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Mestrado em Letras • UEMS / Campo Grande
ISSN: 2178-1486 • Volume 4 • Número 10 • julho 2013
A RESISTÊNCIA NEGRA NA NARRATIVA DE JOSUÉ
MONTELLO: COMPREENDENDO COMO OS TAMBORES DE
SÃO LUÍS EXALTAM A CULTURA NEGRA
Denise Maria Soares Lima – UCB1
[email protected]
Marcelo Nicomedes dos Reis Silva Filho – UCB2
[email protected]
RESUMO: A cidade de São Luís no Maranhão, entre outras capitais brasileiras, recebeu um contingente
grande de africanos escravizados. Em razão disso, tornou-se também um espaço de resistência negra,
desde o período pré-abolicionista. Essa característica ludovicense é relatada em Os tambores de São Luís,
do escritor modernista Josué Montello. Nessa obra, o autor revela múltiplas formas de resistência: da
criação e expansão dos quilombos à mobilização das comunidades negras nos terreiros em prol da
libertação. O olhar apurado do escritor maranhense dialoga com o passado e invoca a discussão no
presente sobre preconceito e discriminação raciais e resistência da população negra. Neste sentido, esse
artigo tem como objetivo analisar essas narrativas, focando especificamente a luta dos negros no Brasil,
salientando a cultura negra brasileira e a contribuição do negro na formação da sociedade nacional. Para
tal fim, tem como marco legal e teórico a Lei 10.639/2003, que obrigou o estudo de História e Cultura
Afro-brasileira nas escolas de ensino fundamental e médio, demonstrando como a referida obra valoriza
aspectos da história, cultura, política, economia, linguagem e religiosidade da população negra.
Palavras-chave: Resistência negra. Contribuições afro-brasileiras. Lei Federal n. 10.639/2003.
ABSTRACT: The city of São Luis in Maranhão, among other capitals, received a large contingent of
African slaves. As a result, it has also become a space for black resistance, since pre-abolitionist. This
characteristic is reported in Os tambores de São Luís, the modernist writer Josué Montello. In this work,
the author reveals multiple forms of resistance: the creation and expansion of the Quilombo the
mobilization of black communities in the yards for the liberation. The sharp eyes of the writer
maranhense dialogues with the past and the present discussion relies on racial prejudice and
discrimination and resistance of the black population. In this sense, this article aims to analyze these
narratives, focusing specifically on the struggle of blacks in Brazil, highlighting the Brazilian black
culture and the black contribution in the formation of national society. To this end, has the legal and
theoretical 10.639/2003 Law, which required the study of History and Afro-Brazilian schools of
1
Professora da rede escolar pública do Distrito Federal desenvolve projetos para Educação Antirracista
em salas de aula, especialista em Língua Portuguesa e em Educação na Diversidade e Cidadania, com
ênfase na Educação de Jovens e Adultos. Mestre em Educação pela Universidade Católica de Brasília e
pesquisadora da Cátedra UNESCO de Juventude, Educação e Sociedade da mesma universidade. CV:
<http://lattes.cnpq.br/5009165308375680.>.
2
Mestrando em Educação pela Universidade Católica de Brasília - UCB, Professor da rede pública
Estadual e Municipal do Maranhão, e pesquisador da Cátedra UNESCO de Juventude, Educação e
Sociedade da UCB e do grupo de linguagens, Cultura e Identidade da UFMA. CV: <
http://lattes.cnpq.br/6104635609099598. >.
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elementary and secondary education, demonstrating how such works valued aspects of the history,
culture, politics, economy , language and religion of the black population.
Keyword: black resistance. african-Brazilian contributions . Federal Law. 10.639/2003.
Introdução
De Norte a Sul, a escravidão imperou no Brasil pré-republicano; em alguns
estados, com maior destaque, dado o elevado percentual de indivíduos escravizados
aportados nestes lugares. O Maranhão, certamente, figura entre um desses.
Nesse
período, embora a escravatura tenha ocupado parte considerável da historiografia
brasileira, a produção literária sobre o assunto reúne um percentual reduzido de obras
sobre o tema.
