OS 2 DA (NOVA) VAGA de Emmanuel Laurent _ 8 de Julho de 2011
sinopse Os 2 da (Nova) Vaga é a história de uma amizade. Jean-Luc Godard nasceu em 1930,
François Truffaut dois anos mais tarde. O amor pelo cinema juntou-os. Escreveram nas mesmas
revistas: Cahiers du Cinema e Arts. Quando o mais novo dos dois se tornou realizador com “Os 400
Golpes”, que triunfou em Cannes em 1959, ajudou o velho amigo a entrar no mundo da realização,
oferecendo-lhe um argumento que inclusivamente já tinha título: “O Acossado”. Durante a década de 60
apoiaram-se mutuamente, até 1968 altura em que a história e a política os separa: Godard envolve-se
nas políticas revolucionárias e Truffaut continua o seu percurso artístico sem influências do contexto
social e político. Entre os dois, estava Jean-Pierre Leaud, como uma criança filha de pais separados e
desavindos. A amizade de Godard e Truffaut, bem como o seu afastamento, fazem parte da história do
cinema francês.
Recorrendo a imagens de arquivo, a excertos dos filmes dos dois realizadores e folheando recortes de
imprensa da época Os 2 da (Nova) Vaga leva-nos de volta a uma década que transformou o mundo.
ficha técnica
Título original: Deux de la Vague (França, 2010, 91 min)
Realização e Produção: Emmanuel Laurent
Interpretação: Jean-Luc Godard, François Truffaut, Anouk Aimée,
Charles Aznavour, Jean-Paul Belmondo, Claude Chabrol, Jean Cocteau,
Fritz Lang, Eric Rohmer, Michel Piccoli
Argumento: Antoine de Baecque
Fotografia: Etienne de Grammont, Nick de Pencier
Montagem: Marie-France Cuénot
Distribuição: Midas Filmes
Estreia: 10 de Março de 2011
Classificação: M//12
Amores e desamores da Nova Vaga francesa
Por João Lopes, Cinemax
Emmanuel Laurent fez um documentário para redescobrirmos o papel histórico de Jean-Luc
Godard e François Truffaut. E também a figura fundamental do actor que circulou pelos
respectivos filmes: Jean-Pierre Léaud.
Há uma visão simplista, pueril mesmo, que confunde a cinefilia (isto é, à letra: o amor do cinema) com a
fabricação de grandes consensos. Ora, não precisamos de concordar em tudo, nem sempre sobre os
mesmos filmes: a cinefilia vive, não apenas dos filmes, das suas histórias e estéticas, mas sobretudo
das formas plurais da cumplicidade humana.
É por isso que a cinefilia quase não existe na Internet: os sites e blogs que insultam os que têm outras
visões dos filmes, e do próprio cinema, são mesmo instrumentos quotidianos de assassinato de
qualquer hipótese de solidariedade cinéfila.
Vem isto a propósito de um documentário que celebra, justamente, a cinefilia e, por assim dizer, os seus
limites: "Godard/Truffaut: os 2 da Nova Vaga" evoca o trabalho e as alianças de Jean-Luc Godard e
François Truffaut, para desembocar na sua aparatosa ruptura, indissociável das convulsões ideológicas
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e políticas da França pós-Maio 68. É um filme sobre uma época fascinante do cinema francês, já que a
Nova Vaga, em grande parte desencadeada por aqueles que, como estes dois protagonistas, escreviam
nos "Cahiers du Cinéma", foi um movimento determinante na configuração do cinema moderno, ou
melhor, da modernidade no cinema.
O mérito maior do filme dirigido por Emmanuel Laurent, com a colaboração de Antoine de Baecque
(autor de uma monumental biografia sobre Godard), decorre da sua preocupação em recordar, não
apenas filmes e estéticas, mas sobretudo pessoas. Só desse modo é possível entendermos o fulgor
criativo dos autores da Nova Vaga e, no limite, o estrondo da ruptura entre Godard e Truffaut.
Por isso mesmo, a personagem "central" de "Godard/Truffaut: os 2 da Nova Vaga" acaba por ser, não
um dos autores, mas... o actor Jean-Pierre Léaud. Descoberto por Truffaut para a sua primeira longametragem, "Os 400 Golpes" (feita no mesmo ano em que Godard se estreava com "À Bout de Souffle/O
Acossado"), Léaud transformou-se num símbolo vivo do universo da Nova Vaga, circulando pelos filmes
de Godard e Truffaut como um filho dilecto. Face ao corte de relações dos seus "pais" artísticos, Léaud
perdeu, afinal, algo da sua identidade cinematográfica: o filme é também sobre essa orfandade cinéfila.
