COMUNIDADES CAMPONESAS E DESENVOLVIMENTO
Gisele Silva Rodrigues 1
Marcelo Rodrigues Mendonça 2
Resumo
O modelo de desenvolvimento do Brasil teve como pressuposto ser o único caminho para o
conjunto da sociedade, cuja modernização traria melhorias e progresso. Para compreendermos
essa questão é necessário retomar a reflexão sobre as políticas de desenvolvimento, cuja
modernização territorializou-se legitimada por um processo ideológico de desqualificar tudo e
todos(as) que não fossem modernos. As Comunidades Camponesas, historicamente, foram
consideradas espaços que deveriam se modificar visando assegurar as condições de geração e
produção do lucro. Para isso foram criadas políticas públicas para que adquirissem novos
hábitos, comportamentos e valores, visando torná-las consumidoras e produtoras, ou seja,
inserí-las de forma subordinada no mercado. Este artigo faz uma reflexão sobre as ações
desenvolvimentistas e as transformações espaciais a partir da implementação das políticas
públicas modernas nas Comunidades Camponesas, a partir de uma revisão de autores que
pesquisam a temática.
Palavras-chave:
Socioespaciais.
comunidades
camponesas;
desenvolvimento;
transformações
1 INTRODUÇÃO
Este artigo constitui-se parte das reflexões elaboradas no Trabalho de Conclusão de
Curso, intitulado Comunidade e Desenvolvimento: as transformações socioespaciais na
Comunidade Cisterna em Catalão (GO), desenvolvida em 2011. Pretende-se retomar essas
reflexões, abordando sobre Comunidade e, principalmente, sobre as políticas de
desenvolvimento, cuja modernização territorializou-se legitimada por um processo ideológico
de desqualificar tudo e todos que não fossem modernos. A ideia era que o campo se
encontrava em persistente desvantagem, afetado por múltiplas deficiências, e que por isso
seria necessário a adoção do planejamento racional, que só assim, conseguiria incorporá-lo à
trilha de desenvolvimento, a partir dos modelos implementados pelos países desenvolvidos.
1
2
Aluna do Programa de Pós-graduação (Mestrado) em Geografia da Universidade Federal de Goiás/Campus
Catalão. Membro do Núcleo de Pesquisa GETeM – Geografia, Trabalho e Movimentos Sociais. E-mail:
[email protected]
Professor Doutor dos Cursos de Graduação e Pós-graduação em Geografia da Universidade Federal de
Goiás/Campus Catalão. Coordenador do Núcleo de Pesquisa GETeM – Geografia, Trabalho e Movimentos.
Sociais. E-mail: [email protected]
2
As Comunidades, historicamente, tiveram que se transformar e esses espaços
passaram a ter novos usos e, consequentemente, configurar territórios com diferentes
interesses. Nas Comunidades Camponesas foram criados mecanismos para que os
camponeses e trabalhadores da terra adquirissem novos hábitos, comportamentos e valores,
visando torná-los produtores e consumidores. É como se os espaços desses sujeitos
contrariassem a ordem da sociedade, e portanto, deveriam ser modificados.
Essas questões orientaram as reflexões desse estudo. Assim, o nosso objetivo é
analisar o conceito de Comunidade, ressaltando as transformações nas Comunidades
Camponesas e o modelo de desenvolvimento, que representa o discurso e a necessidade
imposta pelo Estado para tais transformações. Também desenvolvemos uma reflexão à forma
como a modernidade é produzida na sociedade e, consequentemente, nas Comunidades, por
meio de interpretações do tradicional/moderno, modernidade/arcaico, como se as complexas
transformações socioespaciais pudessem ser enquadradas desta forma.
Foram adotados alguns procedimentos metodológicos essenciais para o cumprimento
do objetivo proposto. Primeiro foi realizado um levantamento bibliográfico sobre o tema com
pesquisas em artigos, teses, dissertações, livros e revistas especializados. A partir desse
levantamento bibliográfico foi feita uma revisão teórica.
2 O CONCEITO DE COMUNIDADE: uma análise a partir do território
Do ponto de vista de uma análise que difere o conceito de Comunidade e Sociedade,
as reflexões de Buber 3 (1987) aborda a obra do sociólogo alemão Ferdinand Toennies
(Gemeinschaft und Gesellshaft), a qual evidencia que a principal diferença entre Comunidade
(Gemeinschaft) e Sociedade ou Associação (Gesellschaft) está na existência de dois tipos de
vontade: a primeira que é integral, baseada em harmonia e laços sanguíneos; e a segunda
racional, cuja lei do mercado domina. Para Toennies, a Comunidade foi historicamente
substituída pela Sociedade.
