mas a prova de que, de fato, os
recursos orçamentários alcançaram a exaustão.
A doutrina da proteção integral trata do início de uma postura que
finalmente admite o direito da criança e do adolescente como um ramo do Direito com
seus princípios particulares – sendo o mais relevante ao caso, o da prioridade absoluta.
É, assim, um avanço expressivo em relação ao ordenamento anterior, que considerava o
“menor” não como esse novo sujeitos de direitos, mas como objeto de medidas de
proteção.
A responsabilidade do Estado, perante a oferta do direito à educação,
está associada a um dever, que lhe é imposto pelo ordenamento jurídico, quer no âmbito
constitucional, quer no infraconstitucional. O Judiciário, em face da ordem
constitucional e infraconstitucional instituída e guiada pela doutrina da proteção
integral, não pode permanecer inerte frente à ameaça ou violação dos direitos infantojuvenis.
O papel do Ministério Público no contexto da garantia do direito à
educação é muito forte, posto que possui prerrogativas especiais, não concedidas a
nenhuma outra pessoa física ou jurídica.
105
O direito à educação infantil está satisfatoriamente declarado
constitucional (art. 208, IV) e infraconstitucionalmente (art. 54, IV, ECA; art. 4º da
LDB e toda sua Seção II, dedicada especialmente à garantia da educação infantil).
O Distrito Federal possui competência tanto de Estado como de
Município (LDB, art. 10, parágrafo único e CF, art. 30, I, c/c art. 32), sendo
expressamente responsável pela oferta obrigatória e gratuita da educação infantil em
seus limites territoriais, e não apenas da educação fundamental, como há tempos alegou.
A respeito do financiamento da educação no Brasil, a legislação
relativa ao tema é bastante detalhada e consistente. Dela se extrai que não é por falta de
normas orçamentárias que a disposição de recursos e sua devida vinculação deixarão de
existir. Para tanto, é preciso que todo os setores da sociedade, autoridades públicas ou
não, fiscalizem a concreta aplicação da lei orçamentária para educação.
No sentido da obrigatoriedade e gratuidade da oferta da educação
infantil custeada pelos Municípios, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é
pacífica; a do Superior Tribunal de Justiça é contraditória, ora entendendo pela
obrigatoriedade do referido dever municipal, ora contra; e, por fim, os Tribunais do
Distrito Federal e Estados, em grande parte, tratam de acompanhar reiteradamente suas
decisões conforme o Supremo Tribunal Federal.
Disto tudo, conclui-se que a efetivação do direito à educação é questão
primordial aos interesses da nação brasileira e esta temática deve estar presente na
mente dos operadores do direito, mais particularmente naquelas dos membros do Poder
Público, Poder Judiciário e Ministério Público, porquanto sua responsabilidade é
106
patente213. E o é de tal forma que aqueles que não se empenharem em fazer parte da
solução da questão da educação infantil no Distrito Federal, por conseqüência, estarão
fazendo parte do próprio problema da educação no Brasil.
213
Item 2.3.1, infra.
107
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DIREITO À EDUCAÇÃO: O Distrito Federal e a