O VÉU COMO ADORNO: A REPRESENTAÇÃO DO FEMININO
NAS OBRAS DE GLÓRIA PEREZ
Cássia Bethania Groess de Souza Barbosa
([email protected])
Centro Universitário La Salle
Resumo: O trabalho aborda a influência da mídia televisiva na construção de representações e consequentemente de
práticas culturais. O estudo analisa a representação feminina nas obras de Glória Perez. As obras desta autora são
conhecidas pelo “merchandising social” e entre os anos de 1987 e 2009 a autora escreveu oito telenovelas e duas
minisséries nas quais as personagens femininas eram representadas em situações de opressão ou fragilidade.
Analisando os aspectos da representação dos papéis sexuais nas obras da autora e de seu impacto na formação de
opinião, criação de imaginário e no comportamento de seu público, pode-se identificar a remodelagem,
glamourização a fantasia de estereótipos femininos.
Palavras chave: Representação; Papéis sexuais; Telenovelas; Glória Perez; Imaginário.
Introdução
As montagens televisivas do gênero folhetim, em diversas formas de
apresentação, são sucesso grande número de países e por consequência ocupam a maior
parte da grade de programação dos canais de entretenimento. Porém no Brasil, mais que
em qualquer outro país, o papel das telenovelas ultrapassa a categoria de
entretenimento, adentrando o dia-a-dia. Quando o capítulo termina, a trama e seus
personagens continuam presentes, nas conversas do cotidiano, como tema de
reportagens, referência no levantamento de questões comportamentais, influenciando a
moda e o consumo.
O Brasil possui a segunda maior média de audiência televisiva do planeta e é
aqui que as telenovelas possuem uma influência mais ampla e duradoura na escolha de
estilo de vida de seus telespectadores. Segundo La Pastina (1994), as telenovelas
“tornaram-se muito mais uma parte do tecido da sociedade brasileira. É difícil pensar o
Brasil contemporâneo sem pensar em novela.”. Estudos demonstraram a influência das
novelas desde o planejamento família, escolha do nome dos filhos e divórcio1.
Esta influência é potencializada quando são inseridos na história temas
1
Ver Alberto Chong & Eliana La Ferrara, 2009. "Television and Divorce: Evidence from Brazilian
Novelas," Journal of the European Economic Association, MIT Press, vol. 7(2-3), pag. 458-468, 04-05. E
Eliana La Ferrara & Alberto Chong & Suzanne Duryea, 2008. "Soap Operas and Fertility: Evidence from
Brazil," Research Department Publications 4573, Inter-American Development Bank, Research
Department.
Anais do Colóquio Nacional de Estudos de Gênero e História – LHAG/UNICENTRO, p.240
relacionados às questões sociais ou questões de vanguarda, como é o caso das obras de
Glória Perez.
As obras desta autora são caracterizadas pelo merchandising social, que pode
ser definido como o uso da mídia para levar ao grande público informação sobre
questões fora de seu cotidiano ou mesmo de seu conjunto de interesses, levando-os a
constituir opinião e/ou posicionamento em relação a estas questões.
A produção televisiva é um produto sociocultural programado para a aceitação
pelo maior número possível de pessoas, por isso a diversificação dos personagens,
formando grupos distintos de representação de diversas camadas sociais, idades e sexo,
chamados de ‘núcleos’ das tramas. Mesmo com essa diversificação a telenovela ainda é
direcionada especialmente pra o público feminino, tendo mulheres como protagonistas e
o envolvimento romântico das personagens como um dos principais tópicos, quando
não o único, de suas trajetórias.
Este modelo é corroborado pelos clichês presentes nas telenovelas, que, por
trás de uma roupagem fantasiosa, busca sua essência na realidade, em prol da aceitação
do público, que reconhece esta essência, e considera legitimada pela televisão. Esta
legitimação exerce então uma influência poderosa na organização dos sistemas de
pensamento e formação de opinião e comportamento. Para este estudo foram escolhidas
três obras da novelista: Explode Coração (1995), o Clone (2001) e Caminho das Índias
(2009). Nestas três obras as personagens sofrem dramas muito semelhantes. Estão
inseridas em um ambiente de rigoroso patriarcalismo (culturas oriental e meso-oriental),
sujeitas à vontade da família, que lhes impõem casamentos arranjados. Vivem um
conflito moral, entre a busca da realização amorosa e a atenção aos valores familiares,
situação que se complica pela gravidez não planejada.