No entanto, Buber rejeita esse fatalismo histórico de Toennies, cuja Comunidade não
mais existe. Sua abordagem trata-se, pois, de uma concepção que Comunidades baseadas em
laços sanguíneos e seguidores de tradições são apenas um dos tipos de Comunidade, que ele
denomina de a antiga Comunidade. Nesse sentido, a sociedade, regulada pelo princípio da
3
Filósofo judeu, Martin Buber ressalta no decorrer do livro Sobre comunidade (1987) a possibilidade dos
homens conviverem em sociedade sem se aniquilarem; para isso defende a Comunidade.
3
racionalidade, origina uma nova Comunidade, que não seja baseada em ligações
consanguíneas.
Para o sociólogo Florentan Fernandes (1973), a Comunidade, historicamente, era
uma expressão baseada na unidade da vida em comum de um povo. Porém, essa vida em
comum sofreu profundas transformações, em face da crescente mecanização da vida, no
provincianismo nacional e cultural, da segmentação mais completa da vida e da divisão mais
minuciosa do trabalho. Na transição de um tipo de organização social baseada em parentesco,
status e imperfeita divisão de trabalho, para um tipo de organização social caracterizada por
célere desenvolvimento tecnológico, mobilidade, aparecimento de grupos com interesses
especiais e por um controle social formal, a comunidade adquiriu novo sentido e pôs a
descoberto novos problemas.
A Comunidade tradicional, nesse sentido, sofreu influências da sociedade, que está
no contraste entre o parentesco e o território, entre sentimentos e interesses, entre status e
contratos e entre costumes e leis. Buber (1987) utiliza-se desses argumentos para ressaltar a
diferença entre Comunidade e Sociedade, para isso denuncia sobre a educação comunitária, a
qual ressalta que é concebida em termos de um adestramento dos sujeitos para cumprir seu
papel na sociedade, no Estado, no partido ou em qualquer forma de organização social.
Florestan Fernandes (1973), ressalta que Comunidade é essencialmente ligada ao
solo, no sentido de que os indivíduos vivem permanentemente numa dada área, têm
consciência de pertencer tanto ao grupo como ao lugar e funcionam conjuntamente nos
princípios da vida. A relação é considerada sempre em relação ao meio físico. Essa concepção
é corroborada por Buber (1987) que conceitua Comunidade por uma ligação que se
desenvolveu mantida internamente por propriedade comum (sobretudo de terra), por trabalho,
costumes e fé comum. Para o autor, Comunidade e personalidade são vistos como conceitos
polares, e são definidos um em função do outro, como uma associação orgânica de
personalidades definidas a partir do relacionamento.
Percebe-se que o espaço geográfico, nesse sentido, caracterizado pela Comunidade,
em diferentes tempos, reflete as concepções que influenciam o pensar e o agir da sociedade,
deixando-se revelar pelas formas assumidas por seus objetos geográficos, sendo estes
expressões da cultura, da economia e da política. Portanto, o espaço geográfico transcende a
concepção de união entre os fatores naturais e artificiais, para tornar-se espaço social.
É válido lembrar que no começo dos tempos históricos, cada grupo humano construía
seu espaço de vida com as técnicas que inventava para tirar da natureza os elementos
indispensáveis à sua própria sobrevivência. Para Santos (1994) organizando a produção,
4
organizava a vida social e organizava o espaço, na medida de suas próprias forças,
necessidades e desejos. No entanto, pouco a pouco esse esquema se foi desfazendo: “as
necessidades de comércio entre coletividades introduziam nexos novos e também desejos e
necessidades e a organização da sociedade e do espaço tinha de se fazer segundo parâmetros
estranhos às necessidades íntimas ao grupo.” (SANTOS, 1994, p. 18).
O espaço só pode ser entendido a partir da relação entre as necessidades humanas e
os recursos naturais que estabelece e cria e recria usos da terra. Os homens, ao se apropriarem
da natureza, o fazem de acordo com determinadas formas de produção, e formam distintos
territórios. Se o espaço é produzido a partir das relações sociais de produção, ele não é
diminuído ou suplantado, mas sim transformado na medida em que se renovam os
instrumentos e as relações de produção. Por isso o espaço, ao mesmo tempo em que é produto
da relação do homem com o meio, também expressa relações de poder e essas constituem
territórios.
Dessa forma, percebe-se que as Comunidades Camponesas tinham, em outros
tempos, meios de uso da terra conforme os interesses da coletividade. Entre os séculos XVI e
XVII houve uma pressão contínua para a extinção das terras comunais, ou seja, para
transformar a terra comunal em particular, em propriedade privada. (WOOD, 2001). Assim,
as relações sociais de produção e de trabalho passam a ser submetidas aos padrões da
acumulação, da competição e do lucro, que modificam as relações de propriedade na
Inglaterra.
