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Processo nº 841/2002
Acórdão de: 17-09-2009
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça
AA, intentou, em 17.7.2002, pelo Tribunal Judicial da Comarca de Matosinhos – 1º Juízo Cível –
acção declarativa de condenação com processo comum na forma ordinária, contra:
“A... A... M... Lda.” (J........... Automóveis)
Pedindo:
a) - que seja decretada a resolução de contrato de compra e venda de veículo;
b) - que seja a ré condenada a restituir-lhe a quantia de € 14.864,18;
c)- também condenada a pagar-lhe a quantia de € 3.391,83 a título de indemnização por danos de
natureza patrimonial e não patrimonial.
Alegou para tanto que, em 17.09.2001, adquiriu um veículo à Ré pelo preço de 2.980.000$00.
Para pagamento desse preço, a autora entregou à ré um cheque no montante de 1.480.000$00
bem como um outro veículo de que era proprietária no valor de 1.500.000$00.
No momento da aquisição, a ré apenas entregou à autora uma declaração e autorização para
circular com o veículo adquirido, documento que apenas é válido pelo período de um mês.
Posteriormente não foi entregue qualquer outro documento à autora, a qual, desde 15/11/2001,
por intervenção da autoridade policial, se vê impedida de circular com o veículo adquirido à ré, por
não ter documentos que a habilitem a circular legalmente com ele.
A ré, apesar de instada pela autora e de ter conhecimento da sua impossibilidade de circular com
o veículo, não lhe entregou os documentos do mesmo.
A autora precisa de um veículo para o exercício da sua actividade profissional.
Acresce que, por se ter visto impossibilitada de circular com o veículo adquirido à ré, viu-se
obrigada a pedir viaturas emprestadas e a custear compensações por tais cedências e houve
mesmo ocasiões em que não pode ir trabalhar, deixando de auferir rendimentos de trabalho, o que
tudo lhe causou tristeza, nervosismo e ansiedade.
Citada, a ré contestou a acção, alegando, em síntese, que a viatura adquirida pela autora à ré,
tinha sido por esta adquirida em retoma, e que, só no momento da retoma é que a ré verificou que
os documentos da viatura se encontravam na posse da financeira “C......”.
Essa financeira foi contactada pela ré para entregar os documentos respectivos, mas aquela
recusou fazê-lo enquanto não fosse liquidado o que lhe era devido, acordando-se que a liquidação
seria efectuada em simultâneo com o financiamento no momento da aquisição pela autora.
O que tudo era do conhecimento da autora, nomeadamente que a obtenção dos documentos não
dependia exclusivamente da ré. Posteriormente, veio a ré a saber que os documentos da viatura
estavam ainda na posse de da firma “E...... C......”.
Devido a tais vicissitudes, a ré só passou a ter os documentos na sua posse em 03/05/2002, altura
em que contactou a autora para lhos entregar.
Por outro lado, a declaração facultada pela ré à autora no momento da aquisição, que lhe permite
circular pelo período de um mês, pode ser renovada e a autora nunca se dirigiu à ré para esse
efeito.
Concluiu pela improcedência da acção e pela sua absolvição do pedido.
No saneador o Tribunal foi considerado o competente, as partes legítimas e o processo isento de
nulidades, excepções ou questões prévias.
***
A final foi proferia sentença do seguinte teor:
“Nestes termos, julgo parcialmente procedente a acção, na medida dos factos que resultaram
provados, em consequência:
1) Anulo o contrato de compra e venda do veículo identificado nos autos.
2) Condeno a ré a devolver à autora o preço pago de € 14.864,18 (catorze mil oitocentos e
sessenta e quatro euros e dezoito cêntimos), acrescida dos juros de mora à taxa legal, que se
vencerem a partir desta data até efectivo e integral pagamento.
3) Ordeno à autora que restitua o veículo identificado nos autos à ré.
4) Condeno a ré a pagar à autora a indemnização global, por danos de natureza patrimonial e não
patrimonial, no montante de € 2.496,39 (dois mil quatrocentos e noventa e seis euros e trinta e
nove cêntimos), acrescida de juros de mora à taxa legal, desde a citação até integral pagamento.
