Foto: Jorge Bispo
Vintage
Teatro Plástico em um ato
(para Botika e Tunga)
Obs.:
Vintage é uma designação aplicada a colheitas de uvas, como para o vinho do Porto, em que as condições de
produção, colheita, estágio e outros factores de produção contribuem para uma qualidade excepcional. A sua
origem ou significado vem de vint relativo à safra de uvas e age de idade.
Denominam-se também Vintage os vinhos do porto mais especiais que se caracterizam por ter a capacidade de
envelhecer dentro da garrafa, sendo pois um vinho do porto não filtrado que ganha sabores muito especiais
com o passar dos anos.
Numa rua de suave inclinação, uma casa ainda brota do chão. Dentro desta, o
piso de lajotas quadradas é frio. Porém, as pessoas que vivem ali não perdem
calor.
Eno, o primo com úlceras,apazígua
sua cólera atrelado ao som dos
grilos na calha da casa. São pipocas
espocando no escuro metal.
Ama, o irmão do meio, é uma mulher
vestida de homem. Ela falha quando
fala e destila o sereno em sua saliva.
Unu, papai, corpo a dentro é um
bárbaro bradando absurdos e
violentando mesuras. Corpo a fora,
uma fada medrosa.
Ono, o único agregado, não vê nada.
Sedado de sabedoria, sodomiza os
argumentos em detrimento das
certezas não suas.
Ema, a esposa. Não é a mãe, nem a
tia, nem a filha. Ela se filia a um
marido conforme os confortos.
Carícia de carpete.
Omo, o velho, está desconfortável.
Seu corpo é um subúrbio. Pudesse
ele, já nem teria vindo, quanto mais
ainda, já teria ido.
Ano é o jovem tio, irmão de Unu,
queria ser motorneiro mas acabou
sentado a porta de uma escola
catalisando os livrinhos da rotina.
Ome, o mudo, ninguém sabe de onde
veio, de que ventre ou qual
recôncavo
daquela
família
aglomerada. Se sabe que escuta.
Na madrugada de terça para quarta uma cabra roça a porta dos fundos. Só se
sabe disso, pelo rumor do coro animal na madeira do utensílio humano.
Todos na velha sala de estar-se. Como pano rasgando, o pânico comove Ama que,
como lama de pântano,se aglomera a Ano, que a acolhe,abraçando-a como se a
guardasse numa caixa de plástico antigo.
Ono
“Vossas informações podem ser melhores que as minhas, mas sei de boa fonte
que esse animal é muito hábil, deve adentrar este recinto em cinco, seis minutos”
Unu
“Manda entrar e traz mais gelo”
(Unu caminha em direção a poltrona desprovida de almofadas. Ocupa o espaço
como se fosse sentar. Não senta)
(Ema faz-se de contrafeita. Volta-se para a janela. Ama se aproxima)
Ama
“Que séria! A primeira vez que entrar aqui com parte de pentear as pestanas, eu
dependuro nos beiços!”
(Ama aperta Ema contra si)
Ema
“Que está acontecendo aqui? Quer que a gente se case?”
Ama
“Mas ela é virgem... Virgem? Só se for no sovaco! Pois eu conheço um alfaiate que
passou um mês e meio com ela, em Santos, fazendo todos os números.”
Ema
“E você não se importa com a viuvez? Mesmo sendo uma viuvez clandestina?”
Ama
“Pra mim trata-se de um simples tumor inchado... O meu drama conjugal
estronda como os rios nas enchentes”
Eno
(Aos berros para Ama) “Muito bem! Muito bem! Possuis mais alguma coisa? Por
causa dessa frase desagradável irás para o alçapão, vá!”
Ama
(decidida a Eno) “Não! (arquejante a Ema) Oh! Por que te prendo na atmosfera
que tu mesma criaste? Por que te reduzo `a menina permanente, curiosa,
sentimental que existe em toda mulher?”
Eno
“Deus do céu, defendei-nos!”
Ema
“Nossa união nunca foi complicada. Mas o que teria acontecido se o tempo
tivesse chegado a gastar esse ameaçado atrativo do sexo?”
Omo
“bem, nós certamente vamos pensar nisso, minha cara!”
Ema
(definitiva a Eno) “Eu desço também! Se vai falar comigo se decida.”
Omo
“...é o tom de um sujeito tentando fazer um pouso complicado! Por favor querida,
vamos deixar essa discussão pra mais tarde?”
Unu
(cortante) “Continua...!”
Ono
(frívolo para Ama) “Fala, vamos ao fato, mais depressa, não me faças esperar!”
Unu
(ameaçador a Ama) “Você resiste `a evidências? Você recusa os fatos? Recusa as
provas? (Volta-se subitamente para Ono) Quero que me respondas: que interesse
é esse?”