Acerca da origem do capitalismo, Wood (2001) afirma a tese de que o capitalismo
surge no campo inglês no século XVII, e argumenta que a França permanecia um país de
camponeses proprietários. Na Inglaterra a terra estava concentrada em poucas mãos e a massa
dos sem-propriedade estava crescendo rapidamente. Enquanto a França ainda seguia as
práticas camponesas tradicionais (não utilizava a ética do melhoramento 4), os fazendeiros
ingleses estavam respondendo aos imperativos da competição e da maximização do lucro
mediante o estímulo aos arrendamentos.
Nesse sentido, o melhoramento significou algo mais do que novos métodos e
técnicas de cultivo. Significou novas formas e concepções de propriedade. Isso implicou na
expropriação de camponeses através dos cercamentos que representou a privatização das
4
Não significava somente novas formas e concepções de propriedade. Para o proprietário de terras
empreendedor e seu próspero capitalista arrendatário, implicava em propriedades aumentadas e concentradas.
“O resultado foi um setor agrário mais produtivo do que qualquer outro na história. Latifúndios e arrendatários
ficaram preocupados com o que chamaram de melhoramento – o aumento da produtividade da terra com vista
ao lucro”. (WOOD, 2001, p. 88).
5
terras comunais. Isso desencadeou conflitos na Inglaterra, revoltas por causa dos cercamentos.
Expulsos pelos cercamentos, essas populações foram para as áreas urbanas em crescimento,
servindo como força de trabalho para as atividades nas fábricas. Assim, esse processo deve
ser compreendido enquanto novas relações entre as classes e, consequentemente, a produção
de diferentes territórios marcados pela exploração.
Do ponto de vista da expansão territorial, as transformações que ocorreram/ocorrem
nas Comunidades Camponesas podem ser analisadas a partir da modernidade, que possui dois
sentidos principais: um que envolve a infraestrutura econômica, a base técnica e os meios de
produção; e outro que envolve os aspectos políticos e ideológicos. A modernidade, nesse
sentido, é abrangente, já que está relacionada a um conjunto de transformações que se
processam nos meios de produção, mas também na estrutura econômica, política e cultural de
um território. Nesse sentido, a modernidade 5 é a era da racionalidade, da tecnocracia e,
portanto, do controle social. (HAESBAERT, 2006).
Outro conceito que iremos utilizar é o de desenvolvimento, que representa a síntese
da dominação da natureza, e também da natureza humana, pois nos afasta da natureza e nos
coloca diante de constructos humanos. Portanto, a ação do desenvolvimento nas
Comunidades Camponesas tem o intuito de negar os saberes de homens e mulheres cujos
territórios representam vida e construir territórios marcados pelo poder através de novos
valores, cultura, formas de trabalho e produção.
3 O MODELO DE DESENVOLVIMENTO ADOTADO NO BRASIL
Diante das reflexões acerca do conceito de Comunidade,
considerando as
transformações espaciais nas Comunidades Camponesas é necessário ressaltar o modelo de
desenvolvimento adotado no Brasil. Isto porque, a ação dos órgãos públicos responsáveis pelo
desenvolvimento das áreas rurais evidencia o contexto em que o território é usado como
instrumento de controle social para subordinar Comunidades Camponesas aos modelos de
desenvolvimento apresentados pelo Estado.
O desenvolvimento territorial, institucionalizado pela Organização das Nações
Unidas (ONU) após a II Guerra Mundial, foi postulado num momento histórico em que as
5
“O termo modernidade compreende uma tentativa de apreender a complexidade das mudanças sociais
desencadeadas com o chamado Iluminismo racionalista europeu do século XVIII e com a Revolução
Francesa”. (HAESBAERT, 2006, p. 35). Ressalta ainda que a Revolução Industrial britânica forneceu o
modelo para as fábricas, rodovias, cidades, infraestrutura, emprego das técnicas dentre outros, e a Revolução
Francesa forneceu o modelo político e ideológico do processo de modernização.
6
grandes potências lideradas pelos Estados Unidos da América (EUA) e União das Repúblicas
Socialistas Soviéticas (URSS) deflagram a chamada Guerra Fria pela conquista do primado
político, econômico e ideológico de um mundo teoricamente bipolarizado. Assim, originou-se
a corrida armamentista.
A expansão do socialismo e o fortalecimento da URSS, juntamente com a Revolução
Cubana (1959) liderada por Fidel Castro, demonstrava que os EUA perdia o controle sobre os
países latino-americanos. Nesse momento histórico, a ONU tinha o intuito de preservar a paz
e a segurança no mundo, promovendo a cooperação internacional e resolvendo problemas
econômicos, sociais e culturais que impediam o crescimento das nações. Assim, a ONU,
influenciada pelo modelo norte americano, começou a buscar estratégias, na tentativa de
garantir a ordem social dos regimes e impedir a propagação comunista.
