cadernos ufs – filosofia
no. 6
Julho/Dezembro 2009
Classificação natural: a meta da teoria física para Pierre Duhem
Amélia de Jesus Oliveira
Doutoranda em filosofia / Unicamp
Resumo: A visão de teoria física fornecida por Pierre Duhem tem recebido interpretações que
ocasionam seu enquadramento em vertentes antagônicas de visões filosóficas sobre a ciência. A
análise de algumas características da obra de Duhem fornece elementos que, isolados do âmbito
geral de sua filosofia da ciência, propiciam uma abordagem desta como um modelo de visão
anti-realista, tal como a defendida por Karl Popper, para quem Duhem é um típico representante
do convencionalismo e do instrumentalismo. Sugerimos que uma análise do que seja a meta da
teoria física para Duhem não pode, por um lado, estar isenta de um exame sobre a necessária
demarcação entre física e metafísica. De outro lado, não se pode desconsiderar a necessária
conjunção dessas duas ciências, por ser justamente esta conjunção que leva Duhem a concluir o
que é a meta da teoria física: tornar-se uma classificação natural.
Palavras-chave: classificação natural, realismo, instrumentalismo.
Abstract: Duhem's view on Physical Theory has received different interpretations that occasion
its framing in antagonistic lines of philosophical views about science. The analysis of some
characteristics of Duhem’s work provides elements that, separated from the general ambit of
Duhem's philosophy of science, afford an approach of this last as being a model of anti-realist
view, like proposed by Karl Popper, for whom Duhem is a typical representative of
conventionalism and instrumentalism. We suggest that an analysis of the aim of physical theory
for Duhem cannot, on the one hand, to be exempt of an exam about the necessary demarcation
between physics and metaphysics. On the other hand, the necessary conjunction between these
two sciences cannot be disregard, because it is exactly this conjunction that leads Duhem to
conclude what the aim of physical theory is: to turn into a natural classification.
Keywords: natural classification, realism, instrumentalism.
Qual é a meta da teoria física? Esta é a questão colocada por Duhem como a
primeira a ser enfrentada em sua principal obra dedicada à filosofia da ciência, La
théorie physique, son objet, sa structure, publicada originalmente em 1906. A discussão
introdutória por ele empreendida revela a controvérsia existente no debate da referida
questão na história da filosofia. É justamente sobre a controvérsia proveniente dessa
discussão que empreendemos este trabalho. Procuraremos mostrar que, se num amplo
contexto – como apresenta Duhem – a questão foi motivo de disputa, ela não o deixou
de ser ainda que circunscrita a um contexto bem determinado: o da própria filosofia da
ciência duheminiana.
Analisemos, primeiramente, a discussão colocada por Duhem acerca da disputa
em prol do que seria a meta da teoria física. As diversas respostas propostas à indagação
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“Qual a meta da teoria física?” podem ser sintetizadas, segundo ele, em duas principais:
(1) a de explicação de um grupo de leis estabelecidas pela experiência e (2) da
sumarização e classificação lógica de um grupo de leis experimentais, sem a pretensão
de explicar essas leis, de procurar as causas de um fenômeno físico. Duhem repudia a
primeira alternativa que, a seu ver, define “explicação” como a revelação das
verdadeiras causas dos fenômenos e torna a física subordinada à metafísica. Tocamos
aqui num ponto relevante na filosofia da ciência de Duhem: sua tese demarcatória entre
física e metafísica.
A partir do exame de diversas teorias na história da ciência, Duhem conclui que
a confusão entre os objetivos da física e os da metafísica torna impossível a construção
de uma teoria física já que, em seu ponto de vista, nenhum sistema metafísico fornece
todos os elementos necessários para essa construção (DUHEM, 1989a, p. 21). A
demarcação, que se apresenta como tema importante em La théorie physique, já havia
sido abordada por Duhem em texto anterior – “Physique e métaphysique”, de 1893.