Neste artigo os objetos de estudo não são somente as representações analisadas pelo discurso- mas a capacidade deste discurso de amplificar e cristalizar a
realidade percebida por meio da análise da recepção e seu impacto no imaginário social.
Análise da recepção
A maioria da bibliografia pesquisada sobre o tema das representações nas
telenovelas aborda o assunto do ponto de vista de uma análise literária (considerando
literatura por ser analisado o discurso), fazendo conexões com o contexto da realidade à
época de suas exibições. Outro ponto bastante estudado dentro deste tema é a influência
das telenovelas nas opiniões e comportamento de seu público. Ambas as linhas de
estudo consideram a análise da recepção de uma forma mais ampla, como o
reconhecimento e a concordância do público com o discurso como La Pastina e
McAnany (1994), ou em dados estatísticos comparativos da recepção, como Chong e
Ferrara (2008), além de dezenas de artigos acerca da representação da figura feminina
na mídia.
A hipótese levantada neste trabalho se refere à absorção pelo público da
fantasia televisiva como uma afirmação do real. O projeto de pesquisa pretendia uma
pesquisa de opinião presencial, entrevistando telespectadoras diretamente, em paralelo
com a pesquisa entre os internautas, para evitar e exclusão do público sem acesso à
rede. Porém o que foi percebido durante o processo de pesquisa foi que telenovelas não
somente promovem valores e costumes, mas renovam os gostos, tendências e opiniões a
cada oito meses. Quando a novela termina, a mesma mídia de chamadas que a manteve
Anais do Colóquio Nacional de Estudos de Gênero e História – LHAG/UNICENTRO, p.241
na ordem do dia durante o período de exibição, imediatamente passa a cobrir a nova
trama, e sem o recurso audiovisual, o público que acompanhou a história, torceu pelos
seus personagens e absorveu seus ideais, dificilmente lembra-se dos detalhes das
representações contidas nos diálogos e que expressavam, ainda em um espelho convexo,
os valores da sociedade. A pesquisa então se voltou para os dados coletados na internet,
o que possibilitou a coleta de maior número de dados sobre a opinião do público e
também uma diversificação maior deste público, podendo inclusive analisar as opiniões
do público estrangeiro.
Foi realizada análise dos diálogos e representações imagéticas presentes em
cenas protagonizadas pelas personagens femininas. Foram utilizadas cenas
disponibilizadas na internet, no site da própria rede Globo, e principalmente no site
Youtube. Posteriormente, foi feita a análise da opinião do público, tomando como fonte
os comentários dos próprios usuários que assistiram aos vídeos. Também foi feita
análise da opinião sobre as telenovelas expressadas pelos usuários nos sites Facebook e
Orkut e também dos comentários publicados por leitores de blogs relacionados com os
temas inseridos nas obras estudadas, como o islamismo, hinduísmo, cultura cigana,
dança oriental e mesmo blogs e fóruns relacionados a fãs de novela em geral. Este
método foi escolhido por possibilitar a observação do direcionamento do interesse do
público em relação aos temas abordados nas cenas, ou nos tópicos dos fóruns. Sendo
sites totalmente interativos, foi possível realizar uma relação entre os temas
apresentados e a recepção, de acordo com as manifestações do público. Foram
analisados centenas de comentários, verificando opiniões em relação ao comportamento
das personagens, às culturas exóticas retratadas nas telenovelas e sua relação com a
realidade. Estas observações e análises possibilitaram ter uma amostra da influência das
telenovelas no imaginário, individual e coletivo, e a capacidade do transporte deste
imaginário para a prática social.
