SÃO BENTO HOJE
A Nossa Relação Atual com a Regra
D. Adalberto De Vogüé
Monge da Abadia de La Pierre-qui-vire
1924-2011
Conferência proferida aos monges do Mosteiro de São Bento do Rio de Janeiro
Julho de 1981.
Esta manhã, falaremos de São Bento “hoje”. Com São Paulo, diríamos que saímos
das trevas da Antigüidade.
Com efeito, a Regra não é para nós somente um objeto de pesquisa arqueológica.
Ela tem algo a ver com nossa vida de hoje e me parece impossível nos separarmos sem
ter tocado alguns pensamentos sobre este problema, que diz respeito a todos nós e que
nos preocupa, profundamente, o de nossa relação com a Regra. Eu o farei, servindo-me
de notas que escrevi há quatro anos, quando estive na Irlanda visitando os cistercienses.
Pedi, então, que me propusessem perguntas e eu trataria de respondê-las. E uma
dessas perguntas foi a seguinte:
-“Quais são os valores permanentes da Regra hoje?” Isto é, o que resta, o que é
durável, permanente, atualmente na Regra?
Confesso que, lendo pela primeira vez esta pergunta, tive má impressão, e quase
decidi não responder. Com efeito, ela me embaraçava porque quando se fala de valores
permanentes da Regra “hoje”, supõe-se, evidentemente, que existem coisas não
permanentes, coisas passageiras. Ora, confesso ainda, que não chego a fazer uma
distinção clara entre o que passa e o que permanece e o que é ultrapassado. Emprega-se
muitas vezes, no mundo alemão, a palavra zeitgemäss, “condicionado pelo tempo”; em
inglês time conditioned, em francês não há expressão muito precisa para dizer isto, talvez
haja um expressão em português, não sei.
Em todo caso, esta noção de observância, de prática condicionada pelo tempo, e
como se usa esta palavra, quer dizer que existem coisas que são abandonadas, pois
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estão condicionadas por uma época, a de São Bento. Portanto, hoje não são mais
válidas.
Pois bem, digo que sou incapaz de traçar na Regra uma distinção clara entre o que
é condicionado pelo tempo e o resto, porque para mim tudo é condicionado pelo tempo;
tudo, absolutamente tudo na Regra é marcado pela época em que viveu São Bento.
Mesmo os capítulos espirituais são profundamente impregnados da mentalidade do
tempo, que é aquele de São Bento, do século VI. Ninguém hoje reescreveria a Regra,
mesmo nesta parte espiritual, como o fez São Bento. Portanto, a meu ver, tudo na Regra
é condicionado pelo tempo e tudo permanece interessante e de certo modo permanente.
Penso que nem tudo é observável hoje, mas tudo guarda um interesse, um valor
permanente. Tudo permanece ao menos uma pergunta, e a título disto, tudo deve ser
ouvido com respeito e atenção, porque tudo é para nós, monges, um questionamento
hoje.
Bem sei que há uma solução fácil que consiste em traçar a distinção entre o
espírito e a letra. A letra é algo de passageiro, enquanto o espírito permanece. Portanto, o
valor permanente seria o espírito e o resto, esta letra passageira, se abandonaria. Mas a
este respeito, devo mencionar uma palavra que encontrei há cinco anos na Tradução
Ecumênica da Bíblia, aparecida em francês, em Paris. Talvez, a conheça, a TEB: uma
edição elaborada a partir da colaboração entre católicos e protestantes, e numa nota
sobre 2Cor 3,6, encontrei uma reflexão que acho interessante: trata-se deste famoso
versículo de São Paulo: “a letra mata e o espírito vivifica – ‘littera occidit, Spiritus autem
vivificat’”. E eis o que diz um comentador anônimo: “Sem o espírito o texto mata, mas sem
o texto o espírito seria afônico”, sem voz. Isto me parece muito profundo e muito
verdadeiro. Sem dúvida, o texto, a letra, sem o espírito é morta, ele mata, mas,
inversamente, sem o texto, o espírito seria afônico, não teria voz, ele não poderia se
exprimir em nosso mundo material, em nosso mundo humano. E, é bem verdade que o
espírito sem uma letra e que se encarne, se exprima, não pertence ao nosso mundo
humano em que vivemos. O espírito tem necessidade de uma letra para exprimir-se.