Neste artigo, Duhem relaciona diretamente a questão da definição do papel da teoria
física com a necessidade de demarcação do campo desta em relação ao campo da
metafísica e argumenta que a distinção entre essas duas áreas é de natureza; decorre da
natureza de nossa inteligência que não tem intuição direta da essência das coisas, mas
necessita escalar “dois degraus da ciência” (DUHEM, 1987, p. 86-87. Edição brasileira,
p. 42-43). O primeiro degrau é o de estudo dos fenômenos e o estabelecimento de leis
segundo as quais eles ocorrem; o segundo é o da indução das propriedades das
substâncias que causam os fenômenos. Duhem compara esses degraus do conhecimento
com o de uma escada: quando subimos uma escada, atingimos por último o degrau mais
elevado. A física, que tem prioridade lógica em relação à metafísica, vem sempre em
primeiro lugar (um degrau de acesso) em nossa tentativa de compreender o mundo.
As questões acerca do valor e do objetivo da teoria física e das relações que ela
possui com a explicação metafísica, segundo Duhem, são pertencentes a todos os
tempos, desde o surgimento de uma ciência da natureza. Embora enunciadas de
maneiras variáveis, conforme a ciência do momento, é possível detectá-las sob diversas
vestimentas. No entanto, a tradição filosófica estaria em concordância com as
considerações que apresenta acerca das relações entre física e metafísica. Aristóteles e a
filosofia peripatética, embora tratassem destas relações somente no âmbito da
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astronomia – o único ramo da física que estava desenvolvido naquela época (DUHEM,
1987, p. 100. Edição brasileira, p.51) – separavam o estudo dos fenômenos do das
causas. Mas, de acordo com sua visão, a barreira entre os dois campos é enfraquecida no
fim do século XVI e início do século XVII, quando o estudo dos fenômenos físicos e de
suas leis é confundido com o da procura pelas suas causas. Então, “vê-se as teorias
físicas tomadas por explicações metafísicas, os sistemas metafísicos procurando
estabelecer, por via dedutiva, teorias físicas” (DUHEM, 1987, p. 104. Edição Brasileira,
p. 54). Nos séculos XVIII e XIX, as relações entre física e metafísica teriam se
obscurecido ainda mais, ofuscando a definição do objetivo de uma teoria física.
De acordo com a tese duheminiana, a física, enquanto primeiro degrau do
conhecimento, possui um método próprio, independente de toda metafísica, que é o
método experimental, no qual as noções (de fenômeno físico, de lei física, de corpo,
movimento, etc.) e princípios (axiomas da geometria e da cinemática, por exemplo)
empregados podem ser usados sem que se recorra à metafísica. De outra parte, se
tomarmos a teoria física como uma explicação, fazemos necessariamente com que ela
seja dependente da metafísica e não uma ciência autônoma (DUHEM, 1989a, p. 8,). A
simples indagação acerca da existência de uma realidade material, distinta das
aparências sensíveis, transcende, segundo Duhem, o método da física; é objeto da
metafísica. Uma vez delimitados os campos de investigação da física e metafísica, é
possível definir o papel de uma teoria da física e Duhem o faz nos seguintes termos:
Uma teoria física não é uma explicação. É um sistema de proposições
matemáticas, deduzidas de um pequeno número de princípios que
têm por objetivo representar, de forma tão mais simples, tão completa
e tão exatamente quanto possível, um conjunto de leis experimentais.
(DUHEM, 1989a, p. 24, grifos do autor).
Com o intuito de clarificar essa definição, Duhem caracteriza as operações
constituintes de uma teoria física que se processam em quatro passos sucessivos: (1) a
definição e medição de grandezas físicas; (2) a seleção das hipóteses; (3)
desenvolvimento matemático da teoria e (4) comparação da teoria com a experiência.
Sem empreender um estudo exaustivo da constituição dessas operações, tais como
apresentadas por Duhem, traçamos, a seguir, algumas considerações sobre elas a fim de
evidenciar aspectos que serviram de motivos para controvérsias na interpretação de sua
filosofia da ciência.
Considerando a primeira operação, Duhem esclarece que as
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definições de uma grandeza física são símbolos matemáticos que não têm conexão
nenhuma com as propriedades que representam; correspondem a um conjunto de
convenções e, enquanto tais, comportam um alto grau de arbitrariedade.