5) Nos termos das disposições conjugadas dos art°s 456° n°s 1 e 2 alíneas b) e e) e 457°, do
Código de Processo Civil, e 102° alínea a) do Código Custas Judiciais, condeno a ré como
litigante de má fé, na multa de € 500,00 (quinhentos euros), e no pagamento à autora da
indemnização que se vier a fixar.” (sublinhámos)
***
Inconformada, a Ré recorreu para o Tribunal da Relação do Porto, que, por Acórdão de 7.4.2008 –
fls. 265 a 279 – concedeu provimento ao recurso, revogando a sentença e absolvendo a Ré de
todos os pedidos.
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De novo inconformada, a Ré recorreu para este Supremo Tribunal que, por Acórdão de
23.10.2008 – fls. 368 a 374 – concedeu a revista, anulando o Acórdão recorrido, ordenando a
baixa do processo à Relação para aí ser reformado, a fim de ser suprida a nulidade cometida por
aquele Tribunal, que, considerando ser a sentença nula, por ter decidido com base em
fundamento não invocado pela Autora, não apreciou, como devia, o mérito da acção em
conformidade com o art. 715º, nº 1, do Código de Processo Civil.
***
Baixado o processo à Relação foi aí proferido Acórdão em 16.2.2009 – fls. 382 a 403 – do
seguinte teor:
“ - Declara-se resolvido o negócio dos autos e sub judice:
- Confirma-se a sentença apelada na parte em que condenou a Ré a restituir à Autora a quantia €
14.864,18 referente ao preço do automóvel pago, a quantia de € 499+1.496,39 referentes a
perdas patrimoniais.
Tais montantes são acrescidos de juros legais desde a citação até efectivo pagamento (art. 805º,
nº 1, a) e 559º ambos do Código Civil)
Vai ainda confirmada a mesma sentença quanto à fixação dos danos não patrimoniais, no
montante estipulado de € 1.000,00 que são acrescidos de juros mas a contar do trânsito deste
Acórdão.”
***
De novo inconformada, a Ré mais uma vez recorreu para este Supremo Tribunal e, alegando,
formulou as seguintes conclusões:
1 - Vem o presente recurso na sequência do douto Acórdão da Relação que determinou a
resolução do negócio e em consequência confirmou-se a sentença apelada na parte em que
condenou a Recorrente a restituir à Recorrida a quantia de € 14.864,18 referente ao preço do
automóvel pago, e a quantia de € 499,00 + € 1496,39 referentes a danos patrimoniais.
Valores aos quais deverão acrescer juros desde a citação até efectivam pagamento.
Condenou ainda a Recorrente quanto à fixação dos danos não patrimoniais no montante
estipulado de € 1000,00 que são acrescidos de juros a contar do trânsito do Acórdão.
2 - Não podemos concordar com o douto Acórdão nos seguintes termos: a lei admite a resolução
ou modificação do contrato em termos propositadamente genéricos para que em cada caso
concreto, atendendo à boa fé e à base do negócio, se possa ou não conceder a resolução ou
modificação.
3 - Ora para que seja pedida a resolução do contrato é necessário que se encontrem preenchidos
e provados os seguintes requisitos: que haja uma alteração anormal das circunstâncias em que as
partes tenham fundado a decisão de contratar.
Tal significa ser necessário que essas circunstâncias se tenham modificado e que da obrigação à
parte lesada afecte gravemente os princípios da boa fé contratual e no esteja coberta pelos riscos
próprios do negócio, como acontece no caso de se tratar de um negócio aleatório.
4 - Compulsados os autos verifica-se que nada foi provado neste sentido e de modo a preencher
este requisito.
5 - Para além disso, é ainda exigido que exista uma impossibilidade absoluta por parte do
Recorrente para cumprir o que não sucedeu nos autos existindo apenas uma mora, mora na
entrega dos documentos da viatura.
Facto que não pode ser imputado à Recorrente uma vez que esta entregou à Recorrida uma
declaração que lhe permitia circular e que poderia se renovada até ao momento em que tivesse os
documentos definitivos.
6 - O facto de a Recorrente incorrer em mora não permite à Recorrida, só por isso e não havendo
cláusula contratual em contrário, extinguir o contrato resolvendo-o; sendo a prestação possível e
mantendo as utilidades para o Recorrido.