Representação da imagem feminina na telenovela
Nas três obras estudadas estereótipos femininos são retratado em partes
dissociadas, apresentando em cada obra cinco personagens que representam a
identidade feminina, no que se refere aos comportamentos e sentimentos a esta
atribuídos. As personagens apresentam um comportamento padrão, Em Explode
Coração, O Clone e caminho das Índias, respectivamente:
Dara, Jade e Maya: A heroína, que busca a realização do amor romântico, e
para tanto rompe com as tradições familiares, no entanto, quando se veem presas pela
necessidade à família, usam a mentira e alienação para escaparem das consequências de
suas transgressões. Ela representa o espírito feminino instável, impulsivo e
inconsequente.
Ianca, Latifah e Camila: A jovem fiel às tradições, que aceita de bom grado
todos os limites impostos a seu sexo, em nome da religiosidade, da preservação dos
costumes e da harmonia familiar. Esta representa a vitória das tradições, mostrando uma
mulher feliz e realizada pelo casamento.
Vera, Maysa e Duda: A rival romântica, uma mulher com valores culturais
totalmente diversos aos da heroína, e que teve ligação amorosa com o galã, mas foi
preterida. Luta para reconquistá-lo, contando com uma liberdade que a heroína não
possui, confusa entre a busca da própria felicidade e vingança contra sua rival.
Anais do Colóquio Nacional de Estudos de Gênero e História – LHAG/UNICENTRO, p.242
Representam o vazio existencial na falta de um companheiro
Eugênia. Ranya e Surya: A antagonista. Movida pelo ciúme, quer ocupar o
lugar da heroína. Dissimulada, usa de intriga, difamação e trapaças para alcançar seu
objetivo. Representam a inveja e o individualismo, a existência feminina como uma
constante competição.
Odaísa, Zoraide e Kochi: A mulher mais velha que consola e aconselha a
heroína, por vezes acobertando suas transgressões mesmo discordando destas ações.
Representa a compaixão, mas também a fraqueza de caráter.
Soraya, Nazira e Laksmi: A moralista, também uma mulher mais velha, mas
protetora dos costumes, e que mantém a heroína constantemente sob suas críticas e
vigilância. Representa a consolidação dos costumes, a perspectiva futura de uma
posição de maior importância, uma recompensa por uma vida virtuosa.
As novelas desempenham um papel na formação do discurso do feminino, e
destinado a esse público, focando a lógica do privado, destacando os valores da cultura
do machismo patriarcal, representando mulheres como seres vulneráveis, destinadas a
maternidade (todas as heroínas de telenovela tem filhos), a personalidade histérica e
obsessiva, que lutam pelo amor do galã distante e moralmente ambíguo.
Reapresenta-se então o modelo feminino verificado por Thomasseau:
desenha-se, ao longo do século dezenove, um retrato da mulher exemplar
suportando, com toda a coragem, ultrajes e afrontas [...] Belas, bondosas, sensíveis,
com uma inesgotável aptidão para sofrer e para chorar [...] Em geral elas superam
os homens em devotamento e generosidade (THOMASSEU, 2005, p.43).
A alta audiência feminina2 explica-se pelas tramas conterem como tópicos, o
inflame das prioridades tradicionalmente consideradas exclusivamente femininas:
sentimentos, maternidade, submissão. Em Explode Coração e O clone, as heroínas se
rebelam contra os costumes impostos por suas famílias, a princípio porque desejam a
liberdade e a adequação ao mundo moderno.
Dara: Eu quero estudar, mãe, tirar meu diploma conquistar meu lugar no mundo.
Lola (mãe): Você nunca vai ter o meu apoio. Eu não vou aceitar isso e teu noivo
também não vai aceitar.
Dara: Você não entendeu mãe. Não vai ter casamento.