O argumento utilizado para estabelecer as políticas territoriais no campo foi de que a
pobreza era um entrave e uma ameaça para as populações pobres, e na luta ideológica, os
povos famintos possuíam mais receptividade para a propaganda comunista. Assim, em 1940
no Brasil, as políticas de desenvolvimento territorial partiram de um convênio entre o
Ministério da Agricultura e o governo norte-americano, em que os EUA colocariam seus
técnicos para assessorar a comissão dos programas nas áreas rurais e, também, a preparação
de técnicos brasileiros nos EUA. (AMMANN, 1985).
O amplo apoio que o governo brasileiro ofereceu ao desenvolvimento territorial foi
justificado pelos pontos críticos da urbanização acelerada que o país passava, com a formação
de grandes periferias, cuja intervenção do Estado partiu dos problemas urbanos já agravados.
Assim, havia uma exigência de novas políticas de gestão do território como um todo, tanto a
nível nacional quanto regional, que permitisse um novo modelo de acumulação e de
participação na economia internacional.
Nesse contexto, as áreas rurais foram um dos principais alvos da intervenção estatal,
visto que, era nessas regiões onde se encontravam populações que eram consideradas
atrasadas e responsáveis pelo atraso econômico do país. Em 1945, o acordo firmado entre os
governos brasileiro e norte-americano era uma forma de cooperação sobre a educação rural,
que devia preparar mais diretamente a entrada do desenvolvimento no país.
O acordo propôs estabelecer uma maior aproximação interamericana, mediante
intercâmbio intensivo de educação, ideias e métodos pedagógicos entre os dois países e
resultou na criação da Comissão Brasileiro-Americana de Educação das Populações Rurais
(CBAR), composta por técnicos americanos e brasileiros responsáveis pela execução dos
programas nas áreas rurais. (AMMANN, 1985). Para garantir a inserção dos programas de
7
desenvolvimento e, consequentemente, o domínio de territórios, foi utilizado estratégias como
a criação de Missões Rurais, tendo como recurso o rádio, o cinema, bibliotecas e outros meios
de comunicação. Essas Missões ficavam cerca de 2 a 5 dias em cada cidade, reunindo
pessoas. O intuito dessas Missões era implantar os construtos econômicos, políticos e
culturais do urbano.
Com o intuito de abranger mais áreas rurais brasileiras, políticas foram
intensificadas, visando adequar esses espaços a Revolução Verde. Em 1950, inicia-se a
experiência de desenvolvimento através da Missão Rural de Itaperuna (RJ), com o intuito de
assentar as bases para um programa nacional de melhoria das condições de vida econômica e
social das áreas agrícolas. (AMMANN, 1985). Posteriormente, surge em 1952 a Campanha
Nacional de Educação Rural (CNER) do Ministério de Educação, a qual inaugurou em nível
nacional, um Programa de Educação de Jovens e Adultos para capacitar profissionais para a
atuação junto às Comunidades.
Para reforçar os argumentos utilizados para o desenvolvimento rural, criou-se uma
predicação negativa para as populações do campo. Segundo Martins (1975), o homem rural é
visto como ignorante, magro, sujo e rotineiro. Esse estereótipo negativo coloca no cerne a
ideologia da urbanização, pela negação do rural. O Jeca Tatu ou o caipira preguiçoso, por
exemplo, foram termos criados para mostrar a importância do fazendeiro rico sobrepondo o
urbano no rural. Desse modo, “[...] os agentes da inovação só a concebem como projeção das
virtudes urbanas (simbolizadas pela máquina e pela técnica “moderna”) sobre a sociedade
agrária.” (MARTINS, 1975, p. 27).
Nas Comunidades Camponesas, foram criados os centros comunitários, sob a
orientação da igreja católica, ficando a sua institucionalização e respaldo a cargo da CNER.
Nos centros comunitários, ocorriam as reuniões com as missões rurais e a Comunidade
Camponesa. (AMMANN, 1985). Eram compostas por agrônomos, médicos e assistentes
sociais. Percorriam cidades, reunindo agricultores, donas de casa e jovens, ministrando aulas
de higiene, alimentação, técnicas agrícolas, enfermagem, trabalhos manuais e outros.
O plano de desenvolvimento do governo de Juscelino Kubitschek (JK) com o
objetivo de eliminar a pobreza, viu a necessidade de uma ampla reforma no sistema
educacional estímulando a emergência de novos setores da economia. Assim, de 5 a 8 de
julho de 1960 foi realizado no Rio de Janeiro, o Seminário Nacional sobre Ciências Sociais e
o Desenvolvimento de Comunidades no Brasil. Esse Seminário foi resultado de um convênio
firmado entre o Serviço Social Rural (SSR) e a Missão Norte-Americana de Cooperação
Técnica no Brasil, a qual teve a participação de técnicos desses dois segmentos.
