Jornal “O Público” 03-06-23
A Bica!
Paulo Trigo Pereira*
Sabia que a colecta anual de contribuição autárquica por prédio rústico equivale ao
preço de uma bica? Parece-lhe estranho? Então faça as contas. A colecta de 6,9 milhões de
euros dividida por 11,6 milhões de prédios rústicos dá cerca de 60 cêntimos! Daqui resulta que,
quase 99% da colecta da autárquica provem dos prédios urbanos.
A consequência política mais imediata desta situação é que, sempre que um governo
tem pensado em reformar a contribuição autárquica, tende a não mexer na rústica porque o
acréscimo de encaixe financeiro seria porventura modesto comparado com o eventual custo
político de tal medida. Aliás a questão interessante do ponto de vista político é comparar o
custo de uma reforma com o custo de uma não reforma.
Do ponto de vista económico os efeitos são vários. Primeiro, o facto de praticamente
não se tributar (ou taxar) os prédios rústicos significa que não há um incentivo, mesmo que
mínimo, para um uso eficiente do solo. Um proprietário que tenha as suas terras ao abandono,
por desleixo ou por razões especutivas, será premiado por isso. Por outro lado os municípios
do Alentejo, interior norte e centro com largas extensões de área, mas poucos prédios urbanos
e pouca receita de derrama (poucas empresas) ficam sem capacidade financeira autónoma,
assim dependendo das transferências da administração central.
A situação é muito diversa se considerarmos por um lado as grandes propriedades do
ribatejo e alentejo, quando confrontadas com as pequenas propriedades do centro e do norte.
No sul temos um monte alentejano que, sendo um prédio rústico, beneficia de uma taxa mais
baixa (que a urbana) e um valor patrimonial (VP) subavaliado pelo que ou poderá estar isento
tecnicamente porque tem um VP baixo, ou poderá ter isenção temporária, se adquirido, a um
valor moderado, para habitação própria (à menos de dez anos).
No norte a proliferação das propriedades é tão grande que, em muitos casos não há
escala suficiente para uma produtividade mínima. Também não há incentivos para a
reestruturação fundiária no sentido da concentração. Aliás, talvez por isto não existe cadastro
geométrico da propriedade rústica em quase toda a região norte (á excepção de três
concelhos), a produtividade é tão baixa e a população na agricultura é ainda tão elevada
comparando com padrões europeus.
Pense-se nesta proposta simples. Todo o prédio rústico pagaria uma taxa de 5 euros
que reverteria a favor do Instituto Geográfico Português (ou de um Fundo de Actualização
Cadastral a criar) para realizar de foma célere toda a cartografia do país rural. Quando
completa, essa taxa seria abolida e incorporada numa componente lump sum da autárquica
(IMI). Adicionalmente, para cada hectar entre 1 e 5, o IMI seria mais 3 euros por hectar; de 5 a
10, 2 euros/hectar; de 10 a 100, 3 euros; e de +100 hectares pagaria 5 euros por hectar. Estes
valores deveriam ser ponderados em quatro escalões consoante os melhores usos potenciais
do solo. Só a taxa uniforme geraria 58 milhões de euros de colecta, proveniente em grande
parte de prédios que estão actualmente isentos. Sendo esta por propriedade geraria um
incentivo para a concentração da propriedade. Adicionalmente, o facto de se ter desenhado
uma tributação em forma de U significa que a partir de certo ponto haveria desincentivos à
concentração fundiária.
Na semana passada foi votado no parlamento a proposta de lei que autoriza o Governo
a aprovar o Código do Imposto Municipal sobre imóveis (actual contribuição autárquica) e o
Código do Imposto Municipal sobre as transmissões onerosas de imóveis (actual sisa).
Tocar nestes impostos, é um sinal de coragem política do governo e mostra uma
vontade reformadora que importa enaltecer. Os mais cínicos dirão “é preciso que algo mude
para que tudo fique na mesma”. Não se trata exactamente disso, pois algo efectivamente
mudará, nomeadamente uma das fontes de injustiças e ineficiências da tributação local, a
saber a avaliação dos valores patrimoniais e o montante e tipo de isenções que se reduz. Mas
sabe de facto a pouco.
A filosofia base do modelo de tributação local mantém-se constante e é possível desde
já fazer algumas previsões e identificar alguns problemas. O primeiro é que a lei poderia ser
bastante mais simples do que é. A valorização da propriedade rústica depende dos
rendimentos fundiários e dos encargos de exploração. Lá teremos muitas propriedades que
não têm rendimentos líquidos....e que ficarão isentas! A valorização das propriedades urbanas
depende de vários critérios entre os quais a vetustez, qualidade e conforto, localização,
utilização e área. Tributar mais a qualidade e conforto é tributar os investimentos que os
proprietários fazem em melhoramentos. Sobretudo os parâmetros escolhidos são tais, que é
possível que um metro quadrado de um prédio urbano valha 74 vezes mais que outro o que
levará a valores absurdos. A lei prevê que quando o sujeito passivo ou o chefe de finanças não
concordarem com o resultado da avaliação, poderão requerer ou promover uma segunda
avaliação. Infelizmente prevejo que tal irá acontecer muitas mais vezes que o previsto, sendo
uma sobrecarga para a administração.
A descida das taxas acompanhada do aumento dos valores patrimoniais não vai fazer
diminuir a colecta no curto prazo, mas vai fazê-la aumentar no médio prazo. O que seria
desejável era diminuir drasticamente a importância da sisa e aumentar a da autárquica de
forma significativa. Por outro lado repensar a autárquica num modelo mais vasto de
financiamento local. Infelizmente isto não vai acontecer.
Na óptica do cidadão contribuinte fica um último alerta. Daqui a quatro anos o intervalo
de variação das taxas (urbana de 0,4% a 0,8%) deveria baixar pois, caso contrário, a carga
fiscal aumentará. Isto resulta das avaliações serem feitas à medida que os prédios são
transaccionados e a proporção destes se tornar maior com o tempo. Se as taxas não descerem
passamos da actual bica para o sapato de cristal (da cinderela).
* Professor do ISEG
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