(Explode Coração cap.1)
Porém estes desejos são suplantados assim que as heroínas se apaixonam,
quando então seus objetivos se tornam a busca da realização do amor idealizado. Na
busca pela liberdade individual, ainda há ponderação dos atos, argumentação com a
família. Mas a partir do momento em que a heroína se apaixona, seu lugar no mundo
passa a ser ao lado do homem amado, e a conquista deste lugar o seu único objetivo, e
2
As mulheres adultas representam 50% da audiência de televisão, sendo os outros 50% o público
masculino e infantil. As telespectadoras assistem à televisão em média 5 horas por dia. Fonte: IBOPE
Anais do Colóquio Nacional de Estudos de Gênero e História – LHAG/UNICENTRO, p.243
do qual ela depende.
Jade: Vocês me obrigaram a casar eu não queria casar.
Said: Então por que casou? Você podia ter dito não... Casou porque ele já tinha te
jogado no vento. (O Clone cap.89)
Jade: Um homem quando pede para uma mulher se jogar no vento e diz que segura,
ele segura. (O Clone, cap.232)
A busca do amor romântico é a único objetivo capaz de fazer a heroína romper
com seus valores morais e religiosos (no caso perdendo a virgindade) e questionar o
poder familiar sobre si. O amor e, somente por consequência deste, o sexo, recémdescobertos rouba-lhe a coragem de buscar a independência, pois a formação e
manutenção da família tornam-se o lugar de realização do amor, tornando-os
indissociáveis (COSTA, 1999).
As personagens Dara, Jade e Maya são direcionadas pela emoção, seus atos de
rebeldia são impulsivos e não refletidos, não argumentam sobre seu subjugo baseado na
sua condição feminina, mas sim buscam uma fuga para os seus próprios problemas, uma
mudança na sua situação particular, não se reconhecendo como parte de um gênero
oprimido e contestando essa opressão, mas sim as consequências que as afetam
diretamente.
Surya por favor, não me entregue. Eu estou perdida se você me entregar. E você
não vai ganhar muito com isto [...] Porque você odeia tanto porque você tem tanta
raiva de mim desde que eu coloquei os pés nesta casa você faz de tudo pra me
atingir tudo que está ao seu alcance para colocar os meus sogros e meu marido
contra mim [...].
Surya: Você está poluída, poluiu esta casa toda e enganou todo mundo.
Maya: Você também está enganando, você não é melhor do que eu.
Surya: Eu estou me defendendo [...] Vou recuperar o lugar que você me roubou.
(Caminho das Índias cap.189)
Na análise dos diálogos, percebe-se que, apesar de haver empatia em alguns
momentos, não há solidariedade, seja em sentimentos ou ações, entre as personagens,
nas manifestações de resistência ou fuga das imposições feitas a estas devido a seu sexo.
Em nenhum momento há a identificação de um problema como decorrente de seu papel
sexual, nem a culpabilização daqueles que impõe a elas estas condições.
Ao invés disso é demonstrado empenho em justificar estas condições como
parte da preservação de um patrimônio cultural intrínseco (religião e costumes).
Paradoxalmente, há um esforço para justificar as transgressões desse sistema de valores
e todas as ações posteriores tomadas a fim de ficarem impunes a estas transgressões e
pela manutenção de situações que as beneficiam, sendo o benefício máximo a realização
do ideal romântico, mas buscando em conjunto a aprovação da família.
O poder feminino representado consiste e se resume ao uso do corpo e da
condição de fêmea para obtenção de concessões materiais e psíquicas, despertando no
homem a libido ou a compaixão, buscando atender às emoções.
Anais do Colóquio Nacional de Estudos de Gênero e História – LHAG/UNICENTRO, p.244
Uma das cenas de O Clone com mais versões e visualizações no site Youtube, é
uma cena sem diálogos. A heroína Jade faz uma demonstração de dança oriental, para o
marido Said e a rival Maysa. Estes têm a intenção de humilhá-la, colocando a em uma
situação de exposição e subserviência. Mas a situação é invertida quando Said percebe
que Jade está feliz em exibir-se para Maysa, pois faz uma demonstração de seu poder de
sedução, usado para conquistar o esposo de Maysa, Lucas. A cena termina com Maysa
gritando que basta e Jade deixando a sala, rindo. Seu objetivo havia sido alcançado.