8
Para Ammann (1985) o Seminário mostrou que os discursos dos técnicos tinha o
objetivo de fazer uma reforma estrutural no campo que contasse com a participação das
camadas populares. Essas medidas receberam total apoio do regime populista. Os principais
objetivos do Seminário era aumentar o número de cientistas para os programas de
desenvolvimento rural no Brasil; dar aos técnicos preparo mais adequado em Ciências Sociais
e demais disciplinas relacionadas com o trabalho em programas dessa natureza; promover
maior entrosamento entre institutos de pesquisa social e entidades que realizavam programas
de desenvolvimento rural, a fim de que as atividades de ensino e investigação tivessem
articulação com as necessidades desse programa.
No governo João Goulart, o Brasil passou por uma crise política, principalmente
devido à renúncia do presidente Jânio Quadros (recém empossado), o que agravou, ainda
mais, os problemas econômicos deixados pelo Governo JK (dívida externa e elevada
inflação). Neste momento, houve a promulgação do Estatuto do Trabalhador Rural. O
Estatudo do Trabalhador Rural trouxe resultados inesperados para os trabalhadores do campo
porque durante o processo em que se efetivou não houve uma discussão para que este pudesse
ser melhorado, de modo a atender as expectativas e necessidades daqueles que sentiriam
diretamente seus efeitos.
Os desdobramentos do Estatuto do Trabalhador Rural acabaram por colocar a
intensificação do contrato por empreitada e/ou o contrato diário, utilizando em massa o
trabalho temporário, justificando a expulsão dos camponeses e dos trabalhadores da terra e
piorando as condições de existência para a maioria desses trabalhadores. (MENDONÇA,
2004).
Por outro lado, o Estatuto da Terra aprovado em 30/11/1964 passou a ser instrumento
dos latifundiários para assegurar a expansão controlada do capitalismo no campo brasileiro,
pois facilitou e estimulou a apropriação da terra pelas empresas rurais. Isso ocorreu devido à
própria constituição do que seriam os propósitos da Ditadura Militar, pensada e articulada sob
forte intervenção das oligarquias agrárias. Os conteúdos políticos e econômicos adotados
reforçaram, entre outras fatores, o latifúndio e as empresas privadas nacionais e internacionais
por meio da monopolização da propriedade ou exploração da terra, além de favorecer a
entrada no país de capital estrangeiro.
O Estatudo da Terra trouxe as condições necessárias à expansão do latifúndio. Ao
retratar o histórico de violência no campo brasileiro, Oliveira (1989, p. 31) destaca que “[...]
uma das bandeiras do movimento militar de 64, foi a extirpação do movimento das Ligas
Camponesas e a liquidação do processo de reforma agrária deflagrada no início de 1964 pelo
9
então presidente João Goulart”. Nessa perspectiva, as Ligas Camponesas abordavam um
território da luta pela terra e do combate ao latifúndio, e, por conseguinte, às oligarquias
agrárias, movimento esse combatido com violência e sangue pelos governos militares.
4 MODERNIZAÇÃO DA AGRICULTURA: as metamorfoses para continuar
camponês...
As inovações tecnológicas na agricultura, que depois se convencionou chamar de
Revolução Verde, ocorreram através de resultados de pesquisas e experimentos realizados por
cientistas, contratados pela Fundação Rockfeller, no México. A American Internacional
Association (AIA) criou, após visita de seu criador Nelson Rockefeller ao Brasil, a
Associação de Crédito e Assistência Rural (ACAR) em Minas Gerais. Segundo Brum (1988),
por influência da Fundação Rockefeller, na década de 1950 foi criada, em Minas Gerais, a
Associação de Crédito e Assistência Rural – ACAR, com o objetivo de orientar e estimular a
implantação de novas técnicas de cultivo entre os camponeses e os produtores rurais. Logo
após, organismos idênticos foram criados em outros Estados, entre eles a Associação Sulina
de Crédito e Assistência Rural – ASCAR, no Rio Grande do Sul.
Nesse sentido, tem-se a iniciativa de um grupo econômico privado, que obteve logo
em seguida o apoio e a participação de órgãos do governo dos EUA. Na medida em que
ocorria avanços, o governo brasileiro foi assumindo progressiva responsabilidade na sua
implantação. Assim, “[...] os interesses das corporações transnacionais vão sendo assumidos
como objetivos nacionais pelos países dependentes” (BRUM, 1988, p. 46).