Em relação à seleção de hipóteses, a segunda operação da teoria física, o
cientista estabelece relações, expressas por proposições matemáticas que servirão de
princípios no sistema dedutivo. Tais princípios, segundo Duhem, podem ser chamados
“hipóteses” no sentido etimológico desta palavra, pois eles são realmente os
fundamentos sobre os quais uma teoria é construída (1989a, p. 25). Estas hipóteses,
contudo, não expressam as relações verdadeiras entre as propriedades reais dos corpos
(DUHEM, 1989a, p. 25) e podem ser formuladas de modo também arbitrário. A única
barreira que existe na arbitrariedade da escolha é a contradição lógica entre termos de
uma mesma hipótese ou entre hipóteses de uma mesma teoria.
O desenvolvimento matemático da teoria (sua terceira operação) corresponde à
combinação das hipóteses segundo as regras da análise matemática, ao desenvolvimento
lógico das conseqüências a partir das hipóteses selecionadas. Nesta operação, o que
importa é a validade dos silogismos e a acuidade dos cálculos.
As conseqüências deduzidas das hipóteses são traduzidas em enunciados que se
referem às propriedades físicas dos corpos e que são comparados com as leis
experimentais que a teoria representa (DUHEM, 1989a, p. 25). É nesta operação (a
quarta e última tal como indicada acima) que o cientista pode avaliar empiricamente o
valor da teoria. Se, do processo dedutivo, resultarem conclusões em concordância com
as leis que a teoria representa, no grau de aproximação que corresponda aos
procedimentos mensuráveis empregados, pode-se dizer que a teoria alcançou sua meta e
que é uma teoria boa (DUHEM, 1989a, p. 25-26). Importante é ressaltar que, para
Duhem, uma teoria boa na física, não corresponde ao que seria uma teoria verdadeira,
tomada enquanto uma explanação:
Uma teoria verdadeira não é uma teoria que dá uma explicação das
aparências físicas em conformidade com a realidade; é a teoria que
representa de uma maneira satisfatória um grupo de leis
experimentais. Uma teoria falsa não é uma tentativa de explicação
fundada em suposições contrárias à realidade; é um grupo de
proposições que não concordam com as leis experimentais. Acordo
com o experimento é o único critério de verdade para uma teoria
física (DUHEM, 1989a, p. 26, grifos do autor).
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A adequação empírica é objetivada pelo cientista que modifica suas teorias, de
modo a enquadrar os fatos novos. Na perspectiva duheminiana, a história da marcha da
ciência é testemunha de como esta progride. Em seu ensaio Sauver les phénomènes,
publicado originalmente em 1908, Duhem procura mostrar como as teorias científicas –
desde a Antiguidade – são caracterizadas por uma tentativa de adequação empírica entre
as teorias e os fenômenos observados. O que o cientista visa é “salvar as aparências”, na
medida em que constrói teorias destinadas a fornecer conseqüências em conformidade
com as leis experimentais. Mas, uma teoria que salva as aparências pode ser
considerada uma teoria verdadeira? Como conjugar “verdade” e “aparência”? Duhem
afirma que a palavra “verdade” só têm significado na física se houver concordância
entre as conclusões de uma teoria e as regras estabelecidas pelos observadores
(DUHEM, 1989a, p. 217).
Enquanto classificação de leis, a teoria física representa uma economia de
pensamento, tal como defendida por Ernst Mach, para quem, segundo Duhem a
“economia intelectual” representa a meta e o princípio regulador da ciência. A utilidade
de uma teoria tomada enquanto economia de pensamento é admitida e adotada por
Duhem. Em seu ponto de vista as leis experimentais representam já uma primeira
economia intelectual.
A caracterização duheminiana da teoria física, como até aqui esboçada, sofreu
muitas condenações por parte de filósofos que se autodenominam “realistas”. Esse é o
caso, por exemplo, de Karl Popper que contrapõe inteiramente sua visão de ciência a de
Duhem. Em The Logic of Scientific Discovery (1961, p. 78), Popper contrasta seu
falsificacionismo com convencionalismo e indica Duhem como um de seus principais
representantes; em “Three Views Concerning Human Knowledge” (POPPER, 1988, p.
97-119), defende uma visão realista diante de duas outras – essencialista e
instrumentalista –, sendo Duhem indicado como um instrumentalista.