Sob um aparente controle de provocar a apreciação, aos impulsos da libido, seu
desejo ainda é mediado pela visão utilitarista, que, naturalmente, está longe de ser
compatível com verdadeira autonomia.
A sexualidade é representada de forma totalmente desnaturalizada, como arma
(para manipular um homem ou intimidar uma rival), ou como entrega total ao amor, este
então assumindo um papel impeditivo à reflexão, ao bom senso, que permitiriam à
mulher manter sua “pureza”.
Maya: Eu já estava muito apaixonada. Eu não conseguia mais dizer não.
(Caminho das Índias capítulo 189)
Estas representações remontam a perspectiva de Foucault (1976) , tanto na
definição da sexualidade, como na inscrição histórica da sexualidade feminina:
[...] um nome que se pode dar a um dispositivo histórico: não a realidade
subjacente, sobre a qual se exerceriam controles difíceis, mas uma grande
rede de superfície onde a estimulação dos corpos, a intensificação dos
prazeres, a incitação ao discurso, a formação dos conhecimentos, o reforço
dos controles e das resistências se encaixariam uns aos outros, segundo
algumas estratégias de saber e poder. (Foucault,1976:139)
[...] o que pertence por excelência ao homem e falta à mulher; como o que pertence
em comum ao homem e à mulher. mas ainda como o que constitui totalmente o
corpo da mulher, ordenando-o todo às funções de reprodução e perturbando-o sem
cessar pelos efeitos desta mesma função. (Idem: 201/202).
Esta desnaturalização associa a sexualidade feminina com os sentimentos, mas
não necessariamente associa estes com o casamento, que representa uma elevação no
status da fêmea em relação às demais, a partir do qual deterá o direito de
reconhecimento como parceira do homem. Na novela Caminho das Índias, ocorre que o
amor a ser buscado é o do próprio marido. O que o diferencia dos maridos das outras
tramas é justamente o seu distanciamento emocional, a necessidade de conquistá-lo.
Duda: Ele não te falou? (sobre o relacionamento antes do casamento).
Maya: Ele não precisou falar. Nós ainda não estávamos casados. Ele ainda não era
meu marido. Ele ainda não era meu.
(Caminho das Índias cap.121)
Embora o casamento garanta a mulher uma elevação no status e o
Anais do Colóquio Nacional de Estudos de Gênero e História – LHAG/UNICENTRO, p.245
comprometimento do homem, a sexualidade masculina é dissociada tanto do amor como
do casamento, mostrando a liberdade sexual como algo natural homem.
Eugênia: Você não pode querer controlar tudo desse jeito... O Júlio é um homem
charmoso, meu deus, o que é que você vai fazer? As mulheres olham para os
homens charmosos... E daí? Ele é teu marido. Ele escolheu você, para casar com
você, relaxa!
Vera: Ele tá é me afrontando, Eugênia![...] Desta vez ele vai ouvir! (sai de cena)
Eugênia (balançando negativamente a cabeça): Tonta!
(Explode Coração cap.1)
A mulher que se atreve a exigir do homem um comportamento sexual
semelhante ao seu, cuja conduta moral tem como principal critério de julgamento o
comportamento sexual (SARTI, 1989:42), é vista como tola e histérica. O homem ainda
é uma criatura pública, cuja personalidade e valor seu medidos pelas suas competências
e conquistas, enquanto o valor feminino está arraigado o corpo. Sendo assim o poder
conferido a mulher casada é o chamado por Bordieu poder por procuração (BORDIEU,
2011:42) se refere ao que é público de seu marido ( nome, posição social, dinheiro).
Lidiane: Eu não acredito que você vai ficar indiferente, que você não vai reagir...
Maysa: É claro que eu vou reagir!
Lidiane: Quer que eu vá até ele e cumprimente? Pra ele ficar bem sem graça? Eu
vou!
Maysa: Deixa, que eu prefiro me vingar do meu jeito.
Lidiane: O que você vai fazer?
(Maysa leva a amiga até a frente de uma vitrine e aponta um colar exposto)
Maysa: Que tal? É hoje que eu estouro o cartão de crédito dele!