Neste período também ocorreu uma rearticulação da estratégia da produção de
alimentos no mundo, sob a influência das corporações transnacionais. Para Brum (1988), três
fatores principais se combinaram nessa nova fase: “a difusão da ‘Revolução Verde’ a nível
mundial, a mudança da política de exportação de cereais do governo norte-americano e a
internacionalização da pesquisa agrícola.” (BRUM, 1988, p. 47).
Desde o início do século XX, os EUA já haviam testado esse modelo de produção
agrícola na Índia 6. Já no Brasil, esse processo ficou conhecido como Revolução Verde.
Enquanto um conjunto de métodos e técnicas modernas, baseava-se nos avanços da indústria
química (agrotóxicos, insumos, fertilizantes) e metal-mecânica (tratores, colheitadeiras,
plantadeiras, implementos etc). Para Graziano Neto (1985), a Revolução Verde causou fome,
6
Na Índia foi criado o Projeto Etawdh.
10
problemas ambientais e mais miséria, pois somente os grandes produtores tiveram condições
de aplicar todo o pacote tecnológico que acompanhava as sementes milagrosas desenvolvidas
nos centros de pesquisa.
O grande impulso dado à Revolução Verde foi baseado na política de exportação de
cereais, introduzida pelo governo norte-americano chefiado pelo então presidente Lindon
Johnson, através de novas variedades de trigo, arroz e milho, mais produtivas. Segundo Brum
(1988), a internacionalização da pesquisa agrícola processou-se através da criação de centros
internacionais de pesquisa, com atuação acima das fronteiras nacionais dos países. Dessa
maneira, “[...] tais centros foram criados em áreas e países estratégicos, de modo a cobrir as
diferentes regiões do planeta, e voltados a pesquisas relacionadas com determinados produtos
agrícolas, de acordo com os interesses e orientação das grandes corporações.” (BRUM, 1988,
p. 47).
Como forma de inserir o Brasil na vanguarda da modernização e articular o país,
atrasado em relação à pesquisa agrícola, foi criada, no início de 1970, a Empresa Brasileira de
Pesquisa Agropecupária (EMBRAPA), e o Instituto Nacional de Colonização e Reforma
Agrária (INCRA), cujo objetivo era modernizar a agricultura, especialmente na região de
Cerrado, tornando-a uma nova área de fronteira agrícola, através da inserção de novas culturas
adaptadas às condições climáticas e ao solo da região.
Segundo Brum (1988), a atuação da EMBRAPA acabou sendo influenciada pelos
centros internacionais, pois estes ocuparam posição de vanguarda nas pesquisas.
A
articulação com as organizações nacionais levaram-nas, de forma hábil e sutil, através do
fornecimento de subsídios e recomendações de técnicos, dentro de um trabalho integrado em
que os centros internacionais se constituíram o cérebro de comando, sempre inspirados nos
interesses das corporações transnacionais.
A Revolução Verde incentivou o cultivo de monoculturas que se destinam ao
mercado externo, não sendo a produção direcionada ao sustento alimentar da população
produtora, criando a dissociação entre plantar e comer. Esse problema é consequência do
desvio da produção, ou seja, os alimentos produzidos em países considerados
subdesenvolvidos não atendem, em muitos casos, ao mercado interno e sim ao mercado
externo, especialmente, as demandas dos países desenvolvidos.
No Brasil, as reflexões de Josué de Castro são consideradas marcos na análise sobre
a fome, salientando, nos diversos debates suscitados por ele, as perspectivas políticas da fome
e da produção de alimentos. É pouco conveniente, entre os povos bem alimentados, discutir a
fome dos menos abastados e acrescenta que a fome tem sido, através dos tempos, a mais
11
perigosa força política. (CASTRO, 1984). Nesse sentido, a população camponesa luta,
secularmente, contra as grandes propriedades, que, conivente com o Estado, concentra renda e
terras gerando fome e pobreza.
A denominação de moderno, segundo Martins (1975), passa a ser compreendida
como modificação do rural pelo abandono de práticas rotineiras por produtos químicos
oriundos do complexo industrial-militar, visando despovoar áreas inteiras que, não tendo mais
mercados suficientes, são melhorados para intensificar a Revolução Verde, sendo
disponibilizados para a indústria civil. Percebe-se que a agricultura deixa de ser considerada
como um elemento constitutivo da cultura dos camponeses, e de seus modos de vida,
transformando-se em uma profissão, ao passo que ao serem induzidos a assimilarem os
pacotes tecnológicos da modernização da agricultura, os camponeses tornam-se cada vez mais
atrelados ao capital agroindustrial e financeiro, ou seja, ao sistema capitalista.
