Há cidades cor de pérola onde as mulheres
existem velozmente. Onde às vezes param e são morosas
por dentro. Há cidades absolutas
trabalhadas interiormente pelo pensamento
das mulheres.
(...)
entrevista com Helena Araújo
a página da educação - PRIMAVERA 2010
Há mulheres que colocam cidades doces
e formidáveis no espaço, dentro
de ténues pérolas.
Que racham a luz de alto a baixo
e criam uma insondável ilusão.
(...)
A I República
e a retórica ambígua
sobre a emancipação
da mulher portuguesa
A última entrevista
de Rogério Fernandes
“Ainda não se dá o espaço suficiente
para que os professores recuperem a
sua vocação de construir uma escola
nova pelas suas próprias mãos e com
os seus alunos.”
centenário do Dia Internacional
da Mulher
Semana de Acção Global
pela Educação
Herberto Hélder
Lugar IV, fragmento
Série II | nº 188 | PRIMAVERA 2010 | www.apagina.pt | 4€
objectivo: educação para todos
DEVESAS
Série II | nº 188
DE00472010GSCP/SNC
CAPA_A.indd 1
Ousar ousar!
Pragmatismo,
educação e democracia:
o legado universal
de Jane Addams
É indispensável que as universidades sejam credíveis e ofereçam formação de boa
qualidade (Alberto Amaral) | O texto do acordo ortográfico é português, e é bom que os
portugueses saibam disto (Lauro Moreira) | Precisamos de um ensino missionário? (Leonel Cosme)
3/15/10 3:43 PM
a
á
ina
da
educação
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ro edições
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sumário
FICHA técnica
a
ágina
educação
da
DIRECTORA: Isabel Baptista | DIRECTORA
ADJUNTA: Ana Brito Jorge | EDITOR: António
Baldaia
CONSELHO EDITORIAL: Américo Peres,
Ariana Cosme, Fátima Antunes, Fernando
Santos, Henrique Borges, Paulo Teixeira de
Sousa, Rafael Tormenta, Rui Trindade
REDACÇÃO: Ricardo Jorge Costa | COLABORAM NESTA EDIÇÃO: Teresa Couto (fotografia)
SECRETARIADO DA REDACÇÃO: Sílvia Enes
e Lúcia Manadelo | CONTACTOS: Telefone
(00 351) 22 600 27 90 | Fax (00 351) 22 607 05 31
| E-mail: [email protected]
EDIÇÃO IMPRESSA: Trimestral, publica-se no
1.º dia de cada estação do ano | Preço de capa: 4 €
| Tiragem desta edição: 19.000
PRODUÇÃO GRÁFICA: Multiponto, S.A.|
EMBALAGEM: Notícias Direct | DISTRIBUIÇÃO: Logista Portugal - Distribuição de Publicações, S.A.
EDIÇÃO DIGITAL: http://www.apagina.pt
Cumprindo o Estatuto Editorial, a PÁGINA respeita e publica as variantes do Português,
Mirandês, Galego e Castelhano. São traduzidos
para Português os textos escritos noutras línguas.
Registo na ERC n.º 116.075 | Depósito Legal n.º
51.935/91 | ISSN 1647-3248
editorial
a escola que aprende
Educação e res-publica: lições de liberdade e
de cidadania
Isabel Baptista . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
pág. 4
ROGÉRIO FERNANDES
“O nacionalismo no período
republicano tem uma característica diferente da que veio a
ter com o fascismo: a ideia de
que a universidade e a escola,
em geral, devem colocar-se
ao serviço dos grandes problemas nacionais e tomar
essas questões como eixo da actividade de
investigação e de ensino, isto é, de que se
deve pesquisar e ensinar em ordem a achar
resposta para os problemas do país. É
sobretudo o republicanismo positivista que
inspira esta concepção. Mas a questão da
educação popular ultrapassa o republicanismo. Fora do ensino oficial, por exemplo,
aparecem as universidades livres e populares, muitas vezes de teor anarquista”.
...................................
pág. 6
À volta do umbigo
Avaliação intercalar do objectivo apontado para
que, em 2015, todas as crianças do mundo
tenham acesso à educação primária apresenta
resultados decepcionantes.
David Rodrigues . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . pág. 20
campanha
Objectivo: educação para tod@s
De 19 a 25 de Abril, a Semana de Acção Global
pela Educação é dedicada ao financiamento da
Educação para Todos.
Mariana Hancock . . . . . . . . . . . . . . . . . . pág. 22
educação especial
Escola inclusiva está em risco
Em dois anos, através da CIF, o Governo retirou
apoios da Educação Especial a mais de 20 mil alunos – números de um estudo divulgado pela
Fenprof.
António Baldaia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . pág. 26
[trans]formações
Professor ou contratado?
lugares da educação
PROPRIEDADE: Profedições, Lda. | Contribuinte n.º 502 675 837 | Capital Social: 5.000
euros | Registo na Conservatória Comercial do
Porto: 49.561
SEDE: Rua D. Manuel II, 51/C – 2.º (sala 25)
4050-345 PORTO (Portugal)
COMPOSIÇÃO DO CAPITAL DA ENTIDADE PROPRIETÁRIA: Sindicato dos Professores do Norte, 90% | Abel Macedo, 5% | João
Baldaia, 5%
CONSELHO DE GERÊNCIA: Carlos Midões |
João Baldaia
SECRETARIADO DA ADMINISTRAÇÃO /
PUBLICIDADE / ASSINATURAS: Telefone:
22 600 27 90 (Sílvia Enes) | Fax: 22 607 05 31 | E-mail:
[email protected] | Livros: [email protected]
Avaliação e dominação
A falácia da argumentação meritocrática está aí:
constrói-se uma pirâmide e afirma-se que todos
podem ascender ao topo se revelarem empenhamento, esforço e sofrimento.
Manuel António F. Silva . . . . . . . . . . . . . . . pág. 15
entrelinhas e rabiscos
Escola de textos ou de paratextos?
O texto é a vida. A vida que a Escola tem que ser.
Mesmo quando o paratexto se transforma em
texto, já muito caminho tem que estar percorrido. E o extratexto... muito mais.
José Rafael Tormenta . . . . . . . . . . . . . . . . pág. 16
discurso directo
Agência France Press, AFP
Associação Portuguesa de Imprensa, API
O contributo do cinema na produção dos
discursos pedagógicos
Reinventar a Escola passa por transformá-la num
espaço potenciador de inteligência e de humanidade, promovendo a participação de todos e a
afirmação de cada um como pessoa.
Ariana Cosme e Rui Trindade . . . . . . . . . pág. 18
Afinal, se se é contratado, não se é professor? Se
se é profissionalizado, com vinte e vários anos de
ensino, não se é professor?
Ana Vieira . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . pág. 29
do primário
A segunda morte de Anísio
O que há de Anísio nas escolas de Caetité? Qual
o legado de Anísio que se faça presente nas práticas escolares?
José Pacheco
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . pág. 30
do secundário
O legado universal de Jane Addams
A democracia exige que a escola valorize socialmente as experiências das crianças e dos jovens
que a frequentam. Democracia e educação são,
ou deveriam ser, desígnios indissociáveis das
sociedades.
Domingos Fernandes . . . . . . . . . . . . . . . . pág. 32.
formação e desempenho
A propósito da prova de ingresso na carreira
docente
001-005 sumario 3/16/10 8:45 AM Page 2
sumário
A relevância desta prova parece ser incontestável. No entanto, pode tornar-se num episódio
isolado e pouco significativo se não tiver impacto
na formação inicial e contínua.
Carlos Cardoso . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . pág. 34
escritas soltas
Um país, três sistemas educativos
Não só é possível como desejável que as regiões
autónomas disponham de um Regime Jurídico
do Sistema Educativo Regional que mantenha o
quadro de referência constitucional.
André Escórcio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . pág. 36
Imagem e desafios da profissão docente
que a concepção é da exclusiva acção do útero
feminino.
Maria José Magalhães . . . . . . . . . . . . . . . pág. 51
da escola, da vida
O erro (ou a lição de Bento de Jesus Caraça)
O erro vale (e vale muito!) quando é detectado
e a sua apropriação nos convoca para novo
esforço, novas tentativas e novas soluções...
Ana Brito Jorge . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . pág. 53
observatório
Para além da homofobia ou porque não se
deve referendar a discriminação
A missão pedagógica dos professores reveste-se
de grande complexidade humana. Trata-se, afinal,
de trabalhar com pessoas e numa perspectiva de
promover a sua personalidade e humanidade.
Se estamos perante um grupo de pessoas fortemente discriminado numa sociedade, há condições para referendar o seu direito a existirem de
forma visível nessa sociedade?
Evangelina Bonifácio . . . . . . . . . . . . . . . . pág. 38
Isabel Menezes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . pág. 54
em português
Precisamos de um ensino missionário?
É sábio aquele professor que não se contenta
com a reprodução dos costumes e induz os alunos a pensar que não é suficiente interpretar o
mundo; é preciso transformá-lo.
Leonel Cosme . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . pág. 40
educação e cidadania
Educação Ambiental: do 3D ao novo-velho
ABC
As expectativas que alguns alimentavam em relação a uma sociedade mais justa e solidária foram
goradas, continuando a viver-se num supermercado económico e cultural em que uns globalizam e outros são globalizados.
Mariana Salgado Peres . . . . . . . . . . . . . . pág. 56
HELENA ARAÚJO
“A questão da igualdade de
género deu origem, de facto,
a fortes controvérsias, marcadas pela conflitualidade e pela
ambiguidade. E embora a
República tenha dado por
vezes a ideia de que as
mulheres teriam um papel
forte a desempenhar, fica a ideia de uma
certa visão utilitária: as mulheres como as
grandes educadoras dos filhos da
República”.
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . pág. 42
dia internacional da mulher
Ousar ousar!
A opressão da Mulher na vida profissional e na
vida privada é uma realidade porque é uma consequência da sua exploração na sociedade, tal
como o é a exploração dos homens.
Hermínia Bacelar . . . . . . . . . . . . . . . . . . . pág. 48
Entre a lei e a vida, há caminhos a melhorar
Responsabilizar apenas as mulheres por uma gravidez constitui, hoje, um acto de medievalismo,
sobretudo vindo de pessoas com formação científica, a quem já não se admite que considerem
I
2 3
PRIMAVERA 2010 I N.º188
educação desportiva
O treinador nacional e o estrangeiro
Aposto nos treinadores nacionais, no cotejo com
os estrangeiros, para dirigir e orientar as nossas
equipas de futebol ou de qualquer outra modalidade desportiva.
pedagogia social
Recordando Ortega y Gasset, 100 años después
“Si educación es transformación de una realidad
en el sentido de cierta idea mejor que poseemos
y la educación no ha de ser sino social, tendremos que la pedagogía es la ciencia de transformar las sociedades”.
José António Caride Gómez . . . . . . . . . . pág. 66
Globalización y acción comunitaria: responsabilidades personales y pactos socioculturales
El paso de la heteronomía a la autonomía
supone, necesariamente, el paso del contrato al
pacto como forma de relación. Un pacto sociocultural que se manifieste y construya sobre la
topografía del bucle.
Xavier Úcar . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . pág. 68
afinal onde está a escola
Lições do Haiti
Um dos países mais pobres do mundo, com os
piores indicadores da América Latina, história
longa de intervenções e outros absurdos. No
entanto, é a tragédia de um terremoto o que nos
mobiliza.
Roberto Marques . . . . . . . . . . . . . . . . . . . pág. 70
reconfigurações
Educação e desenvolvimento: agora somos
todos soldados?
O dilema para os voluntários da educação é que
as estratégias anti-terroristas e anti-insurreccionais estão a ser percepcionadas como veículo
principal para o desenvolvimento de intervenções educativas.
Mário Novelli . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . pág. 72
Manuel Sérgio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . pág. 58
educadores pela paz
Encontro galego-português em Leiria
ALBERTO AMARAL
“A criação de um sistema de
acreditação comum, que permita a qualquer instituição ser
acreditada pelas diversas
agências registadas na EQAR
– apesar de esta proposta da
Comissão ainda não ter sido
aceite pelos ministros –, conduzirá à existência de agências com critérios de exigência extremamente altos, que
acreditarão universidades como Oxford,
Cambridge ou Munique, e de agências que
acreditarão universidades regionais e universidades locais. Desta forma, tender-se-á
ao estabelecimento de um certo sistema
de ranking”.
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . pág. 60
De 23 a 25 de Abril, na Escola Superior de
Educação e Ciências Sociais.
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . pág. 74
olhares de fora
O humanismo concreto e a “questão do
certo”
A efetivação do humanismo concreto é um
incessante devir. Uma totalização dialética. A
“questão do certo” potencializa-se pela práxis do
humanismo concreto.
Ivonaldo Neres Leite . . . . . . . . . . . . . . . . pág. 76
cultura e pedagogia
Crianças não escapam à volúpia do mercado
“A característica mais proeminente da sociedade
de consumidores – ainda que cuidadosamente
001-005 sumario 3/16/10 8:45 AM Page 3
disfarçada e encoberta – é a transformação dos
consumidores em mercadorias”.
Marisa Vorraber Costa e Paula Deporte de Andrade
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . pág. 78
república dos leitores
Justiça global: uma questão politica, antes de
tudo o mais
Maria Rosa Afonso . . . . . . . . . . . . . . . . . pág. 80
O ensino público deve ser o eixo vertebrador do sistema educativo
Rosa Soares Nunes . . . . . . . . . . . . . . . . . pág. 81
Na escola há literatura a mais... Desculpe?
Paulo Nogueira
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . pág. 83
fora da escola também se aprende
canteiro do espírito onde ajardina a matéria sensível excedentária do rasgo pictórico.
Descobertas e invenções em narrativas imagéticas
Júlio Conrado . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . pág. 106
Encontrar nas narrativas imagéticas indícios da
realidade que, supostamente, elas expõem,
requer certa abertura para o inesperado.
Inês Barbosa de Oliveira . . . . . . . . . . . . . pág. 93
visionarium
Mosca do vinagre é modelo biológico
A Drosophila melanogaster continua a estar associada a muitos avanços ao nível do conhecimento
da genética, do desenvolvimento e das ciências
biomédicas
Departamento de Conteúdos Científicos do
Visionarium . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . pág. 94
bibliotecas escolares
Uma realidade em mudança
Aos professores bibliotecários compete desenvolver estratégias que garantam a rentabilização
das bibliotecas ao serviço das escolas, dos processos formativos e das aprendizagens dos alunos.
José Paulo Oliveira . . . . . . . . . . . . . . . . . . pág. 84
saúde escolar
Da literacia em saúde
No que diz respeito à educação para a saúde, o
currículo escolar e a informação passada pelos
profissionais de saúde concorrem em grande
desvantagem com outras fontes.
LAURO MOREIRA
“A lusofonia, muito mais do
que um espaço, é um espírito
que emerge de 500 anos de
um convívio cuja matriz é
Portugal, um convívio que
acabou formando um património linguístico, cultural, histórico, e que teve um dia para começar, mas
não tem para acabar. A lusofonia, portanto,
é algo em construção, um fenómeno in fieri,
algo que está ocorrendo”.
perspectivas
Segredo
É um instante, um assomo de urgente vontade,
uma comoção doce fora de qualquer realidade,
misteriosa, breve...
Luís Vendeirinho . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . pág. 108
Pedagogia da catástrofe
Que o poder pedagógico da catástrofe conduza
à correcção de alguma gestão do território, de
forma a minimizar danos humanos e materiais.
Nélio de Sousa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . pág. 109
dizeres
Biografia
O Manel morreu já há muito tempo. Fiquei muitos anos sozinha. Às vezes passava muito mal e
quem me valia era uma vizinha. Morri a 2 de
Fevereiro de 2010, com 77 anos.
Angelina Carvalho
. . . . . . . . . . . . . . . . . pág. 110
colaboradores
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . pág. 112
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . pág. 96
Nuno Pereira de Sousa . . . . . . . . . . . . . . pág. 90
A construção de um “eu” virtual em idade
escolar
Para além de aceitar o desafio da internet e de
promover os computadores Magalhães, precisamos de nos prevenir para o reverso da medalha
Rui Tinoco . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . pág. 91
cinema
Alain Resnais, o cineasta da memória
“Não quero falar do meu próximo filme. Gostava
de começar a rodar rapidamente, antes do Verão.
Mas bom, graças ao Santo Oliveira, estamos protegidos”.
Paulo Teixeira de Sousa . . . . . . . . . . . . . . pág. 104
quotidianos
Internet
A internet não é um meio de comunicação
social. Ela engloba os próprios meios de comunicação social.
Carlos Mota . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . pág. 92
textos bissextos
Emerenciano: o poeta e o pintor
Mesmo existindo um compromisso entre palavra
e cor, verso e traço, semiótica do texto e fulguração visual do signo, o artista reserva à poesia o
breves
Stellenbosch/Famalicão convida Herman
José
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . pág. 17
Há mais mulheres no mercado de trabalho,
mas as desigualdades continuam
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . pág. 52
Feira tem projecto de intervenção precoce
no Pré-Escolar
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . pág. 75
Alunos e professores colaboram na edição
de livro
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . pág. 83
001-005 sumario 3/16/10 8:45 AM Page 4
Educação e res-publica:
lições de liberdade
e de cidadania
As contradições na História não vão deixar de existir. E a escola no meio dessas contradições não pode ter uma posição de equilibrismo. A escola tem de tomar um partido:
o dos valores humanos, da liberdade, da democracia, da justiça social. A escola pública,
que por isso é a minha opção, terá de suportar a diversidade de opiniões, mas fomentar
a crítica e sobretudo fazer com que não haja uma única visão dos factos.
editorial
Rogério Fernandes,
«A Página da Educação» n.º 81 (Junho.1999)
I
4 5
PRIMAVERA 2010 I N.º188
No seguimento do desafio enunciado no último número de 2009 e relativo à
reflexão sobre “Educação e Res-publica” enquanto tema de fundo das edições de
2010 – ano em que Portugal celebra o centenário da sua I República –, a PÁGINA
quis ir ao encontro de alguém que, a esse respeito, pudesse servir de fonte de inspiração e motivação. De um modo que podemos dizer “natural”, a escolha recaiu,
desde logo e sem hesitações, num dos mais ilustres pedagogos da nossa
contemporaneidade e reconhecido especialista nas áreas da História e da Filosofia
da Educação, com assinatura marcante no campo da organização do sistema
educativo, das políticas públicas e da profissionalidade docente – Rogério
Fernandes.
Alguns dias depois da realização da entrevista agora publicada e concedida em
sublime gesto de disponibilidade humana e cívica, recebemos a notícia do seu
falecimento, neste mesmo mês, a 4 de Março de 2010. De novo, e num
desconcertante “espaço de tempo”, a Morte desafiava as nossas rotinas, privandonos da possibilidade de diálogo com um rosto amigo e familiarmente eloquente.
Ainda um pouco atordoados, mas muito conscientes do privilégio de podermos
partilhar este último testemunho vivo e, a todos os níveis, histórico, fazemos
questão de sublinhar que Rogério Fernandes merece o destaque desta edição por
imperativo de honra à sua vida impressionante, face à qual a Morte apenas veio
lembrar a nossa humilde condição de aprendentes, justificando uma terna e eterna
deferência.
Rogério Fernandes não foi apenas um académico eminente, foi também um
activista social exemplar e, convém lembrá-lo, um resistente antifascista, tendo-se
distinguido no combate ao regime ditatorial que marcou a República durante o
chamado Estado Novo. Proibido de ensinar, dedicou-se ao jornalismo, onde
marcou presença como um dos fundadores do extinto jornal «A Capital», tendo
ainda sido director das revistas «Seara Nova» e «O Professor».
Rogério Fernandes desejou ser conhecido como um dos grandes defensores da
escola pública, por razões de ordem filosófica, ética e política, como ele próprio
gostava de afirmar, recusando indexar a educação a uma racionalidade de tipo
001-005 sumario 3/16/10 8:45 AM Page 5
cognitivo-instrumental, própria de certas lógicas de poder e hoje tão do agrado de
alguns dos nosso políticos e teóricos da educação. Para Rogério Fernandes, o
exercício da docência requer uma visão humanista e cultural do mundo como
condição de estímulo à liberdade de pensar dos próprios alunos, conforme nos
dizia há uns anos numa outra entrevista [«A Página da Educação», Junho.1999]. As
pessoas têm as suas próprias doutrinas, que trazem do ambiente familiar, da rua. Se
um aluno se dirige ao professor, nada a opor. Se ele pede a minha opinião eu dou-lha.
Se me pergunta o que sou, eu digo-lhe o que sou. Mas não digo: vais ser como eu.
Desta vez, Rogério Fernandes fala-nos de lições de liberdade e cidadania ligadas a
um certo “olhar republicano sobre a educação”, sem deixar de alertar para as contradições e para os limites da experiência republicana que agora se comemora.
Entre outros aspectos, lembra-nos a forma como os pioneiros da República percepcionavam a relação entre “uma eficaz e bem distribuída assistência escolar” e o
integral cumprimento da escolaridade.
A entrevista com Helena Araújo, publicada nesta mesma edição e centrada no
lugar sociopolítico das mulheres, permite-nos prolongar esta leitura crítica sobre a
I República, cabendo-nos neste caso sublinhar a actualidade das questões de
igualdade de género num significativo mês de Março e em Ano Europeu contra a
Pobreza e a Exclusão Social.
O embaixador Lauro Moreira traz para este debate a dimensão de
cosmopolitismo numa oportuna chamada de atenção para a importância da
lusofonia enquanto espírito que emerge de 500 anos de convívio e nos faz
herdeiros de um património cultural precioso.
Ainda neste número, e a par das rubricas assinadas pelos colaboradores permanentes, contamos com as declarações de Alberto Amaral sobre a actividade da
Agência de Avaliação e Acreditação do Ensino Superior e com uma abordagem às
bibliotecas escolares, em registo de partilha de práticas educacionais, aproveitando
aqui para reforçar o apelo à participação dos leitores, seja através do envio de
notícias, de críticas ou de sugestões.
Em coerência com a sua história e com o seu projecto editorial, a PÁGINA
assume-se como um espaço de educação vocacionado para a expressão livre e
para a tomada de posição pública. Nesta medida, e na estação do ano que em
Portugal convida a reviver Abril, que saibamos “tornar presente” o espírito de
criatividade cívica que animou a revolução dos cravos em 1974, porque, como lembrava Rogério Fernandes, é imperioso que a retórica discursiva dê lugar a uma
prática viva da solidariedade e de modo a conseguir que a escola portuguesa possa
tomar o partido que só pode ser o seu – o dos valores humanos, da liberdade, da
democracia e da justiça social.
Isabel Baptista
006-015 Rogeirio Fernandes+lugares 3/15/10 7:14 PM Page 6
entrevista
Rogério Fernandes
em discurso directo
Rogério Fernandes era Professor Catedrático Jubilado da Faculdade de Psicologia e de Ciências da
Educação da Universidade de Lisboa. Foi também professor convidado da Universidade Lusófona
de Humanidades e Tecnologias, em Lisboa, e coordenador científico da equipa portuguesa do
projecto A infância e a sua educação, 1820-1950. Materiais, Práticas e Representações [Portugal e
Brasil]”, que contou com o apoio do Programa de Cooperação Internacional Brasil-Portugal
CAPES/GRICES [Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior / Gabinete de
Relações Internacionais da Ciência e do Ensino Superior]. As suas principais áreas de
investigação incidiam sobre a Filosofia e a História da Educação, História da Escola, História do
Currículo, História da Infância e Políticas Educativas.
A par da vida académica desenvolveu também uma intensa vida cívica, na qual assumiu particular
relevo a resistência anti-fascista. Esse activismo contra o Estado Novo valeu-lhe não só a
perseguição por parte da polícia política mas também o afastamento do ensino. Resolve, nessa
altura, dedicar-se a outro dos seus grandes interesses: o jornalismo. Nessa qualidade, foi um dos
fundadores e principais redactores do jornal «A Capital», tendo também dirigido as revistas «Seara
Nova» e «O Professor».
Após o 25 de Abril foi nomeado Director-Geral do Ensino Básico, funções que desempenhou
entre 1974 e 1976, impulsionando algumas das principais reformas no ensino primário. Pertenceu
aos quadros da Inspecção-Geral da Educação e integrou também o Conselho Nacional de
Alfabetização e o Conselho Nacional de Educação. Foi presidente do Instituto Irene Lisboa. Em
2002 foi agraciado pela Presidência da República com a Ordem da Instrução Pública (Grã-Cruz).
Nesta hora, embora com algum pesar, queremos sobretudo deixar um testemunho vivo deste
pedagogo, pensador e defensor da Escola Pública ao longo de uma vida dedicada à Educação. Em
particular sobre um tema ainda hoje pouco conhecido: a acção educativa do governo republicano
na I República. Oportunidade para compreender melhor o que mudou na transição do início do
século XX português, fazendo a ponte para os desafios que se colocam à Educação já em pleno
século XXI.
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entrevista
Foi já no fecho da edição que tomámos conhecimento da morte de Rogério Fernandes, aos 74 anos. Na
consciência da responsabilidade que nos cabe, publicamos a sua última entrevista na versão original, gratos e
honrados por poder trazê-lo aos leitores.
Começaria esta entrevista colocando-lhe uma questão relativamente abrangente, mas que poderá lançar tópicos para a conversa que se seguirá: se lhe pedisse para fazer um balanço geral
da acção educativa na I República, o que diria?
Começaria por dizer que se trata de uma operação bastante
extensa e complexa, e que apenas poderá ser verdadeiramente
entendida, tanto nos seus excessos como nas suas insuficiências, em
função do respectivo contexto socioeconómico – dimensão que
nem sempre é atendida quando nos referimos à educação pública.
No início do século XX, o sector de actividade económica predominante no nosso país era o primário. Em 1925, por exemplo,
perto de metade da população activa empregava-se na agricultura
e apenas as cidades de Lisboa e Porto tinham alcançado um grau
de industrialização acima da média, seguidas de Aveiro, Braga e
Setúbal. Anos antes, em 1911, a percentagem da população activa
empregue na indústria oscilava entre os 1,8% no distrito de Beja e
os 20,5% no distrito do Porto. Havia bastante emigração, interna e
externa, além de lutas sociais intensas nas zonas agrícolas contra a
proletarização e contra os interesses dos latifundiários agrários, por
um lado, e, por outro, dos trabalhadores da indústria contra as condições de vida e de trabalho.
Para fazermos uma ideia da situação, se apontássemos o índice 11
para os salários do operariado em Londres, em Lisboa o índice
seria 32, em Berlim 95 e em Filadélfia, nos Estados Unidos, de 214.
É nesta altura também que se desenvolvem grandes unidades
fabris, tais como a CUF, no Barreiro, e indústrias como a dos cimentos, das conservas, da cerveja, da moagem, da metalomecânica
pesada, etc.