7 - Sendo ainda certo que o credor não pode, em principio, resolver o negócio em consequência
de mora do devedor, necessário se tornando que esta se transforme em incumprimento definitivo,
ou pela perda de interesse do credor na prestação, ou pela não realização desta no prazo
razoável fixado pelo mesmo credor sob cominação de, no caso de nova falta de cumprimento se
ter o contrato por definitivamente não cumprido.
8 - A perda de interesse do credor terá sempre que ser invocada o que nos presentes autos não
sucedeu e que no caso de existência de mora fixe ao devedor um prazo razoável para cumprir,
sob pena, igualmente de se considerar impossível o cumprimento, o que também não ocorreu.
9 - A interpelação admonitória é uma última intimação para cumprir, a derradeira oportunidade do
devedor por termo à mora e evitar a resolução do contrato, o que nos presentes autos também
não sucedeu.
10 - Outro requisito essencial à procedência da acção era a falta de interesse no negócio por parte
da Recorrida.
11 - Jamais nos articulados ou posteriormente a Recorrida alegou quer a perda de interesse na
prestação em falta quer procedeu a qualquer interpelação/comunicação à Recorrente da resolução
do contrato e oportuna devolução da viatura.
12 - Esta perda de interesse deve ser apreciada por critérios de objectividade perante o
circunstancialismo
13 - Não ocorrendo a impossibilidade da prestação, não tendo perdido o interesse na prestação,
não tendo sido feita a interpelação admonitória nem ocorrendo recusa do devedor em cumprir, não
há motivo para ser requerida e decretada a resolução do contrato.
A Autora contra-alegou, pugnando pela confirmação do Acórdão.
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Colhidos os vistos legais cumpre decidir, tendo em conta que as instâncias consideraram
provados os seguintes factos:
A) Em 17.09.2001, a autora adquiriu à ré um veículo automóvel, de marca Peugeot, modelo .....,
de matrícula ...-...-.... .
B) O preço pago pela autora pela referida aquisição, foi de 2.980.000$00 (€ 14.864,18).
C) Para fazer face a esse pagamento, a autora entregou à ré um cheque no valor de 1.480.000$00
e entregou ainda, por conta do referido valor, um veículo automóvel, de marca Fiat, modelo ........,
matrícula ...-...-..., no valor de 1.500.000$00.
D) No momento da respectiva aquisição, a ré apenas entregou à autora a “declaração” e a
“autorização” constantes de fls. 14 e 15, respectivamente, para efeitos de aquisição de selo de
circulação, e como comprovativo perante as autoridades de trânsito, de que o mencionado veículo
havia sido adquirido pela autora.
E) Tais documentos apenas têm validade por um período de um mês.
F) Desde 15.11.01, a autora está impedida de circular com o veículo referido em A), uma vez que,
por várias vezes, foi alertada pelas autoridades policiais que os documentos referidos em D) não a
habilitavam a circular legalmente com o respectivo automóvel.
G) Ficando, desde então, advertida que se continuasse a circular com o veículo naqueles termos,
o automóvel lhe seria apreendido.
H) A autora contactou de imediato a ré dando-lhe conta de todo o sucedido, e exigindo que lhe
entregassem o respectivo título de registo de propriedade e o livrete.
I) Na sequência de tais interpelações, a ré sempre se esquivou a quaisquer responsabilidades,
não manifestando vontade em resolver toda esta questão.
J) A partir do momento em que as autoridades policiais lhe comunicaram que não poderia
continuar a circular com o veículo, por não dispor dos documentos competentes, a autora não
mais usou ou se deslocou no mesmo.
K) A autora decidiu comprar o automóvel referido em A) por necessidade, uma vez que é
vendedora de mercadorias, tendo no exercício dessa sua actividade que se deslocar, diariamente
para vários pontos do país, fazendo em média 10.000 km/mês.
L) Durante todo esse tempo, a autora viu-se obrigada a pedir de empréstimo o veículo automóvel
de seu irmão, a fim de não pôr em causa o seu contrato de trabalho.
M) Situação que se mantém, até hoje.
N) O irmão da autora passou a deslocar-se para o seu local de trabalho em transportes públicos.
O) Durante os fins-de-semana, o irmão da autora necessita do seu veículo automóvel para seu
uso pessoal.
P) Nesses períodos, a autora socorre-se de amigos e familiares que, por diversas vezes, lhe
emprestaram e emprestam, as respectivas viaturas.