Diante dos escassos debates sobre a escravidão na literatura, o romance de Josué
Montello Os tambores de São Luís: a saga do negro brasileiro merece destaque ao
eleger o tema da escravidão para tratar dos dramas humanos intrínsecos a esse
fenômeno. Essa publicação, datada de 1975 (quase um século após a abolição), trouxe
para a discussão contemporânea temas ainda polêmicos como o preconceito, a
discriminação, o racismo e a violência racial presentes na sociedade brasileira préabolicionista. Assim, o olhar apurado do escritor maranhense dialoga com o passado e
invoca a discussão no presente sobre essa instituição que dominou a cena política e
social do Brasil no fim do século XIX.
Para tal intuito, o escritor escolheu algumas províncias aos arredores de São Luís
e a capital maranhense – reconhecidamente espaço de resistência negra – para
comporem o cenário da narrativa. Ao longo da obra, o autor revela múltiplas formas de
resistência negra: da criação e expansão dos quilombos à mobilização das comunidades
negras nos terreiros em prol da libertação.
Neste contexto de estudos sobre literatura e contemporaneidade, esse artigo tem
como objetivo analisar as narrativas em Os tambores de São Luís, tendo como ponto de
partida a luta dos negros no Brasil, salientando a cultura negra brasileira e a
contribuição do negro na formação da sociedade nacional. Especificamente, também
pretende discutir a representação do negro na literatura e a inserção da Lei nº
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10.639/2003, que obrigou o estudo de História e Cultura Afro-brasileira nas escolas de
ensino fundamental e médio, relacionando os tempos e espaços históricos relativos à
população negra narrados na obra com estudos contemporâneos que investigam o
mesmo tema.
Personagens negros e literatura brasileira
Estudos sobre a representação do negro na literatura brasileira comprovam
largamente a presença de estereótipos raciais (BROOKSHAW, 1983; LIMA, 2000;
BARBOSA, 2006). Esses autores demonstram que uma grande parte dos textos
literários brasileiros retrata personagens negros como objetos, geralmente revelados por
uma linguagem preconceituosa em relação às negras e aos negros.
De acordo com Silva (2008), diversas pesquisas brasileiras têm buscado
examinar e decodificar as desigualdades raciais no plano simbólico ou discursivo e
revelam que: “Os discursos, no geral, negam a existência de discriminação racial e
procuram disfarçá-la, buscam reiterar os ideários da democracia racial e da fábula das
três raças, reafirmando estereótipos racistas, grande parte das vezes de forma indireta”
(SILVA, 2008, p. 95).
Neste aspecto, Brookshaw (1983), ao analisar os discursos produzidos na
literatura brasileira sobre negros, destaca algumas características mais recorrentes, entre
essas: subserviência, passividade, conformismo, rebeldia, crueldade, brutalidade,
violência, erotismo e malandragem que habitam os personagens (por exemplo: o
escravo nobre, o escravo demônio, o negro vítima, o negro infantilizado, erotizado e
sensual). Segundo o mesmo autor, não somente os perfis dos personagens negros são
estereotipados, mas também o enredo que os envolve evidencia um discurso racista.
Em relação à representação dos indivíduos negros associados à escravidão, a
questão que se impõe em relação aos textos literários é justamente a cristalização da
imagem do escravo como real, reproduzindo-a como condição única. Nesta perspectiva,
Lima (2000, p. 98) adverte que “o problema não está em contar histórias de escravos,
mas na abordagem do tema”. Essas narrativas, segundo a autora, ao reforçarem a
dominação unilateral, naturalizam a condição de escravizado, apagando a história
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coletiva ao não trazer outras e melhores referências constantes na historiografia
brasileira.
Por outro lado, constam também em nossa literatura produções que buscam
desconstruir o caráter pacífico e humano da escravidão assim como narrativas que
denunciam o preconceito racial. Assim, elucida Barbosa (2006):
Nesse escritos, o negro é sujeito de ações que buscam uma identidade negra e
instauram uma poética da diversidade ou, mais precisamente, de uma
literatura negra brasileira, que ressalte-se, ainda é, até hoje, pouco estudada.