Uma industrialização tardia, apesar de tudo…
Sim, e além do mais com um carácter restrito. Em 1914 havia 285
unidades industriais; em 1924 eram 1359, agrupando na sua maioria pequenos capitais, ou seja, eram pequenas empresas. Durante a
I República, por isso, as pequenas e as médias empresas detinham
um predomínio apreciável na indústria, no comércio, na agricultura
e até na banca. Sem embargo da existência de monopólios, não
existiam, porém, grandes grupos monopolistas e o capital financeiro não dominava a economia portuguesa.
O desenvolvimento industrial esbarrava com um fraco nível de
acumulação, com a escassez do capital indispensável aos grandes
investimentos, com a indigência energética e o primitivismo do sector de produção. O colonialismo português e as posições do imperialismo estrangeiro em Portugal, embora com influências contraditórias, constituíram no essencial entraves adicionais à acumulação
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do capital e ao desenvolvimento económico do país. Esta análise
que acabo de citar e que venho acompanhando quase com as
mesmas palavras, é da autoria de Álvaro Cunhal.
O desenvolvimento educacional reflectia, portanto, as linhas fundamentais do desenvolvimento económico neste período, no qual o
trabalho infantil e juvenil era muito comum. O historiador
Armando de Castro, por exemplo, refere que em 1910 se regista
um movimento grevista de crianças entre os seis e os onze anos
em Lisboa. Noutro ponto do país, em Castanheira de Pêra, em
1921, os menores trabalhavam 16 horas por dia, das cinco ou seis
da manhã até à meia-noite. A fuga à escola neste período explicase portanto, em grande parte, pela absorção da mão-de-obra
infantil na indústria e no trabalho doméstico.
Ao longo da I República – que pode ser dividida em dois períodos,
o primeiro iniciado em 1910 e que se prolonga até 1916, com a
entrada de Portugal na I Guerra Mundial, e outro entre 1918 e
1926, ano do golpe militar que instaura a ditadura, e que herda
uma situação financeira caótica da monarquia – persiste uma insuficiente escolarização ao nível da escola primária elementar.
Em 1910, a taxa de analfabetismo era de 76, 1%; em 1920 era de
70,5%, o que representa um decréscimo insignificante. A percentagem de crianças inscritas nas escolas primárias oficiais mostra, aliás,
que a escolaridade obrigatória, que se reduzia apenas a três anos,
não era cumprida: 43,5% em 1911/12; 30,5% em 1916/17 (aqui
muito pelo efeito da guerra); e 25,7% em 1918/19.
Existe a ideia, porém, de que uma das principais apostas da
República incidia precisamente na educação e na escolarização
das crianças e dos jovens...
O programa educacional republicano apostava bastante na resolução desse problema e na generalização da educação. Não só por
parte do Estado como por parte das diversas forças políticas republicanas – a maçonaria, os anarco-sindicalistas, os socialistas – que
tinham iniciativas educacionais próprias, inclusivamente ainda no
tempo da monarquia. Mas a falta de “uma eficaz e bem distribuída
assistência escolar”, como então se dizia, era apontada geralmente
como causa do não cumprimento da escolaridade.
A primeira república procura palear esta situação oficializando
imediatamente as escolas móveis, distribuídas por freguesias onde
não eram exequíveis escolas fixas. As escolas móveis procediam
de uma iniciativa da maçonaria no período monárquico, ou seja do
movimento das escolas móveis pelo método João de Deus, lançado por Casimiro Freire após um período de quebra de inscrições, em que o total de matriculados nas escolas móveis rondava
os 14 mil alunos.
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Houve duas datas que marcaram decisivamente as reformas
republicanas relativamente à educação: 1911 e 1923. Em que consistiram essas reformas?
que queriam ingressar nas escolas normais para se tornarem professoras, ofício encarado naquela fase como um futuro profissional
bastante desejado e prestigiado.
O ano de 1923 é marcado pela apresentação de uma proposta de
reforma de ensino pelo ministro João Camoesas. Os anos de 1911
e 1919 foram anos de reforma efectiva. Em 1911 há a chamada
reforma de António José de Almeida – na altura não existia ainda
um ministério da educação – através da qual a instrução primária
passa a ter três graus: o elementar, o complementar e o superior.
O elementar tem três anos de duração - dos sete aos dez anos de
idade; o complementar abrange dois anos adicionais; e o superior
alarga-se por mais três anos.
O ensino primário superior tem um carácter polivalente e possui
por finalidade permitir o prosseguimento de estudos, tendo, ao
mesmo tempo, um carácter prático profissional. Tem um currículo
geral com Língua Portuguesa, duas línguas estrangeiras, História,
Geografia, Economia, Direito, Matemáticas Elementares,
Contabilidade, Histórico-Naturais, entre outras, com aplicação ao
comércio e à indústria. É uma espécie de ensino liceal e técnico
condensado. O certificado do ensino primário superior dará
acesso ao ensino liceal, mediante um exame de admissão. É um
ensino que também permitia a matrícula nas escolas primárias normais, nos cursos industriais, agrícolas e comerciais. Em muitos lados
substituía o primeiro ciclo dos liceus, onde este não existia.
Este ensino estava muito associado ao público feminino, porque
era essencialmente frequentado por raparigas, habitualmente filhas
da pequena burguesia rural e urbana sem liceu nas proximidades,
Em 1919 ensaia-se uma outra reforma...
Sim, com o ministro Leonardo Coimbra, do Porto, através da qual
se pretendia prolongar a escolaridade obrigatória de três para
cinco anos, incluindo nos dois primeiros anos as chamadas classes
preparatórias, que eram jardins de infância que antecediam o
ensino primário. O grande entrave a esta reforma foi a falta de um
quadro docente preparado e habilitado para tal tarefa. Estava-se a
trabalhar nisso, digamos assim, mas não havia quadros... O Governo
dirigiu na altura um convite aos professores para que se aventurassem nesta área, e só duas pessoas responderam: a Irene Lisboa e a
Ilda Moreira, amigas e companheiras.
Que papel teve a reforma de João Camoesas?
Apresentada ao país em 1923 foi uma proposta de reforma que,
apesar de discutida e de aprovada, nunca chegou a ser aplicada.
Mas que tipo de novidades iria introduzir no ensino da altura?
Eu tenho um texto publicado numa revista da Faculdade de Ciências
de Lisboa intitulado “Apologia e Censura das Utopias Pedagógicas”.
Do ponto de vista teórico, a reforma era extraordinariamente interessante – foi elaborada pelo professor Faria de Vasconcelos, que
estava ligado ao movimento da Escola Nova, e que recebeu alguma
colaboração do António Sérgio, tendo inclusivamente motivado um
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desentendimento entre os dois. Previa a criação de faculdades e
departamentos de educação, de escolas normais, etc.
Nesse sentido, era um clarão extraordinário. Tanto assim que no
congresso dos professores primários, realizado em Leiria nesse
mesmo ano, houve uma aceitação tácita do documento, refutando-se apenas o ponto relativo à gestão, já que os professores queriam
participar na gestão e a reforma não admitia essa hipótese.
No entanto, era uma reforma inexequível no contexto português
da época porque o governo estava financeiramente falido.
Há pouco referia o facto de as taxas de escolarização serem
muito baixas. Se houve uma grande aposta na educação, porquê
esses números?
Porque a obrigatoriedade da escolarização era difícil de cumprir.
Por um lado havia insuficiência da oferta – a escola móvel não era
uma resposta cabal para a falta de escolas, porque se limitava a
acções pontuais de alfabetização – à qual acrescia a irregularidade
de inscrição dos alunos, com grandes quebras, em particular no
período da guerra. Por outro lado, muitas das vezes os próprios
pais não inscreviam os filhos na escola, porque havia a ideia enraizada de que o saber ler e escrever não era assim tão importante...
Mas havia obrigatoriedade de frequência?
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Teoricamente havia, com multas, ameaças, etc. Mas isso acabava por
passar.
O ensino preconizado pelo regime republicano era laicizante ou
chegou ao ponto de ser anti-religioso?
Era aquilo que se poderia designar por ensino neutro. É o que está
na reforma de 1911. Tal não impediu que logo nos primeiros dias
da República fosse proibida a utilização de imagens religiosas nas
escolas e que o ensino tenha sido vedado à classe eclesiástica. Mas
se isso era prática corrente nas escolas oficiais, o mesmo não acontecia nas escolas privadas, na sua maioria geridas pela Igreja católica.
E isso originou um confronto sério entre a Igreja católica e o
regime republicano, fazendo com que muitas dessas escolas fossem
nacionalizadas. Estas e outras medidas criaram junto de uma população maioritariamente católica uma certa animosidade relativamente à República.
Mas a reforma de 1911 não foi a única actividade reformadora da
I República. Assim que foi proclamada a República, os estudantes da
Universidade de Coimbra, a única do país, ao tempo, avançou com
uma espécie de PREC à sua medida, invadindo as instalações dos
professores, destruindo os capelos, recusando o foro académico –
que era o direito especial da universidade, que vinha desde a idade
média e que implicava a existência de um tribunal próprio. Claro
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que isso teve implicações do ponto de vista disciplinar, e dado que
a universidade tinha prisão e polícia próprias, muitos estudantes
acabavam por passar pela cadeia da universidade por questões de
disciplina.
Psicologia, bem como as bases de uma nova constituição universitária, o curso de Farmácia, a Escola de Medicina Veterinária, além da
Universidade Técnica, que aparece juntamente com o Instituto
Superior Técnico e o Instituto Superior de Comércio.
Que outro tipo de actividade reformadora prosseguiu o regime
republicano?
Até que ponto essas escolas de formação foram pólos de produção e de circulação de novos modelos pedagógicos?
Nomeadamente com a criação das universidades de Lisboa e
Porto, que é uma medida muito importante. Ao mesmo tempo,
extinguiu-se a faculdade de Teologia de Coimbra, não por uma
questão de perseguição religiosa, ao contrário do que se diz, mas
porque estava a perder alunos de forma considerável. E os professores dessa faculdade foram todos transferidos para a Faculdade
de Letras da Universidade de Coimbra, entretanto criada, a par
com a de Lisboa – não sei por que razão o Porto só terá uma
Faculdade de Letras muito mais tarde...
Destaque ainda para a reforma do ensino médico, para a reforma
dos estudos jurídicos – tudo isto nas universidades, onde passa a
ser facultativo o uso de capa e batina –, para a extinção do foro
académico e a sua substituição pelo direito comum. Além de outra
medida que alguns professores, tais como Bernardino Machado, já
defendiam antes da República, que era a adopção de um regime de
frequência livre, onde não havia lugar para faltas. Muitos professores não viram com bons olhos esta medida porque ficavam sem
alunos...
Lugar também para a revisão dos planos de estudos das
Faculdades de Ciências e para a criação, em anexo às Faculdades
de Letras, das Escolas Normais Superiores, destinadas a formar
professores para o ensino secundário.
Foram-no de facto. E esse é um dos motivos pelo qual, em 1936,
o ministro Carneiro Pacheco avança com a extinção das escolas
normais primárias, baseado num relatório onde se afirmava que
todas elas eram de índole republicana. No seguimento desta
medida, durante anos não há entrada de novos alunos, o que conduz a uma falta generalizada de professores. Daí o recurso aos
regentes escolares, que só tinham obrigação de ter concluído o
terceiro ano do ensino primário, que era obrigatório. Estes regentes trabalhavam sobretudo nos postos escolares, que eram pequenas escolas, com apenas uma sala, dispersas pelo país.
Até aí, como funcionava a formação de professores?
Os professores do ensino secundário não tinham qualquer tipo de
formação especial, até porque só havia uma universidade. O Curso
Superior de Letras, em Lisboa, tinha uma estrutura curricular que
já apontava nesse sentido, nomeadamente umas cadeiras de psicologia, mas ainda não era nada de solidamente estruturado.
Os professores do ensino básico, se lhe podemos chamar
assim...
Eram formados nas escolas normais primárias.
Mas houve alguma alteração de fundo no que se refere à formação de professores?
Sim, através da criação das escolas normais superiores para formar
os professores para o ensino secundário, por um lado; por outro,
através do desenvolvimento significativo que tiveram as escolas
normais primárias do ponto de vista do recrutamento do pessoal,
da investigação realizada, entre outros aspectos. Algumas escolas
contavam com grandes professores...
Por esta altura surgem também as escolas de Educação Física, as
escolas de Saúde, as escolas de Belas Artes, os laboratórios de
Em que princípios assentavam esses modelos pedagógicos?
Basicamente os princípios da Escola Nova, do “self support” à
inglesa, isto é, da autonomia dos alunos no processo de ensino-aprendizagem, e da escola activa. Muitos professores defendiam
este princípio da escola activa, da necessidade de uma postura
activa do aluno no processo de ensino-aprendizagem.
O papel da Escola Nova, porém, foi mais teórico do que prático,
porque as condições de trabalho não eram propícias à introdução
de tais metodologias. Havia escolas, por exemplo, situadas nos primeiros andares dos prédios de Lisboa. O espaço ao ar livre cingiase ao quintal das traseiras. E o material escolar faltava na maioria
delas.
Neste sentido é interessante ver algumas das coisas que a Irene
Lisboa escreve na altura – ela foi bolseira em Genebra e critica certos aspectos da Escola Nova postos em prática nas escolas suíças.
É autora de uma conferência muito sugestiva, intitulada “O ensino
atraente”, onde ela dá uma imagem da escola portuguesa tal como
ela era, mostrando que havia um movimento docente, sobretudo
aquele mais vanguardista, que estava a par das ideias da Escola
Nova e as defendia. Só que a sua aplicação pressupunha condições
que não existiam: as escolas eram desconfortáveis, frias, sujas, e as
crianças, na maior parte das vezes, andavam descalças e com fome.
Começa-se a ver que o essencial não é começar por aí.
Aplicar-se-ia aqui o que o filósofo Agostinho da Silva dizia acerca
da cultura: “Cultura é comer direito, vestir decente e habitar
seguro”...
Sim, pressupõe a panela ao lume.
Ou seja, esses movimentos pedagógicos inovadores não tiveram
a implantação desejada, ficou-se pelos princípios...
Escrevia-se muito em jornais e revistas e divulgavam-se viagens de
estudo que mostravam exemplos daquilo que se passava em
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outros contextos. Mas entre as construções reflexivas e a aplicação
prática os professores viam que de boas intenções está o inferno
cheio... É como o projecto de reforma de João Camoesas. Era
extraordinário, mas não tinha qualquer hipótese de aplicação
naquele contexto histórico-económico. E esse foi sempre um dos
problemas da I República: jogar muito no ideal e descurar o chão
que se pisava.
Pode falar-se num modelo republicano de formação de professores?
Há de facto um modelo que consubstancia o modo republicano de
olhar a educação.
Há quem defenda que no panorama educativo republicano havia
duas vias em oposição: uma essencialmente nacionalista, vertical
e hierárquica; outra de teor socialista, horizontal e que procurava
romper com o nacionalismo. Concorda com esta ideia?
Mas o nacionalismo no período republicano tem uma característica
diferente da que veio a ter com o fascismo: a ideia de que a universidade e a escola, em geral, devem colocar-se ao serviço dos
grandes problemas nacionais e tomar essas questões como eixo da
actividade de investigação e de ensino, isto é, de que se deve pesquisar e ensinar em ordem a achar resposta para os problemas do
país. É sobretudo o republicanismo positivista que inspira esta concepção. Mas a questão da educação popular ultrapassa o republicanismo. Fora do ensino oficial, por exemplo, aparecem as universidades livres e populares, muitas vezes de teor anarquista. O
Porto, por exemplo, teve uma universidade anarco-sindicalista
antes mesmo da República, em 1909.
Essa actividade era permitida sem restrições de ordem política?
Sim, nesse aspecto havia liberdade. E nessa universidade havia dois
grandes professores: Gonçalo Sampaio e Duarte Leite.
Mas pode dizer-se que havia duas vias em oposição?
Bom, claro que os anarco-sindicalistas criticavam a orientação do
ensino, inclusivamente a orientação do ensino primário, considerando-o muito conservador e memorizante. Eles tinham outras
propostas, como por exemplo a que se concretizou na Escola
Oficina n.º1, que de facto foi uma escola inovadora.
Em que aspecto?
Na sua ligação teoria/prática, na prática viva da solidariedade.
Embora tivesse tido origem maçónica, entram em campo alguns
professores como Adolfo Lima, António Lima ou César Porto,
anarquistas, que começam a dar àquele ensino outras características. Há um trabalho muito interessante, da autoria de António
Candeias, sobre a Escola Oficina n.º 1.
Depois temos os liceus, onde, apesar de não ter havido reformas
significativas, se lançaram as bases para a criação dos liceus femininos, em 1914, através das secções femininas dos liceus de Lisboa e
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Porto, concretizada mais tarde com a inauguração do primeiro
liceu feminino em Lisboa, que é o Liceu Maria Pia.
O ensino oficial na República foi buscar alguma inspiração ao
anarquismo? Alguns autores defendem essa ideia...
Não consigo ver no ensino oficial qualquer inspiração de teor anarquista. A nível particular sim, muitas instituições de ensino e cantinas eram de raiz anarquista e anarco-sindicalista.
Julgo que será seguro dizer que os governos republicanos não
tinham essa inspiração anarquista. Em relação à gestão das universidades, por exemplo, há uma proposta do primeiro presidente da
República, Manuel de Arriaga, através da qual os reitores seriam
escolhidos a partir de uma lista tríplice (a universidade nomeava
três e o Governo escolhia um), mas nem isso o Governo republicano aceitou. Quis continuar a ter a possibilidade de nomear quem
muito bem entendesse para o cargo de reitor.
Em que outros sectores é que se avançou nessa altura na área da
educação?
Eu penso que o fundamental está dito. Os liceus foram talvez uma
das áreas onde se verificou menos actividade reformadora, assim
como no ensino técnico. No ensino infantil tentou implementar-se
as tais classes preparatórias, mas todo esse processo é suspenso
em 1926 pelo golpe militar, assistindo-se ao desmantelamento da
escola republicana.
As escolas normais superiores são extintas, sendo substituídas por
um curso de Ciências Pedagógicas que tinha a duração de um ou
dois anos. Estes cursos eram anexos às faculdades de Letras e havia
cadeiras comuns entre o curso de Ciências Pedagógicas e o curso
de História e Filosofia da faculdade de Letras, que foi o caso da
minha formação.
O papel do professor passa a ser mais valorizado com a
República?
Sim, sem dúvida. Nesse aspecto assiste-se a uma valorização profissional muito grande, o professor é muito respeitado, é uma figura
carismática, e vê o seu estatuto socioeconómico melhorado.
Que estatuto tinha no tempo da monarquia e depois com a
República? Passou a ter um estatuto próprio? Como se organizavam profissionalmente?
Os professores tinham organizações sindicais e associações profissionais já antes da República. Os professores primários, por exemplo, dispunham de uma associação denominada União do
Professorado Primário. Esta associação agregava muitas escolas primárias no país e publicava uma revista intitulada “O Professor
Primário”, que contava com a colaboração de docentes que eram
membros do movimento sindical, onde se discutiam os problemas
da profissão e questões pedagógicas.
Uma das primeiras medidas do regime fascista foi precisamente
proibir a União do Professorado Primário e esta revista, encer-
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Por falar nisso, houve um certo movimento auto-gestionário em
algumas escolas – eventualmente mais inspirado no anarquismo.
Esse movimento foi expressivo ou nem por isso?
Não creio que tenha existido propriamente um movimento autogestionário. Houve algumas escolas e alguns professores que defenderam esse conceito mas a prática ficou à distância da convicção.
Um “movimento” implica a adesão doutrinal de um número significativo de estabelecimentos e a aceitação de um certo número de
práticas.
Estou a referir-me ao período do regime republicano...
Bom, havia algum movimento cooperativista, como cooperativas
de estudantes e de alunos, as caixas escolares solidárias, destinadas
sobretudo aos mais pobres, mas não se pode afirmar que tenha
inspirado uma verdadeira e expressiva educação autonómica.
Houve alguns exemplos, mas na minha opinião não foi nada de sistemático em ordem a abranger todo o edifício educativo.
O que era a festa da Árvore?
Era uma festa de carácter cívico através da qual se pretendia comemorar a natureza, a necessidade de defendê-la, de promover a
árvore, etc. Era uma espécie de pedagogia do ambiente.
rando também bastantes instituições educativas. É preciso não
esquecer que os professores do ensino público ficam durante
quase cinquenta anos, até ao 25 de Abril, sem terem direito a criar
sindicatos. Durante todo este período apenas os professores do
ensino particular puderam reunir-se.
Que tipo de intervenção pública tinham os professores na
República, nomeadamente em termos políticos?
Alguns professores eram deputados, outros eram senadores. O
professorado era uma classe politicamente activa. E nas aldeias,
ainda durante muito tempo, até já depois do 25 de Abril, o
professor primário foi um actor muito influente nas pequenas
comunidades populares.
A educação cívica na I República foi também um aspecto importante do sistema educativo. Quer falar-me um pouco acerca
disto?
A educação cívica na I República fazia-se mais com base nos exemplos dos chamados homens notáveis, o que por vezes permitia um
certo culto do caciquismo nos pequenos meios.
Não estava, por isso, suportada em projectos pedagógicos...
Não. Na minha opinião a educação cívica nunca funcionou bem.
Havia manuais, baseados em exemplos, mas uma educação cívica
na verdadeira acepção da palavra faz-se através da actividade prática dos alunos, da auto-gestão dos alunos, não através de exemplos dados por outros.
A educação cívica ficou então, tal como outras áreas, aquém
daquilo que era o objectivo do regime republicano...
Deu origem mais a uma oratória discursiva do que a uma verdadeira educação prática. Porque, mais uma vez, não havia no interior da escola um movimento através do qual os alunos tivessem
uma real autonomia, o tal “self support” que os ingleses preconizavam.
Se pudéssemos tirar algumas lições válidas desse tempo para a
actualidade, o que diria?
Que o empenho dos professores é fundamental para mudar a
escola. E, nesse sentido, há que dizer que os professores estavam,
sem dúvida alguma, de uma forma geral, empenhados nas mudanças. O facto de as condições materiais terem travado esse empenho é outra coisa. Todos os anos, por exemplo, se realizava um
congresso do professorado primário, ao qual se acrescentavam
diversas publicações, de natureza sindical e outras, onde eram
debatidos assuntos relacionados não só com a profissão mas também com a pedagogia. E isso é bem significativo.
Aqui em Portugal esse movimento foi talvez um pouco mais
brando do que em Espanha, onde havia o Instituto Libre de
Enseñanza, em Madrid, que já antes da nossa I República tinha um
papel muito importante. Aqui teve menos expressão porque a
generalidade do contexto socioeconómico não permitia grandes
veleidades aos professores. Assistiu-se durante essa época a um
movimento profissional e cívico bastante forte em torno da profissão, mas bastante idealizado.
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das preocupações. E neste momento o que se verifica é que os
problemas profissionais dos docentes continuam à espera de resposta. Apesar das mudanças de rumo que se verificaram, ainda não
se dá o espaço suficiente para que os professores recuperem a sua
vocação de construir uma escola nova pelas suas próprias mãos e
com os seus alunos.
O que é preciso para que isso aconteça? Mais acção dos sindicatos e das associações representativas dos professores?
Os sindicatos e as associações fazem aquilo que é possível e tem
sido muitíssimo. Presto-lhes as minhas homenagens.
Tendo em conta que a acção dos governos não tem variado
muito no que se refere às políticas educativas, a iniciativa terá
então de partir da própria classe...
Evidentemente. Este é um período de lutas que terá necessariamente de continuar.
É habitual ouvir da opinião pública que os professores estão mais
empenhados em lutas corporativas do que com a profissão. Qual
é o seu comentário?
Insistindo um pouco na minha pergunta, podia referir-me duas ou
três ideias chave para a acção e para os desafios que se colocam
à escola de hoje?
A acção unitária dos professores; a discussão dos problemas da
profissão; e ao mesmo tempo os problemas que têm a ver com os
alunos e a escola. Julgo que uma das questões que se coloca hoje
com maior premência é o facto de haver menos discussão relativamente ao que seria necessário acerca das orientações da escola
e das suas linhas de acção pedagógica. Isso tem urgentemente de
passar para o plano do debate.
Essa é uma crítica injusta, porque os professores não se preocupam
apenas com as questões de carácter corporativo, longe disso. Se
olharmos para a imprensa sindical nota-se que ultimamente há uma
certa concentração de temas e de questões mais relacionados com
a profissão, mas a classe docente por si própria também não pode
agir sozinha. Ao mesmo tempo vemos que existe uma grande preocupação com aquilo que é a escola e que os professores querem
que a escola seja algo de diferente daquilo que é hoje.
Está a tentar dizer que já houve mais empenho nesse debate
relativamente àquilo que acontece hoje?
Talvez não tenha havido mais empenho, mas houve recentemente
um período de interrupção em que as questões do foro profissional – como foi a avaliação dos professores – cobriram o horizonte
RICARDO JORGE COSTA (entrevista)
TERESA COUTO (fotografia)
ROGÉRIO FERNANDES é autor de uma vasta obra, abrangendo áreas como a Política Educativa, a História e a
Filosofia da Educação. Para um conhecimento mais aprofundado da personalidade e da sua obra literária, a PÁGINA
aconselha a leitura de «Rogério Fernandes – Questionar a Sociedade, Interrogar a História, (re)Pensar a Educação»,
da autoria de Margarida Louro Felgueiras e Maria Cristina Menezes (Edições Afrontamento, 2004), assim como uma
entrevista anteriormente publicada em «A Página da Educação» (n.º 81, Junho.1999) e disponível em
www.apagina.pt.
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lugares da educação
Avaliação
e dominação
Em textos anteriores, tive oportunidade
de afirmar que a escola pública portuguesa nunca mais seria a mesma após a
investida legislativa protagonizada pelo
XVII Governo Constitucional. E essa
afirmação estava respaldada empiricamente no amplo movimento desencadeado pelos professores e que culminou
nas duas maiores manifestações ocorridas após 1974. Por outro lado, todos os
dias me chegavam notícias acerca do
clima que se vinha “institucionalizando”
no interior das escolas, em que uma das
mais distintivas características era o
medo – sentimento que há muito estava
arredado das fronteiras da Escola.
Como é evidente para todos, a razão para
o clima de permanente tensão, conflitualidade e medo generalizados devia-se
à tentativa de institucionalização de um
sistema de avaliação do desempenho
profissional, legitimado pelo Governo –
e secundado pela maioria dos analistas e
comentadores de serviço na Comunicação Social – através de uma argumentação eminentemente meritocrática.
De acordo com esta perspectiva, tratavase de colocar “ordem” num sistema
injusto, que não premiava os melhores e
permitia que todos atingissem, por inércia, o topo da carreira, independentemente das respectivas performances.
A atender seriamente neste tipo de argumentação, o escalonamento piramidal
assim obtido permitiria recompensar os
melhores professores, que teriam acesso
ao topo da carreira, e penalizar os piores,
que assim permaneceriam na sua base,
apesar dessa situação poder ser alterada
se revelassem interesse em melhorar profissionalmente, o que poderia ocorrer se
se esforçassem seriamente nesse sentido.