Certo literalismo é sadio necessário se queremos guardar o espírito. Não se pode cultivar
o espírito do monaquismo e o espírito de São bento sem suporte literal. Por isso,
devemos ter o maior respeito pela Regra e não fugir dela facilmente. Estaria de acordo
com a fórmula famosa “tomar o espírito e abandonar a letra”, à condição de que esse
espírito que se conserva permaneça encarnado, não se torne qualquer coisa invisível e de
verbal, mas gere as observâncias, encarne-se, incorpore-se numa maneira de viver muito
concreta. Aqui é preciso ter cuidado com certo abuso de vocabulário monástico sem a
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prática monástica, sem a realidade monástica. É uma grande tentação atual. É preciso
ter-se vivido em certos meios beneditinos para se dar conta da facilidade com que se
emprega certo vocabulário, enquanto não há realidade monástica atrás. Isto é muito
grave. Há um elo íntimo entre a letra e o espírito e por isso mudar a letra é, em certa
medida, mudar o espírito. Isto não quer dizer que não se deva, em certos casos, mudar a
letra. Nós o devemos fazer algumas vezes, mas é preciso fazê-lo com clara consciência
de que toda mudança na letra implica sempre certa mudança no espírito, e por
conseqüência, se queremos guardar o espírito de São Bento e o espírito da vida
monástica, devemos estar muito atentos a guardar a letra, tanto quanto possível, na
maioria dos casos.
Referir-se à Regra, como o fizeram muitos o ano passado, neste centenário
(quantas palavras foram proferidas, quantas referências a esta Regra gloriosa!), é de
pouco interesse em minha opinião. O que é interessante, o que é útil é por em prática, é
tentar viver as grandes observâncias tradicionais que fazem a vida monástica.
Digamos uma palavra acerca do que é a Regra de São Bento para nós, hoje.
Ela não é nem pode ser a nossa Regra atual, ou seja, a Regra que observamos
concretamente em todos os detalhes de nossa vida cotidiana, as observâncias atuais de
nossos mosteiros. A Regra não pode ser isto; ela foi escrita no século VI para homens do
século VI e, por conseqüência, não é nem pode ser nossa Regra viva, concreta,
atualmente. Mas ela é a fonte de nossa Regra, a fonte histórica de nossa Regra de vida.
O que vivemos atualmente, concretamente é algo que deriva historicamente dessa
fonte, que é a Regra de São Bento. Eis já uma função da Regra a nosso respeito: a de
fonte de nossa Regra vivida. Esta é a única função em que pensei há anos, quando tive
de falar desta questão em 1970 num simpósio, nos Estados Unidos. Tinham-me pedido
para tratar da questão e não soube dizer outra coisa senão ser isto: opus a regra vivida
atualmente à Regra de São Bento, que era somente naquele momento a fonte de nossa
Regra atual. Depois, refletindo, percebi que esta imagem de fonte histórica é verdadeira,
sem dúvida, mais inteiramente insuficiente para descrever a verdadeira função da Regra a
nosso respeito, atualmente.
Com efeito, se tomei esta imagem de uma fonte, tendes sob os olhos um rio que,
na medida em que corre, afasta-se cada vez mais, inevitavelmente, de sua fonte. E isto
acontece efetivamente com a mudança dos tempos, de certo modo a transformação da
civilização e da cultura. É evidente que nos tornamos cada vez mais longe da Regra de
São Bento, longe de nossa fonte histórica, mas esta imagem da fonte não dá conta de
toda a realidade, porque há muito mais nesta relação entre a Regra de São Bento e nós.
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Com efeito, é um fato histórico, uma constatação, que a cada geração, a cada
século há um retorno à Regra – o rio volta, de certo modo, à sua fonte. É um fenômeno
que conhecemos pela História das Reformas Monásticas – os que se afastaram da Regra
não somente porque a cultura e a civilização mudaram, mas por outras razões – porque
abandonaram as observâncias fundamentais que se poderiam e deveriam viver ainda em
sua época. E então, se dá um retorno à Regra, o que constitui um fenômeno muito
importante do qual a imagem da fonte e do rio não se esgota.
Para se levar em conta este segundo fenômeno, se poderia talvez recorrer a uma
outra imagem, que São Paulo emprega em 1Cor 10,4: “bibebam de spiritali consequenti
eos petra”, imagem engraçada: “eles bebiam do rochedo que os seguia, que era Cristo”.
Imagem bizarra de um rochedo que segue os hebreus no deserto, durante os quarenta
anos de peregrinação. Os comentadores nos dizem que os rabinos do tempo de São
Paulo falavam que o rochedo batido por Moisés no dia em que fez correr água dele
seguiu os hebreus pelo deserto. Tradição rabínica, não garantida pela Escritura, mas que
São Paulo utiliza evocar a função de Cristo a nosso respeito, para com o povo cristão.
Da mesma forma que o rochedo seguiu os hebreus pelo deserto lhe fornecera
água, de acordo com esta tradição rabínica, da mesma forma Cristo segue o povo cristão
através da História e bebe deste rochedo espiritual que está sempre junto de nós.
Pois bem, poder-se-ia aplicar essa imagem curiosa à Regra de São Bento.