Q) A autora, no exercício da sua actividade, é destacada mensalmente para organizar exposições
(sempre aos fins-de-semana), em feiras relacionadas com a respectiva actividade, por vários
pontos do país, auferindo por essas promoções a quantia de € 499.
R) Em virtude de se ver impossibilitada do uso do seu veículo, foi três vezes substituída por uma
outra funcionária, deixando por isso de receber o montante de € 1.496,39.
S) Todos estes factos têm sido encarados pela autora com tristeza, nervosismo e muita
ansiedade.
T) Porquanto todas as suas economias foram despendidas com a compra do aludido veículo.
U) Os documentos referidos em D) poderiam ter sido renovados.
V) A viatura referida em A) sempre esteve na posse da autora, sofrendo uma desvalorização
diária.
Fundamentação:
Sendo pelo teor das conclusões das alegações do recorrente que, em regra, se delimita o objecto
do recurso – afora as questões de conhecimento oficioso – importa saber se se verificam os
requisitos para que a Autora pudesse ter resolvido o contrato, mormente, se a Ré incorreu em
incumprimento definitivo.
Não dissentem as partes que, entre a Autora e a Ré, foi celebrado um contrato de compra e venda
de um veículo automóvel que a Autora (compradora) pagou integralmente no acto da aquisição.
A Autora resolveu o contrato, porquanto a Ré, apesar de por si interpelada, não lhe ter fornecido
os documentos que permitissem a legalização do veículo, limitando-se no acto da compra e
venda, 17.9.2001, a entregar-lhe uma “declaração” de venda – cfr. fls. 13 – e um documento de
“autorização” – fls. 15 – para que o veículo pudesse circular e para a Autora poder comprar o “selo
de circulação”.
Esses documentos tinham uma validade mensal, sendo que a Autora, desde 15.11.2001, está
impedida de circular com tal veículo sob pena de ser apreendido pelas autoridades.
Com consta provado, a Autora – “Contactou de imediato a ré dando-lhe conta de todo o sucedido
e exigindo que lhe entregasse o respectivo título de registo de propriedade e o livrete. Na
sequência de tais interpelações, a ré sempre se esquivou a quaisquer responsabilidades, não
manifestando vontade em resolver toda esta questão”.
O Acórdão recorrido considerou que se trata de um contrato de compra e venda defeituosa pelo
facto de a Ré não ter entregue os documentos habilitantes à circulação e legalização do veículo
como propriedade da compradora (1) e reconheceu que a autora tinha fundamento para resolver o
contrato.
O contrato de compra e venda de veículo automóvel não está sujeito a forma, pode validamente
ser celebrado verbalmente, todavia há uma exigência formal (documental) para fim registral, sendo
aí exigida a declaração de venda emitida pelo titular do direito de propriedade sobre o veículo
alienado.
A recorrente sustenta que não existem os pressupostos da resolução contratual actuada pela
Autora já que apenas se encontrava em mora quanto à entrega dos documentos, sendo que não
foi tal mora convertida em incumprimento definitivo.
O contrato de compra e venda, seja civil ou comercial, é por definição bilateral, oneroso e
sinalagmático, tendo como efeitos essenciais a transmissão da coisa, ou da titularidade do direito,
a obrigação de entrega e a obrigação de pagamento do preço – cfr. arts. 874 e 879º do Código
Civil.
Como qualquer contrato deve ser pontualmente cumprido, isto é, as partes devem executar, sem
falhas, o programa obrigacional a que se comprometeram – devem cumpri-lo pontualmente – art.
406º, nº 1, do referido diploma.
Salvo o devido respeito, não estamos perante compra e venda de coisa defeituosa tal como o
define o art. 913º do Código Civil que estatui:
“1. Se a coisa vendida sofrer de vício que a desvalorize ou impeça a realização do fim a que é
destinada, ou não tiver as qualidades asseguradas pelo vendedor ou necessárias para a
realização daquele fim, observar-se-á, com as devidas adaptações, o prescrito na secção
precedente, em tudo quanto não seja modificado pelas disposições dos artigos seguintes.
2. Quando do contrato não resulte o fim a que a coisa vendida se destina, atender-se-á à função
normal das coisas da mesma categoria”.