A falácia desta argumentação já há
muito se encontra estabelecida e deso-
cultada, desde logo por aquele a quem é
atribuída a invenção da palavra meritocracia: Michael Young, em «The Rise of
Meritocracy» (1958). Mas basta olhar
para uma pirâmide para se perceber que
a sua forma (e respectivo conteúdo)
nunca são alterados sem entrar em ruptura com o próprio conceito, isto é,
transformando-a numa outra figura
qualquer. Portanto, a falácia da argumentação meritocrática está aí: constróise uma pirâmide – o sistema de quotas
define-lhe adequadamente a forma, pelo
menos no topo – e afirma-se que todos
podem ascender a esse topo se revelarem
empenhamento, esforço e sofrimento.
Na opinião de Young, um sistema meritocrático não pode ser confundido com um
outro que se designe por democrático.
Estes dois regimes são conceptual e
empiricamente opostos. E esta confusão
tem vindo a estabelecer-se com a difusão
da ideia segundo a qual tudo estaria
dependente da implementação de um
correcto sistema de avaliação. Deste
modo, envolvem-se eminentes “peritos”
no campo, atribuindo-lhes a responsabilidade de legitimação científica – no respeito pelo pior que a modernidade nos
ofereceu neste domínio das relações
entre a Ciência e a sociedade – de uma
prática que é eminentemente política e
que, assim, está dependente dos princípios e valores hegemónicos numa determinada época. E a que vivemos diz-nos
que esses princípios e valores são “pósliberais”, isto é, orientados pelo individualismo mais radical, pela competição
desenfreada, por um darwinismo social
acentuado.
É por tudo isto que me parece preocupante a aceitação da introdução do princípio da avaliação do desempenho profissional como inquestionável, tratandose agora de atenuar os piores dos seus
previsíveis efeitos. Seja qual for o
modelo a introduzir, do que se trata é de
classificar e punir – numa palavra, dominar. Assim, o problema torna-se irresolúvel e uma coisa está garantida: a democracia fica mais distante e o medo tem
todo o espaço para se institucionalizar,
transportando consigo todo um sistema
de dominação que importa desde já
questionar.
Ora, uma sociedade onde o medo é rei
não é uma sociedade boa para se
viver.
Manuel António Ferreira
da Silva
Universidade do Minho, Instituto de Educação
016-017 entrelinhas e rabiscos 3/15/10 7:15 PM Page 16
entrelinhas e rabiscos
Escola de textos
ou de paratextos?
José Rafael Tormenta
Escola Secundária de Oliveira do Douro
(V. N. Gaia)
I
16 17
PRIMAVERA 2010 I N.º188
Dá-se um salto ali a Madrid, em low
coast, entra-se no Centro Nacional
Rainha Sofia e fica-se integralmente a
oscilar – entre os pés que se afundam no
chão para tentarem segurar-se e a cabeça
que esvoaça e voluteia para além das
nuvens – só por se olhar para a Guernica
de Picasso. E o que é que se vê? Pessoas,
animais, edifícios, um braço sozinho
ainda com um candeeiro aceso na mão,
um cavalo que espelha os horrores da
morte e da dor nos seus pêlos eriçados,
uns braços que bradam aos céus a sua
passividade, destruição. A emoção avassala-nos como se cada momento tivesse
sido colado, aposto ou sobreposto a três
dimensões, para irromper por nós dentro
e se entranhar de forma intemporal, fora
de qualquer espaço.
E só quando formos capazes de resgatar a
respiração e de recobrar o móbil que
eventualmente ali nos terá levado é que
começaremos a pensar no resto: a cidade
de Guernica; o intenso bombardeio da
Luftwaffe; Hitler aliado de Francisco
Franco. Tudo aquilo para que a obra
remete. E, mais tarde, nas técnicas do
quadro, ou mural: o preto e o branco, a
narração objectiva da sobreposição dos
pedaços de corpos irreais acinzentados
que retratam a realidade mais profunda,
o amarelado-morte, a Pietá, o surrealista
Minotauro, a ténue representação da
estátua da Liberdade acinzentada, de
candeeiro na mão. E por aí fora.
Não fora, inicialmente, aquele arrepio
visceral e ter-nos-ia parecido que valia a
pena uma outra abordagem da obra?
016-017 entrelinhas e rabiscos 3/15/10 7:15 PM Page 17
O estudante de 11.º ano dirigiu-se ao professor que conhecia de vista e perguntou:
– Bocê é professor de Português, num é?
Que sim.
– Bocê é que me podia explicar isto do Frei
Luís de Sousa, que não percebo nada. Já me
disseram que bocê é muito bom a explicar.
Parece que é lixado, dá testes muito difíceis,
mas como não é meu setôr, explicava-me e
prontos. Quando é que posso ir ter consigo à
sua sala?
Que fosse. Meio pasmado, o professor
nem hesitou. Um negócio assim tão
rápido…
E lá começaram. Primeiro contar a história: Madalena e depois Telmo, o que
faziam, o que diziam, porque comunicavam. Como era Maria, Manuel, que
medos pairavam naquela casa. E o aluno
retorquia: porquê o fogo?, ai D. João de
Portugal não era rei?, era conde de
Vimioso?, mas o meu professor explicou
o sebastianismo e eu pensava que ele era
rei..., Almada não é em Lisboa? e por que
é que não tinha peste? Ah! Agora é que
eu estou a perceber isto! Vou escrever
tudo direitinho!
O moço conhecia as análises críticas sobre
a “Guernica”, mas nunca a tinha visto,
nem sequer em figurinha. Nunca tinha
vivido a emoção, não tinha sido arrastado
por essa torrente que nos leva atrás de
uma obra. Nunca tinha lido «Frei Luís de
Sousa», mas conhecia as fichas dos
manuais, os diagramas, até alguns extratextos da História de Portugal.
Extratextos, paratextos – tudo andava por
ali. Mas faltava-lhe o texto, afinal.
Muitos dos nossos professores (não só os
de Língua Portuguesa) continuam a não
proporcionar aos seus estudantes o elemento fulcral: é preciso passar pelo laboratório e fazer a experiência de Ciências
Naturais; é preciso praticar a modalidade
de desporto; é preciso apreciar as obras
plásticas, ouvir as peças musicais, ouvir
falantes das várias línguas, contactar
com o património histórico, social, cultural; observar a Matemática nos azulejos de inspiração árabe...
E depois – ou a par e passo, devagarinho
– registar a experiência e analisar, reflectir, concluir, aprender bem as regras do
jogo, conhecer as escolas de Arte, aprender a notação musical, as várias gramáticas, os estilos arquitectónicos, enfim,
utilizar os vários métodos que nos permitem engrandecer o conhecimento
que, afinal, não existe sem as emoções.
Muitos professores de Português continuam a acreditar (e a cumprir os programas que assim o pressupõem) que os alunos de hoje vão ler em casa um clássico
do romantismo como «Frei Luís de
Sousa». Não lêem. Não têm. E a Escola
tem que garantir que interpretam o
máximo, tem que os entusiasmar, que
lhes contar a historinha toda, e até ler
com eles, pelo menos as partes mais
importantes.
Se ficamos por uma Escola só de paratextos, nada faz sentido. É preciso abraçar o
âmago das coisas. Não há crosta sem
miolo. E tudo serve de alimento. O texto
é a vida. A vida que a Escola tem que ser.
Mesmo quando o paratexto se transforma em texto, já muito caminho tem
que estar percorrido. E o extratexto...
Muito mais.
Stellenbosch/Famalicão convida Herman José
De 5 a 11 de Abril, o Festival Internacional
de Música de Câmara de Stellenbosch
(África do Sul) regressa à Casa das Artes de
Famalicão, numa extensão promovida pela
autarquia em colaboração com a
Universidade de Stellenbosch. Com direcção artística de Luís Magalhães, pianista
famalicense radicado na África do Sul, o festival conta com a participação de um convidado não exactamente óbvio – Herman
será narrador no concerto de encerramento (Carnaval des Animaux, de Saint-Saëns).
De acordo com Magalhães, o festival de
Stellenbosch (em cuja universidade é professor) é único na África do Sul, distinguindo-se por “oferecer a estudantes de
música a oportunidade de interagirem com
instrumentistas de calibre internacional”,
através da participação em masterclasses de
cordas e piano ou mesmo no concerto de
encerramento, se para isso forem seleccionados.
Os convidados são Claudio Bohorquez
(violoncelo), Elizabeth Bradley (contrabaixo), Eugene Osadchy (violoncelo), Frank
Stadler (violino), Nina Schumann (piano),
Predrag Katanic (viola) e Searmi Park (violino), além do pianista português. Os concertos terão lugar nos dias 9 (abertura) e
10, às 21h, e no dia 11 (encerramento), às
17h, e incluem composições de Elgar,
Korngold,
Lyapunov,
Mendelssohn,
Rachmaninoff, Saint-Saëns, Schumann e
Shchedrin.
“Em Famalicão, vamos praticar a base de
Stellenbosch: transparência total entre alunos e professores relativamente a proces-
sos de ensino e práticas de palco”, assegura
Luís Magalhães – na foto, com Nina
Schumann, com quem forma o duo
TwoPianists, nomeado na categoria de
melhor álbum clássico para os South African
Music Awards 2009, a atribuir em Abril.
018-019 discurso directo 3/15/10 7:17 PM Page 18
discurso directo
Mongrel
O contributo
do cinema
na produção
dos
discursos
pedagógicos
Reinventar a Escola passa por transformá-la num espaço
potenciador de inteligência e de humanidade, promovendo
a participação de todos na construção de produtos culturais,
partilhando-os, e a afirmação de cada um como pessoa
portadora e construtora de saberes.
Ariana Cosme
Rui Trindade
Universidade do Porto,
Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação
I
18 19
PRIMAVERA 2010 I N.º188
A Escola como espaço onde se torna possível vislumbrar os gestos através dos
quais a humanidade se constrói não
poderia deixar indiferentes muitos daqueles que utilizam o cinema como instrumento de expressão e de comunicação
artística. De algum modo, pode até considerar-se que a assunção da Escola como
objecto temático do cinema é expressão
da sua existência, hoje, como um espaço
suficientemente interessante do ponto de
vista das dramaturgias que aí se constroem e desenrolam.
Se, no entanto, esta dimensão da relação
entre a Escola e o cinema nos parece ser
inevitável, importa abordar uma outra,
menos visível, mas não menos interessante, que diz respeito ao modo como o
cinema tem vindo a contribuir para alargar o campo da produção dos discursos
pedagógicos. Trata-se de um fenómeno
recente, sendo necessário, por isso, recuar
a 1967 para, em To Sir, With Love («Ao
mestre, com carinho»), vermos Sidney
Poitier no papel de Mark Thackeray, um
engenheiro desempregado transformado
em professor de circunstância, a enfrentar
e a vencer a hostilidade dos seus alunos,
numa escola situada no bairro operário do
West End londrino. E não vale a pena
lembrar Le Quatre Cents Coups («Os
incompreendidos») ou L’Argent de Poche
018-019 discurso directo 3/15/10 7:17 PM Page 19
(«Na idade da inocência»), de Truffaut,
porque nestes, a Escola não passa de um
dos cenários que se privilegia para invocar
o drama das adolescências perturbadas.
«Jonas que terá 25 anos no ano 2000»
também não entra nestas contas, porque,
igualmente, não é a escola que mobiliza
Alain Tanner – as cenas onde vislumbramos o espaço escolar que os oito personagens, enquanto comunidade alternativa,
construíram, apenas servem para ilustrar a
utopia que esses personagens perseguem.
É, pois, no dealbar da década de 90 que a
Escola passa a ser entendida definitivamente como um objecto cinematográfico. Foi a partir desta época que pudemos
assistir a filmes como «Filhos de um Deus
Menor» (1986), «Clube dos Poetas
Mortos» (1989), «Mentes Perigosas»
(1995), «Mr. Holland Opus» (1995),
«Melodia do Coração» (1999), «Finding
Forrester» (2000), «O Sorriso de
Monalisa» (2003), «Os Coristas» (2004),
«Ser e Ter» (2004), «The Ron Clark Story»
(2006) ou os «Escritores da Liberdade»
(2007).
Trata-se de filmes que encontram nas
escolas, e nas respectivas salas de aula, os
espaços nucleares das narrativas que propõem, uma opção através da qual o
cinema pode ser definido, hoje, como um
espaço privilegiado de produção de discursos pedagógicos, que, nos filmes em
questão, se caracterizam por um registo
de tipo épico, a resvalar, quantas vezes,
para o voluntarismo. Um registo em função do qual se contribui para transformar
as situações exemplares que esses filmes
retratam em propostas que podem ser
consideradas como modelos de acção
educativa tidos como ideais. Por isso é
que importa questionar quer esses filmes,
quer o seu eventual impacto na construção de uma corrente de opinião que pode
influenciar a discussão pública sobre as
finalidades e os modos de funcionamento
das escolas. Uma corrente de opinião que,
assim, se pode constituir como referência
da reflexão que se produz, hoje, quer
sobre as escolas, quer, igualmente, sobre a
acção dos professores e o estatuto e o
papel dos alunos.
O que está em jogo é demasiado sério
para ser confundido com um devaneio
intelectual. Trata-se, pois, de um assunto
sobre o qual vale a pena reflectir de forma
mais aprofundada. Um assunto que
merece, enquanto contributo para esse
debate, que se deixe de olhar para a lista
de filmes acima enunciada e se chame a
atenção para um que propositadamente
não consta dessa lista – «A Turma» (2008).
Entre les Murs é um filme cuja importância advém, entre outras razões possíveis,
do facto de estabelecer uma ruptura com
o, já referido, registo épico e, também,
com qualquer modo linear de abordar as
escolas como espaços de relações que os
seus propósitos de socialização cultural
contribuem para delimitar.
É que em «A Turma» a escola afirma-se,
acima de tudo, como espaço paradoxal,
mais do que como espaço de redenção.
Há professores e alunos que entendem
os respectivos ofícios como razão suficiente para o investimento que protagonizam. Outros há para quem a permanência naquela escola é uma obrigação
perante a qual parecem não ter opção.
Há personagens previsíveis e imprevisíveis que alimentam um jogo onde entre
o gato e o rato há, por vezes, pausas e
momentos de comunicação autêntica,
capazes de alimentar a esperança de que
todos precisamos para continuarmos a
ser docentes e discentes. Razões bastantes para não acreditarmos que «A Turma»
possa constituir uma espécie de roteiro
de orientação pedagógica dirigido para
jovens aspirantes a professores, a não ser
para utilizar como instrumento de
suporte didáctico onde, no remanso das
salas de aula do Ensino Superior, se possam apontar os erros de comunicação de
François, o professor, e de alimentar um
falso debate sobre as alternativas de que
ele dispunha para enfrentar as provocações dos alunos.
«A Turma» é, por isso, um filme que para
além de, aparentemente, não alimentar
ilusões sobre a Escola, não pretende,
igualmente, assumir-se como um discurso de carácter pedagógico, apenas
porque Laurent Cantet, o realizador,
sabe que não é, nem quer ser, um pedagogo travestido de cineasta. Condição,
esta, que todavia não o impede, na cena
final, de desnudar a ausência de sentido
da Escola, através da voz de uma das alunas que não alinha no jogo de faz-deconta em que se envolvem François e os
seus alunos, quando se esforçam por
recordar o que aprenderam ao longo
desse ano lectivo. Provavelmente, só ela
e Esmeralda é que ousaram dizer a verdade. Uma, quando diz que não aprendeu nada na escola, e a outra, quando
nos mostra que, apesar da escola e sem
ser por causa dela, foi capaz de ler «A
República» de Platão.
Se Cantet (na foto) sabe qual é o seu
papel, será que nós, os professores, sabemos qual é o nosso?
Descontando o facto de que, hoje, é mais
fácil ser realizador de cinema do que professor, importa compreender que, malgré
tout, é na Pedagogia que teremos de
encontrar o nosso refúgio último, o refúgio onde poderemos aceder aos instrumentos que nos capacitem, não para
educar com tal certeza que não seja possível não obter bons resultados, como
pretendia Coménio na sua «Didáctica
Magna», mas para alargar o campo das
possibilidades educativas de que dispomos para nos assumirmos como professores. Uma opção que nem nos isenta de
cometer erros nem nos obriga a ter sempre uma resposta pronta para todos os
desafios que enfrentamos. Uma opção
que, apenas, nos pode ajudar a repensar
os caminhos de uma Escola que continua a justificar aquilo que é no facto de
continuar a alimentar a sua importância
como um passaporte para o futuro.
Tal como afirmámos atrás, não será a
reinvenção da Escola que nos libertará
de viver situações de conflitos ou de
insucessos profissionais. Não é essa a
razão que justifica a necessidade de tal
reinvenção. O que a justifica, tem a ver,
sobretudo, com um outro tipo de desafio
– aquele que permita que a Escola se
transforme num espaço potenciador da
inteligência e da humanidade de cada
um, no momento em que possibilita que
cada um possa participar na construção
de produtos culturais, partilhando-os e
aprendendo, no decurso de tal processo,
a afirmar-se como pessoa; como gente
que é gente porque é também portadora
e construtora de saberes.
020-021 A escola que aprende 3/15/10 7:18 PM Page 20
a escola que aprende
À volta do umbigo
Em Janeiro, a UNESCO
publicou um relatório
sobre a avaliação global
do programa “Educação
Para Todos”. Trata-se de
uma avaliação intercalar
do objectivo que tinha
sido apontado para que,
em 2015, todas as
crianças do mundo
tivessem acesso à
educação primária.
Os resultados são
decepcionantes.
David Rodrigues
Universidade Técnica de Lisboa
Fórum de Estudos de Educação Inclusiva
I
20 21
PRIMAVERA 2010 I N.º188
O relatório refere que 72 milhões de
crianças estão ainda fora da escola e que,
por este andar, 56 milhões ainda o estarão em 2015. E isto porquê?
Segundo Irina Bokova, directora-geral da
Organização das Nações Unidas para a
Educação, a Ciência e a Cultura
(UNESCO), “enquanto os países ricos alimentam a sua recuperação económica,
muitos países pobres enfrentam um
cenário iminente de atrasos educacionais. Não podemos permitir-nos criar
uma geração perdida de crianças privadas da sua oportunidade de educação,
que as poderia elevar do seu estado
actual de pobreza”. No mesmo sentido, o
coordenador do relatório, Kevin
Watkins, escreve: “Os países ricos mobilizaram montanhas financeiras para
estabilizar os seus sistemas financeiros e
proteger a sua infra-estrutura social e
económica, mas só conseguiram mobilizar pequenas colinas para os pobres do
mundo”. E, na verdade, estima-se que
faltam 16 mil milhões de dólares para
conseguir atingir o objectivo da educação primária em todo o mundo, em
2015.
Estes números e opiniões são eloquentes.
Antes de mais, por reporem uma verdade
que a propaganda tende a ocultar – o
apoio à educação em países em vias de
desenvolvimento é completamente ineficaz até para remediar os aspectos mais
básicos. Quando se sabe que a educação
é a primeira e essencial condição para a
existência de um desenvolvimento sustentado, verificamos que muitos Estados
não colocam esta prioridade entre as
mais prementes.
Mas também é certo que os países mais
desenvolvidos não apostam suficientemente em criar as bases que poderão
levar os países mais pobres a sair da
pobreza. Estamos muito longe de um
apoio efectivo que permita escorar a derrapagem para a (cada vez maior) pobreza
de muitos países. Assim, a retórica de
dinamizar o desenvolvimento local nos
países pobres, para evitar as desesperadas
migrações para os países mais ricos, também não é fundamentada em medidas
concretas.
Podemos perguntar: e o que tem esta
desafortunada situação mundial a ver
connosco? As nossas carências ao nível
educacional são de outra ordem e de
outra escala.
Nos alvores da Revolução de Outubro,
na Rússia, os revolucionários debatiam a
questão de saber se seria possível haver
socialismo num só país. Não teria que
ser um movimento mundial? Afinal os
que duvidavam que o socialismo num
só país pudesse prevalecer tinham
razão… A necessidade de alimentar uma
política de preservação acabou por exaurir os recursos que deviam fazer das
sociedades socialistas, não só igualitárias, mas sobretudo prósperas.
A pergunta é também esta: pode haver
efectiva qualidade e inclusão educativa
num só país? Em 2010?
Lembro-me de ver, no princípio dos anos
80, vídeos sobre as classes especiais de
crianças com deficiência, em França.
Eram classes com uma percentagem elevadíssima de crianças argelinas e portuguesas. Os colegas franceses eram tentados a dizer que os problemas eram
importados pelos imigrantes. E também
agravados pela sua própria condição de
imigrantes, dado que, para além das condições de deficiência, havia a cultura, a
língua…
Vivemos, em Portugal, situações que têm
alguma simetria com esta, de há 30 anos:
020-021 A escola que aprende 3/15/10 7:18 PM Page 21
um número significativo de crianças de
outras etnias e com outras capacidades
desafiam o conceito de escola de qualidade. Mas será que podemos pensar que
a escola de qualidade em Portugal é só
para alunos portugueses? Os alunos de
outras cidadanias não entram neste projecto? Pensar que a Educação pode passar incólume por toda esta heterogeneidade e desculpar-se com os males da globalização, seria um erro. Na educação
pública ninguém se salva sozinho.
É tempo, pois, de – em lugar de continuarmos a olhar para o ponto de maior
centralidade do nosso corpo, que parece
ser o umbigo – olharmos para as periferias. Encaremos de que forma um sistema mundial sem solidariedade, sem
justiça e auto-centrado tem contribuído
para que os países mais pobres não disponham de meios que lhes permitam
assumir os destinos das suas crianças.
É tempo de pensar que a Educação
Inclusiva, para além de uma reforma
educacional que se passa em cada um
dos países (ricos ou pobres), é também
uma postura ética mundial. Uma postura
que recusa o fatalismo da exclusão escolar ou o acesso a uma Escola tão debilitada que seja incapaz de promover a
mobilidade social.
Já sabíamos que era difícil pensar uma
Escola inclusiva numa sociedade que
não o fosse. Sabemos agora, pelos dados
deste relatório, que o caminho da inclusão não deve respeitar fronteiras. Não
são apenas as crises que são mundiais; as
soluções também têm que o ser.
“Um conceito alargado de Educação
Inclusiva pode ser visto como um princípio geral orientador para fortalecer a
educação para um desenvolvimento sustentável, para a aprendizagem ao longo
da vida para todos e acesso igual de
todos os níveis da sociedade às oportunidades de aprendizagem” – das conclusões e recomendações da 48.ª Conferência Internacional de Educação
(Genebra, 2008).
16 mil milhões de dólares!?...
Uganda – © UNESCO/Marc Hofer
Bucareste – © UNESCO/Petrut Calinescu
Monróvia – © UNESCO/Glenna Gordon
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Objectivo
campanha
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PRIMAVERA 2010 I N.º188
educação
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para tod@s
Global Campaign for Education
022-025 CAMPANHA 3/15/10 7:21 PM Page 24
campanha
Actualmente, a ajuda global para a educação básica é de 4 mil milhões de dólares por ano, mas o
valor estimado de ajuda pública ao desenvolvimento para preencher as necessidades é de entre 11
mil milhões de dólares por ano (só para o ensino primário) e 16 mil milhões de dólares (para todos
os objectivos de EPT).
Existem muitos desafios para não se regredir nos esforços para se alcançar a EPT e, num contexto
de crise financeira, os governos estão sujeitos a pressões para reduzirem, em vez de aumentarem,
os apoios à Educação. No contexto actual, é necessário garantir que as políticas sociais não serão
afectadas e que o acesso à EPT e a qualidade do ensino não serão prejudicados, sobretudo nos países com economias mais frágeis e em desenvolvimento.
Nas regiões em desenvolvimento, a América Latina e as Caraíbas lideram o progresso alcançado no
âmbito da EPT, embora com resultados diversificados de país para país. A África Subsaariana é a
região mais problemática, embora a escolarização tenha quintuplicado desde 1990, com países como
Benim e Moçambique a registarem rápido progresso.
Em média, 65% das crianças da América Latina e 74% das das Caraíbas foram matriculadas no ensino
pré-escolar em 2007, tendo sido alcançada a paridade de género em praticamente todos os países
– no Brasil, as probabilidades de uma rapariga frequentar a escola são mais fortes do que no caso
dos rapazes. Por sua vez, o analfabetismo adulto afecta mais homens do que mulheres na América
Latina, invertendo-se a tendência nas Caraíbas.
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PRIMAVERA 2010 I N.º188
Global Campaign for Education
022-025 CAMPANHA 3/15/10 7:21 PM Page 25
A CGE responsabiliza o governo de Portugal, enquanto país
doador, pelo cumprimento da promessa de contribuir com os
esforços necessários para se alcançarem as metas de EPT a nível
mundial. Pretende, por outro lado, mobilizar a comunidade educativa, em particular, para uma cidadania mais activa e exigente.
Este ano, a Semana de Acção Global pela Educação – 19 a 25 de
Abril – é dedicada ao financiamento da Educação para Todos
(EPT), para que se mantenha como investimento prioritário nos
países mais e menos desenvolvidos.
A semana de acção é mais uma iniciativa da Global Campaign for
Education (Campanha Global pela Educação, CGE), uma plataforma
internacional constituída na convicção de que a educação tem um
papel fundamental no processo de desenvolvimento humano,
social, político, económico e cultural. Para a CGE, as pessoas que
têm acesso à educação desenvolvem competências e capacidades,
bem como autonomia para assegurarem os seus outros direitos.
Com representação em mais de 100 países, a CGE surge em
Portugal no contexto de uma coligação de longo prazo (19992016), envolvendo organizações não-governamentais, sindicatos da
área educativa, centros escolares e diversos movimentos sociais.
A CGE apela a todos os membros da comunidade educativa,
enquanto actores fundamentais de transformação do mundo, para
participarem na Semana de Acção e realizarem uma “Grande Aula”
no dia 20 de Abril, juntando-se a milhares de pessoas que em todo
o mundo apoiam a iniciativa.
Este ano, especificamente, apela, também, a todos os adeptos do
futebol para que apoiem a causa da EPT em www.join1goal.org/pt e
permitam que o Campeonato Mundial de Futebol, a realizar na
África do Sul, constitua um pontapé de saída para uma efectiva
educação para todas as crianças do continente e do mundo inteiro.
Embora a educação seja um direito inerente a todos os seres
humanos reconhecido na Declaração Universal dos Direitos do
Homem (1949) e noutros textos internacionais, como a
Convenção sobre os Direitos da Criança e o Pacto Internacional
sobre os Direitos Económicos Sociais e Culturais, existem ainda
vários desafios para que todos possam usufruir plenamente deste
direito.
Em 2000, no Fórum Mundial de Educação (Dakar, Senegal), governos de todo o mundo reiteraram as promessas para se atingir a
EPT declaradas dez anos antes, em Jomtien (Tailândia). Nesse
mesmo ano, na Cimeira do Milénio, 189 líderes políticos assumiram
oito objectivos de desenvolvimento até 2015, entre eles garantir o
ensino primário universal, gratuito e de qualidade para todos e
todas.