Também ela segue o povo dos monges através a História e em cada século, em cada
geração nos é possível entender a mão e beber dessa fonte. Não é somente uma fonte
fixada no passado, imóvel, da qual nos afastaríamos necessariamente cada vez mais com
o correr do tempo, mas de uma fonte que de certo modo nos acompanha em nossa
caminhada, e a qual podemos, sem cessar, buscara para beber e reencontrar a vida.
Portanto, é função da Regra ser fonte, não somente no passado, como fonte histórica,
mas no presente, como fonte atual, da qual podemos sempre retomar os grandes valores
monásticos que são essenciais para nós hoje. Tem, ainda, a função em relação ao futuro,
porque a Regra é quase nossa norma ideal, portanto, algo que está diante de nós, que
nos solicita e nos apela, que nos convida a um esforço para atingir a perfeição da vida
monástica. Desse modo, eu diria que a Regra está diante de nós com vistas ao futuro,
portanto, ela não tem uma função apenas histórica, no passado, mas também uma função
atual e futura. Eis o que é a Regra para nós hoje.
Um elemento que me parece importante é que, em sua função de fonte histórica, a
Regra de São Bento constitui efetivamente em excelente espelho da tradição cenobítica
primitiva. O melhor espelho, a melhor imagem que podemos encontrar na literatura
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monástica antiga deste cenobitismo das origens que tem, justamente, como origem, tanta
importância para nós e um significado muito particular. Pois bem, este meio cenobítico
das origens, que é para nós normativo, por sua qualidade precisamente originária ele é
refletido, representando de uma maneira “ótima”, pode-se dizer, pela Regra de São Bento.
Creio que quem examinar esta literatura das Regras monásticas antigas chegará à
conclusão de que não há espelho mais completo e mais exato, mais equilibrado da
tradição antiga que a regra de São Bento. Há nela uma qualidade intrínseca certa que,
aliás, explica em grande parte seu sucesso. Por conseqüência, a Regra continua sendo o
meio mais seguro e a melhor “chance” de nos realizarmos como monges, realizar este
título de monge que é nosso ideal. Certamente que não há necessidade de quem a tome
por norma. Mas, se por boas razões decidiu-se tomá-la por norma, então, penso que há
interesse em tomá-la a sério, ao máximo, em segui-la seriamente. Creio, ainda, ser esta a
condição para viver do espírito de São Bento, de que tanto se falou no ano passado.
Para aproveitar o magistério de São Bento é necessário viver sua Regra,
praticando-a. Eis o meu preâmbulo, concluindo, tudo isso não era senão um preâmbulo.
Disse-vos minha dificuldade, meu problema a respeito desta noção de valor permanente
da Regra e como, em suma, para mim, toda a Regra é interessante, significativa,
importante. Recuso selecionar textos na Regra; quero escutá-la toda, pois toda ela me
interessa. E, se eu fosse conseqüente comigo mesmo, se fosse lógico, deveria parar aqui,
não responder à questão dos Cistercienses irlandeses: “quais são os valores
permanentes da Regra?” senão tomá-la e ler do inicio ao fim, sem comentários. Mas, a
vida não é lógica, e eu vou contradizer-me respondendo a questão proposta.
Vou tentar dizer quais são as coisas principais, que me parecem mais importantes
atualmente a destacar na Regra. Ponto de vista muito limitado, muito subjetivo, o que me
parece pessoalmente mais importante. Por outro lado, um ponto de vista limitado, pois
tomo apenas alguns elementos de interesse particular, sem nada excluir do resto.
Acredito que o primeiro valor permanente da Regra seja ela mesma, o fato de
haver uma Regra, o fato de viver segundo uma Regra. Isto já me parece um benefício, um
valor de importância muito grande. Penso, particularmente, dizendo isto, na espécie de
alegria, de desafeição que atualmente se tem para com a noção de regra, de lei. O
cristianismo contemporâneo é muito sensível à oposição paulina entre lei e graça, entre
lei e Evangelho, e tudo o que parece uma espécie de ressurgimento da lei mosaica é
considerado facilmente como algo pouco cristão, uma volta ao legalismo do Antigo
Testamento. Esta é uma mentalidade muito difundida e ouve-se muitas vezes dizer que a
única regra, a única lei é o Evangelho de Cristo. Pois bem, tudo isto não me parece muito
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justo, pois o evangelho não é uma lei, não é uma regra. O Evangelho é a Boa-Nova,
evangélion, a Boa-Nova da salvação, algo que se coloca muito acima das leis e das
regras humanas. Fazer dele uma regra é falsificar seu sentido, não é sua destinação.