Ainda assim, ela tem-se mostrado como um espaço possível para a luta
contra a discriminação racial (BARBOSA, 2006, P. 97).
Neste perfil de autores que tratam da temática negra, Josué Montello, em sua
obra Os tambores de São Luís: a saga do negro brasileiro, discorre sobre aspectos
históricos da escravidão no Brasil, e, mais particularmente, no Maranhão. Assim, o
recorte realizado neste artigo investiga, inicialmente, a presença de elementos na obra
capazes de valorizar a história e cultura negra. Contudo, vale acrescentar que esse
estudo de caráter exploratório, ao longo da pesquisa em andamento, pormenoriza outros
aspectos ambíguos e equivocados em relação às relações raciais existentes na mesma
publicação, que não serão abordados aqui. A seguir, a análise foca trechos da obra sobre
duas vertentes: territórios de resistência negra: quilombos e terreiros e territórios de
denúncias e lutas.
Territórios de resistência negra: quilombos e terreiros
Os tambores de São Luís: a saga do negro brasileiro é romance de ficção
composto por duas narrativas que se entrelaçam no decorrer da obra. A primeira
apresenta um ciclo pequeno que, em tom de mistério, inicia com um episódio
inesperado ocorrido à noite, no início do século XX, já a segunda apresenta um ciclo
mais longo, durante o século XIX, no qual transcorrem quase cem anos de escravidão.
Nos dois ciclos, ocorrem inúmeros fatos largamente desenvolvidos no decurso
da obra montelliana, contudo, essa análise volta-se especificamente para os quilombos e
os terreiros buscando, a partir de trechos da produção literária, refletir sobre esses
espaços de resistência negra.
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Ainda que de modo abreviado, dois capítulos, a discussão sobre a formação do
quilombo no romance apresenta algumas particularidades: fixação ao território,
manutenção de uma coletividade, reprodução de valores culturais, proteção espacial e
resistência, como demonstram os enxertos abaixo:
Tinham-lhe falado do Quilombo do Mané Quirino, para os lados do rio
Maracaçumé, no caminho do Pará. Na travessia do rio, fora obrigado a
sacrificar um dos cavalos. p. 21.
Egressos de outras fazendas longínquas, novos negros ali chegaram, e não
tardou que, uma noite, á hora em que descem os voduns nos terreiros
sagrados, ressoasse um tambor, abafado pela floresta circundante. Também
apareceu uma cabaça. E ainda um ogã. p. 22.
Por esse tempo o quilombo já tinha a casa de farinha, a engenhoca, o seu
pequeno cemitério. ... De vez em quando, por uma notícia vinda de longe, ou
pela susta precipitada de um dos vigias, corria no quilombo um alvoroço de
guerra. p. 29.
[...] A vida é iguar para todo mundo. Ninguém quer ser escravo, tudo quer ser
livre. Cativeiro de negro tem de acabar, Pra acabar só tem um jeito: é os preto
se juntar. No Brasil, tem muito preto, mas tudo espaiado, uns aqui, outros ali.
Não há lugar sem quilombo. E tudo no mato, escondido como nós [...] p. 30.
Nos trechos acima destacados, a comunidade quilombola criada por Julião,
personagem oriundo da África, não é apenas um espaço de fuga, que se isola do
restante, é essencialmente, um local para sobrevivência, inicialmente, de sua família, e,
posteriormente, para manutenção do grupo e continuidade de outras referências
culturais e históricas. Neste sentido, Reis (2009) ensina que esses territórios, embora
estivessem protegidos não se mantinham isolados; geralmente, eram circunvizinhos as
cidades, vilas ou fazendas, onde trocavam informações, mercadorias e estabeleciam
negócios.