No entanto, à medida que se aproxima 2015, torna-se claro e
urgente que são precisos mais esforços para cumprir as promessas
feitas. De acordo com o último Relatório de Monitorização Global da
EPT, da UNESCO, cerca de 72 milhões de crianças continuam sem
ir à escola, milhões de jovens terminam os seus estudos sem adquirirem as competência básicas e um em cada seis adultos não consegue ler este texto, escrever ou efectuar cálculos.
Renovar o compromisso político e melhorar os mecanismos de
apoio financeiro para se atingirem os objectivos da EPT são, por
isso, uma necessidade premente, tanto mais que a tendência actual
indica que em 2015 ainda haverá 59 milhões de crianças sem ir à
escola e que, mais uma vez, as promessas não serão cumpridas
[mais informação em www.educacaoparatodos.org].
MARIANA HANCOCK
Campanha Global pela Educação
026-029 educ especial+ transform 3/15/10 7:21 PM Page 26
educação especial
Escola inclusiva
está em risco
Jorge Pimentel
Em dois anos, através da CIF, o Governo
retirou apoios da Educação Especial a
mais de 20.000 alunos. Os docentes dos
quadros de agrupamento apenas
respondem a metade das necessidades,
para além de faltarem psicólogos,
auxiliares e terapeutas, entre outros
profissionais. É o “quadro negro”
pintado pela Fenprof, que convocou
uma conferência de imprensa para
divulgar os resultados de um inquérito
que realizou à escala continental.
António Baldaia
I
26 27
PRIMAVERA 2010 I N.º188
Portugal foi um dos países subscritores da
Declaração de Salamanca (1994) sobre a
Escola Inclusiva e, em 2009, ratificou a
Convenção Internacional sobre os
Direitos das Pessoas com Deficiência,
comprometendo-se na sua promoção.
Uma adesão natural, uma vez que, desde
1991, a legislação portuguesa já apresentava um cunho muito positivo, definindo
as condições em que os alunos com necessidades educativas especiais tinham
acesso à Educação Especial, estabelecendo,
também, formas de organização, nomeadamente quanto à constituição de turmas,
existência de recursos ou eliminação de
barreiras de diversa natureza. Vigorava,
então, o Decreto-Lei n.º 319/91, de 23 de
Agosto, que, interpretado na aplicação por
diversos diplomas de hierarquia inferior,
se manteve em vigor até 2007.
Nesse ano, contra a opinião generalizada
da comunidade educativa e de entidades
como a Sociedade Portuguesa de Pedopsiquiatria, o Fórum de Estudos de
Educação Inclusiva ou a Associação Portuguesa de Deficientes, o Governo revogou o quadro legal em vigor, substituindo-o pelo Decreto-Lei nº 3/2008, de
7 de Janeiro, o qual, adoptando a
Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde (CIF)
como único instrumento para avaliação
do direito a apoio no âmbito da Educação Especial, reduziu significativamente a natureza do conceito de escola
inclusiva, uma vez que – à luz da nova
026-029 educ especial+ transform 3/15/10 7:21 PM Page 27
Entretanto, considera a Fenprof, foi o
próprio Ministério da Educação (ME)
quem revelou, sem o querer, o “atentado” cometido – só num ano (de
2007/08 para 2008/09), 15.986 alunos
foram afastados da Educação Especial
nas escolas públicas.
Um saldo negativo revelado por números do próprio ME, explica a Federação,
já que os dados revelados em Junho de
2008 pelo então responsável da Direcção
Geral da Inovação e do Desenvolvimento Curricular (DGIDC) apontavam
que o número de alunos de escolas públicas
apoiados pela Educação Especial, em
2007/08, era de 49.877. Ora, no ano
seguinte, um balanço inscrito no documento «Educação Inclusiva - da retórica
à prática», divulgado pela mesma
DGIDC/ME, o número de alunos de escolas
públicas apoiados pela Educação Especial,
em 2008/09, era de apenas 33.891.
Para a Fenprof, o ME considerava essa
quebra não apenas natural, como indispensável, pois, de acordo com os dados
disponibilizados, aquele número de alunos correspondia, em 2007/08 e
2008/09, a respectivamente 3,9% e
2,85% da população escolar – uma taxa
extremamente elevada, uma vez que os
critérios da CIF apontavam para que apenas 1,8% dessa população pudesse ser
abrangida pela Educação Especial (não
mais do que 23.000 alunos).
Cortesia NOPBC, EUA
interpretação legal, e consequente aplicação no terreno – exclui as crianças e os
jovens que não apresentem dificuldades
provenientes de situações clinicamente
comprovadas ou deficiências de carácter
permanente ou prolongado.
Ao tempo, a Federação Nacional dos
Professores (Fenprof) alertou para as consequências da adopção da CIF, que considerava irresponsável, e protagonizou
diversas iniciativas de denúncia, assumindo maior importância as que tiveram lugar junto da Assembleia da
República, onde, por força da então
maioria absoluta, a aplicação da CIF e o
essencial do decreto-lei se mantiveram.
Relativamente ao ano em curso, e à falta
de dados oficiais, a Fenprof decidiu antecipar o conhecimento desta realidade,
não só para preparar a avaliação da situação no âmbito do seu 10.º Congresso, a
realizar em Abril, como para elaborar
propostas que permitam intervir no
plano legal e alterar a situação, que
reputa de muito negativa.
Fê-lo através de um inquérito recolhido
em 424 agrupamentos de escolas (mais
de metade do total) distribuídos por
todas as regiões educativas do continente, por ser aí (agrupamentos) que se
encontra a esmagadora maioria dos alunos com necessidades educativas especiais, uma vez que oferecem a escolaridade obrigatória de nove anos.
026-029 educ especial+ transform 3/15/10 7:21 PM Page 28
educação especial
ESTUDO
CONFIRMA LÓGICA DE EXCLUSÃO
Em nota à Comunicação Social o Secretariado
Nacional da Fenprof considera que o estudo levado a
cabo “denuncia mais uma vez as consequências da
implementação de um modelo de organização da
Educação Especial que, apesar de se afirmar inclusivo,
institui, na prática, uma lógica de exclusão:
– exclui, porque restringe os apoios especializados
aos alunos com necessidades educativas especiais
de carácter permanente (e utiliza a CIF como instrumento de avaliação dessas necessidades);
– exclui, porque, ao confundir “necessidade educativa
especial” com “deficiência”, cria no sistema uma
lógica de segregação e um enorme retrocesso
educativo;
ALGUNS
DADOS DO ESTUDO DA
Alunos que perderam apoios.
O estudo
revela que 2.933 alunos foram afastados da
Educação Especial nos 424 agrupamentos, o que significa uma média de 6,9 por agrupamento. Por projecção, a Fenprof calcula que este ano o número seja próximo dos 5.300. Tendo em conta os cerca de 16.000
do ano lectivo anterior, significa que, com a CIF, cerca
de 21.000 alunos com NEE terão sido afastados.
Condições das escolas/unidades.
Em
29,12% dos casos, a dimensão da sala não é adequada;
32,67% não se adequam às necessidades de trabalho
específico; em 38,9%, o equipamento é insuficiente.
O estudo verifica, também, grande desequilíbrio na
rede de escolas/unidades: algumas são frequentadas
pelo triplo dos alunos para que foram concebidas; no
pólo oposto, há escolas de referência criadas, nomeadamente para alunos cegos e com baixa visão, com
docentes especializados, mas que não têm alunos ou
cuja frequência fica muito abaixo do calculado.
Colocação de docentes. A falta de docentes de
Educação Especial nos respectivos quadros, obriga as
I
28 29
PRIMAVERA 2010 I N.º188
– exclui, porque preconiza uma Educação Especial
em ambientes segregados (unidades de apoio
especializado e de ensino estruturado) ou
afastados da comunidade dos alunos (escolas de
referência para a educação de alunos cegos e com
baixa visão ou para a educação bilingue dos
alunos surdos)”.
A Fenprof considera que a actual equipa ministerial
“deverá colocar a reorganização da Educação Especial
como prioridade, sob pena de condenar ao fracasso e
ao abandono escolares milhares de crianças e jovens
apenas por apresentarem necessidades educativas
especiais”.
FENPROF
escolas a recorrerem a diversas formas de recrutamento: deslocação de docentes colocados noutros
grupos, mas que têm especialização ou experiência;
deslocação de docentes de outros agrupamentos,
mesmo sem especialização ou experiência; aproveitamento de situações de destacamento; contratação,
nomeadamente por oferta de escola.
Insuficiência do docentes. A maior parte dos
agrupamentos afirmam ser insuficiente o número de
docentes especializados de que dispõem face às suas
necessidades. No total, os agrupamentos abrangidos
afirmam necessitar de mais 312 docentes.
Carência de outros profissionais. É notória
a falta de técnicos especializados, com destaque para
psicólogos, terapeutas e auxiliares de acção educativa.
Foram contabilizados apenas agrupamentos que
quantificaram as suas necessidades – a maioria refere
simplesmente que necessita de “mais” ou “muito
mais”, mas sem especificar.
026-029 educ especial+ transform 3/15/10 7:22 PM Page 29
[trans]formações
Professor ou contratado?
Há mais de vinte anos que ouvira esta
pergunta pela boca de colegas que descreviam o seu início de carreira, na altura
ensinando com habilitação suficiente. A
Rita, ela própria professora contratada
com habilitação suficiente, no ano de
1985, terminou, entretanto, o curso ‘via
ensino’, ficando, portanto, profissionalizada. Como ingressara no ensino privado quando ainda era estudante, aí
ficou. Tanto mais que a casa dos pais era
ali perto. Ascendeu quase ao topo da carreira do ensino privado, com vencimento calculado no âmbito do respectivo contrato colectivo de trabalho.
Duas décadas volvidas, a vida tomou
novos rumos e a Rita decidiu tentar a
sorte no ensino público. Com 20 anos de
serviço, admitiu que seria relativamente
fácil alcançar colocação numa escola da
região. Nada... Apesar de bem classificada,
a verdade é que ficou no 2.º escalão do
concurso para contratados, não tendo
obtido colocação nesse ano. No ano lectivo seguinte, conseguiu ser colocada por
dois anos na mesma escola, e percebeu
que tinha de começar, de novo, toda a
progressão na carreira, já que os anos de
serviço que tinha do ensino privado,
onde era profissionalizada e do quadro,
apenas lhe contariam depois de ficar efectiva. O vencimento, esse, passou a ser
bem mais baixo – o de início de carreira,
para quem já tinha 20 anos de serviço.
Novo concurso, nova oportunidade –
agora muito bem classificada, pois
estava no 1.º escalão de contratados e
em 6.º lugar nacional. Concorreu a todo
o país, na esperança de obter um lugar
de efectiva e ver terminada a incomunicação entre estes dois sistemas do
Ensino Básico e Secundário, com o seu
tempo de serviço contabilizado para
progressão. Nada. À sua frente estavam
muitos colegas com muito menos
tempo de serviço que, estando já em
quadro de zona pedagógica, lhe passaram à frente. Mesmo assim, nem todos
estes ficaram efectivos.
O concurso foi feito por quatro anos e,
dessa vez, a Rita ficou bem mais longe de
casa. O cansaço e vários problemas com
os ascendentes levaram-na a ficar
doente. Teve de apresentar atestado. Foi
ao médico da especialidade, que lhe
disse que tinha de ficar em casa por uns
tempos. Atestado médico passado e
entregue na escola, passado um tempo,
foi informada de que aquele atestado
não servia – como era “contratada, e não
professora”, as regras tinham-se alterado
e, agora, deveria ir ao médico de família,
para que lhe fosse passado um atestado
da Segurança Social. Instituição que lhe
pagaria 65% do vencimento, já por si
bem aquém do que estava habituada a
receber.
Confusão para todos: para a docente e
para a médica de família, que não estava
habituada a passar estes atestados a professores e, por isso, lhe perguntou:
– Então a senhora não é professora?
– Sou! Mas sou professora contratada, e
agora a ADSE, para a qual desconto há
anos, não paga aos professores contratados quando estão de baixa.
Efectivamente, até no colégio privado,
onde leccionara por duas décadas, a Rita
descontava para a ADSE.
Confusão, também, para a própria funcionária da escola, que, ao telefonar à
Rita, a informar que o atestado não era
válido, explicou:
– É que nós aceitámos o atestado porque
pensámos que era professora, mas afinal
é contratada...
Afinal, se se é contratado, não se é professor? Se se é profissionalizado, com
vinte e vários anos de ensino, não se é
professor?
Então, mas agora os funcionários públicos não têm já quadro? Não pertencem a
uma lista? E os contratados, não são funcionários públicos (professores), mesmo
que por períodos de contrato anuais ou
plurianuais?
Valeria a pena pensar nisto. O dito do
século passado, numa altura em que
havia falta de professores e se recorria
muito a contratados com habilitação suficiente, está de novo aí, mesmo para profissionalizados, que, quando não são efectivos, não são considerados professores.
Mesmo que, além disso, sejam pós-graduados, mestres e quase doutores...
Ana Vieira
Instituto Politécnico de Leiria, Centro de
Investigação Identidade(s) e Diversidade(s)
030-031 do primário 3/15/10 7:23 PM Page 30
do primário
A segunda
morte
de
Anísio
José Pacheco
Professor aposentado
Cumprindo o Estatuto Editorial, a Página respeita
a grafia original do texto
I
30 31
PRIMAVERA 2010 I N.º188
O primeiro parágrafo do Manifesto dos
Pioneiros da Educação Nova reza assim:
“Na hierarquia dos problemas nacionais,
nenhum sobreleva em importância e
gravidade ao da educação. Nem mesmo
os de caráter econômico lhe podem disputar a primazia nos planos de reconstrução nacional”. Decorria o ano de
1932. Entre os signatários estava Anísio
Teixeira.
Em 2010, fui ao sertão baiano à procura
do que resta desse insigne brasileiro.
Acolheram-me na casa que foi sua.
Mostraram-me o leito em que dormia, o
berço que se presume ter sido o seu,
livros e objetos vulgares, que foram tocados pelas mãos de um gênio. À saída,
detive-me junto a uma das derradeiras
fotos de Anísio – está na melhor companhia a que um educador pode aspirar:
crianças.
Em Caetité, encontrei uma Secretaria de
Educação feita de boa gente e com muita
vontade de melhorar. Mas não resisti a
perguntar: o que há de Anísio nas escolas de Caetité? Qual o legado de Anísio,
que se faça presente nas práticas escolares? Respondeu-me um embaraçado
silêncio.
Apercebo-me de que os professores brasileiros conhecem Anísio somente de
nome. Quase nada terão lido do muito
que escreveu. Conhecem Freire de meia
dúzia de leituras mal digeridas. Ornamentam projetos de escola com citações
dos mestres, mas não os cultivam nas
salas de aula. Na formação, adquiriram
vagos contributos de ilustres pedagogos
estrangeiros, mas não conhecem a obra
de Eurípedes e nunca ouviram falar de
Lauro ou de Agostinho.
Foram muitas as horas de viagem pelas
estradas do interior da Bahia, vendo
garrafas e latas arremessadas por energúmenos, que dirigiam automóveis,
ultrapassando em curvas. No rádio do
carro, quase tudo era lixo – na terra de
Caymi, Caetano e Bethânia, nem uma
só vez escutei as suas vozes. Os anúncios mais escutados falavam de mensalidades reduzidas na compra de eletrodomésticos e na matrícula em escolas. O
nome mais escutado na rádio foi o de
um deputado – coronelismo versão
século XXI. A caminho de Caetité, passei por Brumado. Ali, na margem do São
Francisco, o povo sofre de... falta de
água. O que terá tudo isto a ver com a
Educação e com o Anísio Teixeira?...
Dirvan
Procurei na cidade uma lápide ou um
busto que evocasse Anísio. Não encontrei. A única estátua de Caetité é de
alguém que ainda está vivo e cujos
méritos desconheço.
Mistério e silêncio encobriram as circunstâncias da morte de Anísio. Consta
que foi encontrado em posição fetal,
entre as molas do fosso de um elevador,
sem vestígios de com elas ter colidido
Fundação Anísio Teixeira
030-031 do primário 3/15/10 7:23 PM Page 31
numa presumível queda... Talvez com
marcas de agressão. Talvez... Mas estávamos em 1971, e questionar esses
tenebrosos tempos ainda é tabu. Ao que
parece, sepultaram-no sem que as conclusões de qualquer inquérito fossem
dadas à luz. E a luz que Anísio lançou
sobre a Educação do Brasil também se
extinguiu com ele. Anísio morreu duas
vezes.
Cito o mestre: “O professor prelecionava, marcava a seguir a lição e tomava-a
no dia seguinte. Os livros eram feitos
adrede, em lições. Os programas determinavam o período para se vencerem
tais e tais lições. Exames que verificavam se os livros ficaram aprendidos,
condicionavam as promoções (...). Ora
essa escola (...) é inadequada para a
situação em que nos achamos” – Anísio
fazia a crítica da Escola do passado, em
1934...
O tempo aliou-se à incúria dos homens
para apagá-lo da memória dos educadores brasileiros. Memória não é feita de
inócuas homenagens, mas no fazer jus à
sua vida de incansável lutador por uma
educação que não aquela que, decorridos quase quarenta anos sobre a sua
morte, infelizmente, ainda temos.
032-033 do secundário 3/15/10 7:25 PM Page 32
do secundário
Pragmatismo,
educação e democracia
Jane Addams Memorial Collection (University of Illinois at Chicago, EUA)
o legado universal de
Jane Addams (1)
Domingos Fernandes
Universidade de Lisboa, Instituto de Educação
I
32 33
PRIMAVERA 2010 I N.º188
Em 2003, o Pestalozzianum Research
Institute for the History of Education e o
Institute of Education da Universidade de
Zurique organizaram uma conferência
em que se relacionou o pragmatismo, a
educação e a democracia. A ideia era
contribuir para que o pensamento sobre
educação fosse mais consistente com a
discussão internacional nos domínios
das humanidades e das ciências sociais.
Os trabalhos deram origem a um livro –
«Pragmatism and Education» – onde se
reuniram 11 artigos de nove autores
europeus (alemães, suíços e suecos) e de
dois norte-americanos. Os autores discutem concepções filosóficas pragmatistas
da chamada Escola de Chicago, onde predominaram, entre outros, John Dewey,
George Mead e James Tufts, dando voz a
perspectivas pouco debatidas sobre educação, ética, política e democracia.
Jane Addams, uma destacada activista
social, que veio a receber o prémio Nobel
da Paz em 1931, estava associada àquele
grupo, sendo considerada uma percursora das práticas pragmatistas. Efectivamente, em 1899, Addams fundou um
centro social comunitário, Hull House,
onde desenvolveu um intenso e invulgar
trabalho pedagógico, social e cultural
para crianças e jovens e, em geral, para
imigrantes pobres que trabalhavam, em
condições inqualificáveis, nos matadouros e nas fábricas dos arredores de
Chicago. O trabalho social, político e
pedagógico acompanhou Jane Addams
ao longo de toda a sua vida e está largamente documentado na literatura («The
Education of Jane Addams», Victoria
Bissell Brown, University of Pennsylvania Press 2003). Porém, foi o seu trabalho autobiográfico, «Twenty Years At
Hull House», publicado em 1910, que
acabou por ter um significativo impacto
académico, social e político (Penguin
Books, 1961).
032-033 do secundário 3/15/10 7:25 PM Page 33
Swarthmore College Peace Collection (Filadélfia, EUA)
A reflexão e a discussão teórica sobre o
pragmatismo na educação, a teorização
acerca do papel dos centros comunitários no desenvolvimento da educação
cívica e democrática e o papel e o poder
das iniciativas da sociedade civil na educação e na formação dos cidadãos, são
exemplos de efeitos das narrativas autobiográficas de Jane Addams. Além disso,
o seu trabalho contribuiu para que se
compreendesse como o pragmatismo da
Escola de Chicago esteve estreitamente
associado aos esforços que se fizeram
para responder ao caos generalizado,
decorrente da imigração massiva e da
rápida industrialização, que se vivia
naquela cidade nos princípios do século
XX – entre 1840-1930, a população
urbana de Chicago cresceu 800 vezes, de
4.470 para 3.376.438 habitantes.
Addams, ainda que intuitivamente,
parece ter seguido um dos princípios
básicos do pragmatismo: aprender é, no
essencial, resolver problemas que, uma
vez resolvidos, dão origem a novos problemas para resolver. Desta forma,
perante o problema real de milhares de
crianças, jovens e adultos pobres e iletrados, sem qualquer enquadramento cultural e social, a Hull House procurou
garantir que todos se tornassem participantes activos da vida social, política,
cultural e económica da sociedade. Os
cidadãos e as cidadãs, dizia Addams, não
podem ser meras criaturas das máquinas
e, por isso, têm que aprender, têm que
estudar, têm que ser escolarizados. A
indústria tem que ser humanizada através de uma boa educação geral para
todas as crianças e jovens, e o equilíbrio
entre a democracia e a indústria não se
pode fazer com base na comercialização
da escola...
Addams fundou a Hull House acreditando, tal como Dewey, que a democracia não se limitava a um conjunto de
procedimentos formais ou a uma via
para a sociedade sem classes. Era, antes
do mais, uma forma de viver em conjunto, uma experiência de interacção
social e de cooperação entre as pessoas.
Era, assim, mais do que uma forma de
governar. A casa da democracia é a
comunidade. É a vizinhança. A democracia tinha uma dimensão e uma função
social. E, por isso mesmo, Addams criticava o sistema público de educação, porque apenas se preocupava com a dimensão política da democracia, ignorando e
desvalorizando as experiências, as tradições e os valores dos imigrantes.
Para Addams, as experiências do dia-a-dia
das pessoas estavam na base da construção
da democracia. Consequentemente, a
democracia exige que a escola valorize
socialmente as experiências das crianças
e dos jovens que a frequentam. Democracia e educação são, ou deveriam ser,
desígnios indissociáveis das sociedades.
Já assim o entendia Jane Addams, nos
finais do século XIX...
034-035 formação e desempenho 3/15/10 7:25 PM Page 34
formação e desempenho
A propósito da
prova de ingresso
na carreira docente
Carlos Cardoso
Escola Superior de Educação de Lisboa,
Centro Interdisciplinar de Estudos Educacionais
I
34 35
PRIMAVERA 2010 I N.º188
Desconheço avanços recentes – se os
houve – nas negociações entre Ministério da Educação e sindicatos sobre a
prova de ingresso na carreira docente.
Sobre o assunto, mantenho como referência o artigo 22.º do Estatuto da
Carreira Docente e os decretos regulamentares n.º 3/2008, de 21 de Janeiro, e
nº 27/2009, de 6 de Outubro.
Este último dispensa da realização da
prova os candidatos que cumulativamente: (a) contem pelo menos quatro anos
completos de exercícios docentes, (b) que
um desses anos tenha sido prestado nos
quatro anos escolares anteriores ao da realização da primeira prova e (c) tenham
obtido avaliação de desempenho igual ou
superior a ‘Bom’. Para além destes, são
dispensados da realização da prova os
candidatos que tenham obtido avaliação
de desempenho igual ou superior a
‘Muito Bom’ em data anterior à realização da primeira prova. Portanto, todos
os novos diplomados candidatos à
docência terão de se submeter à prova de
ingresso.
A relevância desta prova parece ser incontestável. No entanto, pode tornar-se num
episódio isolado e pouco significativo se
não tiver impacto na formação inicial e
contínua dos professores e educadores
(FIPE), no percurso futuro do jovem
docente e na afirmação profissional pessoal e colectiva.
A prova surge, em primeiro lugar, como
garantia para a entidade empregadora de
quem se espera que escolha os candidatos com as disposições e competências
para desempenhos de qualidade numa
área que diz respeito a toda a colectividade. Espera-se, portanto, que seja adequada e útil e que constitua, de facto,
mais um meio de reconhecimento da
qualidade do candidato, para além da
sua certificação académica. Deverá desafiar melhorias na qualidade da formação
inicial, na iniciação e no percurso profissional futuro do jovem professor. Deverá
ter significado no acesso formal dos
novos professores ao contexto real da
acção, abrindo novas possibilidades ao
seu desenvolvimento profissional. Como
outras formas de iniciação profissional,
pode constituir parte de um rito de passagem com as características e o peso que
tais ritos têm nas representações individual e colectiva, com reflexo na sua aceitação pelos pares e pela comunidade e,
034-035 formação e desempenho 3/15/10 7:25 PM Page 35
por isso, mais um meio de afirmação do
seu estatuto e da profissão docente.
Nas actuais circunstâncias, parece fazer
sentido a necessidade de uma prova de
ingresso. Para quem tem estado envolvido na FIPE, é uma evidência que a qualidade dessa formação não tem, em
todas as instituições, os níveis desejados.
A consolidação de um sistema credível
de acreditação virá certamente contribuir para a realização de tais níveis de
qualidade em todas elas. Também as
provas de ingresso – se adequadamente
elaboradas – poderão constituir referências para que as instituições de FIPE
melhorem a qualidade dos currículos e
das práticas de formação. Sendo essas
provas o passaporte no acesso ao mercado de trabalho dos seus diplomados,
as escolas de formação ajustarão, inevitavelmente, alguns dos seus critérios de formação pelas características de tais provas.
A prova de ingresso
poderá constituir
mais um pretexto para
recon-
siderar procedimentos no acesso aos cursos de FIPE e estabelecer pontes mais
autênticas entre o espaço de formação e o
espaço do desempenho profissional.
Refiro-me, em concreto, à necessidade do
estabelecimento de critérios específicos
para a candidatura aos cursos de FIPE e
da criação de mecanismo de indução profissional dos estudantes-professores e/ou
dos novos diplomados. A ausência de um
processo específico de selecção na candidatura aos cursos de FIPE constitui um
factor que afecta o processo e os resultados da formação inicial de docentes.
Apesar das significativas mudanças
ocorridas nas últimas décadas na FIPE, a
profissão docente é ainda, em muitos
casos, uma segunda escolha, contribuindo para manter a ideia, ainda prevalecente, de que pode ser professor
quem quer. Estou com Nóvoa quando
afirma, numa recente entrevista a
esta revista, que “é urgente introduzir um recrutamento mais
individualizado que permita perceber as inclinações e as disposições de cada um
para o ensino.
É preciso
criar as
con-
dições para que os melhores alunos do
ensino secundário escolham a profissão
docente”.
Embora sendo uma condição desejável
para a melhoria da formação, ela tem
vindo a ser adiada. Na situação actual
parece mesmo haver novas resistências.
Acentuou-se a competição entre instituições formadoras, na procura de clientes. A selecção com base na disposição e
na qualidade dos candidatos no acesso
aos cursos colide com lógicas (politicas,
administrativas, financeiras, de sobrevivência institucional e pessoal, etc.)
estranhas a critérios de qualidade formativa. Na actual estrutura dos cursos de
FIPE, em 2 ciclos, a entrada no 2.º ciclo,
poderia constituir o momento para realizar tal selecção, salvaguardando, no
entanto, alternativas profissionais e/ou
de continuidade formativa para os candidatos não admitidos. O facto de o 1.º
ciclo – licenciatura em Educação Básica –
não assegurar qualquer formação profissionalizante específica deixa aos candidatos não admitidos poucas ou nenhumas alternativas, senão ingressarem em
formações de 2.º ciclo.