Amigos inimigos
Luís Miguel Oliveira, 10.Mar.2011
Um óptimo documentário sobre uma época crucial na história do cinema europeu
Os "dois da (nova) vaga" são Jean-Luc Godard e François Truffaut. O filme de Emmanuel Laurent conta
a história deles, no período em que ela foi comum: da amizade e da cumplicidade seladas, muito cedo,
pela cinefilia, à ruptura (pessoal) definitiva no princípio dos anos 70, já a cumplicidade se perdera há
muito, queimada pelo acentuar das diferenças idiossincráticas, e a amizade seguiu o mesmo destino, na
sequência de uma violentíssima troca de correspondência depois de Godard ter saido (muito) irritado de
uma projecção de "A Noite Americana" (de Truffaut).
Os amigos tornaram-se inimigos, não voltaram a ver-se (cara a cara, pelo menos), nem a trocar,
publicamente ou em privado, qualquer manifestação de estima. Para o filme (que foi escrito por Antoine
de Baecque, crítico e historiador que tem estudado a geração da "nouvelle vague" e assinou uma
recente biografia de Godard), essa ruptura assinala um momento simbólico: o momento em que o
cinema francês (o novo cinema francês, saído da "nouvelle vague") se cindiu, e os seus principais
pontos de referência seguiram rumos inconciliáveis.
A orfandade resultante é simbolizada por Jean-Pierre Léaud, actor de Truffaut e actor de Godard, e o
primeiro filho legítimo da "nouvelle vague" (houve outros). É com ele que o filme acaba, muito miúdo, a
ser entrevistado no "casting" para os "400 Golpes" de Truffaut. Podemos dizer, como Jacques Rivette
disse uma vez, que o que espanta não é que Godard e Truffaut se tenham zangado, antes que tenham
demorado tanto tempo a fazê-lo.
As diferenças - profundas, ideologica e esteticamente - estavam lá desde o princípio, e não fizeram
senão vincar-se, sobretudo a partir do final dos anos 60, quando a geração da "nouvelle vague" chocou
de frente com um tema que, em boa verdade, só Godard não fizera por explicitamente evitar: a política.
Sem insistir muito - alguns apontamentos alternando declarações de um e de outro - o filme sinaliza
essas diferenças, mas o seu investimento é sobretudo na amizade entre os dois, contada como se
fosse o cimento que, justamente, permitia agregar duas personalidades tão distintas.
O que faz sentido: em 1973 os filmes de Godard e Truffaut já não tinham quase nada em comum, mas
foi a explosão da relação pessoal que tornou isso evidente. Centrada nestes dois rostos, é portanto a
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história da "nouvelle vague" e do período que se lhe seguiu que "Os Dois da (Nova) Vaga" conta.
Forçosamente resumida, às vezes até com simplicidade excessiva e algum pendor pró-Truffaut na
explicação da ruptura, ou no mínimo uma maior disponibilidade para compreender a posição dele. Em
todo o caso, com a sua excelente recolha de material de arquivo e o seu texto claro e argumentado, "Os
Dois da (Nova) Vaga" é um óptimo documentário sobre uma época crucial na história do cinema
europeu, e o seu capital pedagógico não é, consequentemente, nada negligenciável.
Godard e Truffaut: ni avec toi ni sans toi
04.03.2011 - Francisco Valente
Uma amizade que define as tensões do cinema moderno: Godard e François Truffaut. E uma ruptura: o
romântico refúgio para as insuficiências da vida terrena, de um lado; a frontalidade de um pensamento
que assume as limitações do cinema no estudo político do homem, do outro. A história em "Os 2 da
(Nova) Vaga", nas salas na próxima semana
A estreia de um filme de Godard é sempre um acontecimento, e de Março estará à sua medida. "Filme
Socialismo", última longa e olhar fortíssimo sobre a civilização ocidental e o cinema, será acompanhado
de um ciclo na Cinemateca Portuguesa, em Lisboa, e da estreia de "Os 2 da (Nova) Vaga",
documentário sobre uma relação de amizade que define as
tensões do cinema moderno: Jean-Luc Godard e François
Truffaut. Os dois jovens críticos juntar-se-iam para romper
com a ditadura do argumento de com uma geração
envelhecida do cinema francês, e para fazer, com a primeira
geração "que sabia quem era Griffith", uma revolução estética
e libertária das morais da arte cinematográfica, inspirando-se
na cinefilia para restaurar a espontaneidade da vida nos filmes.