Sobre o desenvolvimento do capitalismo, Rosa Luxemburgo (1985) em sua obra A
acumulação do capital afirma que,
[...] o capitalismo vem ao mundo e se desenvolve historicamente em meio
social não-capitalista. Nos países da Europa ocidental ele se desenvolve
inicialmente no meio feudal, o que lhe comunica sua forma primitiva [...]
após a queda do feudalismo, terá por ambiente o meio camponês-artesanal,
ou seja, o meio da produção simples, de cunho mercantil, ou seja, o meio da
produção simples, de cunho mercantil, seja agrícola, seja artesanal [...] É
esse o meio em que prossegue a marcha do processo capitalista de
acumulação. (LUXEMBURGO, 1985, p. 253).
Embora seguidora do pensamento de Marx, Luxemburgo (1985) vê o futuro do
campesinato de uma forma diferente de Marx. A diferença encontra-se na afirmação que
Luxemburgo faz de que para se desenvolver o capitalismo necessita de um meio ambiente
constituído de formas não-capitalistas de produção. Necessita-se de camadas sociais nãocapitalistas como mercado, para colocar sua mais-valia, delas necessita como fontes de
aquisição de seus meios de produção e como reservatório de força de trabalho para seu
sistema salarial.
Neste sentido, para Luxemburgo é necessário no sistema capitalista a presença do
campesinato, caso contrário chegaria ao seu fim. E é a partir daí que se pode justificar a
presença (do campesinato) nos dias atuais, inclusive integrando-se e/ou sendo útil ao sistema.
Luxemburgo defende a tese de que o desenvolvimento do capitalismo não levará à supressão
de modos não-capitalistas de produção, ou seja, do campesinato. Ao contrário, Luxemburgo
evidencia que quanto mais o capitalismo se desenvolve, contraditoriamente ele mesmo produz
relações sociais não-capitalistas de produção.
12
Vale ressaltar que autores como Shanin (2008) propõe que o campesinato, por ser
resultado do próprio capitalismo, se cria e recria constantemente. Segue essa corrente, no
Brasil, autores como Oliveira (1990), Fernandes (2008), Mesquita (2001) e Mendonça (2004)
que defendem a (re)criação do campesinato no interior do capitalismo, como forma de
contestação à lógica hegemônica estabelecida no campo. Apesar de que os camponeses
representam um obstáculo para a modernização, pois não estão inseridos no contexto da
Revolução Verde, todavia estão inseridos sob diferentes formas às suas determinações. Assim,
o camponês é, ao mesmo tempo, produto e negação do capitalismo no campo. Isso quer dizer
que o próprio capital cria e recria relações não-capitalistas de produção (OLIVEIRA, 1990).
A década de 1970 é caracterizada por forte concentração urbana, consequência da
migração campo-cidade, que se acentuou devido ao desenvolvimento industrial. Os Planos
Nacionais de Desenvolvimento 7 (PND) foi ponto forte do processo político. Estes estiveram
presentes na economia nacional entre 1970 e 1980 e foram projetados em três etapas, sendo
que somente as duas primeiras tiveram pleno desenvolvimento.
Em 1977 foi reestruturado e dinamizado o sistema nacional de assistência técnica e
extensão rural através da criação da Empresa Brasileira de Assistência Técnica e Extensão
Rural (EMBRATER) vinculada ao Ministério da Agricultura (BRUM, 1988). O sistema se
completa, estendendo-se aos diversos Estados, através da criação, em cada um deles, da sua
respectiva Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural (EMATER) que ficou
encarregada do desenvolvimento territorial, de forma localizada.
Sua criação fez parte de uma estratégia do Estado no sentido de criar mecanismos para
acelerar a chamada modernização da agricultura.
Percebe-se que a ação do Estado sobre a agricultura, através de políticas territoriais
tornaram-se mais frequentes a partir do momento em que o governo, representante legal do
povo, viu a necessidade de encontrar saídas para que o capital pudesse circular de forma plena
pelo território nacional. Nesse contexto, o campo assume papel de destaque, posto como lugar
a ser desenvolvido, razão do atraso econômico do país e, portanto, deveria se modernizar
visando inserção no mercado econômico mundial.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
7
Segundo Inocêncio (2010), o Plano Nacional de Desenvolvimento foi um dos programas governamentais de
integração regional brasileira, do período militar brasileiro, que continha metas direcionadas para o Cerrado.
13
Todo o período emblemático do ponto de vista das transformações que ocorreram
nas Comunidades Camponesas, historicamente, teve consequências socioespaciais. Mas o
preço a pagar por essas consequências é ocultado por meio da justificativa que os espaços
camponeses contrariam a ordem lucrativa da sociedade e, por isso, deviam ser modificados
(novas formas de produção, trabalho, hábitos, valores), modernizados. Como um processo
contínuo de afirmação do novo, mas também de sua negação/superação, os camponeses
necessitam se modernizar.