A prova de ingresso é, de facto, uma
nova condição–chave, exigida pelo
empregador, para que os novos entrem
na arena profissional. Esta exigência
deve implicar compromissos por parte
da entidade empregadora, de modo a
que o novo docente seja acolhido e
acompanhado numa estrutura formativa com apoio e supervisão
que assegure um processo de
indução na nova realidade profissional.
036-039 escritas soltas 3/15/10 7:26 PM Page 36
escritas soltas
Um país,
três sistemas
Uma outra mentalidade política urge, subordinada a três aspectos:
necessidade de um novo olhar para a organização social e para as
políticas de família; assunção do princípio de que a prioridade
primeira da Escola é estar ao serviço do Homem e não ao serviço do
Poder; a reinvenção do sistema tem de varrer a centralização que
mata a identidade de cada estabelecimento de ensino.
André Escórcio
Escola Básica e Secundária Gonçalves Zarco
(Madeira)
I
36 37
PRIMAVERA 2010 I N.º188
Desde a regionalização do sector educativo na Região Autónoma da Madeira,
tem sido evidente uma preocupação
política baseada na adaptação da legislação produzida pela Assembleia da
República e pelo Governo da República.
Neste pressuposto, nunca foi cumprido o
estipulado na alínea o) do Artigo 40.º do
Estatuto Político-Administrativo da
Região, que considera matéria de interesse específico a “educação pré-escolar,
ensino básico, secundário, superior e
especial”. A questão que se tem colocado
tem sido a interpretação do Artigo 164.º,
alínea i), da Constituição da República,
que sustenta ser “reserva de competência
da Assembleia da República” as designadas “bases do sistema educativo”. Partiuse, então, do princípio da necessidade de
acatamento dos princípios básicos essenciais definidores das grandes linhas
orientadoras nacionais.
Por outro lado, na esfera dos poderes da
região autónoma, o Artigo 227, n.º 1, alíneas a) e c), da Constituição confere
competência legislativa, a definir no respectivo Estatuto: a) legislar no âmbito
regional em matérias enunciadas no respectivo estatuto político-administrativo e que
não estejam reservadas aos órgãos de soberania; c) desenvolver para o âmbito regional
os princípios ou as bases gerais dos regimes
jurídicos contidos em lei que a eles se circunscrevam. Daqui decorre a possibilidade de a Assembleia Legislativa da
Madeira poder desenvolver a Lei de Bases
do Sistema Educativo, embora sem subverter os princípios básicos nucleares.
036-039 escritas soltas 3/15/10 7:26 PM Page 37
educativos
Jorge Pimentel
Sustento, assim, que não só é possível
como desejável que as regiões autónomas disponham de um Regime Jurídico
do Sistema Educativo Regional que mantenha o quadro de referência constitucional, mas que desenvolva, sem subversão dos respectivos princípios orientadores da Lei de Bases, os aspectos organizacionais do sistema educativo, curriculares e programáticos e demais legislação,
aliás, de acordo com o n.º 4 do Artigo 1.º
da própria Lei: “O sistema educativo tem
por âmbito geográfico a totalidade do
território português – Continente e
Regiões Autónomas – mas deve ter uma
expressão suficientemente flexível e
diversificada (…)”, como se extrai do n.º
4 do Artigo 50.º sobre o desenvolvimento curricular.
Neste pressuposto, defendo o princípio
de um país, três sistemas. Isso obrigará,
certamente, ao desenvolvimento da inovação e da criatividade no quadro da
reinvenção do sistema. Reinvenção que
acabe com as rotinas burocráticas, com a
irresponsabilidade política, a indisciplina e a Escola como mero lugar de convívio. É evidente que apenas a Lei não
resolverá as questões de fundo. Uma
outra mentalidade política urge, subordinada a três aspectos: primeiro, necessidade de um novo olhar para a organização social e para as políticas de família;
segundo, assunção do princípio de que a
prioridade primeira da Escola é estar ao
serviço do Homem e não ao serviço do
Poder; terceiro, a tal reinvenção do sistema tem de varrer a centralização que
mata a sadia construção da identidade
de cada estabelecimento de ensino.
Não perceber o porquê da desmotivação
dos docentes; não compreender que
estamos a enfrentar um período marcado pela pobreza e pelo desemprego,
que implica que o sistema, obrigatória e
universalmente, seja gratuito; admitir
que os problemas da educação se resolvem com a aplicação de pensos-rápidos
perante uma infecção profunda e provo-
cadora de dor política, económica, cultural e social – é estar, com toda a certeza,
a comprometer o futuro. E neste quadro,
pela dimensão das regiões, convicto
estou que podem constituir-se em laboratórios de excelência educativa.
Basta um olhar pela história dos países do
topo do rendimento escolar (PISA); compreender o que significam escolas de
pequena dimensão; o efeito multiplicador
de cada euro investido na educação; a
autonomia pedagógica e a importância da
diferenciação; a assunção de um pensamento estratégico autónomo nos domínios organizacional, curricular e programático; como não se avalia a actividade
docente; a separação do 2.º do 3.º ciclo do
Básico; um outro olhar para a formação
inicial, complementar e especializada; a
formação profissional dos assistentes operacionais; compreender, entre tantas
áreas, como se estrutura o ensino vocacional – bastará isto para entender a importância da reinvenção e descentralização
no desenvolvimento do país.
036-039 escritas soltas 3/15/10 7:26 PM Page 38
escritas soltas
Imagem e desafios
da profissão docente
A missão pedagógica dos
professores reveste-se
de grande complexidade
humana, dada a
responsabilidade
antropológica que lhe
é inerente. Trata-se,
afinal, de trabalhar
com pessoas e numa
perspectiva de promover
a sua personalidade
e humanidade.
Evangelina Bonifácio
Direcção Regional de Educação do Norte,
EAE Nordeste, Terra Fria e Arribas
I
38 39
PRIMAVERA 2010 I N.º188
Tal como sublinha Isabel Baptista, “a
relação entre educador e educando, que
sustenta a experiência educativa, constitui uma modalidade de encontro
humano que, de forma muito particular,
contribui para a realização do projecto
antropológico”. Deste modo, o professor
é colocado face a novos reptos que, para
além dos saberes inerentes à profissão,
exigem um conjunto de competências
sociais e humanas sem as quais se torna
inexequível o exercício de uma nova
profissionalidade configurada pelos
desafios do século XXI. Na mesma linha
de raciocínio, os professores são convidados a desenvolver e a liderar “um processo de transformação social” (Roberto
Carneiro).
No entanto, ainda hoje, como refere
Andy Hargreaves, “a imagem popular do
trabalho do professor retrata-o como
uma actividade desempenhada com
crianças no interior de salas de aula –
fazer perguntas, emitir orientações, dar
conselhos, manter a ordem, apresentar
materiais, aliviar o trabalho das crianças
ou corrigir os seus erros. Estas actividades e a preparação que é necessária para
as organizar constituem, para a maior
parte das pessoas, a própria definição do
ensino”. Mas a verdade é que poucos
não acreditam que ser professor e ensinar é uma tarefa cada vez mais complexa
e mais exigente. Ora, tendo em referência a nova realidade da profissão
docente, julgamos que importa reflectir
a prática docente no quadro de uma
sociedade educativa, desejavelmente solidária e justa, contrariando a posição de
alguns investigadores que recorrentemente admitem “a morte do professor”
(Jean-François Lyotard, António Teodoro).
No seguimento do que já foi afirmado, a
emergência do tempo contemporâneo
reclama um professor pedagogo, capaz de
compreender, de intervir e de contribuir
para o aperfeiçoamento humano.
Nesse sentido, será decisivo educar para
a compreensão, (des)construindo o significado da informação, encontrando a
melhor forma de a utilizar como benefício, acautelando um sentido de responsabilidade individual e colectivo na educação e no sucesso dos alunos. Por isso,
espera-se, sobretudo, que o professor privilegie o pensamento dos alunos, os
ajude a pensar criticamente, contribuindo para a construção hermenêutica
do seu conhecimento no sentido de lhes
facultar a transição da informação para o
conhecimento e do conhecimento para
a sabedoria. Entendemos, por isso, que o
seu papel está longe de se esgotar.
Parafraseando Roberto Carneiro, “os professores são cada vez mais necessários”,
porque a matriz humana na Escola prevalece sobre o mito tecnológico.
Nesta perspectiva, num estudo recente,
procurámos evidenciar os factores que
desafiam a profissionalidade docente no
quadro da nossa contemporaneidade e
036-039 escritas soltas 3/15/10 7:26 PM Page 39
Cortesia Montclair State University, New Jersey / USA
que influenciam a imagem social da profissão [«Professores e Escolas: a imagem
social dos professores do ensino básico
no Portugal contemporâneo, 19732005»].
Os resultados permitem-nos concluir
que a percepção geral dos cidadãos face à
profissão professor é claramente traduzida por uma imagem social valorizada,
no dizer da maioria de inquiridos,
quando consideram que “ser professor”
é exercer uma profissão de prestígio
social (64,3%).
Por outro lado, quando perguntamos “o
professor é para si”, sugerindo oito possibilidades, averiguámos que a imagem
social percepcionada é, ainda, associada
ao papel tradicional de “um transmissor
de conhecimentos” (96,7%) e que na
“primeira qualidade para ser professor”
evidenciam a competência técnica/científica (39,3%), contrariando os desafios
do trabalho do professor no mundo con-
temporâneo, que sublinham o seu papel
como formadores, como mediadores,
como construtores do conhecimento e
“como profissionais da relação e agentes
privilegiados da relação humana” (Isabel
Baptista).
Constatamos, ainda, que, apesar de frequentemente ser evidenciada uma imagem negativa (difundida por alguns), em
contraponto, emerge neste estudo uma
imagem pública positiva (quando a
sociedade é convocada a opinar). Parecenos que entre estas duas realidades existe
o questionamento e o conflito permanente das sucessivas tutelas e de alguns
fazedores de opinião pública, cujo acesso
facilitado à Comunicação Social permite
a divulgação das suas ideias, construindo
e desconstruindo imagens com efeito
público imediato.
Assim, confirmando o que foi dito,
revemo-nos nas palavras de Gimeno
Sacristán, quando afirma que “podría
decirse que su función es muy importante, pero las figuras que lo desempeñan, no tanto“.
Pretendendo representar os desafios do
trabalho do professor do Ensino Básico no
século XXI, recorremos a três metáforas:
– professor-arquitecto, no sentido de que
desenhará os alicerces da educação
básica de cada aluno ao contribuir para
a construção hermenêutica do seu
conhecimento;
– professor-influenciador, porque lhe
caberá motivar, com o seu exemplo, a
personalidade humana, o reforço dos
direitos humanos, favorecendo a tolerância e compreensão entre todos;
– professor-construtor, porque lhe caberá
juntar as peças do puzzle, respeitar a
singularidade de cada um e edificar o
futuro, juntando a memória do ontem
e a oportunidade do amanhã.
040-041 em português 3/15/10 7:27 PM Page 40
em português
Precisamos de um
ensino missionário?
A Escola de Atenas (Raffaello Sanzio, 1483-1520)
Leonel Cosme
Escritor e jornalista
I
40 41
PRIMAVERA 2010 I N.º188
É sábio aquele professor de meninos, de jovens
ou de adultos que, a coberto ou à margem das
prescrições curriculares, não se contenta com a
reprodução dos costumes e induz os alunos a
pensar que não é suficiente interpretar o mundo;
é preciso transformá-lo.
040-041 em português 3/15/10 7:27 PM Page 41
Quando ouvimos as falas (ou o falazar,
quando inócuo e desconcertado) de muitas figuras públicas, que se elevam ou são
elevadas em todos os quadrantes da
nossa vida colectiva – fale-se de governação, política partidária, economia, justiça, educação, indústria, comércio ou
agricultura – e nos interrogamos se estarão pensando no país real, somos levados a imaginar que os portugueses se
conformam com a ideia de que uma
nação pode sobreviver sem uma verdadeira elite, aglutinadora de princípios e
forças vitais, e – não menos grave – por
ausência de horizontes mobilizadores, se
remetem à resignação de salvar o que
existe, “já que o futuro a Deus pertence”...
Vem a propósito uma passagem da entrevista do professor António Nóvoa inserta
no número anterior da PÁGINA: “… o
horizonte não existe para nos trazer de
volta à origem, mas para nos permitir
medir toda a distância que temos a percorrer” e uma máxima do grande poeta
espanhol António Machado: “O caminho faz-se caminhando”.
Conjugando estas reflexões com outras
de Spencer, respigadas de um livro
escrito há cem anos, «Primeiros
Princípios», que marcou a fase voluntarista de um filósofo que privilegiou a
observação do comportamento humano,
no terreno, à tranquila meditação em
claustro, apraz-nos avocar dele especiais
momentos de exortação ou de apelo a
como que um espírito de missão que,
reconhecendo a circunstancialidade de
todas as vivências, do passado e do presente, modela os projectos do futuro.
Mas não é fácil o caminho do missionário…
No fim da vida, o voluntarista Spencer,
que primeiro foi louvado, depois contestado, e por fim esquecido, quando morreu, em 1803, perguntava-se se não teria
sido inútil todo o seu trabalho e se não
teria errado em sacrificar ao estudo dos
homens os prazeres da vida...
Na sua fase positivista, ainda reflectia:
”Não é sem fundamento que o homem
tem simpatias por alguns princípios e
repugnância por outros. Com toda a sua
capacidade e aspirações e crenças, ele
não é acidente, mas um produto da
época. Ao mesmo tempo que é um filho
do passado é um pai do futuro; e os seus
pensamentos formam uma prole que ele
não pode permitir que pereça. (…) O
sábio não considera adventícia a fé que o
anima. A mais alta verdade que vê, ele
enunciá-la-á sem temor, sabendo que,
venha o que vier, está representado com
honestidade o seu papel no Mundo;
sabendo que, se pode conseguir o que
mira, bem; e se não pode, igualmente
bem – embora não tão bem.”
Quem navega pelas filosofias dos grandes pensadores de todos os tempos há-de
concluir, muitas vezes, como Salomão,
que nada há de novo sob a roda do Sol.
Ou, parafraseando Hamlet, que há mais
coisas no céu e na terra do que sonha a
nossa vã filosofia… Em consonância
lembremos ainda António Nóvoa, dirigindo-se aos colegas professores: “A história é o que somos mais o que podemos
fazer. (…) Ao longo deste tempo, os professores estiveram, de algum modo, relegados para um plano secundário. As realidades do século XXI, as grandes problemáticas do conhecimento, da aprendizagem, da criação e da diversidade, trazem
os professores, de novo, para o centro do
espaço educativo”.
Face à vastidão e complexidade do
espaço educativo, entendemos naquelas
palavras como que um convite ou um
desafio à assunção de responsabilidades
específicas da profissão, compreendendo
que nela está implícito um sentido de
missão que só é reconhecível em actividades virtuosamente potenciadas para
distinguir o Certo e o Errado, a Bela e o
Monstro.
A pensar isto, já escrevíamos neste
mesmo espaço, em Junho de 2004, num
artigo intitulado Meditações sobre a Escola
em Abril: “Quem elucidará o ignorante e
o indiferente sobre a diferença abissal
que existe entre Democracia e
Demagogia, Popularidade e Populismo,
Liberdade e Licenciosidade, Cultura e
Alienação, Universidade e Confraria,
Informação e Manipulação, Emulação e
Competição, Progresso e Desenvolvimento, Urbanização e Predação,
Mercado e Monopólio, Consumo e
Desperdício, Trabalho e Exploração,
Lucro e Especulação, Socialismo e
Liberalismo, Universalidade e Globalização, Capitalismo e Imperialismo?
(…) Se não for a Escola a assumir a Ética
com o mesmo sentido de ‘missão’ (antes
de tudo individualmente assumido) que
induz o médico a socorrer quem desfalece à sua frente, um bombeiro a apagar
um incêndio ou um samaritano a orientar um cego na rua – que outro papel
mais crucial se há-de esperar dela?
Escatologicamente falando: se a Escola
só servir para reproduzir o statu quo ou o
déjà-vu, e nada explicar, nada questionar,
nada estimular, porque é amorfa, acrítica
ou conformada e se satisfaz fabricando
produtores e consumidores em série,
consignados ao Mercado, onde tudo se
compra e tudo se vende, (..) essa Escola
para pouco mais servirá do que continuar a Confusão – como quem engorda
crianças para alimentar o Monstro.”
Poderá objectar-se, em contraponto, que
a educação é tarefa dos pais, da família,
dos governantes. Mas se opusermos uma
pergunta crucial – sejam como forem,
valham o que valerem? –, a resposta seria
a de Spencer: a educação dos homens
deverá ser dada por uma “prole que não
pereça”, a dos sábios.
É sábio aquele professor de meninos, de
jovens ou de adultos que, a coberto ou à
margem das prescrições curriculares
(pense-se
nas
oportunidades
do
Português e da História), não se contenta
com a reprodução dos costumes e induz
os alunos a pensar, como dizia outro filósofo mal-amado, que não é suficiente
interpretar o mundo; é preciso transformá-lo.
Seria esta uma missão clandestina? Pois
que o seja, em nome do Futuro.
042-047 Helena Araújo 3/15/10 7:29 PM Page 42
entrevista
HELENA ARAÚJO
A I República
e a retórica
ambígua
sobre a
emancipação
da mulher
portuguesa
I
42 43
PRIMAVERA 2010 I N.º188
Helena Araújo é Professora na Faculdade de
Psicologia e de Ciências da Educação da Univer sidade do Porto, onde é docente de Sociologia da
Educação, de Estudos de Género e de Cidadanias e
Diversidade. É coordenadora de uma área de investigação – Cidadania, diversidade e conhecimento
histórico, do Centro de Investigação e Intervenção
Educativas (CIIE/FCT).
Um dos seus trabalhos de investigação incidiu sobre
os percursos profissionais de professoras primárias
no período 1870-1933, acentuando sobretudo dois
períodos particulares – o do final da Monarquia e o
da República. Várias publicações suas estão ligadas a
esta linha de pesquisa. As professoras republicanas
têm uma visibilidade particular em Pioneiras na
Educação – as Professoras Primárias na Viragem do
Século (2000), não só através da sua produção na
imprensa pedagógica, mas também através de histórias de vida.
Outras temas de pesquisa têm incidido sobre percursos biográficos de jovens que abandonaram a
escola; a representação de mulheres docentes e a
partilha do processo de decisão no ensino superior;
história da educação de raparigas no ensino secundário, séculos XVIII-XX.
Nesta entrevista, Helena Araújo abre luz, entre
outros temas, sobre a forma como a I República
encarou o papel sociopolítico das mulheres, as principais lutas travadas pelo movimento feminista e a
perspectiva ambígua sob a qual o regime republicano
encarou a emancipação educativa e o papel das professoras nesse processo.
042-047 Helena Araújo 3/15/10 7:29 PM Page 43
042-047 Helena Araújo 3/15/10 7:29 PM Page 44
entrevista
Que mudanças preconizava o regime republicano relativamente ao
papel social e político das mulheres? Pelo que me pude aperceber
das leituras que fiz sobre este tema, existia uma certa divisão entre
as diferentes facções republicanas. Confirma esta ideia?
Sim, obviamente que existiam diferenças. Mas julgo que acima de
tudo prevalecia o ideal de igualdade, de liberdade e de fraternidade, aplicado tanto a homens como a mulheres. Penso que a
República demonstrou muita esperança nessa abertura, que se
estendia também às questões educativas e ao direito das mulheres
à educação. Esse direito é uma ideia bem presente nos discursos
republicanos. Estava, aliás, presente na legislação. A forma como foi
concretizado é que deixa reticências.
Mais concretamente, que mudanças ocorrem quanto ao papel
social e político da mulher?
Embora este direito fosse caro ao regime republicano, havia por
parte de certos sectores desconfiança em relação à formação das
mulheres pela sua ligação à Igreja Católica. Ao mesmo tempo, há
também outros sectores que consideram as mulheres como as
grandes educadoras dos filhos republicanos, numa perspectiva de
regeneração social. Essa ideia, aliás, já não era nova - vinha do
tempo da monarquia – e deriva de um conjunto de influências que
se centram no pensamento sobre o papel da mulher. Estou a pensar no positivismo, nomeadamente nos trabalhos de Comte, mas
também nas ideias do Darwin, ambas influenciam o pensamento
republicano.
Tende-se a pensar no movimento republicano como um fenómeno homogéneo, quando ele não o é. Há diferentes tendências,
quer no que se refere à acção quer no que se refere ao debate em
torno do papel da mulher. Temos personalidades como Adolfo
Lima, ligado ao anarco-sindicalismo que enquanto educador e
membro deste movimento tem posições de grande abertura;
assim como Jaime de Almeida, um médico do Porto que escreve
uma obra sobre as mulheres e o feminismo em contra corrente ao
que outros sectores afirmavam – nomeadamente que as mulheres
estavam dependentes dos seus genitais, que eram seres basicamente expressivos e emocionais, e que por isso nunca seriam
capazes de qualquer forma de racionalidade. A irracionalidade,
portanto, era uma característica inerente à mulher, por oposição à
racionalidade, à luz, que emanava do homem.
Num dos capítulos da sua tese de doutoramento, dedicado precisamente a este tema, cita muitos dirigentes republicanos que
defendiam que o lugar da mulher na esfera doméstica era a
melhor forma de estas contribuírem para a hegemonia do Estado
sobre a Igreja Católica...
Exactamente. Há uma grande retórica em torno deste tema, com
diversos autores a defenderem a igualdade entre ambos os sexos,
mas uma igualdade onde as mulheres desempenham o seu papel
de educadoras em casa, como boas donas de casa e “as melhores
companheiras do homem”.
Num dos seus discursos no Parlamento, aliás, Afonso Costa refere
que às mulheres competiria a grande tarefa de educar as mentes
I
44 45
PRIMAVERA 2010 I N.º188
dos jovens e das crianças segundo os melhores princípios da
República, e que delas tanto esperava.
Ou seja, um conceito de igualdade um pouco ambíguo, inclusivamente por parte de sectores que podiam ser considerados mais
vanguardistas, como os anarquistas e os socialistas...
Sim, para mim foi uma surpresa descobrir que alguém como Emílio
Costa, um anarco-sindicalista que marcou muito o campo social e
que escreveu sobre o papel das mulheres, e o prórpio jornal “A
Batalha”, questionar-se sobre o que iriam afinal as mulheres fazer
com a liberdade conquistada, reflectindo, no fundo, um certo
receio generalizado. E estamos a falar de um contexto urbano, não
de um contexto rural... Ou seja, muitas destas personalidades ligadas a esses campos políticos demonstram maior abertura do
ponto de vista da luta social e da defesa dos grupos desprivilegiados, não tanto das mulheres. Alguns chegam mesmo a ter posições
que se podem considerar conservadoras.
A questão da igualdade de género deu origem, de facto, a fortes
controvérsias, marcadas pela conflitualidade e pela ambiguidade. E
embora a República tenha dado por vezes a ideia de que as mulheres teriam um papel forte a desempenhar, fica a ideia de uma certa
visão utilitária: as mulheres como as grandes educadoras dos filhos
da República.
Dir-se-ia uma perspectiva quase instrumental sobre as mulheres...
Sim, obviamente que nem todos os republicanos pensariam nesse
sentido. Há um sector que se revê na importância da educação das
mulheres e na sua assumpção como seres autónomos. Mas é também compreensível que existisse esta tremenda conflitualidade,
num país maioritariamente católico, onde os governos republicanos
se tentavam impor a uma Igreja que, na generalidade, era extremamente conservadora.
Alguns autores afirmam que esta luta foi exagerada e que afrontar
a Igreja de forma tão agressiva e frontal foi um dos aspectos negativos da República. Mas é preciso perceber que estávamos perante
uma estrutura extremamente oligárquica e intimamente ligada ao
poder monárquico.
Que papel teve o movimento femininista neste processo? As lutas
das feministas orientaram-se sobretudo em que domínios?
Eu penso que uma das principais lutas do movimento feminista
incidiu no direito à educação e à instrução. Depois de 1913,
quando as mulheres perdem a possibilidade de ter o direito de
voto – essa possibilidade esteve bastante perto de se concretizar
através da luta/negociação, por feministas – relembremos duas
feministas eminentes ligadas ao partido republicano como Ana
Castro Osório e Adelaide Cadete – julgo que esse continuou a ser
central nas suas lutas.
Depois, há também a questão da luta pela democratização do
espaço doméstico. Neste sentido, há um importante conjunto de
medidas aprovadas pelo regime republicano, do qual se poderá destacar o direito das mulheres a deixarem de ter a correspondência
vigiada, o de passarem a poder exercer uma actividade comercial
042-047 Helena Araújo 3/15/10 7:29 PM Page 45
sem autorização do marido, o de passarem a poder sair sem a sua
prévia autorização, entre outros.
Outra questão de extrema importância diz respeito ao direito de
propriedade, que o regime republicano não altera. Diz Afonso
Costa em 1913: “Nós vemos a mulher como a melhor companhia
do homem.Vemos a mulher vivendo no lar, assumindo funções mais
delicadas, tomando cada vez melhor a posição na educação dos
filhos. Não lhe é dado apenas o governo do lar, a administração
superior da família. Ela é a guarda atenta da unidade familiar, a principal educadora dos que amanhã hão-de dirigir o destino do seu
país, a mulher é a defensora do património do marido, administrando-o e multiplicando-o.” Ou seja, embora lhe fosse confiada, em
teoria, a gestão do património familiar, e ainda que a mulher fosse
detentora de bens, o património mantém-se nas mãos do homem.
Voltando à questão educativa: embora o regime republicano
tenha defendido o alargamento do direito à educação, no caso
das mulheres não se pode dizer que essa medida tivesse propriamente um propósito emancipatório. Qual é o seu comentário?
Antes de mais diria que mesmo antes do final da monarquia – sensivelmente desde 1830 - essa intenção está já declarada. Mas é
com o advento da República que se torna claro que a educação
deve ser alargada a ambos os sexos, sem qualquer distinção.
Mas em muitos aspectos Portugal mantinha-se um país muito
fechado e conservador. Convencer as pessoas de que as raparigas
deveriam ter o mesmo percurso escolar do que os rapazes era
uma tarefa difícil. Mas, embora com percalços, esse objectivo foi
sendo expandido. É com a República, aliás, que as professoras na
escola pública primária se encontram em maioria, não é com o
Estado Novo.
Ao nível da estrutura económica dão-se igualmente muitas transformações. Tais mudanças introduzem a noção de que as mulheres
devem trabalhar como forma de ganhar autonomia e de escapar a
situações de pobreza extrema – que muitas vezes conduzia à prostituição e à indigência. Todo o debate do final do século XIX e princípio do século XX, aliás, centra-se muito em torno de uma nova
ortodoxia para o trabalho das mulheres, conduzindo a uma significativa iniciativa legislativa por parte da República.
Uma das questões que mais dividiu o debate educativo nessa
altura foi a coeducação, que esteve longe de ser uma medida
pacífica...