As conflituosas paixões de Truffaut e Godard levariam à
construção de campos contrários no cinema: o perfeito e
romântico refúgio para as insuficiências da vida terrena, de um lado; a frontalidade de um pensamento
que assume as limitações da expressão cinematográfica para o estudo político do homem, do outro.
Amigos cinéfilos em Paris e colegas dos "Cahiers du Cinéma" nos anos 50, Godard e Truffaut
assumiriam a liderança do grupo que revolucionou o cinema: a nouvelle vague. As suas ideias abririam
espaço para carreiras que começaram por ser aliadas e acabaram antagónicas. Para Emmanuel
Laurent, realizador de "Os 2 da (Nova) Vaga", o cinema de cada um é o retrato de uma década de
ruptura. "Truffaut e Godard são importantes na nouvelle vague, mas também reveladores da sua época.
A sua história artística e relação pessoal é profunda, permitia-nos contar algo que fosse para além da
cinefilia", diz-nos.
O nome do movimento serviria para descrever a nova geração de cineastas do pós-guerra, distante da
abordagem do rígido "cinema à papa" francês. "Godard e Truffaut viram milhares de filmes, a sua
sinceridade está em falar de coisas que conhecem", diz Laurent. "É por isso que [os seus filmes] são
vibrantes e cheios de vida, mostram os costumes da juventude que conheciam. Essa sinceridade é
única na história do cinema." As vivências paralelas estender-se-iam para o ecrã, ligando cinema e vida.
"Quando Godard faz 'Uma Mulher é uma Mulher' [1961], responde ao 'ménage à trois' de 'Jules e Jim'
[1962] de Truffaut, que filma 'Angústia' [1964] para Godard pegar no adultério em 'A mulher casada'
[1964]. São situações que correspondiam ao seu tempo e aos seus amores."
Antoine de Baecque, argumentista do documentário, crítico e biógrafo dos dois cineastas, realça que
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Godard não teria sido o mesmo sem Truffaut, e vice-versa: "É uma amizade importante para os dois,
permitiu construírem-se em conjunto e tornarem-se naquilo que foram." Se é a escrita poética de
Godard que atenua a crítica virulenta de Truffaut e promove "Os 400 Golpes" (1959), será com Truffaut
que Godard dará o tiro de partida para a sua carreira de cineasta: Truffaut oferece-lhe a ideia original de
"O Acossado" (1959) e apresenta-o a produtores. Contudo, a amizade e o respeito mútuo, à
semelhança dos filmes, tomariam o caminho da separação. Diz Baecque: "Desenhavam-se universos
quase antagónicos: Truffaut numa fabricação clássica e generosa fora do mundo e da política, Godard
dinamitando o cinema numa militância profunda e radical."
A nouvelle vague serviu, então, de ponto de encontro para caminhos invertidos: "Truffaut é o parisiense
de origens modestas que chega ao poder e vive como um burguês, enquanto Godard é o rapaz de
família que vive numa militância solidária com os mais pobres." Um encontro de opostos que fomenta
uma das dinâmicas criativas mais interessantes da história do cinema. "A sua amizade é como uma
energia que se alimenta de um pólo positivo e negativo. Por isso, quando Godard referencia Truffaut
nos seus filmes e vice-versa, são momentos ainda mais intensos." Godard filmaria Jeanne Moreau a
falar sobre a rodagem de "Jules e Jim" de Truffaut em "Uma Mulher é uma Mulher", e mais tarde, em
"Viver a Sua Vida" (1962), mostraria as filas de pessoas à porta dos cinemas de Paris para ver esse
filme. Truffaut ajudaria Godard a produzir "O Acossado", e responderia à sua efervescente montagem
com "Disparem sobre o Pianista" (1960), filme experimental para um cineasta mais linear.
O momento tocante do documentário surge na ruptura final, quando Godard sai ultrajado de uma
projecção de "A Noite Americana" (1973), de Truffaut, e escreve a Jean-Pierre Léaud, "filho" da nouvelle
vague, para insultar o realizador. O actor, alter-ego de Truffaut na saga Antoine Doinel e rosto humano
da política de Godard, verá o seu rumo perdido depois da separação. "Léaud é uma figura fabricada por
Truffaut mas retomada por Godard. Vê-se dividido entre dois pais, não querendo, nem sabendo
escolher entre eles, pois sente-se protegido por Truffaut mas inspirado por Godard", analisa Baecque.