A correlação entre convencionalismo e instrumentalismo é encontrada no
volume 1 do Postscript: Realism and the Aim of Science, onde Popper afirma: “Uma
doutrina um tanto relacionada ao instrumentalismo é o convencionalismo de Poincaré e
Duhem que vê, nas teorias científicas, convenções úteis ao invés de conjecturas a serem
testadas pela experiência” (1983, p. 112). A idéia de que as teorias científicas são meros
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instrumentos úteis e cômodos é oposta por Popper à concepção de que as teorias são
reais tentativas de descrever a estrutura do mundo real e que, enquanto tais, poderiam e
deveriam ser testáveis pela própria realidade. Esta oposição se aplica tanto à visão
instrumentalista
quanto
à
convencionalista:
enquanto
instrumentos,
enquanto
convenções, teorias não são falsificáveis. Popper admite o caráter instrumental das
teorias científicas, mas assegura que além dele, existe um outro substancial que é da
descrição do mundo ou de certos aspectos do mundo (POPPER, 1968, p. 101).
No que segue, procuraremos mostrar como a oposição estabelecida por Popper
entre uma visão realista e outra anti-realista acaba por se revelar um tanto estreita
quando aplicada à visão duheminiana, motivo pelo qual, aliás, ela tem sido objeto de
crítica. Antes, porém, devemos assinalar que não se pode negar que a obra de Duhem
apresenta claramente traços identificados como pertencentes à visão instrumentalista e
as citações acima são exemplos disso. Mesmo aqueles que recusam a análise
popperiana, tais como Mariconda (1985), Worral (1982) e Darling (2003) salientam
esse aspecto. Sugerimos que, se é possível afirmar como aponta Mariconda (1985, p.
121) “que Duhem defenda uma variante do instrumentalismo”, é verdade também que
sua visão pode ser tomada como uma variante do realismo, tal como o fazem Worral
(1982), Darling (2003), Martin (1991), entre outros. Vejamos por que.
De início, lembramos que a famosa definição de teoria física, bem como as
considerações sobre critério de verdade de uma teoria física e ainda a admissão de que
esta pode ser vista como economia de pensamento – aspectos que dão margem para
interpretações instrumentalistas – se encontram no capítulo II de La théorie physique
que tem por título “Teoria física e classificação natural”. Nele, Duhem argumenta que
uma teoria “não é somente uma representação econômica das leis experimentais”
(1989a, p. 30), mas ainda uma classificação natural. A ênfase nesta expressão se
justifica pela importância que ela desempenha na filosofia da ciência duheminiana. Mas
o que é uma classificação natural? Esta é uma questão também colocada por Duhem que
explicita o significado da expressão recorrendo a um exemplo: a classificação natural
dos vertebrados, realizada por uma naturalista, como segue:
A classificação que ele [o naturalista] imaginou é a de um grupo de
operações intelectuais que não se refere a indivíduos concretos, mas a
abstrações, espécies. Estas espécies são organizadas em grupos, nos
quais as mais particulares se subordinam às mais gerais. Para formar
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esses grupos, o naturalista considera os diversos órgãos: coluna
vertebral, crânio, coração (...) não sob a forma particular e concreta
que ela toma em cada indivíduo, mas sob a forma abstrata, geral,
esquemática, que convém a todas as espécies de um mesmo grupo.
Entre esses órgãos assim transfigurados pela abstração, ele estabelece
comparações, nota analogias e diferenças (...) a classificação não é
senão um quadro sinótico que resume todas essas aproximações
(1989a, p. 32, 33).
Na visão de Duhem, quando o zoologista assegura que sua classificação é
natural, o que ele quer dizer é que as conexões que estabelece racionalmente entre
conceitos abstratos correspondem às relações reais entre os seres relacionados em que as
abstrações tomam forma. O mesmo se daria com a teoria física: quando um físico
estabelece conexões entre os fenômenos observados e passa a classificar as leis
experimentais, simbolizadas por um sistema de proposições matemáticas, ele estabelece
um tipo de imagem da verdadeira ordem das realidades que nos escapam, das afinidades
reais entre as coisas. Eis uma das afirmações de Duhem sobre a teoria física tomada
como classificação natural:
A facilidade pela qual cada lei experimental encontra seu lugar na
classificação criada pelo físico, a brilhante clareza concedida a
conjunto, tão perfeitamente ordenado, persuadem-nos, de uma
maneira insuperável, de que tal classificação não é puramente
artificial, de que tal ordem não resulta de um agrupamento puramente
arbitrário imposto às leis por um organizador engenhoso. Sem poder
considerar nossa convicção, mas também sem ser capaz de nos
desfazermos dela, nós vemos, na exata ordenação desse sistema, a
marca pela se reconhece uma classificação natural; sem pretender
explicar a realidade que se esconde sob os fenômenos cujas leis
agrupamos; nós sentimos que os agrupamentos estabelecidos por
nossa teoria correspondem às afinidades reais entre as próprias coisas
(DUHEM, 1989a, p. 33, 34, grifos do autor).