A questão da coeducação – medida através da qual se pretendia
introduzir turmas mistas nas escolas públicas – surge no debate
educativo em 1919, num momento de reconfiguração política e já
com a República na sua segunda fase, digamos assim. Quando consultei os jornais e as revistas da altura, para realizar o meu trabalho, pude aperceber-me da dimensão que este debate assumiu: a
coeducação foi considerada desde uma medida comunista e bolchevista, até ser comparada a um lupanar... todos estes epítetos
são trazidos para o debate público de uma forma inacreditável
pelos sectores mais conservadores. Na prática, queria-se fazer crer
que as jovens raparigas iriam perder as suas qualidades femininas
para se tornarem numas autênticas viragos...
Paralelamente a esse debate, discutia-se também qual o tipo de
organização curricular que o ensino deveria adoptar para o
público feminino...
Penso que esse debate tem um impacto menor. As aulas de lavores, por exemplo, mantêm-se, mas adquirem menos expressão no
currículo. E essa é uma diferença significativa relativamente ao
período da monarquia, no sentido em que deixa de haver um currículo tão especificamente destinado às raparigas.
Mas o que está sobretudo no centro do debate é, por um lado, a
questão da escola única – isto é, a defesa de uma escola que deixe
de estar dividida entre as classes mais pobres e as elites –; a questão da coeducação, à qual já nos referimos; e a questão da influência e da presença da religião católica nas escolas.
Nesse sentido, é curioso ler as narrativas que aparecem em alguns
jornais educativos da altura, sobretudo em 1911 e 1912, que nos
dão conta dos conflitos surgidos em pequenas localidades do interior entre o poder do padre local e o novo professor ou profes-
042-047 Helena Araújo 3/15/10 7:29 PM Page 46
entrevista
sora que ali chega. Eu própria tive oportunidade de ouvir algumas
dessas narrativas a partir de professoras que partilharam comigo a
história do seu percurso profissional nesses contextos.
Com a criação das escolas do ensino primário superior, pode falarse do aparecimento de um ensino predominantemente feminino.
Este tipo de escolas, paralelas ao Liceu e que se seguiam aos cinco
anos de escolaridade obrigatória, ministrava um tipo de ensino que
se pode considerar mais avançado, ao estilo das escolas francesas.
Estas escolas acabam por ser extintas em 1927, com a ditadura.
Tendo em conta a visão de certa forma conservadora e ambígua
com que o regime republicano encarava o papel da mulher no
plano social e político, de que forma viam as mulheres no papel
de professoras? Refere no seu livro que a imagem republicana do
professor, ao nível da produção de políticas educativas, era essencialmente masculina...
Absolutamente. A imagem que o regime passa sobre os professores é essencialmente uma imagem masculina. Apesar disso, eram as
mulheres que estavam em maior número no ensino primário. Em
1932, o jornal “A República” refere-se à sua presença de forma claramente negativa, designando-a como um “aluvião” de professoras.
É preciso lembrar que em 1932 as professoras primárias não
tinham direito de voto. Quando as mulheres perdem a possibilidade de adquirir o direito de voto em 1913, o movimento feminista defende que ele deveria ser conferido às mulheres que tivessem uma formação superior. Mas as professoras não tinham formação considerada de nível superior. Era, portanto, uma classe profissional desprotegida em termos de cidadania politica.
Depois, a maioria delas estava colocada no interior do país, nos
locais mais recônditos. Era habitual nestas situações levarem consigo um ou mais filhos como forma de se protegerem e de salvaguardarem a sua imagem de respeitabilidade.
De que forma lidaram com essas pressões contraditórias? Isto é,
por um lado esperava-se que enquanto professoras educassem
as crianças como futuros cidadãos republicanos, por outro, não
eram consideradas dignas de uma completa cidadania – e refirome concretamente ao direito de voto...
Não posso falar na generalidade, porque esse estudo infelizmente
não está feito. E a grande maioria dessas professoras já não estão
vivas para o testemunharem. Mesmo este grupo de cinco professoras que tive oportunidade de entrevistar já não se encontra
entre nós. Presto-lhes, aqui, a minha sincera homenagem. Mas
torna-se difícil dar uma resposta quando olhamos para estas vidas
através de uma perspectiva de quem não viveu o contexto social
e cultural da altura, das situações reais, das condições de vida...
Nessas aldeias, as professoras com quem comuniquei eram em
geral as únicas assalariadas localmente pagas pelo Estado. Poderia
haver na aldeia trabalhadoras rurais, eventualmente uma outra que
trabalhasse como doméstica, mas ela era uma funcionária pública.
Para todos os efeitos, é uma figura de relevo local e com um estatuto próprio, neste caso inerente a alguém que é detentor do
saber. Apesar disso, refugia-se e retira-se do meio social local. Um
professor primário, pelo contrário, facilmente se integrará no meio
I
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PRIMAVERA 2010 I N.º188
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a par das restantes personalidades locais, como o farmacêutico, o
padre ou o regedor. Sendo mulher está mais isolada.
Para conseguir ter uma imagem mais fidedigna do quotidiano destas mulheres, pesquisei as fontes literárias à procura da figura da
professora primária, questionando-me se ela teria ou não captado
a atenção dos nossos romancistas. E de facto não captou. Quando
se fala da educação das crianças nas casas burguesas, a referência
habitual é a perceptora, muitas vezes estrangeira. Entre os vários
romances sobre os quais incidiu a minha pesquisa, encontrei apenas referência a uma jovem professora, filha de um sapateiro, retratada como alguém preocupada sobretudo preocupada com a sua
imagem e cujo principal objectivo na vida é casar, motivando a
seguinte reflexão por parte do narrador “são estas as professoras
que vão ensinar as nossas crianças nas escolas?”, revelando uma
imagem menos positiva para certos grupos sociais.
ocupado por mulheres. Ou seja, se por um lado se vão criando
aberturas, por outro há também muitas frentes de luta para as
mulheres. Sobretudo, penso que elas lutam por serem consideradas como seres dotados de autonomia e de racionalidade.
Resumindo, o espaço de intervenção cívica das mulheres passou de
um período de quase euforia no período inicial da República, para
uma curva descendente, em que esse espaço de intervenção cívica
se reduziu, sobretudo após 1926, ano do golpe militar que instaurou a ditadura.
RICARDO JORGE COSTA (entrevista)
TERESA COUTO (fotografia)
A partir de 1919 foi introduzida legislação que veio prejudicar
claramente as professoras nas suas expectativas e nos seus direitos profissionais. Em que consistiram essas medidas?
Eu penso que esse terá sido um processo bastante doloroso para
as professoras primárias. A partir dessa data, ficaram limitadas a leccionar os três primeiros anos do ensino primário obrigatório,
ficando os dois últimos anos a cargo dos professores. O argumento
avançado pelo regime republicano para justificar esta medida era
basicamente de que a aprendizagem se devia basear nos afectos
nos três primeiros anos de escola e que só nos anos seguintes as
crianças ficariam aptas a desenvolver-se intelecutalmente.
Quer a imprensa educativa quer os congressos pedagógicos da
altura dão conta da dificuldade das professoras em aceitar uma
regulamentação desta natureza, que afirmava claramente que as
mulheres não possuíam nem conhecimentos suficientes nem capacidade para uma racionalidade mais elaborada; que estavam, portanto, condicionadas pelo seu afecto e pelo carinho que demonstravam para com as crianças mais pequenas. Esta medida, que promove uma desigualdade gritante, vem obviamente causar alguma
conflitualidade na classe, expressa nomeadamente nos jornais e
revistas da área educativa.
A outra medida dizia respeito à impossibilidade de as professoras
atingirem a direcção das escolas num contexto de ensino coeducativo – tema ao qual já nos referimos nesta entrevista – quando antes,
num contexto de escolas divididas por sexo, isso era possível.
O que nos leva mais uma vez a questionar a limitação imposta
pela República à capacidade de intervenção das mulheres no
espaço público e à assumpção da sua cidadania...
É um assunto controverso, porque se por um lado há toda uma
retórica em torno do trabalho fantástico desempenhado em casa
pelas mulheres e do seu importante papel enquanto educadoras
dos filhos da República, por outro limita-as a meras reprodutoras e
regeneradoras sociais.
Ao mesmo tempo, existem expectativas de que elas venham a
ocupar outras funções a nível social e mesmo de virem a exercer
algumas profissões. É durante o período republicano, por exemplo,
que existe uma abertura em relação ao funcionalismo público
BIBLIOGRAFIA
RECOMENDADA PELA ENTREVISTADA
(2010) “Girls’ Secondary Education in Portugal (XVIIIth-XXth century)” in Rebecca
Rogers, Joyce Goodman & James Albisetti (orgs) Girls’ Secondary Education in
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Mariana Bacelar, 2008
dia internacional da mulher
... o combate da mulher é um
combate da humanidade...
Samora Machel
Hermínia Bacelar
Agrupamento de Escolas Maria Lamas
(Porto)
I
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PRIMAVERA 2010 I N.º188
Muito se avançou neste século no que respeita às conquistas emancipatórias da Mulher, mas sabemos todos
que, quer a Oriente quer a Ocidente, quer a Norte quer
a Sul, a opressão da Mulher na vida profissional e na
vida privada é uma realidade porque é uma consequência da sua exploração na sociedade, tal como o é
a exploração dos homens.
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Ousar
ousar!
Comemorar datas centenárias que mudaram o curso da história dos homens constitui acto de toda a importância por
variadíssima ordem de razões. Em primeiro lugar, pelas razões ideológicas que
impulsionam a acção e que pragmatizam
o sonho que vem crescendo no seio de
um grupo sempre minoritário e que, a
dado momento, se torna imperioso para
um largo número de pessoas. Em
seguida, para não deixar esquecer aqueles
que ousam pôr em prática o que consideram fazer avançar a História, a heroicidade dos feitos de tantos anónimos,
nomes que os arquivos não retêm, actores da verdadeira mudança. Por último,
pela relevância dos próprios factos que
fazem com que o mundo pule e avance,
como diz Gedeão.
Vem este intróito a propósito de 2010 ser
ano de duas grandes datas centenárias: da
implantação da República Portuguesa e
da resolução de se organizar um Dia
Internacional da Mulher Trabalhadora.
Dada a importância dos dois factos, não
questionamos, nem por um segundo, a
necessidade de se comemorar e lembrar,
com toda a seriedade, solenidade, rigor e
alegria, as ideias neles contidas, os seus
heróis e as consequências deles advindas.
A primeira data, nacional, como é do
conhecimento comum, está já a ser
comemorada com um vasto e diversificado programa, público e privado, que
permite a instauração da polémica, o
confronto de opiniões e, por inerência,
melhorar o conhecimento histórico,
assim o queiramos todos.
A segunda data, essa, tem vindo a ser ridicularizada por uns, descontextualizada
das suas razões objectivas por outros e
passou a ser mais um belo dia para o consumo. Façamos um pouco de história e
logo veremos que não podemos deixar o
assunto por tão pouco.
Em 29 de Agosto de 1910, na 2.ª Conferência das Mulheres Socialistas, realizada em Copenhaga, foi aprovada a resolução de se organizar em todos os países
um dia dedicado às mulheres, tendo
como primeiro objectivo (entre outros)
lutar pelo direito ao voto. Proposta por
um grupo de mulheres americanas socialistas, a resolução foi aceite por todos os
presentes, de várias nacionalidades, não
fixando o dia ou mês para tal comemoração – as primeiras manifestações para
assinalar este dia aconteceram sempre
por finais de Fevereiro ou Março, só se
fixando o 8 de Março em 1919.
Homenageavam-se as operárias tecelãs e
costureiras nova-iorquinas que, em Março
de 1857, morreram queimadas em plena
greve por melhores condições de trabalho
e pela redução das 12 horas laborais diárias. Honravam-se as 600 trabalhadoras
russas que morreram às mãos da polícia
Triste fado, ou a genealogia da passividade (Mariana Bacelar, 2010)
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dia internacional da mulher
czarista durante a greve dos 86 dias
(22.11.1909 a 15.02.1910). Lembravamse as feministas americanas e europeias
que lutavam pelo direito ao voto.
Celebrava-se a consciência da desigualdade. Celebrava-se a coragem de tantas
mulheres que exigiam paz, pão, condições seguras no local de trabalho, horários compatíveis com a vida familiar e a
capacidade humana, direito a intervir
pelo voto nos destinos dos seus países,
direito à educação, direito à igualdade de
oportunidades, direito, direito, direito...
Desta época destacam-se os nomes de
Clara Zetkin, socialista alemã, directora
do jornal «A Igualdade» e membro da
Internacional Socialista, e Alexandra
Kollontai, revolucionária bolchevista,
contemporânea de Lenine, a quem se
deve a fixação da data no dia 8 de Março
– mais tarde, em 1975, a Organização das
Nações Unidas adoptaria essa data para
lembrar quer as conquistas sociais, políticas e económicas das mulheres, quer as
discriminações e violências a que muitas
estão sujeitas em todo o mundo.
O rigor de alguns factos que se apresentam carece ainda de investigação isenta,
se tal pode acontecer. As interpretações
que existem, sobretudo a partir da
década de 60 do século passado, valorizam certos acontecimentos e privilegiam
intervenientes em detrimento de outros,
construindo a história a partir do seu
ponto de vista ideológico. Mas uma coisa
é certa, e é isso que nos faz afirmar que
este centenário não pode passar em
branco: a resolução de dedicar um dia do
ano às causas da Mulher é fundamental
para a emancipação dos povos.
Muito se avançou neste século no que
respeita às conquistas emancipatórias da
Mulher, mas sabemos todos que, quer a
Oriente quer a Ocidente, quer a Norte
quer a Sul, a opressão da Mulher na vida
profissional e na vida privada é uma realidade porque é uma consequência da
sua exploração na sociedade, tal como o
é a exploração dos homens.
Falar desta forma nos dias que correm
provoca em alguns um sorriso amarelo,
I
50 51
PRIMAVERA 2010 I N.º188
sobretudo nos que pensam que o questionamento pós-modernista e as suas
teorizações resolveram os problemas
modernistas e fizeram caducar as revindicações elementares. Grassa por aí uma
fraseologia “pacifista” e de “luta pela
paz”, quando, afinal, todos os dias nos é
declarada guerra no local de trabalho, na
escola, no escritório, na fábrica, na
empresa, no campo, na clínica, no banco
– guerra, essa, que temos vindo a perder,
por falta de consciência do valor que tem
a nossa capacidade de trabalho.
O que todos sabemos, e não podemos
esconder atrás de discursos aparentemente progressistas, é que a Mulher continua a sofrer na carne a opressão física:
baixos salários, horários laborais longos,
idade tardia para a reforma, falta de
apoio eficaz ou inexistente para os
filhos, desemprego por ser mulher,
desemprego por maternidade, duplicação do horário de trabalho por, na maior
parte dos casos, ser a responsável por
todas as tarefas domésticas e de educação
dos filhos, discriminação salarial e em
relação a cargos de chefia... A lista de
situações objectivamente opressivas é
longa, mas não está completa.
Mas não é só fisicamente que a Mulher
sofre opressão, sofre-a também no plano
moral e psicológico. É sobretudo entre as
mulheres que os poderes da superstição,
do obscurantismo, da ignorância, mais
se alimentam, mantendo-as num estado
de medo permanente, destruindo-lhes o
espírito de iniciativa criadora, liquidando-lhes o sentido de justiça e crítica,
reduzindo-as à passividade, à aceitação
do estado de exploradas e oprimidas
como próprio do facto de nascerem
mulheres. E deste modo as mães educam
as filhas, perpetuando, sem querer, uma
condição imprópria de subalternidade.
É esta aparente inevitabilidade da condição da Mulher – que ainda hoje continua
a ser fomentada em todo o mundo – que
conduz à sua alienação relativamente aos
assuntos sociais, económicos e políticos,
por mais leis e quotas que se decretem.
Alienação que não é só dela, é também
do Homem, pois sofre dos mesmos
medos de humilhação, de ser oprimido,
de ser despedido, de ganhar pouco por
muito trabalho. Os mecanismos usados
para o alienarem, e assim contarem com
a sua passividade, são os mesmos, e,
muitas vezes, eles próprios os usam contra as mulheres suas companheiras, não
compreendendo que ambos fazem parte
da imensa massa de explorados.
Aqui chegados, muitos dirão que este
assunto está esgotado, que, olhando à
nossa volta, já nada se passa assim. Que
o mundo avançou, as leis laborais evoluíram, a maternidade é respeitada, o
voto é um dado adquirido, há muitas
mulheres emparceirando com homens
em cargos de chefia; só é oprimido quem
se deixa oprimir, o assunto passou a ser
do foro privado e cada um é que sabe da
sua vida e daquilo de que gosta...
E é então que convidamos os leitores a
olharem para o mundo, para a situação
das mulheres africanas, das árabes, das
chinesas, das sul e norte-americanas, tailandesas, coreanas, tantas europeias,
licenciadas, mestradas, doutoradas, e
observemos os seus estatutos laborais e
sociais – não excluimos da lista a Mulher
portuguesa, que, cem anos passados
sobre a 1ª República e mais de três décadas sobre o 25 de Abril, continua a ver os
seus direitos conquistados serem-lhe
subtraídos num abrir e fechar de olhos,
em nome de uma crise de que não tem
culpa e com a qual não colaborou.
Chega então o 8 de Março e abraçamo-nos e beijamo-nos, alienados das razões
que motivaram as mulheres que morreram na fábrica de Nova Iorque, as que
morreram nas ruas de Moscovo, as que
morrem todos os dias por razões étnicas,
religiosas, de insalubridade no trabalho,
por excesso de esforço, por maternidade,
infecções sexuais ou outras, por violência doméstica.
Os motivos que, em 1910, levaram à
resolução de ser marcado um dia específico para lembrar os problemas das
mulheres em todos os países continuam
pertinazes, quer os específicos quer os
comuns aos homens. Basta olhar à nossa
volta. Vamos continuar assim?
048-053 dia da mulher 3/16/10 8:55 AM Page 51
Entre a lei e a vida
há caminhos a melhorar
Maria José Magalhães
União das Mulheres Alternativa e Resposta
(UMAR)
Responsabilizar apenas as mulheres por
uma gravidez constitui, hoje, um acto de
medievalismo, sobretudo vindo de pessoas com formação científica, a quem já
não se admite que considerem que a
concepção é da exclusiva acção do útero
feminino. Já lá vai o tempo, em séculos
passados, em que se pensava que a
mulher engravidava sozinha. Sabemos
que o país em geral tem baixos níveis de
literacia e que os comportamentos e atitudes que constituem o quotidiano de
um português e de uma portuguesa nem
sempre se pautam pela interiorização de
dados relativos às informações veiculadas em matéria de saúde, quer seja reprodutiva, quer não, ou de bem-estar, quer
noutras dimensões da vida social.
Importa também dizer que a vida das
pessoas nunca é completamente racionalizável e existem sempre dimensões em
que a nossa razão não é a única a mandar. No que se refere à contracepção e ao
aborto, diversos estudos têm evidenciado que as práticas sociais e as representações são um conjunto complexo e
heterogéneo que mistura crenças religiosas com informações científicas e o
048-053 dia da mulher 3/16/10 8:55 AM Page 52
dia internacional da mulher
nosso olhar sobre o comportamento de
determinada pessoa deve ter em conta o
contexto cultural e social em que ela
vive, mais do que produzir afirmações
descontextualizadas, pelo risco de enviesar o entendimento dos factos.
Sabemos que existem ainda algumas pessoas que tentam recorrer ao aborto clandestino. Sabemos que alguns casais não
usam qualquer método contraceptivo
eficaz. Mas sabemos também que há
alguns sectores sociais que continuam a
divulgar uma mensagem de que os métodos contraceptivos não devem ser utilizados – estranhamente, muitos desses
sectores são os primeiros a culpar as
mulheres quando aparecem grávidas.
Sabemos, igualmente, que toda a sociedade, com a publicidade na vanguarda,
socializa para o princípio do prazer,
sexualizando diversas práticas da vida
social, incentivando à sensualidade e ao
hedonismo.
E sabemos que, face a esta corrente na
sociedade, outras existem que querem
fechar os olhos e negar o direito a uma
educação sexual real, assente nas vidas
concretas dos nossos rapazes e das nossas
raparigas, tapando o sol com a peneira,
fazendo de conta que estamos num
mundo ideal ou culpabilizando as e os
jovens se elas e eles não conseguirem
construir esse mundo de relações ideais –
coisas que as e os adultos/as das gerações
anteriores não conseguiram. Sabemos
ainda que há muitas mulheres que
vivem num contexto familiar de violência, em que estão proibidas de usar contraceptivos (usando-os muitas vezes às
escondidas). Sabíamos, também, quando
lutámos pela despenalização do aborto,
que o processo social de mudança das
práticas não se ia fazer com nenhum
passe de mágica – como, aliás, nada na
vida se faz com passes de mágica. E
temos trabalhado. Consciencializando,
informando, formando.
A Associação de Planeamento Familiar
(APF), assim como a UMAR, têm sido
incansáveis na formação para práticas
responsáveis, no apoio a jovens e menos
jovens para a racionalização das suas atitudes e comportamentos e decisões
informadas e seguras, quer no que se
refere à sexualidade, quer às relações de
intimidade. Por isso, a UMAR está solidária com a APF na luta pelos direitos
humanos das mulheres e dos homens e
contra todas as formas de discriminação
e obscurantismo.
Mais ainda, constitui uma mentira maldosa e perigosa afirmar-se que se gasta
mais dinheiro dos contribuintes com
o aborto depois da sua legalização. A
memória não pode ser tão curta. Ou já
esqueceram os custos do aborto clandestino? Ou será que lhes interessa esquecer? Trazer um caso para pôr em causa a
legalização do aborto, quando o aborto
clandestino rondava as dezenas de
milhares de casos, constitui uma manobra demagógica para encobrir o salto
civilizacional que Portugal deu com a Lei
16/2007, de 17 de Abril.
Que há muito para fazer, temos a certeza.
Mas também temos a tranquilidade e
serenidade de tudo estarmos a fazer, dentro de todas as nossas forças e recursos,
para melhorar ainda mais as condições
das mulheres no acesso à informação e
formação no que se refere a uma vida
com direitos, em todas as suas dimensões, do trabalho à maternidade, da
sexualidade à contracepção, da cultura
ao namoro, da família à política.
É fácil atirar pedras. Criticar quem faz, é
a arma preguiçosa de quem não quer que
o país avance em igualdade.
Há mais mulheres no mercado de trabalho,
mas as desigualdades continuam
A percentagem de mulheres que entram
no mercado de trabalho aumentou sensivelmente nos últimos 30 anos, mas elas
continuam a ganhar menos do que os
homens, segundo um relatório da
Organização Internacional do Trabalho
(OIT) publicado por ocasião do Dia
Internacional da Mulher.
“Mais de uma década após a adopção por
parte da 4.ª Conferência Mundial Sobre as
Mulheres de uma ambiciosa plataforma de
acção, as desigualdades de género permanecem fortes na sociedade e no mercado
de trabalho”. Assim, apesar de alguns avanços, “existem fortes disparidades em ter-
I
52 53
PRIMAVERA 2010 I N.º188
mos de possibilidades e de qualidade de
emprego”, acrescenta o documento, intitulado As Mulheres no Mercado de Trabalho:
medir os progressos e identificar os desafios.
Entre os progressos, a OIT assinala que a
taxa de participação das mulheres no mercado de trabalho aumentou de 50,2% para
51,7% entre 1980-2008 – enquanto a taxa
de participação masculina diminuiu de 82%
para 77,7% – e que esse aumento ocorreu
“em todas as regiões, com excepção” da
Europa Central e do Sudeste (fora da
União Europeia), assim como da
Comunidade dos Estados Independentes
(CEI) e do Leste da Ásia.
Entretanto, as mulheres “ainda não gozam
dos mesmos benefícios que os homens”,
lamenta a coordenadora do relatório. “Os
homens não enfrentam essas limitações” e
“ainda encontramos mais mulheres do que
homens em empregos precários ou com
baixos salários”, refere Sara Elder, citada
pela OIT. A autora acredita que é necessário adaptar o mercado de trabalho e as
políticas sociais aos “valores e limitações
próprios das mulheres e dos homens”.
Segundo a OIT, em 2009, a taxa de desemprego mundial entre as mulheres aumentou
de 6% para 7%, “ligeiramente” mais do que
a masculina.
Fonte: AFP
048-053 dia da mulher 3/16/10 8:55 AM Page 53
da escola, da vida
a lição de Bento
O erro (ou
de Jesus Caraça)
Quando se fala em conhecimento e, em
particular, em conhecimento científico,
nunca é demais destacar o papel da persistência na procura, da insistência no
esforço e da humildade na avaliação do
resultado do nosso trabalho!
Construir conhecimento, crescer cientificamente, preparar um futuro mais sustentado e desenvolvido, obriga a um
constante investimento na aprendizagem, na investigação e na confirmação
das conclusões.
Como se descobre? Como se conhece?
Sem falhas? Sem hesitações? Sem passos
atrás?...
Esta é uma questão que se coloca a muito
diferentes escalas. À dos grandes vultos
da Ciência e da Cultura, em geral, e à
nossa pequena escala, a de cada um de
nós, que vive, no seu dia-a-dia, os problemas do ensino e das aprendizagens.
O exemplo de tantos homens e mulheres
dedicados à Ciência ao longo dos anos,
ao longo de muitos séculos, faz-nos
olhar com respeito e, ao mesmo tempo,
com responsabilidade, para o seu trabalho e para as suas lições de vida.
E uma dessas grandes lições é a da humildade no reconhecimento da própria falibilidade, da necessidade de tentar muitas
vezes até adquirir certezas, da admissibilidade do erro. A História do Conhecimento é fértil em exemplos de erros
célebres que precederam conquistas
gigantescas, mas inúmeros e secretos
foram os erros que ficaram pelo caminho
e serviram de alavancas na procura de
novas leis e novos conceitos.
Uma importante personalidade na história da Ciência em Portugal, no século
XX, o matemático, docente universitário, pensador e combatente pelos ideais
humanistas e republicanos, Bento de
Jesus Caraça (1901-1948), deixou-nos, a
este propósito, um importante legado. A
par da relevância da sua obra no âmbito
da Matemática e do ensino da Matemática, este incansável defensor da “cultura integral do indivíduo” – tema da
célebre conferência que proferiu em
descobrem-se hesitações, dúvidas, contradições que só um longo trabalho de
reflexão e apuramento consegue eliminar, para que logo surjam outras hesitações, outras dúvidas, outras contradições”, escreveu Bento de Jesus Caraça.
Numa parede da escola onde leccionou
como professor catedrático – o, então,
1933 – foi, ele próprio, um exemplo de
humildade só possível em quem tem
grande estatura intelectual e cívica.
“A Ciência pode ser encarada sob dois
aspectos diferentes. Ou se olha para ela
tal como vem exposta nos livros de
ensino, como coisa criada, e o aspecto é
o de um todo harmonioso, onde os capítulos se encadeiam em ordem, sem contradições. Ou se procura acompanhá-la
no seu desenvolvimento progressivo,
assistir à maneira como foi sendo elaborada, e o aspecto é totalmente diferente –
Instituto Superior de Ciências Económicas
e Financeiras – está transcrita a sua frase
exemplar: “Se não temo o erro, é porque estou
sempre disposto a corrigi-lo”.