Segundo o crítico, "a posição de Léaud é difícil, a separação afectou-o muito. A morte de Truffaut, dez
anos mais tarde, fecha um período extremamente difícil. Mas existe uma importante descendência sua
no cinema francês, fazendo com que ainda traga consigo os valores e gestos da nouvelle vague."
Os modelos de um e de outro
Truffaut afirma-se como comovente e sensível cineasta humano, alguém cujo desejo de afecto, à falta
dele na infância, se transpôs para o ecrã. Já Godard, polémico e ardente cineasta, decide abandonar as
formas clássicas de produção e dedicar-se a um trabalho político na construção das imagens. Contudo,
as suas sombras ainda pairam no cinema francês. "A maneira de fazer filmes em França não evoluiu
muito, filmar nas ruas de Paris tornou-se lugar comum. Mas sente-se uma vontade de nos livrarmos de
pais controladores e sente-se um peso na lenda Godard, que continua a provocar debates e polémicas.
Mas o que ameaça mais o cinema francês é o contentamento consigo mesmo", reflecte Baecque. O que
era um movimento de ruptura tornou-se "num modelo pouco discutido: um terço dos filmes continua a
compor-se de primeiros ou segundos filmes, e o modelo de filmagem institucionalizou-se. É esse, hoje,
o problema: encontrar uma ruptura que consiga criar uma nova forma. Hoje somos poucas vezes
surpreendidos por um filme francês."
Os apelos à mudança tem vindo, curiosamente, do berço do movimento: os "Cahiers du Cinéma".
Stéphane Delorme, editor da revista, tem usado a publicação para sublinhar o travão imposto na
criatividade dos realizadores franceses. "Truffaut era um crítico rebelde e isso está nos primeiros filmes,
mas o que deixou no cinema francês foi o 'Clube dos 13', documento de Pascale Ferran sobre o 'cinema
do meio' que toma os anos 70 de Truffaut e 'O Último Metro' (1980) como modelo", diz-nos. Delorme
defende que se a nouvelle vague vinha do seu contexto de vida, o cinema de hoje deverá também olhar
para os tempos actuais. "Existe uma relação mais próxima entre arte, cinema e vídeo, como em
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Apichatpong Weerasethakul, que cria a partir desse ponto. Mas, no cinema francês, ainda estamos nas
marcas da nouvelle vague."
Mas o peso da nouvelle vague não se faz apenas sentir nas opções temáticas; terá condicionado,
perversamente, aquelas que eram as suas condições de produção. "O 'pensamento Truffaut' venceu o
'pensamento Godard' enquanto modelo de cinema", diz Delorme. "Quando Godard começou a filmar,
fazia-o depressa, sem autorizações ou dinheiro. Hoje, o modelo dominante para os jovens realizadores
franceses passa por pedir subsídios. Para eles, fazer cinema tem muito a ver com passar concursos." O
cinema francês corre, portanto, para a uniformização. "A aposta em argumentos articulados não traz,
necessariamente, bons filmes. Esse é o modelo Truffaut. Godard é o contrário, não tem argumento
verdadeiro, apenas um ponto de partida controlado na filmagem."
Ainda assim, Antoine de Baecque sublinha que é perigoso categorizar Truffaut: "Não é apenas o
cineasta institucional do academismo francês". O inimigo da nouvelle vague era o argumento, e Truffaut
investiu contra ele [em "Une certaine tendance du cinéma français", 1954]. "Truffaut vive no mistério e
tem um lado selvagem, fez sempre filmes contra os seus próprios filmes, encadeando obras clássicas
como 'O Último Metro' com obras selvagens como 'A Mulher do Lado' [1981]. E, hoje, continuaria
nesses registos tanto clássicos como autobiográficos e radicais." Para Baecque, "a diferença entre
Truffaut e Godard está no desejo de ser compreendido. Truffaut quer ser sempre amado, tem uma
obsessão pela clareza. Godard trabalha de forma completamente livre e pode ir mais longe, é a força e
o limite da relação deles."
Herdeiros e dissidentes
Christophe Honoré, 40 anos, autor de "Em Paris" (2006) e "As Canções de Amor" (2007), tem sido
descrito como herdeiro da nouvelle vague. "Nunca pretenderia ser um herdeiro, mas vejo a nouvelle
vague como a idade de ouro do cinema francês. Revejo-me nos seus filmes pessoais e íntimos, que
também eram respostas às questões que o cinema se colocava. Antes de ser cineasta, sou cinéfilo. Se
faço filmes, é porque vejo outros que me dão vontade de reagir", explica ao Ípsilon.