Um exemplo abordado por Duhem é o de uma teoria da ótica: quando os físicos
falam sobre uma vibração luminosa, não pensam mais em um movimento real de um
corpo igualmente real; imaginam somente uma magnitude abstrata, ou seja, uma
expressão pura, geométrica cuja extensão periodicamente variável os ajuda a afirmar as
hipóteses da ótica e a obter, por cálculos, as leis experimentais que governam a luz.
Esta vibração é, para os físicos, uma representação, não uma explicação. Ainda assim,
os físicos são bem sucedidos quando formulam um corpo de hipóteses fundamentais
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sobre essa vibração, quando podem deduzir, dessas hipóteses, um vasto domínio
ordenado e sistematizado da ótica, que até então estava embaraçado por tantos detalhes
antes vistos de modo muito confuso. Como físico, conclui Duhem: “é impossível para
nós acreditar que esta ordem e esta organização não sejam a imagem refletida de uma
organização e de uma ordem reais” (1989a, p. 35). Um pouco mais adiante, acrescenta:
Quanto mais perfeita ela [a teoria] se torna, mais nós pressentimos que
a ordem lógica na qual a teoria classifica leis experimentais é o reflexo
de uma ordem ontológica; mais nós suspeitamos que as relações que
ela estabelece entre os dados da observação correspondem a relações
reais entre as coisas; mais nós descobrimos que a teoria tende a ser
uma classificação natural (DUHEM, 1989a, p. 35).
Conforme podemos notar, ao afirmar que a meta da teoria física é a obtenção de
uma classificação natural, Duhem, invariavelmente, emprega as expressões como
“sentimos” (nous sentons), “suspeitamos” (nous soupçonnons), “pressentimos” (nous
presentons). O físico não tem como justificar a convicção de que a teoria física seja uma
classificação natural, como assinala:
O físico não poderia considerar esta convicção. O método do qual
dispõe é limitado pelos dados da observação, a qual não poderia
provar que a ordem estabelecida entre as leis experimentais reflete
uma ordem transcendente à experiência. Pela mais forte razão, tal
método não poderia fazer suspeitar a natureza das relações reais às
quais correspondem às relações estabelecidas pela teoria. (DUHEM,
1989a, p. 35).
Argumenta, contudo, Duhem que, se de um lado, o método pelo qual as teorias
físicas são construídas não pode nos oferecer uma prova evidente de que essas teorias
sejam uma explicação das leis naturais, de outra parte, esse mesmo método não pode
convencer o físico de que o sistema capaz de ordenar de modo claro e simples um
grande número de leis poderia ser um sistema artificial (DUHEM, p. 1989a, p. 36). É
por um “ato de fé” (un acte de foi) que o físico assegura que as teorias não são
meramente um sistema artificial, mas, sim, uma classificação natural. A este modo de
encarar uma teoria científica, Duhem aplica o pensamento de Pascal: "Nós temos uma
incapacidade para provar que não pode ser superada por nenhum dogmatismo; temos
uma idéia de verdade que não pode ser superada por nenhum pirronismo" (DUHEM,
1989a, p. 36).
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Um ponto salientado por Duhem como muito favorável à confiança em uma
teoria física enquanto classificação natural é o poder preditivo dela: ao mesmo tempo
em que antecipa a experiência, a teoria física estimula a descoberta de novas leis. Feita
essa consideração, Duhem conclui o capítulo intitulado “Teoria física e classificação
natural”, sintetizando sua concepção de teoria física: uma representação condensada de
um vasto grupo de leis experimentais que propicia uma economia de pensamento e
configura uma classificação natural dessas leis, uma classificação natural marcada,
sobretudo, pela fecundidade da teoria em antecipar e promover descobertas de leis
experimentais.