Aproveitemos a lição, à nossa pequena
escala. O erro vale (e vale muito!)
quando é detectado e a sua apropriação
nos convoca para novo esforço, novas
tentativas e novas soluções...
Ana Brito Jorge
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observatório
Para além da homofobia
ou
porque não se deve
referendar a discriminação
Isabel Menezes
Universidade do Porto,
Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação
I
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PRIMAVERA 2010 I N.º188
Nos últimos meses, temos assistido a
uma intensa discussão pública a propósito do casamento entre pessoas do
mesmo sexo, dando origem às mais
diversas expressões de acordo e desacordo: debates, abaixo-assinados, crónicas de opinião, cartas-abertas, manifestações...
Neste processo, as posições que defendem
a indesejabilidade de estender o estatuto
jurídico do casamento a pessoas do
mesmo sexo têm apelado à realização de
um referendo. Os argumentos predominantes tendem a salientar duas ideias:
embora ninguém esteja contra os homossexuais, esta extensão de direitos atenta
contra a figura do casamento e questiona
o lugar da Família como pilar da sociedade, ou é desnecessária e artificial, porque não aborda um problema real, que se
coloca apenas a um grupo minoritário.
Assim, o que há a fazer é ouvir as famílias.
Desta linha de argumentação podem inferir-se várias coisas. Para os objectores:
a) é possível estar “contra” ou a “favor”
da homossexualidade;
b) os direitos de minorias não devem
ser objecto de preocupação dos
legisladores;
c) o casamento entre pessoas de sexo
diferente “desvaloriza-se” com a
extensão desse direito a pessoas do
mesmo sexo (veja-se a excelente crónica de Laura Ferreira dos Santos, no
«Público»);
d) a “família” é uma entidade de definição fixa (pai, mãe, filhos) e um
exclusivo dos heterossexuais – e,
poderíamos acrescentar, dos heterossexuais casados e que decidem
(ou podem decidir) ter filhos.
Faço uma clarificação. Dou aulas sobre
desenvolvimento psicológico de jovens
e adultos desde o final da década de 80
do século passado. Por esses dias, era
relativamente rara a discussão pública
sobre a homossexualidade e, por isso,
era essencial trazer a questão para análise nas aulas, apresentando a homossexualidade como uma forma “normal”
de expressão amorosa – em linha com o
054-055 observatório 3/15/10 7:31 PM Page 55
que ia acontecendo internacionalmente na investigação e clínica da
Psicologia e da Psiquiatria – e discutindo as implicações devastadoras de
atitudes discriminatórias dos profissionais de educação e de psicologia. Nesse
sentido, defendia a importância de
perspectivas afirmativas que contrariassem o discurso social dominante, profundamente negativo e estereotipado,
sobre os homossexuais.
Também por esses dias, costumava citar
o argumento de Quentin Crisp de que,
enquanto não fosse um tema completamente maçador e banal, a homossexualidade não seria verdadeiramente aceite.
Desse ponto de vista, poderia dizer que
esta discussão pública intensa é um bom
sinal. Contrariamente ao passado, a
homossexualidade tem estado amplamente presente no espaço público –
muito por mérito das várias associações
de defesa dos direitos de pessoas gays,
lésbicas, bissexuais e trangénero, mas
também de representantes dos partidos
políticos e da sociedade civil –, o que certamente contribui para a difusão de
visões que não só legitimam como valorizam a diversidade da expressão do
amor.
No entanto, e infelizmente, os acontecimentos recentes revelam também que a
intensa discriminação da homossexualidade não é coisa do passado, mas está
profundamente enraizada na sociedade
portuguesa. É, aliás, por isso que os argumentos homofóbicos que referimos
começam por enunciar que não são contra os homossexuais – como se, moralmente, alguém tivesse legitimidade para
ser “contra” outras pessoas. E como se
não fosse porque “confiam” no preconceito que querem, agora, ouvir as famílias
– como se a extensão de direitos a grupos
discriminados tivesse condições (objectivas ou subjectivas, agora ou no passado)
para ser objecto de referendo.
A questão que se deve colocar é: se estamos perante um grupo de pessoas fortemente discriminado numa sociedade, há
condições para referendar o seu direito a
existirem de forma visível nessa sociedade? Onde estariam as conquistas, hoje
por todos nós valorizadas, dos movimentos de extensão de direitos civis em
função do género ou da raça se, na
altura, tivessem sido objecto de referendo? Creio que todos sabemos a resposta – nem sempre a posição maioritária é moralmente certa, especialmente
quando assenta no preconceito e no
desejo de negação do outro.
Volto a Quentin Crisp: quando a homossexualidade for completamente banal,
quando a ninguém ocorrer se se pode
“ser contra”, contestando os direitos de
existência a pessoas em função da sua
orientação sexual, então talvez sejamos
capazes de apreciar genuinamente um
mundo onde o amor se expressa de muitas e diversas formas.
P.S. Não tive ocasião de expressar publicamente o meu profundo respeito pelo José Paulo Serralheiro, responsável primeiro por este espaço de
debate e análise e que generosamente me convidou para aqui ir escrevendo. Do mesmo modo, gostaria de igualmente reconhecer o trabalho
da equipa que mantém vivo este seu projecto, prestando-lhe a homenagem que certamente mais aprovaria.
056-057 educação e cidadania 3/15/10 7:32 PM Page 56
educação e cidadania
Educação Ambiental:
Do Desenvolvimento-Desigualdade-Destruição ambiental ao
Amor-Biodiversidade (como diversidade da vida, também
humana) Conflito/Cooperação/Comunidade/ Cidadania
Mariana Salgado Peres
Psicóloga
Doutoranda da Universidade de Santiago
de Compostela
I
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PRIMAVERA 2010 I N.º188
Nós, seres humanos, somos apenas uma
pequena partícula no espaço e no
tempo. Ao longo da nossa existência
como espécie, temos buscado não apenas a sobrevivência, mas também o
desenvolvimento e a transformação (a
nossa e a do mundo) dos ecossistemas
que integramos e partilhamos.
Segundo o que hoje nos conta a história,
fundamentalmente a partir do século
XIX, onde começou a ter expressão a
grande transformação tecnológica, a
intervenção humana intensificou-se por
todo o planeta. A par destas transformações, ocorreram importantes mudanças
políticas, sociais, económicas, culturais e
ambientais, grande parte associadas aos
modelos de desenvolvimento da sociedade capitalista e liberal ou neoliberal,
sobre os quais não nos vamos aqui deter.
Numa dinâmica de inter-relações complexa, verificou-se, gradualmente, um
afastamento entre o Homem e a
Natureza e talvez mesmo o afastamento,
em alguns aspectos, dos outros seres da
mesma espécie (contraditório à aproximação possibilitada pela comunicação
digital) e ainda de si próprio.
Este jogo de forças, tendo possibilitado
inúmeros desenvolvimentos e a melhoria das condições de vida do ser humano,
perpetuou e, em alguns casos, agravou a
pobreza e a exclusão social, bem como as
desigualdades entre os países ditos
desenvolvidos e os países em vias de
desenvolvimento, e mesmo dentro destes. Como refere Caride [Educación
Ambiental, Desarrollo y Pobreza: estrategias
para “otra” globalización, 2004], vivemos
num mundo marcado por grandes con-
056-057 educação e cidadania 3/15/10 7:32 PM Page 57
dos 3DS ao novo-velho ABC
trastes e injustiças, onde cerca de dois
terços da população vivem na miséria,
abandono e fome. É de salientar, contudo, que, embora em circunstâncias
diferentes, pobres e ricos, esfomeados e
sobrealimentados, indivíduos de países
em desenvolvimento e indivíduos de
países desenvolvidos, todos integram o
mesmo planeta e vivenciam uma época
histórica marcada por um conhecimento
à escala global, apesar deste conhecimento não ser partilhado por todos e ser,
frequentemente, manipulado pelos veículos da comunicação, à mercê do poder.
Recuando um pouco no tempo, no
século XIX, surgem algumas vozes críticas dos efeitos nocivos e destruidores,
associados aos novos processos de industrialização e urbanização, corporalizando-se num movimento conservacionista e protector da natureza que, ao
longo do século, se foi abrindo à escala
mundial. No século XX, os anos 60, marcados pelo lançamento da obra
Primavera Silenciosa de Rachel Carson,
constituíram um marco importante no
despertar da consciência ecológica mundial. Seguiram-se alguns acontecimentos
marcantes, entre os quais destacamos a
Conferência de Estocolmo sobre o Meio
Ambiente Humano (1972); a Carta de
Belgrado sobre Educação Ambiental
(1975); a primeira conferência internacional dedicada à Educação Ambiental, em Tiblisi (1977); a publicação do
Relatório Brundtland (1987); a Conferência da ONU sobre Ambiente e
Desenvolvimento, no Rio de Janeiro
(1992), onde se envolveu grande parte do
mundo em busca do desenvolvimento
sustentável e a proclamação da Década
da Educação para o Desenvolvimento
Sustentável (DEDS, 2005-2014) pela
Assembleia-Geral das Nações Unidas, em
2002.
Estes são apenas alguns marcos visíveis
na história da Educação Ambiental, que
se enquadraram num contexto de transformações ambientais, culturais, económicas, espirituais, políticas, sociais, como
referimos. Constituindo-se a Educação
Ambiental como um “objecto hiper-complexo” que conjuga a actuação de diversas áreas científicas (ecologia, biologia,
educação, etc.), passou-se de uma abordagem conservacionista a uma abordagem
ambientalista, ecologista; de uma visão
dicotómica entre o Homem e a Natureza
a uma visão como um todo; oscilou-se
entre o afastamento da esfera ambiental e
as esferas cultural, económica, espiritual,
política, social e uma integração de todas;
problematizou-se entre uma visão organicista e holística e uma visão construtivista e da complexidade.
Actualmente, integram o campo da
Educação Ambiental discursos e práticas
divergentes, que contemplam aspectos
das várias abordagens agora referidas, configurando um mapa das educações
ambientais complexo e múltiplo. A este
propósito, estamos de acordo com
González Gaudiano [«Educação Ambiental.
Horizontes Pedagógicos», 2006], quando
afirma que, na actualidade, o campo da
Educação Ambiental é caracterizado pelas
seguintes tendências:
– persistem, ainda, em muitos educadores preocupações conservacionistas e ecológicas extremas (que negli-
genciam a dimensão social e económica dos problemas ambientais),
bem como propostas que, apesar de
aparentemente bem intencionadas,
apresentam lacunas importantes,
quer na sistematização, quer na adequação da sua orientação aos problemas e condições locais e regionais;
– apesar de ser considerado prioritário
nos discursos, planos e declarações
institucionais, verifica-se a desvalorização do papel da Educação
Ambiental por parte das políticas
públicas;
– a intenção de substituir a Educação
Ambiental pela Educação para o
Desenvolvimento Sustentável tem
sido fonte de conflitos e alvo de fortes críticas, sobretudo pela opacidade
e vacuidade do conceito de desenvolvimento sustentável e outros que
integram a proposta, questionando
as suas intenções e apontando também a falta de inovação da proposta
relativamente a anteriores referentes
no âmbito da Educação Ambiental.
Aparentemente, quase nada mudou. As
expectativas que alguns alimentavam
em relação a uma sociedade mais justa e
solidária foram goradas, continuando a
viver-se num supermercado económico e
cultural em que uns globalizam e outros
são globalizados. Contudo, há esperança
e há sementes de mudança! Caber-nos-ia
agora fazer a ponte entre as expressões
referidas no título deste texto. Vamos,
no entanto, deixar em aberto, possibilitar que as palavras sejam por si só tomadas em consideração e se transformem
em acção, antes de serem levadas pelo
vento!
058-059 educação desportiva 3/16/10 8:46 AM Page 58
educação desportiva
O treinador
nacional
e o estrangeiro
Manuel Sérgio
Universidade Técnica de Lisboa
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PRIMAVERA 2010 I N.º188
Tratemos hoje de um tema que, sem dar
ares de adivinho, parece manter alguma
actualidade: qual o melhor treinador
para o futebol (ou o basquetebol, ou o
andebol, ou o voleibol, etc.) de um país,
o treinador nacional ou o estrangeiro?
Em Portugal, a concluirmos pelo enlevo
que certas pessoas sentem por tudo o
que chega da estranja e o pessimismo
demolidor que lançam sobre os homens
e as coisas de Portugal, os treinadores
portugueses são muitas vezes minimizados, com enfatuada ironia. A enriquecer
esta tese, adianta-se, de fisionomia
aberta e jubilosa, o facto incontroverso
de, com Luiz Filipe Scolari, Otto Glória,
Bella Guttman e Tomislav Ivic, o futebol português ter alcançado êxitos
retumbantes (e o mesmo poderia dizer
de outras modalidades, como, por
exemplo, o voleibol). Eles instigaramno a novos métodos que nele se repercutiram, durante anos. Mas por que se
esquece repetidamente que é nosso o
que, há bem pouco tempo, foi considerado o melhor treinador do mundo, e
ainda Fernando Vaz, José Maria
Pedroto, Artur Jorge, Carlos Queirós,
Jorge Jesus, Paulo Bento, Manuel José e
outros? Num país de velhas tradições e de
longa caminhada histórica, até no futebol gostamos de ser colonizados! E, como
veremos, não há razão para mais um
complexo de inferioridade.
Mas a pergunta continua teimosamente
de pé: qual o treinador que melhor serve
o futebol de um país, o nacional ou o
estrangeiro?
Em igualdade de circunstâncias, o nacional, indubitavelmente! Ao treinador
estrangeiro, em terra alheia, sem o domínio da língua nativa (e não é linguagem
o desporto?) e desconhecendo o futebol
como expressão de uma cultura que lhe é
estranha, escasseiam-lhe, normalmente,
ao nível do agir e do ‘inteligir’, uma larga
soma de dados imprescindíveis ao exercício da sua profissão... longe do seu país.
É uma antiga questão, esta, da existência
ou não-existência de características
nacionais no futebol. De facto, que realidade traduz a designação brasileiro, inglês,
russo, aposta ao vocábulo futebol? Há
futebol brasileiro, ou futebol no Brasil?
Há futebol inglês, ou futebol na
Inglaterra? Há futebol coreano, ou futebol na Coreia?
058-059 educação desportiva 3/16/10 8:46 AM Page 59
Tentemos estabelecer a noção de futebol: é um desporto colectivo, com as
regras por todos conhecidas e dependente do génio individual dos jogadores, da capacidade de liderança do treinador principal e da organização global
dos clubes.
Mas os elementos raça, geografia, língua,
tradições, cultura, etc. singularizam o
futebol dos diversos países? Indubitavelmente! Por isso, existe o “futebol sambado” do Brasil, o “futebol atlético” dos
ingleses, o “futebol racionalista e geométrico” de alguns países da Europa
Central. O futebol também interpreta o
real, à sua maneira; também ele é uma
visão do mundo, existindo no plano do
conhecimento não consciencializado;
também ele resulta da sensibilidade
peculiar de um povo. O futebol pode
fazer suas as palavras de Ortega y Gasset:
eu sou eu e a minha circunstância!
Tudo isto, para concluir que aposto nos
treinadores nacionais, no cotejo com os
estrangeiros, para dirigir e orientar as
nossas equipas de futebol (ou de qualquer outra modalidade desportiva).
Desde que sejam treinadores que aliem
uma prática incessante (de treinadores,
logicamente) a uma teorização rigorosa.
A grande mensagem que José Mourinho,
Jesualdo Ferreira, Carlos Queirós, Nelo
Vingada, José Peseiro, Mariano Barreto,
Manuel Machado, Carlos Carvalhal, Rui
Dias, e outros mais, licenciados em
Desporto, pretendem transmitir ao futebol português (e não só) é esta: também
é preciso estudar para se obterem vitórias no futebol. Também aqui a teoria e
a prática deverão existir em função uma
da outra, visando não só um saber, mas
uma sabedoria.
Recordo, a terminar, Cândido de
Oliveira, Fernando Vaz, Mário Wilson,
Manuel Oliveira, José Maria Pedroto,
Artur Jorge, Jorge Jesus, Manuel Cajuda,
que, sem um curso universitário de
Desporto, anunciaram, à sua maneira,
que a teorização é indispensável à prática de treinador de futebol – o que
fazem os que tiveram como professores
o Jesualdo Ferreira, o Mirandela da
Costa, o Carlos Queirós e o Nelo
Vingada no Instituto Superior de
Educação Física de Lisboa e o Vítor
Frade no ISEF do Porto! No entanto, é de
exigir aos licenciados que escutem com
humildade os que levam anos e anos de
futebol.
É que também o futebol se teoriza no
quadro de uma inegável dimensão histórica, social e política. Ocorre-me o
conceito de “prática-teórica” de Louis
Althusser, ou mesmo a “teoria-prática”
de Gyorgy Lukács.
Por mim, quero denunciar tanto o idealismo da “teoria pura”, como o pragmatismo de uma prática acéfala; tanto uma
dialéctica unicamente de categorias e de
conceitos, como a “consciência espontânea” (altamente tributária da tradição e
do passado) dos que não estudam e
abdicam do papel orientador da
teoria.
060-065 Alberto Amaral 3/16/10 9:10 AM Page 60
entrevista
ALBERTO AMARAL
É indispensável que
as universidades sejam
credíveis e ofereçam
uma formação
de boa qualidade
Iniciou a sua carreira académica como professor e investigador da
faculdade de Ciências da Universidade do Porto (UP), tendo-se
tornado reitor desta instituição entre 1985 e 1994. Em 1998
passou a dirigir o Centro de Investigação e Políticas do Ensino
Superior (CIPES). Mais recentemente, assumiu o cargo de direcção
da Agência de Avaliação e Acreditação do Ensino Superior, que terá
por missão avaliar as instituições de ensino superior portuguesas e
estabelecer critérios de qualidade reconhecíveis a nível europeu.
É nesta última qualidade que entrevistamos Alberto Amaral,
procurando saber aquilo que está na agenda da A3ES para o futuro
próximo, as tendências nas quais se inscreve o ensino superior
europeu e as implicações que daí poderão advir para as instituições
de ensino portuguesas.
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PRIMAVERA 2010 I N.º188
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entrevista
A agência já está em funcionamento há dois anos, mas não há
muita informação sobre a sua actividade...
O diploma que cria a A3ES é de 2007. O conselho de administração só foi nomeado em 17 de Dezembro de 2008, tendo iniciado
o seu trabalho em Janeiro de 2009. A isto há que acrescentar a
implementação de toda a estrutura de apoio, nomeadamente o sistema informático, que demora meses a instalar. Só em 2011 o sistema entrará no seu ritmo normal, num ciclo que se prolongará
por cinco ou seis anos.
Que papel irão ter as próprias instituições de ensino nesse processo?
Qual é a agenda de actuação da Agência de Avaliação e
Acreditação do Ensino Superior (A3ES) para os próximos anos?
Uma das primeiras tarefas diz respeito à decisão sobre propostas de
novos cursos, que estão actualmente em análise e sobre os quais
será tomada uma decisão em Abril. Se anteriormente estas propostas eram enviadas à Direcção Geral do Ensino Superior, desde
Outubro do ano passado que as instituições de ensino superior passaram a fazer os pedidos directamente à A3ES.
A segunda questão prende-se com a acreditação de todos os cursos actualmente em funcionamento. A legislação determina que até
ao final do ano lectivo 2010/2011 essa acreditação esteja concluída,
mas havendo milhares de cursos não penso que isso seja literalmente exequível. Porém, a intenção do Governo é de eliminar os
cursos que possuem menor qualidade sem ter de esperar por um
ciclo completo de avaliações, isto é, entre cinco a seis anos.
Neste processo, que terá de estar concluído até Outubro do próximo ano, as universidades – até ao final de Março – e os politécnicos – até à primeira semana de Abril – terão de indicar à A3ES quais
os cursos, daqueles que estão aprovados, que querem ter em funcionamento no futuro e demonstrar que têm recursos para o fazer.
Esta constituirá a primeira fase de reorganização do sistema. É uma
análise meramente documental dirigida fundamentalmente para a
qualificação do corpo docente e para a análise dos cursos. Depois
disso, uma equipa de peritos determinará o que está bem e o que
está mal, e aqueles que oferecerem menos garantias de qualidade
passarão depois a uma acreditação mais completa entre Outubro
deste ano e Outubro do próximo ano, decidindo os que irão permanecer em funcionamento e os que irão fechar.
I
62 63
PRIMAVERA 2010 I N.º188
As instituições irão ser as primeiras responsáveis por garantirem a
qualidade da formação que oferecem. E um dos aspectos mais
importantes deste processo vai precisamente no sentido de, em
conjunto com as instituições, se definirem quais os respectivos
mecanismos e sistemas internos de qualidade, nomeadamente no
que se refere à qualificação do corpo docente e às metodologias
de ensino. É indispensável que estas sejam credíveis e ofereçam
uma formação de boa qualidade.
Depois, naturalmente que as instituições terão de começar a olhar
para estes padrões, percebendo que se os cursos que oferecem
não cumprirem esses padrões mínimos eles não serão acreditados
e terão, portanto, de desaparecer.
Partindo deste pressuposto, quando o sistema entrar em regime
de cruzeiro, a partir do termo do ano lectivo 2010/2011, haverá
instituições e cursos que irão fechar e outras que cumprirão os
mínimos para continuarem em funcionamento. Neste sentido,
haverá naturalmente um número mais restrito de cursos e de instituições.
Por outro lado, um departamento que tenha, por exemplo, 90 por
cento do pessoal doutorado e que faça investigação considerada
de excelência terá, em princípio, uma maior margem de autonomia
para criar novos cursos.
Actualmente, a lei diz que para uma instituição de ensino superior
ser universidade ou politécnico deve ter um determinado número
de cursos aprovados em termos de primeiro ciclo, de mestrado e
de doutoramento. Se a instituição não tiver esse número mínimo
de cursos aprovado, deixa de poder ser considerado universidade
ou politécnico.
De que forma se articulará este processo de acreditação com a
vertente de investigação?
Posso dar o exemplo mais simples, o dos doutoramentos. A lei
determina que apenas uma instituição cujo corpo docente possua
uma determinada qualificação ao nível de doutoramento e que
produza investigação reconhecida possa atribuir doutoramentos.
Isto aplica-se particularmente às universidades. Mesmo nos ciclos
mais baixos, uma das componentes de avaliação diz respeito à integração dos alunos nos projectos de investigação da instituição.
Como está a decorrer este processo a nível europeu?
060-065 Alberto Amaral 3/16/10 9:10 AM Page 63
Em princípio, cada país tem o seu próprio sistema de avaliação e
de acreditação. Há países que já têm uma tradição muito longa de
sistemas de avaliação, como a Inglaterra, a Holanda, a França…
Estes sistemas, aliás, existem há já bastante tempo em países como
os Estados Unidos, onde a primeira agência de acreditação regional data do século XIX.
Mas independentemente da sua situação de países centrais ou
periféricos, o processo é relativamente homogéneo?
Embora possa variar em termos de organização - há casos em que
se optou por uma agência única, casos, como na Alemanha, em que
se optou por agências a nível estadual, à semelhança da Espanha,
onde cada região autónoma possui a sua própria agência – em termos de metodologia ela é mais ou menos comum a todos. De uma
maneira geral há sempre um relatório de auto-avaliação, seguida de
uma avaliação externa e da sua publicitação pública, sendo dada a
cada instituição a possibilidade de responder ao relatório.
Entretanto, e na sequência do processo de Bolonha, instituíram-se
os European Standards and Guidelines, que definem os padrões a
que devem obedecer as agências europeias no sentido de serem
reconhecidas e que incluem a independência em relação às instituições e em relação aos governos.
De que forma está garantida a independência face ao poder político?
Em primeiro lugar, o conselho de administração é nomeado por
quatro anos e ninguém o pode demitir das suas funções. Em
segundo lugar, a legislação prevê que nenhum curso que não tenha
sido acreditado pela agência poderá ser homologado pelo
Governo. Da mesma forma que a agência poderá acreditar um
curso e o Governo decidir não o financiar – porque pode chegar
à conclusão que há mais não sei quantos cursos iguais e dizer que
não se justifica a aplicação de verbas públicas.
Há, portanto, uma clara separação e independência face ao poder
político. Nós somos nomeados por um determinado período e
mesmo achando que somos muito ou pouco rigorosos, não
podem, em princípio, exonerar-nos do cargo.
De que forma é que se está a articular este processo em
Portugal com as restantes agências europeias?
Por um lado, através do facto de as diferentes agências estarem
associadas na European Network of Quality Agencies (ENQA); por
outro lado, porque as agências reconhecidas deverão vir a ser
registadas num organismo denominado European Quality Assurance
060-065 Alberto Amaral 3/16/10 9:10 AM Page 64
entrevista
Register for Higher Education (EQAR). E a condição indispensável
para fazer parte quer de uma quer de outra é o cumprimento dos
tais European Standards and Guidelines, bem como um conjunto
de regras mínimas que têm de ser cumpridas pelas agências.
Costumava ser bastante crítico de modelos de avaliação e de
acreditação, nomeadamente daqueles que se aproximavam mais
daqueles que são postos em prática nos EUA e no Reino Unido
– e que agora estão a ser introduzidos na Europa. Como vê essa
situação e de que forma ela pode condicionar a actuação da
agência?
Não sei se será verdade que o modelo americano esteja a ser
introduzido na Europa...
Concordará que existe uma tendência para fazer convergir os
dois modelos...
Tenho as minhas dúvidas, porque nos EUA eles distinguem entre
agências que acreditam as instituições e outras agências que acreditam as diferentes áreas académicas, como o direito, a medicina,
etc. E as agências de acreditação têm um carácter regional, o
governo federal não intervém nisso. Ou seja, eles têm um sistema
completamente diferente que não pode ser comparado.
Não me refiro tanto à organização do sistema mas mais aos princípios que estão por detrás dele...
Nos EUA há uma enorme diversidade no que toca à qualidade das
instituições de ensino superior, muito maior do que na Europa. Isso
significa que a mesma agência que acredita Harvard ou Yale, por
exemplo, também tem de acreditar instituições de menor prestígio,
usando uma metodologia que permita fazê-lo em igualdade de circunstâncias. Essa metodologia designa-se “Fitness for Purpose” e
baseia-se na declaração de missão da instituição. É um mecanismo
que, na sua essência, procura proteger essa imensa diversidade que
não existe nos sistemas europeus.
A grande diferença entre o sistema americano e os sistemas europeus é que nos EUA as instituições têm sido capazes, até agora, de
resistir a qualquer interferência por parte do governo federal, que
em várias ocasiões tem procurado exercer influência sobre os processos de acreditação. Por comparação a este país, na Europa a
Comissão Europeia acabou por ter uma maior influência sobre o
sistema de acreditação.