A reflexão desenvolvida também ressaltou que o conceito de Comunidade apesar da
própria palavra trazer o sentido de algo em comum entre os sujeitos, o processo histórico de
transformação ocorrido na sociedade capitalista evidencia que esses espaços sofreram intensas
modificações, cujo espaço passou a ter novos usos, com diferentes interesses dentro de uma
mesma Comunidade. O território passa a configurar sob a hegemonia do Estado, se
espacializando para além dos limites políticos, mas principalmente nas relações sociais
estabelecidas. Portanto, o conceito de Comunidade requer uma reflexão que perpassa pelo
conflito, considerando a luta de classes e a compreensão de que os camponeses e
trabalhadores da terra compõem o universo da classe tabalhadora ampliada.
Nas Comunidades Camponesas isso é determinado por relações de poder que
influenciam na construção de territórios modernos, nos territórios considerados como
atrasados ou de extrema pobreza. Para isso, outro conceito abordado neste artigo foi o de
desenvolvimento, que nas últimas décadas representa a necessidade dos territórios se
desenvolverem, modernizarem. Isso se tornou presente desde a época da Revolução Verde
quando a colonização do rural pelo discurso do desenvolvimento se faz mais intensa. Nesse
momento, o rural é o lugar do atraso. Posteriormente, a representação do rural muda, pois é
quando se intensifica as políticas de desenvolvimento, cujo público alvo é o camponês e
tentam incorporá-lo ao mercado, como produtor e como consumidor.
Na verdade, os territórios ditos como atrasados representam as contradições do tipo
de modernização que vem sendo reproduzidas nas sociedades, que segrega e produz a miséria.
Por isso se torna importante analisar as Comunidades Camponesas a partir dos processos e
das ações dos diferentes sujeitos nesses espaços, assim como superar e verificar como o
modelo de desenvolvimento (econômico) se expande e o sentido e a forma com que é
produzido, tendo em vista o por que e para quem.
REFERÊNCIAS
14
AMMANN, S. B. Ideologia do desenvolvimento de comunidade no Brasil. 5 ed. São
Paulo: Cortez, 1985.
BRUM, A. J. Modernização da agricultura: trigo e soja. Petrópolis (RJ): Vozes, 1988. p.
31-80.
BUBER, M. Sobre comunidade. Seleção e tradução de M. Dascal; O. Zimmermann. São
Paulo: Perspectiva, 1987.
CASTRO, J. de. Geografia da fome: o dilema da fome - pão ou aço. Rio de Janeiro: Antares,
1984.
FERNANDES, B. M. Entrando nos territórios do território. In: PAULINO, E. T; FABRINI, J.
E. Campesinato e território em disputa. São Paulo: Expressão Popular, 2008. p. 213-238.
FERNANDES, F. Comunidade e sociedade: leituras sobre problemas conceituais,
metodológicos e de aplicação. São Paulo: Nacional/EDUSP, 1973. p. 82-144.
GRAZIANO NETO, F. Questão agrária e ecologia: crítica da moderna agricultura. 2 ed. São
Paulo: Brasiliense, 1985.
HAESBAERT, R. Territórios alternativos. 2 ed. São Paulo: Contexto, 2006. p. 35-80.
INOCÊNCIO, M. E. As tramas do poder na territorialização do capital no Cerrado: o
PRODECER. 271f. (Doutorado). Programa de Pós-graduação em Geografia, Universidade
Federal de Goiás, 2010.
LUXEMBURGO, R. A acumulação do capital: estudo sobre a interpretação econômica do
imperialismo. Tradução de M. Bandeira, 3. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.
MARTINS, J. de S. Capitalismo e tradicionalismo. São Paulo: Pioneira, 1975.
MENDONÇA, M. R. A urdidura espacial do capital e do trabalho no Cerrado do Sudeste
Goiano. 2004. 458 f. Tese (Doutorado em Geografia) – Faculdade de Ciência e Tecnologia,
Universidade Estadual Paulista, Presidente Prudente.
MESQUITA, H. A. de. Corumbiara: o massacre dos camponeses. 2001. 290f. Tese
(Doutorado em Geografia Humana) Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas.
Universidade de São Paulo. São Paulo.
OLIVEIRA, A. U. de. A geografia das lutas no campo. 2 ed. São Paulo: Contexto, 1989.
______. Modo capitalista de produção e agricultura. 3 ed. São Paulo: Ática, 1990.
SANTOS, M. Técnica, espaço e tempo: globalização e meio técnico-científico
informacional. São Paulo: Hucitec, 1994.
SHANIN, T. Lições camponesas. In: PAULINO, E. T.; FABRINI, J. E. Campesinato e
territórios em disputa. São Paulo: Expressão Popular, 2008. p. 23-47.
WOOD, E. M. A origem do capitalismo. Tradução V. Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
15
Download

Artigo - Rede de Estudos do Trabalho