A noção de classificação natural pode ser tomada como um parâmetro para
análise das interpretações da filosofia da ciência duheminiana. Aqueles que admitem a
importância dessa noção tendem a recusar a crítica popperiana da visão de Duhem como
anti-realista. Mariconda, por exemplo, assinala: “o instrumentalismo de Duhem
corresponde antes a uma tática metodológica, tendente a facilitar o processo de
matematização da natureza, do que a uma recusa metafísica de que o conhecimento
teórico tenha alcance ontológico” (MARICONDA,1985, p. 126). Para Worral, a
introdução de Duhem da noção de classificação natural “é considerada ampla e
corretamente como uma maior concessão ao realismo” (WORRAL, 1982, p. 231).
Darling, explicitando como a obra de Duhem pode gerar, ao mesmo tempo, uma leitura
realista e outra anti-realista, propõe que a filosofia de Duhem seja classificada de
“realismo motivacional”, em virtude de refletir uma atitude realista, de servir de
motivação ao cientista, por conceder significado à atividade científica e, ainda, porque
não partilha de uma doutrina global ou conjunto de crenças específicas sobre a realidade
(DARLING, 2003, p. 1134).
É importante assinalar que as considerações traçadas por Duhem acerca da meta
da teoria física como classificação natural não estão circunscritas à sua obra La théorie
physique. Em nota de rodapé nesta obra, ele indica que a noção de classificação natural
tinha sido introduzida já em seu texto “L’ école anglaise et les théories physiques”. E, se
é verdade que Sauver les phénomènes, um ensaio publicado em 1908, pode servir de
fonte para interpretações marcadamente instrumentalistas de sua visão de ciência, como
aliás mostra Mary Hesse em resenha sobre o texto por ocasião da tradução deste para o
inglês (HESSE, 1970, p. 303-304), não é menos verdade que outros textos: “Physique
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de croyant”, de 1905 e “La valeur de la théorie physique”, de 1907, se prestam a uma
recusa, por parte de Duhem, da visão do conhecimento propiciado pela teoria física
como estritamente instrumental, convencional e pragmatista. Em “Physique de
croyant”, Duhem afirma:
Tudo força o físico a afirmar: à medida que progride, a teoria física
torna-se mais semelhante a uma classificação natural, que é seu ideal
e seu fim. O método físico é impotente para provar que essa afirmação
tem fundamento. Mas se não o tivesse, a tendência que dirige todo o
desenvolvimento da física ficaria incompreensível. Assim, para
encontrar os títulos que estabelecem sua legitimidade, a teoria física
deve reclamá-los à metafísica. (DUHEM, 1989c, p. 452, 453. Edição
brasileira, p. 144, grifos do autor).
Já em “La valeur de la théorie physique”, Duhem dirige duras críticas a uma
visão estritamente pragmatista. Aí afirma:
O pragmatismo contemporâneo afirmou que as teorias físicas não
teriam nenhum valor como saber; que seu papel era totalmente
utilitário; que as teorias, em última análise, nada mais eram que
receitas cômodas que nos permitem agir com sucesso no mundo
exterior. Contra essa afirmação, trata-se de justificar a antiga
concepção da física: a teoria física não tem apenas utilidade prática;
ela tem ainda e, sobretudo, um valor como conhecimento do mundo
material (DUHEM, 1989b, p. 476-477. Edição brasileira, p. 159,
grifos do autor).
Face às considerações traçadas acima, explicitamos nossa concordância com
Darling quando afirma que a obra de Duhem fornece dados que possibilitam uma dupla
possibilidade de interpretação de sua visão de ciência, mas que é necessário não limitar
a escolha entre a alternativa “realismo ou anti-realismo” em seus sentido estritos, como
certos críticos o têm feito. Tal alternativa, como tantas outras designações gerais, tem
se revelado estreita demais para o enquadramento de visões filosóficas complexas como
a de Duhem. Se este assinala a necessidade de demarcação entre física e metafísica para
fornecer uma definição da meta da teoria física, é também verdade que conjuga essas
duas esferas do conhecimento para concluir essa definição. Por fim, sugerimos que, em
se tratando da análise do que seja a meta da teoria física na filosofia da ciência
duheminiana, a noção de classificação natural há de estar, necessariamente, presente.
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