Lidiane: Sua louca! (O Clone Cap. 1)
A cena demonstra a dissociação de condição de esposa e mesmo se seus
sentimentos, do comportamento sexual, cria uma visão feminina da economia de bens
simbólicos. Como a mulher é ferida tendo rejeitado o seu único objeto de poder e o que
ela oferece de mais precioso ao homem, o corpo, ela o fere atingindo o seu mecanismo
de poder, o dinheiro.
Telenovelas e o imaginário social
Glória Perez define o seu próprio método de trabalho como antropológico.
Refere-se a ele desta forma pelo fato de sair a campo para vivenciar a cultura a ser
retratada em cada história que escreve. A autora, que é mestre em História pela UFRJ,
também defende a televisão como forma de “levar cultura às classes menos favorecidas”
assim como usa suas histórias para a divulgação de temas sociais. No entanto também
defende a licença artística tanto para retratar as culturas exóticas como para
potencializar o drama nas telenovelas.
Para a autora, a fantasia é inerente ao gênero folhetim. Na pesquisa das
opiniões dos internautas, 60% dos que se manifestaram a esse respeito, concordavam
com os “exageros em nome da arte”, enquanto 40% consideram estas perigoso
Anais do Colóquio Nacional de Estudos de Gênero e História – LHAG/UNICENTRO, p.246
representações fantasiosas perigosas para as “mentes fracas” e chegam a se um
“desserviço à população”. Coincidentemente (ou não) estas mesmas porcentagens 60-40
apontam, respectivamente, os que não concordam com os comportamentos das
personagens (liberação sexual e abandono do casamento), e aqueles que consideram
aceitável, se for pela realização do amor.
O afastamento da ficção em relação à realidade social deve ser analisado de
acordo com informações que apontam as necessidade e aspirações de determinado
momento.
O diálogo entre as obras e a vida nacional também é dificultado pelo fato de,
no Brasil, não haver uma cultura popular abrangente e fortemente definida. Por isso a
propensão do público brasileiro a tomar como realidade as representações televisivas.
Cabe uma analogia aos registros Lacanianos e a relação da TV com o telespectador
conforme coloca Santaela (1999). Sendo a televisão o espelho e o espectador o eu a se
formado. O espelho confere a unidade necessária para a confirmação da identidade.
Como ocorre com toda cultura periférica, o público brasileiro tende a olhar
para si mesmo como exótico, diferente do que seria a norma de cada fase do período
histórico. Nos dias atuais, a cultura brasileira já está muito permeada pelas culturas de
irradiação tradicionais, europeia e norte-americana. Procura então outra forma de
diferenciar-se das normas das culturas de irradiação. Esta diferenciação então pode
manifestar-se destacando, no meio sociocultural receptor, aspectos superficiais desta
cultura periférica, que não necessariamente têm real influência no cotidiano e no
regimento social.
Considerando que 80% da audiência televisiva é formado pelas classes C, D e
E, cuja principal atividade nas horas livre é assistir televisão, é necessário considerar
seu papel como mais importante do que simples entretenimento.
Sendo assim, a televisão tem também uma função pedagógica informal. “Uma
das preocupações em relação a essa função é pensar uma forma de como transformar
informação em conhecimento, pois a mídia nos apresenta um mundo difuso e calcado
no consumo.” (RODRIGUES, 2006).
Para o telespectador, a representação da realidade na televisão terá forte
impacto na formação de sua opinião, e em se tratando de um ambiente diverso, deve ser
considerado o processo de aculturação por parte próprio telespectador.
Quando o processo de pensamento (a cultura representada) é exposto a
contribuições exteriores (valores do autor), pode tomar outra forma quando repensado
em um meio sociocultural inteiramente diverso (do telespectador) daquele que o
originou.
O pensamento crítico deve ser uma relação de fatos, e esta relação precisa ser
imaginada e depois verificada. Quando não é elaborada esta relação, o receptor poderá
somente supor relações, imaginadas a partir de sua própria experiência, permeadas por
tradições cuja origem não pode explicar.