Penso que entre o Evangelho, boa-nova de salvação, mensagem, Palavra de Deus, e às
existências concretas há lugar, há necessidade da mediação de uma regra. Isto faz parte
de toda vida humana, quer pessoal, quer comunitária, toda forma de vida necessita de
uma regra – faz parte da ordem providencial da criação de Deus.
Penso, pois que mesmo para nós, cristãos, há lugar, há necessidade de uma regra,
inspirando-se no Evangelho, se esforce por regular, legislar nossa existência humana e
concreta de homens que vivem hic et nunc.
Entre os princípios do Evangelho, entre seus apelos, entre a mensagem viva de
Cristo e as existências concretas é normal que e introduza uma regra que trate de aplicar
nas mesmas existências concretas a mensagem de Cristo. Penso ainda, que é um bem
para os cristãos ter uma regra, ter uma lei a ser observada. Qual é a Regra na vida cristã
e na vida monástica?
Eu a comparo na função de uma estaca de jardim. Não sei qual é o termo em
português, mas ao menos na Europa há alguns legumes, que são plantas trepadeiras, e
se tem necessidade de colocar uma estaca, um bastão, para ajudar a planta a crescer. A
planta cresce espontaneamente, por seu dinamismo interno, mas ela tem necessidade
desta haste rígida para voltear e elevar-se. Acho esta uma excelente imagem do que a
Regra é na vida humana, natural, e na vida cristã e monástica. É este suporte rígido,
regula, rigidum, regra quer dizer bastão; portanto, um suporte rígido. Não se trata de
transformar a si mesmo em regra, em bastão rígido, tenso, mas de realizar flexivelmente o
movimento em volta desta haste: às vezes se afasta, depois se volta, é um movimento
espiral que finalmente é um crescimento vivo, ajudado por este bastão morto e rígido. A
vida flui simplesmente em volta desta haste morta. Pois bem, é isto, penso, para nós, a
Regra de São Bento: há coisas que, no momento, não podemos observar tendo em vista
as circunstâncias, mas ela permanece a haste de nosso crescimento, algo que nos indica
a direção a que devemos tender e a ela voltarmos periodicamente após nos termos
afastado.
Evidentemente, é preciso também relacionar com um elemento fundamental,
profundo da vida cristã, que é a cruz. A regra em seu aspecto rígido, em seu aspecto
morto, corresponde, no fundo, a esta realidade fundamental da vida cristã que é a cruz . É
normal que, malgrado esta flexibilidade com a qual usamos este suporte rígido, por
momentos também ele nos faça sentir sua rigidez e sua cruz. E isto é ainda um benefício.
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Após este primeiro valor permanente que é a própria Regra, o fato de ter uma
Regra, eu resumirei numa só frase uma série de outros valores permanentes e a seguir,
explicarei cada um dos elementos desta frase.
Para mim o valor permanente da Regra de São Bento hoje é organizar a vida
consagrada a Deus, uma vida monástica, uma vida que se define pela renúncia a tudo
que não seja Deus, a tudo que divide o homem, uma vida que consiste em algumas
grandes observâncias que concretizam e asseguram esta renúncia, uma vida que tende à
purificação do coração, ou seja, à caridade, em outros termos, à contemplação; uma vida
que é comunitária, mas que é aberta à vida solitária, considerada como uma
ultrapassagem na mesma vida; uma vida comunitária que é levada numa schola, no
sentido escolar e militar do termo, ou seja, com um eixo hierárquico primordial, mas ao
mesmo tempo com um interesse pelas relações fraternais e pela caridade, pela
comunidade, e, enfim, uma vida própria e exclusivamente cristã, sem outras referências
que a Escritura, a tradição cristã, os Padres, a Revelação de Cristo. Eis a lista de valores
permanentes. É preciso agora, que eu explique cada um desses termos.
Em primeiro lugar “uma vida consagrada a Deus”. Isto está muito claro: na Regra
de São Bento há uma série de expressões que exprimem esta orientação monástica para
Deus só, monos. Pensai na procura de Deus (cap. 58), “si revera Deum quaerit”, na volta
a Deus (prólogo) “ut ad eum redeas”, ou ainda, na observância dos mandamentos de
Deus (cap. 7), ou ainda, na escuta de sua Palavra (prólogo), na obediência à Palavra de
Deus ou ainda no seu temor. É toda uma série de sinônimos que exprimem, no fundo,
esta mesma realidade de nossa vida, que é estar inteiramente ordenado a Deus. O que
vemos na Regra de São Bento é esta organização de uma vida consagrada a Deus, de
uma vida polarizada pelo mistério de Deus e pela esperança da vida eterna. Em seguida,
eu diria uma vida definida pela renúncia a tudo que não é Deus, a tudo que divide o
homem. Sabeis, com efeito, que monachos quer dizer “um”. E é a idéia de unidade a base
de nosso nome de monges; e é muito interessante notar que a pesquisas mais recentes
sobre a história, as origens do monaquismo (penso nos trabalhos mais notáveis do Sr.