Ono
“Eu? Sim, sim, sem falta.”
Unu
(a Ama e Ema) “Vocês são parecidas como duas chamas”
Ema
“Tem noção do que significam cinquenta anos?”
Ano
“Isto nós também não sabemos”
Ama
“Pobre Pompeque! Eu estava justamente reconstituindo a sua genealogia. Tinha
chegado `a conclusão de que o pai pertencia a um florista. Gente modesta, gente
que faz os animais dormirem no próprio leito conjugal. Mas, justiça seja feita, que
os lava todos os sábados.
Ema
“Vou cobrar o café daquele outro dia! Se tivessem espirrado em uma sequência
de vinte ou trinta explosões consecutivas, não teriam podido deixar de se
entregar devotadamente a imprecação oral e intelectual. E quem impreca – até
mesmo nos mais simples dos seus maus pensamentos – está fechando o caminho
da Glória para si mesmo.”
Unu
“E isso influi?”
Ano
“Isso nós já sabemos.”
Unu
(`a parte porém aos brados) “Há dezenove anos, elas gritavam como agora.”
Ono
“Hem! Estão ouvindo? Gritou triunfalmente o rapagão – vai ser uma limpeza
geral!”
Omo
(visionário) “...a sombra o detém!”
Ano
“Dinheiro resolve”
Omo
“Não seja besta. Aposto que você nunca viu um terrestre tão de perto.”
Ano
“Pode ser que elas sejam perdoadas, mas na certa vai continuar cobrando o
arrendamento”
Unu
(lascivo para Ama) “Estou com vontade de uma coisa...”
Ano
“O senhor sabe que tipo de casa é essa?”
Ema
(disfarçadamente para Unu) “Quero propor algo a você.”
Ama
(ofensiva a Unu) “O teu hálito cheira a fumo de minha terra!”
Eno
(debochado) “Ih, é mesmo! Mas e daí? Minha bunda não é melhor que a dos
outros.”
Omo
(incompreendido) “E daí? Você tem alguma coisa contra terrestres?”
Unu
(partindo pra cima de Omo) “Viu? O cara sem razão e querendo botar banca! Só
lhe metendo a mão no focinho.”
Eno
“Desse jeito vai continuar miserável como um rato.”
Omo
“Acho que vou aceitar a proposta”
Unu
(a todos) “Que isso afinal?”
Omo
(revelador) “Um feriado nacional pra comemorar a Grande Mutação.”
Ono
(para Unu, o incitando a Omo) “Batei-lhe! Que ele rebente! Despedaçai-o! Eu
ordeno!”
Eno
(para Unu) “Te mato com o gancho-de-puxar-merdra e a faca-de-cortar-cara.”
Unu
(medrando) “Olha aqui! Te prometo o seguinte: dou a ela uma caixa de bombons
e passa tudo.”
Ema
“Por que será que o verdadeiro é sempre um pouco piegas?”
Ama
“A modo que um carbono en um curral de cabras.”
Ema
“A essa altura, nenhum de nós tem mais remédio.”
Ama
“A-e-i-o-u.............................................................
......................Ba-Be-Bi-Bo-Bu.............................................
.....Ca-Ce-Ci-Co-Cu”
Ano
(subindo em uma banco de três pés e pendurando-se no lustre)
“Será assim pelo resto da vida?
Passarão as sombras que incomodavam
E os boatos que tanto eles contavam
Coisa obscura, mentira descabida.
Talvez ainda um dia nos esquecerão
Como esquecer deles também queremos.
`A nossa mesa talvez sentarão.
Talvez em nossas camas morreremos.
Talvez não nos xinguem, mas beijem nossa mão.
Talvez a noite até nos alumie.
Talvez a lua cheia não mais esvazie.
Talvez a chuva brote mesmo do chão!”
(esta fala cai sobre todos como o alento da luz num escuro deserto de uma noite
de anos)
(pausa. Todos se buscam sem êxito)
Unu
(com êxtase e desespero)
“Tem alguém aí?! Tem alguém aí!?!”
(Breu.
O som na porta aumenta consideravelmente.
Cordas graves se somam.
Cordas agudas.
Permanece.
Batem `a porta,
As batidas devem ter o som de um tambor de couro.
Estanca todo o som.
Uma vela no centro do palco é acesa.
A luz se intensifica.)
Ome
“
“
Pano
Nota:
Ono – Leon Tolstoi
Unu – Nelson Rodrigues
Eno – Alfred Jarry
Ama – Oswald de Andrade
Ema – Mario Benedetti
Omo – Moebius
Ano – Bertolt Brecht
Ome – Augusto de Campos
Pedro Rocha / .TXT VINTAGE, Junio de 2011
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