Assim se desenvolvem se estabelecem e se renovam as versões estereotipadas,
correntes e presentes a ponto de incapacitar os sujeitos ao desenvolvimento destes
processos de pensamento e ao domínio sobre as informações. A reportagem da Folha de
São Paulo demonstra o alto crédito dado pelas telespectadoras às representações dos
homens indianos em Caminho das Índias:
Anais do Colóquio Nacional de Estudos de Gênero e História – LHAG/UNICENTRO, p.247
A partir de 2010, a Embaixada do Brasil em Nova Déli começou a receber
demandas por auxílio financeiro para o retorno das brasileiras, apoio jurídico em
casos de conflitos e registros de casamento indo-brasileiros [...] A popularização do
Orkut e do Facebook, em que predominam brasileiros e indianos, e a novela
"Caminho das Índias", exibida em 2009 pela Rede Globo, são apontadas pelo
Itamaraty como os catalisadores do fenômeno. "Raj [protagonista da novela, vivido
pelo ator Rodrigo Lombardi], esse cara é o meu problema. O personagem da
novela se materializou no Orkut” - Marcelo Ferraz, diplomata da Divisão de
Assuntos Consulares em Brasília.(Folha de São Paulo 11.06 2011)
Nos comentários dos telespectadores nos sites pesquisados, 30%
demonstravam encantamento com os valores culturais exóticos apresentados nas tramas,
manifestando o desejo de “que a no Brasil fosse assim”, assim como admiração pela
forma do amor romântico representada e do comportamento feminino inerente àquela
cultura.
Amo demais essa novela, as danças, a historia do povo árabe. O amor que se
cultiva dia a dia e não como o nosso que primeiro ama e depois desama dia a dia.
Depois que assisti a essa novela, comecei aulas de dança do ventre e estou me
descobri nisso. A magia das mulheres, andar coberta e despertar a curiosidade e a
imaginação dos homens, ser sensual sem ser vulgar, falar com a dança isso é
conquista e sedução, e não andar seminuas por aí, se oferecendo para qualquer um.
(Para o site Youtube, sobre a novela O Clone, usuária Kareemah em nove de
fevereiro de 2011).
Neste comentário observa-se além da admiração pela cultura retratada, a
capacidade de absorver os valores representados como reais e transportá-los, portanto
aplicação prática. Do total de comentários analisados, 18% relatava a influência das
novelas em mudanças significativas na vida destes telespectadores, desde a escolha de
profissões até casamentos.
A propensão à aceitação da representação como realidade se reflete também na
comparação dos comentários dos usuários estrangeiros, nos sites Youtube e Facebook.
As telenovelas fazem sucesso nos Estados Unidos, outros países da América latina e até
na Rússia, mas os enquanto os comentários dos fãs estrangeiros, em sua quase
totalidade se referiam à trilha sonora, à beleza da história contada, utilizando as palavras
‘personagem’ e ‘atuação’, os brasileiros tratam os personagens pelo nome, o descrevem
e a seus atos como sendo pessoas reais.
As montagens para a ficção televisiva se misturam com a realidade nos olhos
de quem vê, de modo que as fronteiras entre eles são pouco visíveis, como Adorno
(2007) recorda, referindo-se ao cinema.
O mundo inteiro deve passar pelo filtro da indústria cultural, a velha experiência do
espectador, que vê a rua fora da sala como o show em seguida, basta sair, porque
este só quer reproduzir fielmente o mundo perceptivo de vida cotidiana, tornou-se
Anais do Colóquio Nacional de Estudos de Gênero e História – LHAG/UNICENTRO, p.248
o leitmotiv da produção. As técnicas mais perfeitas e totalmente cinematográfica
duplicar objetos empíricos, mais facilmente realizado hoje a ilusão de que o mundo
fora da sala de projeção é a simples extensão do que é conhecido dentro dele.
Adorno coloca muito bem, citando Tocqueville, no contexto da nova ética,
onde a discriminação está disfarçada em distinções fundamentadas, e onde uso opressor
da força física se converte um uma censura moral arraigada, o que implica algum tipo
segregação.