A coisa vendida foi um automóvel e não constando que sofresse de vício ou defeito intrínseco, que
comprometesse a finalidade a que se destinava, nem que não tivesse as qualidades asseguradas
pelo vendedor, o veículo estava apto, sob o ponto de vista funcional, a circular, podendo ser
destinado aos fins para que fora comprado.
Os Professores Pires de Lima e Antunes Varela, in “Código Civil Anotado”, vol. II, pág. 205,
comentam a certo trecho.
“...O artigo 913º cria um regime especial cuja real natureza constitui um dos temas mais debatidos
na doutrina germânica [...] para as quatro categorias de vícios que nele são destacadas:
a) Vício que desvalorize a coisa;
b) Vício que impeça a realização do fim a que ela é destinada;
c) Falta das qualidades asseguradas pelo vendedor;
d) Falta das qualidades necessárias para a realização do fim a que a coisa se destina.
Equiparando, no seu tratamento, os vícios às faltas de qualidades da coisa e integrando todas as
coisas por uns e outras afectadas na categoria genérica das coisas defeituosas, a lei evitou as
dúvidas que, na doutrina italiana por exemplo, se têm suscitado sobre o critério de distinção entre
um e outro grupo de casos.
Como disposição interpretativa, manda o nº 2 atender, para a determinação do fim da coisa
vendida, à função normal das coisas da mesma categoria. Assim um automóvel é feito para
circular; uma casa de moradia para habitar; um celeiro para guardar cereais; uma adega para
guardar vinho; uma instalação eléctrica para dar luz ou energia, etc. [...]”.
O relevante para se aferir da correcta execução da prestação do contraente vendedor é saber se a
coisa vendida é hábil, idónea, para a função a que se destina.
A lei consagra, pois, um critério funcional.
A venda da coisa pode considerar-se venda defeituosa quando, numa perspectiva de
“funcionalidade”, contém – “ Vício que a desvaloriza ou impede a realização do fim a que se
destina; falta das qualidades asseguradas pelo vendedor ou necessárias para a realização do fim
a que se destina.
Nesta medida, diz-se defeituosa a coisa imprópria para o uso concreto a que é destinada
contratualmente – função negocial concreta programada pelas partes – ou para a função normal
das coisas da mesma categoria ou tipo se do contrato não resultar o fim a que se destina (art.
913º, nº 2)” – cfr. “Compra e Venda de Coisas Defeituosas-Conformidade e Segurança”, de Calvão
da Silva, pág. 41.
Mas, no caso, houve cumprimento defeituoso, porque a Ré vendedora não realizou a prestação a
que se vinculara.
Deflui do art. 882º, nº 2, do Código Civil que a obrigação da entrega da coisa que impende sobre o
vendedor, abrange, “salvo estipulação em contrário”, a entrega ao comprador dos “documentos
relativos à coisa ou direito”.
Mesmo que da lei não resultasse tal obrigação, ela ancorava nos chamados deveres secundários
ou acessórios de conduta.
O conceito de não cumprimento abrange vários modos de não realização da prestação enquanto
devida.
Adoptando o critério proposto por Menezes Leitão – “Direito das Obrigações”, vol. II, pág. 223 e
segs. – consideramos o não cumprimento “como a não realização da prestação devida, por causa
imputável ao devedor, sem que se verifique qualquer causa de extinção da obrigação”.
Assim, ficam excluídas as causas de incumprimento que não podem ser atribuíveis a conduta do
devedor, v.g. impossibilidade objectiva da prestação que constitui causa de extinção – art. 790º, nº
1, do Código Civil – “a obrigação extingue-se quando a prestação se torna impossível por causa
não imputável ao devedor”.
“Não cumprimento (em sentido amplo) — é a inexecução da obrigação; isto é: o credor não obtém
a prestação devida ou não a obtém nas exactas condições em que ela tinha que ser efectuada
(Galvão Telles, Direito das Obrigações, 6ª ed. 293).
Se a prestação se atrasa, mas pode ser realizada com interesse para o credor há retardamento
(ob. cit., 294).
Este é pois o simples incumprimento temporário, sendo suas modalidades a mora do devedor, a
mora do credor e retardamento casual.