Além desses dados, os quilombos também se comunicavam e organizavam ações
coletivas, dando ensejo a algumas rebeliões, como a Balaiada, citada, por Montello: “O
nego Cosme, que tinha mais gente que nós, não aguentou a guerra dos branco. O Balaio
também acabou se entregando” p. 31. Assim, o quilombo de Julião apresenta
sucintamente algumas referências sobre os quilombos como modos de viver e existir
dos africanos e seus descendentes fora da África, histórica e culturalmente.
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Outro território que se destaca na narrativa de Montello são os terreiros. Esse
espaço é representado pela Casa-Grande das Minas3, conforme descrições abaixo:
A casa é baixa, rente à calçada da rua, e já deve ir a caminho de dois séculos.
Não se sabe dizer quando foi construída [...] p. 257.
Quem desce a rua sinuosa, na direção do centro da cidade, depois de passar
pela igreja de são Pantaleão, vê um bando de construções primitivas, todas
acachapadas, com beirais salientes e batentes de cantaria. Para identificar a
Casa-Grande das Minas, não é preciso quebrar a cabeça. De ali por perto,
qualquer pessoa dirá onde ela fica; de noite, bastará guiar-se pelo bater dos
tambores. p. 257
A origem da Casa das Minas há de ser sempre um mistério. Ninguém saberá
quem lhe assentou os alicerces, com as disposições internas para ritos e
cerimônias. Tudo quanto se sabe tem a limpidez do testemunho histórico:
limita-se á tradição oral. p.259.
3
Ilustração acima “Casa das Minas” criada pelo artista, jornalista e webdesigner Ricardo Borges.
Atualmente, é jornalista na Universidade de Brasília (UnB).
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A Casa das Minas na obra também é constantemente referenciada pelos sons dos
tambores que repercutem por toda a cidade de São Luís. Na obra, facilmente,
identificados:
E nisto começou a ouvir, por cima do sussurro do vento nas árvores do
quintal, o bater de tambores rituais. [...] O contravento de manga
esfumaçada arregalava o seu olho vermelho sobre a bandeira da porta,
como que vigiando os negros que dançavam no terreiro, ao som dos
tambores e das cabaças. p. 164.
Esse lugar na narrativa, o terreiro, é demonstrado como local de resistência
negra, que apoia e luta pela libertação dos negros, dando-lhes cobertura e ajuda para
fugirem:
No entanto, para a Genoveva Pia, a noite era de trabalho. Refugiados
na sua casa, dezesseis negros aguardavam que a velha os livrasse do
cativeiro, antes que rompesse o novo dia. [...] Alguns traziam no corpo
as roupas com que deveriam dançar o bumba-meu-boi: havia entre
eles dois vaqueiros, três tocadores de matraca, outro de zabenba e um
preto gordo muito barrigudo, e que trazia às costas um tambor-onça. p.
326.
Segundo Camargo (2012), os terreiros, no Brasil, sobreviveram, apesar dos
conflitos e tensões permanentes durante todo o período escravista, cultivando
particularidades regionais, tais como o tambor de mina, no Maranhão, xangô no Recife,
batuque do Rio Grande do Sul, que são religiões nascidas na resistência negra
de diferentes nações, como jeje, fon, mina, e que conservaram cultos e matrizes
parecidas. Essa sobrevivência, certamente, marcada pela resistência a preconceitos,
como revelados em Os tambores de São Luís: “Eu, para lhe ser franco, não conheço,
entre os meus pretos, nenhum deles com vocação religiosa. Só se for para a religião
deles, com tambor e pajelança”. p. 116.
Hoje, em relação a desrespeitos e preconceitos sentidos por religiões de matrizes
africanas, assim se pronuncia documento elaborado pela Secretaria Especial dos
Direitos Humanos:
Terreiros de umbanda e candomblé são os locais de culto das religiões de
matriz africana. São, portanto, tão sagrados quanto qualquer outro templo, de
qualquer religião. E, no entanto, esses terreiros têm sofrido constantes
ataques, em diversos pontos do Brasil. Objetos de cultos são destruídos,
seguidores de umbanda e candomblé chamados de “adoradores do diabo” e
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suas celebrações e festas religiosas interrompidas, de forma desrespeitosa,
por pessoas de outras religiões (BRASIL, 2004, p. 27).