Grillaumont, este sábio francês que tão profundamente compreendeu e estudou o
fenômeno monástico), revelaram que na raiz da palavra monge, na terminologia do
vocabulário monástico está a noção de unidade espiritual.
Portanto, o monge é um homem que procura afastar de sua vida tudo aquilo que o
divide, tudo o que divide a sua alma de sua relação ao Único, a Deus. É alguém que
renuncia a tudo que não é Deus. Renuncia ao casamento, à propriedade, às
necessidades artificiais, em todos os sentidos, renuncia mesmo à satisfação de
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necessidades essenciais: o alimento, o sono; renuncia a vontade própria, à palavra, ao
prestígio, à glória (aqui reconheceis três capítulos da RB: 5, 6 e 7), renuncia a relações
sociais, à vida política, ao contato com o mundo, etc. É uma lista que permanece
evidentemente aberta. Tudo isso não se consegue de um dia para o outro. Supõe a graça
de Deus e as circunstancias. Portanto, um programa de renúncia é definido, pode-se
dizer, em vista de Deus só.
Em seguida, eu diria, uma vida que consiste em algumas grandes observâncias,
que concretizam e asseguram a busca de Deus e as renúncias que ela comporta. Essas
grandes renúncias não só vamos enumerar um instante – mas queria notar, antes, que
elas são produtoras de sentido. Aqui, vou utilizar-me da filosofia estruturalista e desta
idéia interessante, creio, que os textos – o texto escrito – são produtores de sentido.
Todos sabem que para os estruturalistas um texto escrito é, de alguma forma, uma
fonte de sentido; dele emanam múltiplos sentidos, variados, indefinidos, segundo o leitor
que toma o texto. Já fiz esta experiência. Quem tomar um texto e lê-lo cem vezes, na sua
centésima primeira encontrará um novo sentido, algo que nunca lhe tinha parecido, que
salta aos olhos, porque do texto emana sentido, é fonte de sentido indefinido e isto é anda
mais verdadeiro quando se fala de um indivíduo a outro. Duas pessoas lêem o mesmo
texto; pois bem, cada uma tira um sentido diferente. Portanto, os textos conforme os
estruturalistas são produtores de sentido. No entanto, não é absolutamente exato. Na
verdade, produtor de sentido é o leitor, mas, enfim, pode-se aceitar essa imagem. Eu
acho isto muito revelador no que concernem nossas grandes observâncias monásticas,
também elas são produtoras de sentido, são fontes de sentido. Quero dizer que,
seguindo-as, descobre-se seu sentido; não se trata aqui da leitura de um texto, mas da
experiência das observâncias, e viver as observâncias. Vivendo-as descobre-se
progressivamente e a cada dia seu sentido, que é também ele, múltiplo, que é sem
cessar, novo. Da mesma forma que o texto toma significado novo, à medida que é lido e
relido, também as observâncias tomam significado novo à medida que são vividas. Isto é
um fato de experiência.
O silêncio pode ser interpretado de maneiras muito diversas e múltiplas. São Bento
diz que se guarde o silêncio (cap. 6) para evitar o pecado e por respeito ao superior: duas
finalidade entre muitas dessa observância do silêncio. Há uma quantidade enorme de
outras e ficamos quase espantados que São Bento não mencione este aspecto religioso
do silêncio que para nós é fundamental, do silêncio para o recolhimento, para a escuta da
Palavra de Deus. São Bento não fala; o capítulo 6 é curioso.
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O que pois é importante não é fixar antecipadamente os sentido das observâncias;
de fato, é impossível. O importante é vivê-las, e entrar em cada uma vivendo-as,
descobre-se seu sentido, que varia conforme as pessoas e conforme as épocas da vida
monástica. Numa época chama a atenção um elemento, um valor do silêncio, que nos
fará bem, em outra época apreciamos outros elementos, outros aspectos dessa
observância. É a mesma coisa para o jejum e todas as observâncias monásticas
fundamentais. Na Tradição encontramos explicações, interpretações múltiplas e o que é
constante na vida monástica não é interpretação, que varia, mas o fato de praticar as
coisas, o fato de viver o silêncio, o jejum etc.
E assim encontramos o que se acha em Cassiano (lembrai a Conferência 18,3) –
“Per operis experientiam etiam scientia rerum omnium subsequetur” – entrai nas
observâncias, praticai-as e praticando-as, na própria experiência descobrireis seu sentido.
Eis, como dizíamos, a pedagogia o monaquismo. Método não cartesiano, que consiste em
confiar numa tradição e em descobrir pela experiência o valor desta tradição.