Mas se a prestação não é realizada no momento devido, continuando a sua realização a ser
materialmente possível, mas perdeu interesse para o credor, juridicamente não existe simples
atraso mas verdadeira inexecução definitiva.
Há inexecução definitiva da prestação quando esta se torna impossível para sempre”.
Baptista Machado, in “Resolução por Incumprimento”, in Estudos de Homenagem ao Professor
Doutor J.J. Teixeira Ribeiro, 2º, 386, acerca do conceito de Cumprimento defeituoso ou inexacto,
ensina:
“a) É aquele em que a prestação efectuada não tem os requisitos idóneos a fazê-la coincidir com o
conteúdo do programa obrigacional, tal como este resulta do contrato e do princípio geral da
correcção e boa fé.
b) A inexactidão pode ser quantitativa e qualitativa.
c) O primeiro caso coincide com a prestação parcial em relação ao cumprimento da obrigação.
d) A inexactidão qualitativa do cumprimento em sentido amplo pode traduzir-se tanto numa:
diversidade da prestação, deformidade, num vício ou falta de qualidade da mesma, ou na
existência de direitos de terceiro sobre o seu objecto”.
O incumprimento ou cumprimento defeituoso pode ser qualitativo e quantitativo.
No primeiro caso, existe apenas cumprimento parcial do programa obrigacional acordado entre as
partes, e no segundo caso, a prestação ou é diversa ou contém vício ou falta de qualidade – cfr.
Baptista Machado, obra citada, II, 386.
Anteriormente designada por condição resolutiva tácita – art. 801º, nº 2, a resolução por
incumprimento, tanto se aplica à impossibilidade culposa como ao incumprimento definitivo,
podendo ser fundada na lei – art. 432º, nº 1, do Código Civil – ou estabelecida contratualmente.
Como ensina Antunes Varela, in “Das Obrigações em Geral”, II, 5ª edição, pág. 107:
“…A resolução pode fundar-se na violação, tanto de uma obrigação principal, como de uma
obrigação secundária, ou até de um dever acessório de conduta”.
A par dos deveres acessórios de conduta, postulados pelo agir de boa-fé, existe no
relacionamento contratual um conjunto de deveres não escritos, mas implicados na relação de
confiança que são imprescindíveis para que a execução do contrato decorra com normalidade e
segurança, não devendo qualquer das partes estar sujeita a comportamentos antijurídicos e
antiéticos da outra; existindo eles, não é tolerável que, em obediência cega à regra da
pontualidade dos contratos a parte “molestada” com comportamentos daquela natureza não
possa, validamente, pôr termo à relação negocial, invocando a resolução do contrato. (2).
Esta exigência de compromisso de cooperação exprime a existência de deveres acessórios de
conduta que na definição de José João Abrantes, in “A Excepção de Não Cumprimento do
Contrato” – 1986, 42, nota 8:
“São os que, não respeitando directamente, nem à perfeição, nem à perfeita (correcta) realização
da prestação debitória (principal), interessam todavia ao regular desenvolvimento da relação
obrigacional, nos termos em que ela deve processar-se entre os contraentes que agem
honestamente e de boa-fé nas suas relações recíprocas”.
O Professor Antunes Varela, obra citada, 7ª edição, págs. 124/125, depois de referir que, além dos
deveres principais ou típicos da prestação nos contratos nominados, existem outros a que se pode
chamar deveres secundários ou acidentais, define os deveres de conduta como aqueles que:
“Não interessando directamente à prestação principal, nem dando origem a qualquer acção
autónoma de cumprimento (cfr. art. 817º e sgs.) são todavia essenciais ao correcto
processamento da relação obrigacional em que a prestação se integra”.
Os deveres acessórios de conduta são indissociáveis da regra geral que impõe aos contraentes
uma actuação de boa-fé – art. 762º, nº 2, do Código Civil – entendido o conceito no sentido de que
os sujeitos contratuais, no cumprimento da obrigação, assim como no exercício dos deveres
correspondentes, devem agir com honestidade, e consideração pelos interesses da outra parte.
“O direito de resolução do contrato previsto nos artigos 432º e seguintes do Código Civil é um
direito potestativo extintivo dependente de um fundamento, que é “o facto do incumprimento ou a
situação de inadimplência”.
Daí que inexista direito de resolução sem o “juízo de inadimplemento” – [...]. Ac. deste STJ, de
25.1.1998, in BMJ, 477-460.