Diante dessas notas, percebe-se que tanto o estudo dos quilombos como dos
terreiros são importantes para o conhecimento e valorização da história dos povos
africanos e afrodescendentes na formação da sociedade brasileira, assim como a
investigação desses elementos e sua abordagem na literatura brasileira.
Território de denúncias e de lutas
Segundo Fonseca (2010), no período escravista, havia um domínio severo dos
senhores sobre os escravizados; castigos, por vezes, desumanos, eram utilizados como
mecanismo de controle. Ressalta, ainda, que tal mácula é verificada quando, no esforço
de apagamento sobre a memória da escravidão, Rui Barbosa providenciou a destruição
de toda a documentação sobre o elemento servil. Em Os tambores de São Luís,
inúmeras passagens revelam matanças e castigos violentos, selecionaram-se algumas
que desconstroem o caráter pacífico e humano da escravidão negra e refletem sobre o
cativeiro, que predominou no Brasil monárquico:
Se a Justiça é mesmo Justiça, por que não castiga também os brancos? Aqui
mesmo em São Luís, quantos senhores já mataram os seus negros, sem que
nada lhes acontecesse? p. 177.
Como aceitar que no Brasil ainda subsistisse a propriedade do homem sobre
o homem, através do cativeiro? p. 347.
_ Escravos negros são tolerados no Brasil e outros domínios; mas por que
direito e com que títulos, confesso que o ignoro totalmente. p. 347.
Deus estaria de acordo com aquela distinção? Uns livres, outros escravos?
Uns sentados, outros de pé? No entanto, ali na fazenda, os brancos
constituíam a minoria privilegiada, que oprimia a multidão de negros, sem
lhes dar direito a nada, nem mesmo ao banco vazio da capela. E os negros
eram maioria e a força, o vigor e o trabalho. Não seria o caso de perguntar ao
bispo o que fazia Deus que não tirava os pretos do cativeiro? Ou o Deus era
dos brancos e não dos negros? p. 90.
Seria mais rude, mais objetivo. Por que os negros teriam de suportar, durante
toda a vida, o chicote de seus senhores? E onde estava a determinação de
Deus, para que os brancos escravizassem os pretos? p. 194.
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Durante o período colonial e monárquico, um conjunto normativo sustentou tais
práticas, ao mesmo tempo em que legitimou o preconceito racial. Na obra em estudo,
tais narrativas são fartas e surgem em momentos variados:
_ Vossa Reverendíssima já sabia desse fato? Asseguro-lhe que é
absolutamente verdadeiro. O Domingos Vale deserdou a filha, por escritura
pública, apenas porque o genro, Vice-Presidente da Província e Comandante
da Guarda Nacional é neto de uma escrava! p.148.
_ Que o preto dê aulas, vá lá: o que ele ensina, repete dos livros que os
brancos escreveram. O que eu não posso aceitar é que um negro dê nota a
um filho meu. P. 342.
_ O resto do Brasil – fique Vossa Reverendíssima sabendo, para sua
orientação como Bispo da Diocese – não leva a palma ao Maranhão, em
matéria de preconceito de cor. Ou se é branco, e tem todas as graças e
regalias, ou se não é, e tem todas as desgraças. p. 152
_ [...] E hoje, pela manhã, recebi um grupo de pais de alunos, com um
abaixo-assinado, onde deixam claro que, se o preto for matriculado, preferem
trancar a matrícula de seus filhos [...]. p. 184
_ Tu és um negro muito atrevido. Se eu soubesse quem era o teu senhor,
mandava que ele te desse uma lição, para aprenderes a dobrar a língua ao
falar com uma pessoa que não é da tua igualha. Seu negro atrevido! Seu
pedaço de patife! p. 391.