Quais são estas grandes observâncias que formam juntas a conversatio à vida
monástica?
1. Pois bem está evidente, em primeiro lugar a oração sete vezes por dia e noite,
feita de salmos e preces. A oração contínua de cada um, entre os Ofícios, para que os
Ofícios – as reuniões de oração comum – não têm outro fim, se si vivem as origens desta
instituição (Tertuliano), senão o de servir de suporte ao esforço contínuo, pessoal de cada
um para a oração incessante recomendada pelo próprio Cristo (Lc18,1) e por São Paulo
(1Tes 5,7): “Sine intermissione orate”. É o ideal do monge, rezar sem cessar.
Assim, pois, vida de oração, comunitária em certos momentos e vida de oração
pessoal todo o dia, ajudada por este “relance” de três em três horas do Ofício Divino
celebrado em comum.
2. Grande observância ainda é a leitura, a lectio, que é o suporte da oração. Para
rezar sem cessar é preciso, sem cessar, escutar a Palavra de Deus. É um diálogo em que
Deus nos fala, e nos fala em primeiro lugar, e depois lhe respondemos. Deus toma a
iniciativa, e a Ele respondemos pela nossa oração.
A lectio é precisamente este tempo de escuta da Palavra de Deus, este primordial
para a vida de oração sem a qual a resposta de oração não chega. A lectio que continua
nos intervalos, pela meditatio, no sentido da reflexão da Escritura apreendida de cor. Sei
que atualmente não temos memória, somos incapazes de praticar a recitação contínua da
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Escritura, que enchia o tempo de trabalho dos monges antigos; estou convencido, eu o
sei por experiência, que é perfeitamente possível, hoje, em nossa fraca memória
ressuscitar e continuar esta grande observância da meditatio. Todos os dias estes dados,
palavras da Escritura, algumas palavras de algum Salmo, que se repetem lentamente de
manhã e durante todo o dia, nos serve de mantra como dizem os hindus, orações que se
repetem e que nos mantêm continuamente em contato com Deus.
Portanto, lectio e meditatio, continuação da escuta da Palavra de Deus, através de
nossa atividade. Vede daí porque não gosto muito do que um de vós me falava ontem, a
divisão ora et labora. É uma divisão que se queria fazer uma máxima, uma norma vitae.
Ela é verdadeira, mas não é completa, falta-lhe algo: falta-lhe a lectio e a meditatio. Dizer
que a vida monástica é rezar e trabalhar, é esquecer que há um elemento essencial a
acrescentar, ou seja, lege – ora, labora, lege et meditare: é preciso acrescentar, este
elemento de escuta da Palavra de Deus, a leitura e a meditação para que o programa
seja completo. Não há vida de oração, ora, sem elementos de leitura e meditação.
3. O trabalho, eis uma grande observância. A leitura ocupa um quarto ou um terço
do dia, no horário de São Bento; e o trabalho ocupa três quartos ou dois terços – todo o
resto do tempo. O trabalho é feito por uma dupla finalidade: ganhar a vida, de uma parte,
dar esmolas, e de outra parte, finalidade ascética, evitar a ociosidade, favorecer a oração
pelo fato de que se ocupa a atenção trabalhando, impedindo-se o espírito de errar e
vagabundear; ele é fixado em alguma coisa. Mas com a condição de que o trabalho seja
penetrado,acompanhado de oração, graças à meditatio.
4. Grande observância ainda, é o serviço mútuo de todos os irmãos na
comunidade, pois somos pobres e não temos dinheiro, dependemos uns dos outros para
todas as necessidades materiais e espirituais, serviço mútuo e serviço para o exterior, sob
a forma de hospitalidade, de caridade.
5. Outra importante observância é a ascese corporal. Aqui, tocamos num ponto,
que é a nossa fraqueza moderna. Como é possível que os monges não tenham
praticamente, nenhum elemento da ascese corporal em sua vida?
Isto é a grande deficiência do monaquismo contemporâneo, e creio que, se
queremos dar um conteúdo e uma finalidade à nossa vida monástica, seria essencial
voltar a esta noção fundamental de ascese corporal. Domínio dos apetites de comer e de
dormir, estas coisas fundamentais da vida humana. É preciso agir sobre si mesmo, não
somente sobre os outros.
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Há toda uma dimensão da vida humana que se perdeu em nossa civilização
totalmente extrovertida, totalmente voltada para as coisas, para o exterior, para as
relações entre as pessoas. Isto é bom, mas há uma condição da vida humana que
consiste em trabalhar sobre si mesmo, sobre seu corpo e sobre sua alma, que é essencial
à vida humana em geral e à vida monástica em particular.