“O direito de resolução de um contrato, com o subsequente pedido de indemnização, apenas
encontra fundamento na impossibilidade culposa da prestação (artigos 801º e 802º do Código
Civil), sendo certo que a mora culposa do devedor (artigos 805º e 799º, nº 1, do Código Civil) é
equiparada ao não cumprimento definitivo quando, em resultado do mesmo (retardamento), se
verifique uma de duas situações: ou o credor perdeu o interesse que tinha na prestação ou o
devedor não a ter cumprido no prazo razoável que o credor lhe fixou (art. 808º do Código Civil)” –
Acórdão deste STJ, de 27.11.1997, in BMJ 471-391.
Além daqueles dois fundamentos, também a recusa em cumprir, afirmada de modo inequívoco,
importa incumprimento definitivo, a dispensar a interpelação admonitória por parte do credor, essa
recusa deve ser avaliada em função da natureza da prestação e da actuação exigível aos sujeitos
contratantes.
Qualquer vendedor de automóveis, sobretudo tratando-se de venda de automóveis usados, como
foi o caso da Ré, sabe que a legalização por parte do comprador deve ser pronta e, por isso, sobre
si impende, além de um dever legal, também um dever de cooperação ou acessório de conduta,
de modo a que, numa perspectiva de boa-fé, actue de modo a não frustrar ao credor (comprador)
a rápida e total fruição da coisa que comprou.
Para tal tornava-se imprescindível um comportamento cooperante com o interesse do credor, sem
o qual a plenitude dos efeitos visados pelo contrato não seria alcançada.
Se, como consta dos autos, a compradora não aceitou que a Ré só legalizasse o
vendeu quando, por sua vez esta resolvesse problemas com terceiros, e se a Ré
esquivou a quaisquer responsabilidades não manifestando vontade em resolver
exprimiu, concludentemente, recusa em cumprir pelo que, achando-se assim
incumprimento definitivo, não tinha a Autora que a interpelar admonitoriamente.
veículo que
“sempre se
a questão”,
configurado
Mais que mora, ante o desinteresse inequívoco da Ré em proporcionar à Autora os documentos
para legalizar o veículo, existiu definitivo incumprimento, não sendo razoável que a Autora,
impossibilitada de usar o veículo, por culpa da Ré-vendedora, a tivesse que interpelar
admonitoriamente.
Concluímos, assim, que existiu fundamento para a resolução do contrato.
Decisão:
Nestes termos, posto que com fundamentação diversa da do Acórdão recorrido, nega-se a revista.
Custas pela Ré/recorrente.
Supremo Tribunal de Justiça, 17 Setembro de 2009
Fonseca Ramos (Relator)
Cardoso de Albuquerque
Salazar Casanova
________________________________________________________
1- A fls. 395 pode ler-se: “Como de resto se escreve na sentença da primeira instância os
documentos da viatura – livrete e registo de propriedade – são indispensáveis à sua circulação,
como resulta do disposto no art. 85° do Código da Estrada, aprovado pelo DL nº 114/94, revisto
pelo DL n° 2/98 de 3 de Janeiro. O registo da propriedade automóvel deve ser requerido no prazo
de 30 dias após a aquisição (arts. 23° e 42° do DL n° 55/75, de 12 de Fevereiro, que aprovou o
Regulamento do Registo de Automóveis)”.
2- Brandão Proença, in “A Resolução do Contrato no Direito Civil”, 1982, págs. 63 e 70/1: “O
fundamento ético-jurídico e o interesse económico-social do cumprimento recíproco do contrato ou
da sua estabilidade, referidos genericamente nos arts. 406°, 1, 1ª parte, e 762°, do Código Civil,
podem ser postos em crise por situações de inexecução “subjectiva” ou em hipóteses
objectivamente “injustas”, é também à luz da consideração que “a racionalidade do instituto
resolutivo está decisivamente conexionada com as incidências contratuais (éticas) ao principio da
boa-fé na dupla direcção em que é afirmada (as obrigações de lealdade e de cooperação,
integrantes de um verdadeiro dever de cumprir “qua tale”) que deve aferir-se da justeza da
aplicação do instituto”.
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Acórdão do STJ - Base de Dados Jurídicos da DATAJURIS