O discurso da mídia, através de suas imagens, sons, enredos, histórias e narrativas,
possui ideologias e significados variados, exercendo a televisão um grande fascínio
nos telespectadores. As pessoas assistem com regularidade a certos programas e
eventos; há fãs das várias séries e estrelas com um grau incrível de informação e
conhecimento sobre o objeto de sua fascinação; as pessoas realmente modelam
comportamentos, estilos e atitudes pelas imagens da televisão.” WOODWARD
(2000, p. 17-18).
A televisão absorve o real, o amplifica cristaliza. Mais do que inserir valores,
legitima os valores existentes, dando a eles o aval da “alta cultura”.
Ultrapassa o campo do entretenimento, moldando gostos, sentimentos e
atitudes.
Considerações Finais
Mesmo na cultura ocidental atual, as mulheres ainda são educadas de forma a
considerar os relacionamentos românticos o norte de sua existência. A busca do amor,
através de todas as formas possíveis de agradar ao sexo masculino, ainda prevalece
sobre todos os outros aspectos da vida. E busca pela aprovação masculina, antes algo
institucionalizado, formalizado e abertamente ensinado às mulheres, passou á condição
de um valor tão absorvido que suas manifestações são tomadas como naturais.
As mulheres tomaram distância da linguagem romântica, aceitaram cada vez
menos sacrificar estudos e carreira no altar do amor, mas seu apego privilegiado ao
ideal amoroso perdurou, elas continuam maciçamente a sonhar com o grande amor,
ainda que fosse fora do casamento.” (LIPOVETSKY, 2000: 28)
Mesmo com uma crescente emancipação feminina no que tange ao aspecto
material, os próprios hábitos de consumo desta mulher emancipada podem refletir a
necessidade interna da realização pessoal somente alcançada pela conquista do amor,
gerando um imaginário social do ser feminino. Na forma da abordagem de Henri
Cartier, a imaginação é a percepção da realidade, é o que as pessoas têm para explicar o
mundo.
Anais do Colóquio Nacional de Estudos de Gênero e História – LHAG/UNICENTRO, p.249
O imaginário social é o método de construção e definição do que os indivíduos
percebem como realidade. Se a sociologia tinha apontado, face ao positivismo, que
real, é sempre algo significativo para um assunto, o imaginário social é o elemento
que permite uma inteligibilidade concessão especial e sentido da realidade. (...) A
ação coercitiva dos aparelhos ideológicos, dá lugar à realidade de construção de
estratégias para os meios de comunicação, através da instrumentalidade do
imaginário social. (CARTIER, 2011)
A identidade feminina é representada, seja como a heroína em fuga, a rival
consumista ou a vilã maléfica que promove intrigas, sempre com o mesmo objetivo de
ocupar o lugar ao lado de um homem. Reflete-se a aceitação desta identidade, nos
comentários pelo pequeno número, apenas 6%, que se manifestaram contrários à forma
como as mulheres eram representadas nas novelas.
Estas representações, por fim, legitimam a condição de dependência, criando
um círculo vicioso do imaginário. Retratando as mulheres como incapazes de realmente
subverter estas condições impostas a seu sexo por um trabalho constante de doutrinação,
tendendo, portanto a transgressões que corroboram a imagem historicamente construída
das fêmeas apresentando-a sob uma nova roupagem, que vela esta historicidade e seus
efeitos, e contribuindo para sua manutenção.
Referências
ADORNO, T. W. e HORKHEIMER, M.. Dialética do esclarecimento. Editora Zahar,
1997.
BORDIEU, Pierre. Os Usos Sociais da Ciência. Tradução Bárbara Catani. Editora
UNESP, 1997.
BORDIEU, Pierre. A dominação masculina. Editora Zahar 2011.
BORDIEU, Pierre Sobre a Televisão. Tradução Maria Lucia Machado. Editora Zahar
1997.
BRAGA, Maria Lucia Santaella. As três categorias peircianas e os três registros
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Cassia Bethania Groess de Souza Barbosa