Creio que é preciso insistir que a vida monástica não pode se reduzir nem se
identificar com a vida comum simplesmente. Muito facilmente se veio a pensar, que para
São Bento, a ascese monástica é viver em comunidade. É verdade, para os grandes
valores, mas é totalmente insuficiente para fazer o monge.
Há um elemento de ascese pessoal, domínio de seus apetites corporais e das
potências de sua alma. Há um elemento de trabalho sobre si mesmo que é essencial à
vida monástica. Creio que nós desenvolvemos pouco nosso potencial espiritual, que é
totalmente investido na vida exterior, na vida de comunidade, no trabalho, para guardar
algo, ou mesmo, uma grande parte de nosso esforço pessoal da ascese e de domínio de
si mesmo.
6. Grande observância ainda, é a clausura, a separação do mundo com seus
elementos de solidão, de silêncio e de desprendimento. Isto com relação aos meios de
comunicação, pois é preciso que não entre o mundo nos mosteiros, os jornais, a
televisão, isto em detrimento ao estilo de vida monástica. Monge é alguém que sofre
necessidade de algum destes meios de comunicação com o exterior.
7. O hábito monástico, distintivo, com o que ele comporta de desagradável, quando
se tem relação com o exterior, quando se sai no mundo, constitui uma outra grande
observância, um outro grande valor. Continuemos esta lista de observâncias. Sabeis bem
o que quero dizer.
Portanto, na vida monástica consagrada à busca de Deus, definida pela renúncia,
consistindo em algumas grandes observâncias, chego ao ponto seguinte que é o fim, uma
vida tendendo à purificação do coração (de seus vícios), como diz São Bento nos
capítulos 2 e 7. Estes dois capítulos têm a mesma conclusão: a purificação dos vícios. Eu
dizia que a purificação do coração não é outra coisa que a caridade. Invocamos esta
equação colocada por Cassiano entre purificação do coração, caridade e contemplação.
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Para os antigos – e isto profundamente uma verdade – a condição necessária e
suficiente para atingir a contemplação é a purificação do coração: “Beati mundo corde
quoniam ipsi Deum videbum”.
Para tornar-se um contemplativo não se trata de ser um sábio, não se trata de ler
muito, mas trata-se unicamente de purificar o coração; única condição para a verdadeira
contemplação cristã é a pureza de coração.
Por conseguinte, trabalhando na purificação do coração, na aquisição da caridade,
por este fato mesmo entra-se no domínio da contemplação. É uma obra natural, diz
Cassiano.
Como é natural para os olhos do corpo ver objetos, desde que esteja com boa
saúde, da mesma forma, a alma vê naturalmente desde que esteja sã, com boa saúde e
que seja pura. Dizia ainda: uma vida comum, aberta à vida comunitária, considerada
como ultrapassada, como um além na mesma vida. Aqui é a perspectiva do capítulo
primeiro da Regra de São Bento, sobre os cenobitas e anacoretas. Toda a Tradição, salvo
algumas notáveis exceções (como Basílio e as Vidas Coptas de São Pacômio) para o
conjunto da tradição pode-se dizer que vida solitária constitui uma renúncia maior, um
passo a mais na renúncia e na vida com Deus só.
E neste sentido tem funções muito importantes em relação com a vida em comum,
para nos indicar o fim para o qual tendemos mesmo se ficarmos apenas na vida comum:
este estar sozinho com Deus.
Eu dizia ainda: vida concebida fundamentalmente como schola, no sentido de São
Bento, no sentido escolar e militar, e de qualquer modo com todo um acento colocado no
elemento hierárquico, constituído essencialmente pela relação entre o inferior e o superior
que representa Deus. No entanto, este eixo vertical, que é único na Regra do Mestre, se
duplica em São Bento com uma dimensão horizontal, que faz com que se preste a maior
atenção às relações fraternas na caridade.
Meu último ponto é que esta vida organizada por São Bento é uma profundamente
e exclusivamente cristã, sem outras referências a não ser a Escritura, a Palavra de Deus,
a Tradição cristã, os Padres, a Revelação de Cristo. Aqui, penso nesta apresentação do
monaquismo, que é muito corrente atualmente e que não é totalmente falsa, que insiste
na semelhança entre nossa vida monástica cristã e o fenômeno monástico mundial (em
todas as grandes religiões encontram-se movimentos monásticos, no decorrer de sua
história).
Repito que não é falso, há algo de verdadeiro, mas é muito importante, creio, tomar
consciência de que não é toda perspectiva de São Bento, e mesmo o fundo da questão.