Diante do preconceito, da discriminação e do racismo presentes na sociedade
brasileira na segunda metade do século XIX, afirma KOUTSOUKOS (2009, p. 79):
“Não basta ser livre tem que parecer livre”. Segundo a referida autora, nascidos livres
ou alforriados, em geral, copiavam a moda europeia vigente, numa estratégia de
aceitação, ascensão e sobrevivência. E em Montello, lê-se o seguinte diálogo:
E Damião, brioso, mostrando a sua carta de alforria:
_ Eu sou negro livre
_ Com diploma ou sem diploma, eu vou te levar no lugar do outro preto. Tu
vai ter que dar conta do escravo de Donana Jansen. p. 148
Outro aspecto relevante na obra montelliana é o papel dos abolicionistas na
conquista pela libertação: “Eram estudantes, professore, poetas, operários, moços do
comércio, gente do povo, e todos ali se confraternizavam cada um a contribuição
entusiástica de seu trabalho à causa comum” (p. 550). Neste sentido, vale destacar que
vários segmentos da sociedade participaram deste movimento. Entre os abolicionistas
da obra, destaca-se Damião, personagem central, cuja participação na emancipação se
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dá em todo o texto, mas, particularmente, na publicação de artigos contra a escravidão
no jornal a Pacotilha. Em um episódio em relação a represálias ao referido jornal,
apresenta-se a seguinte fala do redator do jornal para Damião: “_ Console-se conosco.
Já nos advertiram que vão incendiar o prédio do jornal, se continuarmos a publicar seus
artigos” (p. 546).
Domingues (2009), ao referir-se sobre o papel da imprensa abolicionista e, mais
particularmente da imprensa negra pós-abolição, observa:
A imprensa negra foi pioneira na tarefa de propor alternativas concretas para
a superação do racismo na sociedade brasileira [...] Foram esses jornais que
fizeram as primeiras denúncias do “preconceito de cor” que grassava em
várias cidades do país no início da República, impedindo o negro de ingressar
ou frequentar determinados hotéis, clubes, cinemas teatros, restaurantes,
orfanatos, estabelecimentos comerciais, religiosos, algumas escolas, ruas e
praças públicas (DOMINGUES, 2009, p. 100).
Assim, acredita-se que os apontamentos trazidos da obra ludovicence pode
propiciar o debate a respeito da escravidão, pois traz referências não somente sobre
homens e mulheres escravizados, mas também sobre as lutas de libertação, os
quilombos e as revoltas ocorridas durante esse período, conforme determina a nº Lei
10.639, sancionada em 9 de janeiro de 2003, sobre a qual se discorre no próximo item.
A Lei Federal nº 10.639/2003: breve histórico
Na educação, diversas pesquisas assinalam a existência do racismo como
promotor de desigualdades e tratamentos discriminatórios no espaço escolar,
principalmente referente à inserção de grupos negros e brancos (CAVALLEIRO, 2001;
BENTO, 2006). Da mesma forma, autoras e autores contemporâneos, ao analisarem os
discursos em livros didáticos sob o aspecto ideológico, sustentam a presença de relações
de desigualdades raciais (PINTO, 1987; GOMES, 1996; SILVA, 2008).
Essas iniquidades já eram observadas pelos movimentos sociais negros, desde a
década de 50, do século XX, quando reivindicavam uma reestruturação nos currículos
nacionais:
[...] Portanto, ao perceberem a inferiorização dos negros, ou melhor, a
produção e a reprodução da discriminação racial contra os negros e seus
descendentes no sistema de ensino brasileiro, os movimentos sociais negros
(bem como os intelectuais negros militantes) passaram a incluir em suas
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agendas de reivindicações junto ao Estado Brasileiro, no que tange à
educação, o estudo da história do continente africano e dos africanos, a luta
dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da
sociedade nacional brasileira. Parte desta reivindicação já constava na
declaração final do I Congresso do Negro Brasileiro, que foi promovido pelo
Teatro Experimental do Negro (TEN), no Rio de Janeiro, entre 26 de agosto e
4 de setembro de 1950, portanto, há mais de meio século (SANTOS, 2005, p.
23).
Assim, a histórica luta da resistência negra e, posteriormente, dos movimentos
sociais negros organizados, constantemente, denunciou a presença de desigualdades
raciais na sociedade brasileira, bem como reivindicou mudanças na esfera educacional.