Também ele é acusado de maneirismo, alimentando as suas obras de referências do passado. "A
minha posição é vista como reaccionária por se achar que é necessário projectarmo-nos sempre num
futuro desconhecido em vez de realizar filmes com outros na cabeça. De fora, temos a impressão que a
nouvelle vague é sagrada, mas em França 80 por cento da profissão acredita que ela matou o cinema
francês", nota.
Olivier Assayas, 56 anos, distancia-se de uma luta que se tornou recorrente no cinema francês. "Nunca
me senti incomodado pela herança da nouvelle vague, pois sempre a vi como oportunidade. Deu uma
liberdade artística e uma independência em relação à indústria, produzindo obras de um registo vasto,
tanto clássico como experimental. O que podemos fazer com essa liberdade é beneficiar daquilo que a
história nos trouxe e desenvolvê-la segundo as circunstâncias da nossa época." Como referência,
afirma que "Godard pensou muito a matéria internacional do cinema. Colocou as perguntas mais
vibrantes sobre a problemática da imagem em relação a si mesma, ao dinheiro e à globalização
económica. Isso sempre me interessou."
Uma das obras centrais de Assayas é "Irma Vep" (1996), retrato da rodagem do "remake" de um filme
mudo ("Os Vampiros", 1915, Louis Feuillade) para um contexto contemporâneo e internacional. "É um
filme sobre a cinefilia parisiense, a reflexão sobre o cinema e a sua prática em diferentes épocas, com
gerações e origens geográficas diferentes. É uma torre de Babel do cinema da sua época, com ideias
complementares e contraditórias." O trabalho de Assayas aproveita, deste modo, a liberdade herdada
para reflectir sobre o momento actual do cinema. "Hoje, o cinema existe nos filmes que consumimos,
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nos que se praticaram noutra época e naquele que descobrimos na Internet. É uma confusão pouco
pensada que baralha as categorias habituais do pensamento cinéfilo."
"Hoje", aponta ainda Honoré, "é preciso que um filme francês fale de religião, das prisões, apesar de a
nouvelle vague ter combatido a ficção ligada à sociedade. É desesperante ver o que se fez da sua
herança, as pessoas querem ver-se livres dela. Basta ver como reagem aos filmes actuais de Godard, é
insuportável ouvir dizer que já não têm interesse." Para ele, "'Filme Socialismo' é o melhor filme francês
do ano passado, de uma vitalidade e modernidade que nenhum outro atinge."
Uma lenda viva
"A força de Godard é ser completamente actual, sublinha Antoine de Baecque: "'Filme Socialismo' filma
o turismo e a decadência do Ocidente de forma justa e terrível, tal como a história do Mediterrâneo.
Esse olhar é possível porque Godard trabalha de forma livre dentro do seu tempo, permitindo um olhar
mais cáustico sobre a nossa época. É uma das lições do seu cinema."
Apesar de Godard se ter distanciado das salas, o seu trabalho mantém a lógica presente em toda a sua
carreira: a interrogação das formas e da imagem. "O filme foi bem recebido em França, com o paradoxo
de poucas pessoas terem ido vê-lo", diz Baecque. "Nos anos 80, com 'Salve-se Quem Puder' [1980] ou
'Eu Vos Saúdo Maria' [1985], a afluência do público marcava-o. Godard era um artista por excelência,
um homem dos media, e chamava pessoas. Depois, fechou-se no seu atelier como lhe interessava,
como um artista eremita separado do mundo, mas guardou sempre um olhar contemporâneo."
O crítico afirma que "Filme Socialismo" vai ao encontro de qualquer olhar cinéfilo, jovem ou maduro.
"Um jovem que veja o filme pode ficar marcado pelo olhar sobre a actualidade e a decadência da
civilização ocidental, mas também pela sua inovação tecnológica. Godard é como um jovem cineasta:
trabalha com pequenas câmaras DV, mexe nas imagens e remete-as para as grandes formas. Está
agora a fazer experiências em 3D, é absolutamente contemporâneo no olhar sobre o mundo e sobre a
técnica." Assim, "um jovem com vontade de fazer cinema é síncrono com 'Filme Socialismo'", afirma.
"Sinto isso nas escolas de arte e de cinema, nas universidades e nos cineclubes do mundo."
A presença de Godard continua, deste modo, a marcar uma ruptura com o tratamento mais previsível
das imagens e de quem as pensa ver: "Tem uma postura de lenda viva que é irritante, mas é também
uma forma de ser contemporâneo. Ainda é alguém que suscita admiração e repulsa, dá vontade de ver
os filmes e virarmo-nos contra ele. Divide, e ainda bem. É essa a sua força."
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