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Com efeito, para São Bento, como sabeis, define-se a vida monástica pura e
simplesmente em relação a Cristo. O abade é o Cristo. O doente é o Cristo. Os hóspedes
são Cristo. A obediência é a obediência a Cristo, ao próprio Cristo. A paciência com Cristo
a esperança no auxilio de Cristo. A espera do julgamento de Cristo. Tudo se define em
relação a Cristo e apenas a Ele. A conclusão é que se a nossa vida monástica se parece
com a de outros monaquismos não-cristãos da Antigüidade ou do mundo oriental, não é
que sua essência seja não-cristã e que o sentido do monaquismo seja não-cristão, e que
o cristianismo não faça outra coisa senão ser dar-lhe uma coloração. A resposta
verdadeira é que o próprio Evangelho (que é a única referência do monge e que a vida
monástica se esforça por aplicar a fundo) é profundamente religioso. Aqui, recuso esta
não-distinção entre fé e religião. Portanto, o Evangelho é profundamente religioso, e eu
diria monástico, radicalmente monástico; e é assim que, desenvolvendo simplesmente as
virtualidades do Evangelho, a outros monaquismos das outras religiões.
Para concluir nossa conferência sobre São Bento hoje, uma questão que me
parece importante acentual é diz respeito à ascese corporal. Ouve-se dizer, em nossa
época, que somos muito fracos, que saúde não nos permitiria jejuar e fazer outras
austeridades corporais. Quando eu estava no noviciado, diziam-me que no tempo de São
Bento os monges eram muito mais fortes do que nós, e hoje não se pode imaginar que
um homem não faça três refeições por dia, estou agora persuadido de que é falso,
completamente falso. É uma lenda, um mito, a da fraqueza dos homens de nossa época,
que estão incapacitados de jejuar, de fazer mortificações corporais. Não é verdade. É
perfeitamente possível a um homem hoje seguir o programa da Regra, de uma refeição
por dia. O que nos falta é a convicção e, depois, a vontade de fazê-lo. É uma questão
verdadeiramente de liberdade, e quando é preciso se dar conta da incapacidade neste
domínio, verifica-se que não é física, de saúde, mas espiritual – engajamos nossa vida,
nossa energia, noutro caminho. Renunciamos a empregar uma parte de nosso
dinamismo, de nosso potencial humano, neste caminho de ascese. É, pois, uma questão
de liberdade, de vontade, e conseqüência, também, de uma visão clara dos fins da vida
monástica.
Eu diria ainda que a fidelidade a São Bento e à sua Regra consiste essencialmente
em redescobrir essas grandes observâncias de que falamos.
De fato, estamos muito longe de São Bento e de sua Regra. Esta distância é um
fato ambíguo. Há algo de normal, de inevitável e há algo anormal e um pouco malsão. É
muito difícil fazer um julgamento deste fenômeno do afastamento, da distância entre São
Bento e nós. O que é inevitável e normal é que, tendo em vista a evolução considerável
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da sociedade, da cultura, da mentalidade da humanidade, algumas coisas não se podem
mais fazer em nossa época; mas o que é anormal e malsão é que não façamos algumas
coisas que poderíamos perfeitamente fazê-lo se tivéssemos o senso dos valores
monásticos. Portanto, é uma questão de discernimento muito delicado. Contudo, acredito
que não se precisa excluir nenhum desses dois aspectos: nem o aspecto de necessidade
inevitável (somos muitas vezes feitos de outras coisas), nem o aspecto de desvio, em
suma, em relação ao nosso ideal monástico. Certamente que pecamos, quando estamos
abaixo do que deveríamos ser como monges e poderíamos ser se vivêssemos em outra é
poça. Portanto, a fidelidade a São Bento e à sua Regra não consiste em encadear
práticas e ritos, que sem cessar vão se desbastando e se degradando, mas em
reencontrar as observâncias fundamentais da vida monástica e dar-lhe sua força e sua
pureza. Dizendo isto, não quero depreciar de todo, os ritos, as práticas que derivam da
Regra e que conversamos com razão. Penso, ao contrário, que são interessantes e que é
preciso cultivá-las, dar-lhe mesmo sua significação completa. Devemos estar muito
atentos para esta herança. Mas, além destes elementos que devemos à Regra e que
cultivamos mais ou menos fielmente, existem essas grandes observâncias de vida
monástica às quais São Bento quer nos conduzir. E é isto que, antes de tudo, temos que
reencontrar e cultivar.
Em suma, a Regra não é tanto uma coisa a conservar, mas um mistério a
descobrir, uma terra a conquistar, porque é evidente que muitas coisas da Regra são para
nós mistérios, coisas desconhecidas e, simplesmente, porque não temos coragem de
praticá-las. Assim, parece-me que a fidelidade a São Bento não está atrás, ma muito mais
à frente. Não se trata de conservar os restos da regra e das observâncias beneditinas,
mas de encontrar, de reconstruir: está diante de nós este ideal de fidelidade a São Bento.
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Fidelidade a São Bento