Entre as quais se destacam: formação e melhores condições de acesso ao ensino para a
população negra, reformulação dos currículos escolares valorizando o papel e
participação de negras e negros na história do Brasil, erradicação da discriminação
racial e de ideias racistas nos livros escolares e nas escolas.
Portanto, a implementação da Lei Federal nº 10.639/03 (BRASIL, 2003; 2010)
representou um avanço no sentido da promoção da igualdade racial, ao colocar o tema
na pauta da educação: discussões sobre raça, preconceito, discriminação, racismo e
valorização da população negra. Nessa legislação, há uma descrição sobre os temas a
serem tratados no novo conteúdo. São eles: o estudo da História da África e dos
Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação
da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social,
econômica e política pertinente à História do Brasil.
Esses comandos são esclarecedores em relação ao caput. Na inserção do
conteúdo novo, palavras norteadoras se destacam: luta, resgate, contribuição, povo
negro, entre outras. Não há dúvidas de que o pretendido é inserir o negro no pensamento
nacional, rompendo construções estereotipadas e racistas, como aquelas denunciadas
por Cunha Jr. (1996, p. 155):
A historiografia brasileira tem somente origens européias, na tradição greco-romana.
O lado afrodescendente fica nos porões dos navios chamados negreiros, não nas
civilizações africanas. A cultura oficial e acadêmica brasileira teima em desconhecer
a África e a participação (não apenas contribuição) significativa dos
afrodescendentes na formação do pensamento brasileiro. As marcas do
eurocentrismo e do racismo são gritantes quando se trata da avaliação da herança
africana no Brasil.
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A esse dispositivo, soma-se outro que afirma que esses conteúdos serão
abordados no âmbito de todo o currículo, preferencialmente nas áreas de e literatura,
história e artes. Não queremos adentrar na questão curricular e seus desdobramentos,
porém vale ressaltar que é o professor que materializa o currículo, transversalmente ou
não. Logo, quando sugere que os conteúdos aqui considerados serão ministrados em
todo o currículo, a Lei está possibilitando professores a serem facilitadores no processo
de construção e transformação dos alunos na perspectiva que propõe. A regra que se
impõe é clara: desconstruir séculos de representações negativas sobre o negro e
reconstruir, reformular e resgatar a história.
De fato, a construção de uma educação voltada para as relações raciais
demandam por reconhecimento, valorização e afirmação dos direitos. No ponto
específico abordado neste trabalho, esse reconhecimento deve ser assegurado pelo
respeito às pessoas negras e pela divulgação dos processos históricos de resistência
exercida pelos povos aqui escravizados e por seus descendentes (BRASIL, 2004). Por
fim, o sucesso da aplicação da legislação em pauta, entre outras ações, exige um estudo
crítico sobre as obras literárias clássicas e atuais capaz de valorizar de valorizar a
história, cultura e identidade dos africanos e seus descendentes e também capaz de
desconstruir séculos de procedimentos raciais discriminatórios.
A título de conclusão
O negro ainda hoje é discriminado racialmente no Brasil. Aqui, o racimo age na
penumbra mesmo no atual estado democrático de direitos, que assegura a todos direitos
adquiridos constitucionalmente.
Contudo, há desrespeito em diversas esferas em
relação aos afrodescendentes, quer seja no campo religioso, no intelectual e até mesmo
nas artes e literatura. Na obra de Montello, o que se observa são indícios de alguns
elementos enaltecedores da resistência e da cultura negra, que, como tais, podem ser
aproveitados e discutidos à luz da Lei nº 10.639.
Dessa forma, a obra Os Tambores de São Luís se torna um importante registro a
ser consultado em salas de aula, de forma que alunas e alunos possam ter acesso não só
à história de sofrimento, tão difundida majoritariamente pelos livros de história e
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literatura, mas à luta de resistência negra e mobilização do negro em busca de combater
o racismo e seus derivados (preconceito e discriminação raciais) e sanar as
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