A minha crítica baseia-se no facto de na Europa não ser possível
avançar com um processo de discussão da legislação: o Parlamento
Europeu não serve, a Comissão Europeia não nos liga; não se sabe
se é a Comissão se são os ministros que decidem. Ora isto é uma
confusão enorme... De qualquer forma, não há propriamente
metodologias que permitam pôr em prática o sistema de lobbying
que existe nos EUA.
Este processo de acreditação levará inevitavelmente à concorrência entre instituições...
I
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PRIMAVERA 2010 I N.º188
Na minha perspectiva, os sistemas de acreditação aparecem essencialmente para colocar um pouco de ordem no desenvolvimento
desordenado e extremamente rápido do ensino superior privado
nos países do leste europeu após a queda do muro. Ao mesmo
tempo, e do meu ponto de vista, a Comissão Europeia pretende acabar com a ideia de que as universidades europeias são todas iguais.
A criação de um sistema de acreditação comum, que permita a
qualquer instituição de ensino superior ser acreditada pelas diversas agências registadas na EQAR – apesar de esta proposta da
Comissão não ter sido ainda aceite pelos ministros –, conduzirá à
existência de agências com critérios extremamente altos de exigência, que acreditarão universidades como Oxford, Cambridge ou
Munique, e de agências que acreditarão universidades regionais e
universidades locais. Desta forma, tender-se-á a estabelecer um
certo sistema de ranking.
Neste sentido, aliás, a União Europeia aprovou e financiou muito
recentemente um projecto que visa a criação de um ranking de
universidades europeias. Ou seja, não há dúvida nenhuma que se
caminha para uma crescente estratificação das instituições de
ensino superior, na qual haverá lugar para universidades de investigação, universidades regionais, locais etc.
Em Portugal, este processo de acreditação derivará inevitavelmente num ranking...
Esperemos que o objectivo deste processo em Portugal não seja
meramente criar um ranking. Porque os rankings das universidades,
na minha opinião, não fazem muito sentido, já que as universidades
são organizações demasiado complexas para serem avaliadas através de um sistema que está, em larga medida, dependente de critérios que podem ser discutíveis.
Um dos grandes problemas dos rankings - nomeadamente dos
rankings que se baseiam em meia dúzia de critérios - é que a ordenação que daí deriva depende do peso que se atribui a cada um
deles. Uma pequena universidade do interior do país, por exemplo,
pode perfeitamente ficar à frente de Harvard se o critério principal for o do custo por alunos mas perderá se o critério se basear
no número de prémios Nobel, ou o número de alunos estrangeiros.
Na minha opinião, o objectivo de um processo como este deveria
ser o de fornecer toda a informação existente para que, com base
nela, cada qual possa estabelecer o seu próprio ranking... Porque
haverá alunos que com certeza estarão mais interessados num
curso que seja fácil e que dê emprego, haverá professores com
interesse em instituições onde se aposte sobretudo na investigação, e governos mais interessados em financiar cursos que não
representem grandes encargos públicos.
Concretamente no caso português, não se correrá o risco de as
assimetrias entre as principais universidades do país se tornarem
ainda maiores?
Certamente que sim. Actualmente, a nível europeu, é fácil perceber que há um conjunto de governos claramente apostados na
060-065 Alberto Amaral 3/16/10 9:10 AM Page 65
criação de um número restrito de universidades de excelência. O
governo alemão, por exemplo, investiu recentemente na criação de
cinco universidades de excelência. Na Finlândia, mais propriamente
em Helsínquia, vão criar uma universidade de carácter fundacional
que pretende concentrar num único organismo as universidades
de tecnologia, economia e gestão e arte e design, cujo investimento
inicial ronda qualquer coisa como 650 milhões de euros. Em
Inglaterra a tendência é a mesma, com o governo a concentrar a
investigação num número limitado de instituições.
Concordará, então, que este processo de acreditação e avaliação
caminhará inevitavelmente para algo que se assemelhará a uma
hierarquização de assimetrias?
Poderá caminhar nesse sentido. Por outro lado, devemos questionar-nos até que ponto será possível a um sistema de ensino superior massificado oferecer ao mesmo tempo ensino para todos e
excelência. Ou seja, não é possível ensinar alunos medianos usando
o mesmo sistema que é utilizado, por exemplo, na universidade de
Cambridge, na qual o processo de aprendizagem se baseia sobretudo no esforço do próprio aluno, onde este é “puxado” ao
máximo. Um aluno mediano necessita de maior apoio e estará,
digamos, ao nível de um liceu avançado. Estas duas realidades não
podem coexistir num mesmo espaço, parecendo-me por isso inevitável que a massificação do ensino superior conduza a essas diferenças.
Eu diria até que será muito possível que no futuro o actual primeiro ciclo de Bolonha corresponda ao actual ensino secundário.
E se o primeiro ciclo de Bolonha for de facto generalizado a toda
a população estudantil, é evidente que será preciso haver algumas
instituições que se ocupem de alunos mais capazes e mais interessados em investigação.
O processo de ensino-aprendizagem não pode ser igual para
todos. Porque se os sistemas massificados não se diversificam acabam por comprometer os melhores alunos. Admito, no entanto,
que esta perspectiva não seja assim tão fácil de encarar. Citando
Chris Duke, um professor australiano, “é impossível que a torrente
caudalosa da massificação e o delgado riacho da excelência caminhem lado a lado pelo mesmo campus universitário”...
Para terminar pergunto-lhe: que implicações poderão advir
daquilo que foi dito para as instituições de ensino superior do
país e para o próprio país?
Acho que o objectivo essencial é melhorar a qualidade do sistema
do ensino superior, das instituições e da sua oferta em termos formativos. Esperemos, por isso, que as instituições compreendam a
necessidade de garantir a qualidade daquilo que oferecem e deixem de inventar cursos com designações esquisitas e para as quais
não têm corpo docente adequado, etc.
RICARDO JORGE COSTA (entrevista)
TERESA COUTO (fotografia)
066-069 pedagogia social 3/16/10 9:12 AM Page 66
pedagogia social
Recordando Ortega y Gasset,
100 años después
La pedagogía social como programa político
Si educación es transformación de una realidad en el sentido de
cierta idea mejor que poseemos y la educación no ha de ser sino
social, tendremos que la pedagogía es la ciencia de transformar
las sociedades. Antes llamábamos a esto política: he aquí, pues,
que la política se ha hecho para nosotros pedagogía social y el
problema español un problema pedagógico.
[Ortega y Gasset, 1910]
José Antonio Caride Gómez
Universidad de Santiago de Compostela
Cumprindo o Estatuto Editorial, a Página respeita
a grafia original do texto
I
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PRIMAVERA 2010 I N.º188
El 12 de marzo de 1910, en la Sociedad
“El Sitio” de Bilbao, un histórico foro del
liberalismo vasco, por el que han pasado
como oradores algunas de las figuras
más relevantes de la vida pública española de los últimos 130 años, José
Ortega y Gasset (1883-1955) nos legaba
uno de los lemas más emblemáticos de
cuantos han acompañado los avatares
de la Pedagogía Social desde los inicios
del siglo XX hasta la actualidad: La
Pedagogía Social como programa político.
Y, con él, la inequívoca necesidad de
vincular la educación al quehacer político y moral que los ciudadanos han de
adquirir consigo mismos y con la sociedad que los acoge.
Hablamos de un Ortega y Gasset joven,
atraído por las ideas filosóficas del neokantismo, cultivado en la Universidad
alemana de Marburgo al amparo de las
enseñanzas de Hermann Cohen (18421918) y Paul Natorp (1854-1924), en una
estancia realizada en el curso académico
1906-07. Un Ortega que impartirá lecciones de Pedagogía Social en la Escuela
Superior de Magisterio de Madrid
tomando como referencia los textos de
Natorp, el primer autor que sistematizará
y divulgará científicamente sus contenidos con la publicación, en 1899, de su
obra «Sozialpädagogik. Theorie der
Willensbildung auf der Grundlage der
Gemeinschaft».
066-069 pedagogia social 3/16/10 9:12 AM Page 67
Cuando la Educación Social, a la que
identificamos como el objeto de estudio
formal y abstracto de la Pedagogía Social,
está adquiriendo un creciente protagonismo en los estudios universitarios de
Grado y Posgrado en el Espacio Europeo
de la Educación Superior (EEES), prolongado en líneas de investigación y desarrollos profesionales de amplio recorrido
temático, volver a las palabras que
Ortega y Gasset pronunciaba hace ahora
cien años, va mucho más allá de un simple – y, sin duda, merecido – testimonio
histórico, al que avalan, hoy como ayer,
la relevancia de sus argumentos, en clave
política y pedagógica.
En los escenarios de la política, su afán
de entonces y el nuestro de ahora por
observar a Europa y a sus realidades
nacionales como una tarea a cumplir, un
problema a resolver, un deber… Al que
las reiteradas crisis han ido laminando
en sus múltiples tentativas de construir
un proyecto civilizatorio más inclusivo y
compartido, por mucho que se haya
avanzado en la apertura de sus fronteras
interiores o en la integración de algunas
de sus estructuras más visibles en el
orden político, económico y social. Una
Europa a la que Ortega veía como solución de los males de España (también de
los que afectaban a otros países),
haciendo de su regeneración un deseo y
de la europeización – que no del eurocentrismo – el medio de satisfacerlo.
Y en el terreno de la pedagogía su anhelo,
con el que también coincidimos, de ver
satisfecho el ideal de una educación que
transcienda al individuo biológico para
hacerlo partícipe del tejido social que
abarca la familia y la ciudad, el aire de las
calles y de los paisajes. O, más aún, de un
espíritu democrático que ha de llevar a
cada comunidad y a todos los pueblos a
constituirse en auténticas escuelas de
humanidad. Lo expresaba Ortega y Gasset
rescatando las visiones profundas de
Platón, cuya pedagogía – social – parte de
que “hay que educar la ciudad para educar al individuo”, y las genialidades de
Pestalozzi, para quién la escuela “es sólo
un momento de la educación: la casa y la
plaza pública son los verdaderos establecimientos pedagógicos”.
No estamos muy lejos de esta paideia, vieja
y nueva a la vez, que nos recuerda cotidia-
namente que la vida educa densa e intensamente. Que muy a menudo lo hace allí
donde la “ejemplaridad pública” (Gomá,
2009) posibilita que la individualización y
la socialización coincidan en un mismo
proceso. Aunque, para lograrlo, debamos
adentrarnos en las propuestas concretas y
en las acciones tangibles. Algo que Ortega
y Gasset, siempre atento a las incitaciones
de su tiempo y a las misiones pedagógicas
que deberían emprenderse, no supo traducir suficientemente en hechos…
Acaso porque su acción, más allá de sangrar por las heridas de cierto “aristocratismo” intelectual y social – que según
Gomá inhabilita definitivamente la
ejemplaridad orteguiana “para el
proyecto de una paideia democrática” –,
tenía otros horizontes y logros: los de un
magisterio creativo, vitalista e iluminador, cuyos tránsitos por el conocimiento,
el pensamiento y la palabra pocos alcanzaron como él. De igual modo que fueron y son pocos los que se atreven a referirse a la pedagogía como “la ciencia de
transformar las sociedades”, aunque
sean muchos los que expresen hasta la
saciedad de la retórica que los nuestros
son problemas pedagógicos.
066-069 pedagogia social 3/16/10 9:12 AM Page 68
pedagogia social
Globalización y
acción comunitaria:
responsabilidades
personales y pactos
socioculturales
Xavier Úcar
Universitat Autònoma de Barcelona,
Departament de Pedagogia Sistemàtica i Social
Cumprindo o Estatuto Editorial, a Página respeita
a grafia original do texto
I
68 69
PRIMAVERA 2010 I N.º188
Hace años que desde los diferentes informes mundiales elaborados sobre la cultura se enfatizó la necesidad de entender
el desarrollo no como crecimiento económico, sino como un proceso que
aumenta la libertad efectiva de sus beneficiarios para llevar adelante cualquier actividad a la que atribuyen valor (UNESCO,
1997).
Para que esta libertad sea realmente efectiva es necesario apostar por un pacto
sociocultural a nivel global. La diferencia
entre un pacto y un contrato es que el
segundo es legitimado por una instancia
externa que asegura – con incentivos o
sanciones – su cumplimiento. En el
pacto, sin embargo, la legitimidad es asegurada por la confianza mutua entre las
agencias implicadas y, en este sentido, el
incumplimiento del mismo ni siquiera
se contempla.
Desde mi punto de vista, el paso de la
heteronomía a la autonomía supone,
necesariamente, el paso del contrato al
pacto como forma de relación. Un pacto
sociocultural que se manifieste y construya sobre la topografía del bucle. Que se
inicie en lo comunitario y en lo local y se
extienda, con niveles progresivos de complejidad, a lo regional, a lo nacional, a lo
transnacional y a lo global. Y que se reencarne de nuevo, cada vez con un rostro
emergente, en lo local y comunitario. En
realidad lo único que diferencia a las
dinámicas comunitarias de las de la globalización es el nivel de complejidad. Un
pacto sociocultural que sea el resultado de
la puesta en juego de los principios metodológicos básicos de la acción comunitaria. Un pacto que, en consecuencia:
– se enmarque en la democracia;
– se construya a través de la participación de las diferentes voces implicadas;
– se desarrolle a través de la deliberación y el diálogo;
066-069 pedagogia social 3/16/10 9:12 AM Page 69
– se comparta y contraste a través de la
negociación;
– se cosifique o, en otros términos, se
tangibilice en consensos que muestren los acuerdos y desacuerdos, las
convergencias y divergencias.
Han de ser estas cosificaciones – en
forma de protocolos globales que se
actualizan y encarnan en los diferentes
niveles intermedios hasta llegar a lo
local y comunitario – las que den forma
a una verdadera glocalización, que, por
un lado, maximice las ventajas la globalización en lo local, por ejemplo posibilitando el conocimiento y el acceso de
las personas a realidades y culturas que,
de otro modo, les resultarían inaccesibles. Y maximice también las ventajes
de lo local en lo global. En este caso,
comunicando y compartiendo singularidades.
Una glocalización de estas características
ha de buscar, también, minimizar los
riesgos y problemáticas derivados de
aquellas relaciones, sobre todo, las de lo
global al encarnarse en lo local.
Demasiadas veces relaciones colonialistas, enculturadoras o, simplemente,
homogeneizadoras, han amenazado la
diversidad y creatividad de las comunidades y las singularidades.
Hemos imaginado estos pactos socioculturales sobre la topografía de una espiral
que debería ser dinámica y estar en perpetuo estado de actualización. Desde
nuestro punto de vista este itinerario de
pactos socioculturales dibuja una geografía que puede ayudar en la ecualización de los riesgos y las ventajas de las
relaciones entre lo global y lo local.
Un pacto de estas características puede
parecer utópico en unos contextos
socioculturales como los actuales en los
que, entre otras cosas, se habla – como
han apuntado Bauman y Sennett – de
un debilitamiento progresivo del carácter por efecto, precisamente, de dichos
contextos. Requiere, sin embargo, desde
mi punto de vista de, al menos, dos
requisitos.
En primer lugar, la creencia y la confianza en que tales pactos son posibles.
Una confianza que, como señala
Giddens, supone arrojarse a la entrega,
manifestar una fe irreductible. Sin confianza básica no hay acción, no hay actividad y como apunta Dahrendorf, ésta
última se constituye como uno de los
pasos ineludibles en cualquier política
de libertad que pretenda aumentar las
oportunidades socioculturales de las
personas.
En segundo lugar, hay que apostar por
unos compromisos que son, antes que
nada, personales; cada uno de los cuales
– ya sean comunitarios, nacionales,
transnacionales o globales – son asumidos por personas concretas, autónomas
y, por tanto, responsables.
Coincido con Touraine en ubicar al
sujeto en el centro de la revolución, si es
que aún somos capaces de encontrar
algún sentido en un concepto tan devaluado. Los pactos – al igual que los compromisos – son necesariamente personales aunque sean tomados en contextos
organizativos o institucionales. Y eso
sólo puede significar reasunción de protagonismos y responsabilidades ya que,
como atinadamente apunta Sousa
Santos, los conflictos de responsabilidad
siempre acaban condicionando, de una
u otra manera la democracia, la participación y la transparencia de las organizaciones e instituciones.
Las estructuras no pueden ser, de ninguna manera, coartadas para la difuminación y disolución de las responsabilidades. Las decisiones en cualquier
ámbito de la vida, sean individuales o
colegiadas, son siempre tomadas por
personas, aunque lo hagan en nombre
de las organizaciones o instituciones a
las que representan. Es a esas personas a
las que hay que exigir la responsabilidad
y el compromiso con las decisiones
tomadas, las acciones realizadas y las
consecuencias de las mismas. Entiendo
que la responsabilidad es uno de los
valores claves sobre los que fundamentar la intervención socioeducativa y el
trabajo comunitario.
Un último apunte en relación a la responsabilidad. Numerosos autores se han
referido a las actividades y conductas de
desresponsabilización generadas por
efecto de las nuevas tecnologías.
Entramos en los mundos virtuales bajo
la piel de avatares que diluyen nuestro
sentido de la responsabilidad respecto a
las acciones que desarrollamos actuando
a través de ellos. No es extraño que este
sentido de desresponsabilización, sobre
aquello que hacemos en el ciberespacio,
haya podido extenderse también a las
relaciones y acciones desarrolladas en el
mundo físico. Como hemos apuntado,
las intervenciones socioeducativas que
configuran el trabajo comunitario – sea
en el plano físico o en el virtual – buscan
precisamente lo contrario: la responsabilización de cada persona de las acciones
que realiza y de las consecuencias de las
mismas.
070-071 afinal onde está a escola 3/16/10 9:13 AM Page 70
afinal onde está a escola
Lições do Haiti
Roberto Marques
Marcello Casal Jr / ABr
Rede Pública Municipal do Rio de Janeiro
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PRIMAVERA 2010 I N.º188
São muitos os exemplos de utilização da
Escola com o intuito de fortalecer o sentido de pátria ou unidade de uma nação.
Algumas disciplinas, nessas horas direcionadas para isso, ganham força, como
a História, o ensino de uma língua e a
Geografia.
Há algum tempo tomei conhecimento
disso em relação à unificação alemã, no
século XIX. Se, nesse caso, houve
mesmo um projeto tão intencional
assim, a sua efetivação ou não, ou
mesmo os seus desdobramentos, são
questões que não despertaram tanto
interesse em mim quanto a própria exis-
tência do projeto. A percepção de que os
conhecimentos escolares (o que quer
que sejam) ultrapassam as paredes das
salas de aula, é algo que deveria estar na
raiz de qualquer discussão sobre a
Escola, em qualquer canto.
Por exemplo, no Rio de Janeiro, a atual
Secretaria de Educação constatou que os
alunos não aprenderam alguns conteúdos julgados por ela importantes. Nesse
caso, considera como ‘falha’, aquilo que
não aconteceu, a falta. Porém, entendo
que o mais grave, o que poderia ser discutido com mais profundidade é o que a
Escola veio e vem ensinando. Mesmo
070-071 afinal onde está a escola 3/16/10 9:13 AM Page 71
Tal compartimentação tem conseqüências que a questão do Haiti coloca na
ordem do dia. O terremoto não é o problema daquelas pessoas, mas um dos
problemas. Talvez se torne mais grave
UN Photo / Logan Abass
O que acontece hoje com o Haiti – e não
no Haiti – é algo emblemático.
Vejo campanhas de arrecadação de alimentos, leite, água, dinheiro, etc., para
ajudar as vítimas do terremoto que derrubou sem piedade praticamente toda a
capital do país.
São ações muito bem realizadas, em gestos claros de solidariedade, numa
demonstração de que o ser humano e as
sociedades são capazes de se mobilizar e
utilizar energia na construção de propostas comuns e que existem valores compartilhados para além das nacionalidades e diversidades culturais.
As pessoas que aderem às campanhas
fazem suas doações a partir das informações que recebem e daquilo que aprenderam que pode e deve ser feito.
Aprenderam nas escolas dados estatísticos sobre o Haiti: um dos países mais
pobres do mundo, com os piores indicadores da América Latina, sua história
longa de intervenções e outros absurdos.
No entanto, é a tragédia de um terremoto o que nos mobiliza.
O conhecimento desses dados e da sua
história, contada numa linearidade e
nos fatos destacados, não é capaz de nos
mobilizar para as questões do Haiti. Só
o terremoto. Aprendemos que cada país
cuida de si e alguns cuidam dos outros,
pois aprendemos a objetificar as relações entre pessoas e entre povos, de
maneira superficial e sem pertencer a
elas.
UN Photo / Logan Abass
porque a simples constatação do hiato
nesse ou naquele conteúdo, pode levar a
um tratamento, equivocado, do conhecimento como um objeto pronto e acabado.
Se a Escola é uma construção social, mergulhar nessa questão significa questionar, também, o contexto e a construção
dessa mesma sociedade e pensar o seu
tempo e espaço.
do que a destruição material porque
fragilizou ainda mais o país e o abriu a
mais intervenções. Mas, nessa mesma
lógica que fraciona e segmenta o
conhecimento, o mundo e as coisas, e
que é ratificada na escola, sentimos que
nossa tarefa não vai muito além da
doação – material ou não, seja de forma
individual ou em conjunto.
Porém, se realmente aprendêssemos
que o Haiti é produto e obra local de
relações em escala ampliada, sucesso de
um modelo, provavelmente as ações de
apoio não seriam apenas as pontuais.
É possível que cobrássemos dos governos a suspensão das dívidas e o ressar-
cimento do que lhes foi espoliado ao
longo de décadas e décadas. Ou que
não nos limitássemos a comprar alimentos para doação, mas obrigássemos
as multinacionais do setor, que a tantos
haitis devem seus fantásticos lucros, a
enviar o que fosse necessário ao país.
Talvez fizéssemos o mesmo com os
bancos.
Mas, isso seria romper com lógicas que
nos aprisionam no individualismo e
sustentam o cinismo. Por isso, entendo
que outra forma de ajuda é pensar qual
Haiti trazemos para a Escola: o que nos
pertence ou a parte de uma ilha caribenha?
072-073 reconfigurações 3/16/10 9:23 AM Page 72
reconfigurações
Educação e desenvolvimento:
agora somos todos soldados?
“Neste momento, como
eu, e seguramente os
nossos diplomatas e os
nossos militares, as ONG
americanas estão no
terreno servindo e
sacrificando-se nas linhas
da frente da liberdade.
(...) Falo a sério quando
digo que devemos
manter as melhores
relações com as ONG,
que são para nós uma
força multiplicadora, tão
importante como a nossa
equipa de combate”.
[Colin Powell,
ex-secretário de Estado dos EUA]
Mario Novelli
Universidade de Amesterdão (Holanda)
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PRIMAVERA 2010 I N.º188
Este discurso de Colin Powell numa
Conferência Nacional de Política Externa
para líderes de organizações não governamentais (ONG) tornou-se um exemplo
muito citado da crescente preocupação
de muita gente da comunidade internacional do desenvolvimento acerca da
cada vez maior militarização do sector.
Quer dizer, as agendas das organizações
humanitárias e do desenvolvimento
estão a ser apoderadas pelos poderosos
interesses militares do ocidente.
O ambiente pós-11 de Setembro levou os
Estados Unidos da América (EUA) e
outras potências ocidentais a darem
prioridade à preocupação com o ‘terrorismo’ e a integrar todos os outros aspectos da política governamental sob o chapéu deste objectivo. Em Junho de 2008,
a USAID [United States Agency for
International Development] publicitou a
sua nova ‘política de cooperação civil-militar’, explicando a sua abordagem
“3Ds”, que incorpora a defesa, a diplomacia e o desenvolvimento, assumindo o
desenvolvimento como um “elemento-chave de qualquer esforço governamental contra-terrorista e contra-insurreccional”. Vários governos ocidentais (p. ex.
Austrália, Canadá, Rússia) seguem agora
explicitamente esta abordagem dos 3Ds.
Enquanto que, para alguns, o renovado
compromisso dos governos ocidentais
com a importância do desenvolvimento
pode ser bem-vinda, para a comunidade
do desenvolvimento, esta ‘perspectiva
governamental’ traz consigo o perigo de
ser hegemonizada pela ainda mais poderosa ala da segurança dos governos
nacionais.
À medida que o fracasso no Iraque e no
Afeganistão é cada vez mais evidente,
assiste-se a uma crescente ênfase, por
parte das forças de ocupação, nas estratégias do ‘coração e das mentes’ (ler desenvolvimento), a par das suas actividades
militares. Isto levanta a questão de saber
como é que as ONG internacionais, em
zonas de conflito e de pós-conflito, separam os interesses ‘militares’ e de segurança e as suas actividades de ‘desenvolvimento’ e ‘humanitárias’.
A fusão da segurança com o desenvolvimento parece funcionar como um processo de reinterpretação dos objectivos e
das práticas do desenvolvimento – perspectivando as suas actividades como
possuindo um potencial de ‘benefícios
de segurança’, ocupando o sector da educação um lugar central.
Uma ilustração desta prevalência das
referências ao papel da educação nas
estratégias contra-terroristas pode ser
encontrada nos «Relatórios Nacionais
sobre o Terrorismo» do Departamento de
Estado dos EUA. Por exemplo, no relatório de 2007, Capítulo 5 (Paraísos de
Segurança para o Terrorismo), a subsecção
7 centra-se na Educação Básica nos Países
Muçulmanos, sublinhando um “aumento
072-073 reconfigurações 3/16/10 9:23 AM Page 73
da atenção na educação em países predominantemente muçulmanos e naqueles
com uma significativa população muçulmana. (...) O desafio foi o de aumentar a
capacidade do país para fornecer acesso
universal à educação básica e à literacia”.
Claramente, no caso do Afeganistão, a
educação tornou-se num campo de batalha central da guerra, e o mesmo parece
estar a ocorrer na Somália e no Iraque.
O dilema para os trabalhadores voluntários da educação é que as estratégias antiterroristas e anti-insurreccionais das
potências ocidentais estão a ser percepcionadas como veículo principal para o
desenvolvimento de intervenções educativas. E se as actividades podem permanecer inalteradas, a sua representação
discursiva significa que elas podem ser
interpretadas como parte do esforço de
guerra: modos civis de contra-insurreição, com o objectivo de ganhar os corações e as mentes e de produzir certos
tipos de subjectividades.
A situação piorou com o estabelecimento, por parte das tropas de ocupação
ocidentais no Iraque e no Afeganistão,
de equipas provisórias de reconstrução,
que, sob controlo dos militares, também
levam a cabo actividades como a construção de escolas. Em 2009, uma aliança
de ONG a operar no Afeganistão produziu um relatório condenando o comportamento das tropas de ocupação ocidentais. Alegaram que os militares (particularmente dos EUA e da França) continuavam a usar “veículos brancos, não sinalizados, convencionalmente usados pelas
Nações Unidas e agências de auxílio” e
desenvolviam trabalho de infra-estrutura
tradicionalmente feito pelas organizações de desenvolvimento como parte das
suas estratégias contra-insurreccionais de
‘corações e mentes’. Tratava-se, diziam,
“de desfazer a distinção civil-militar (...)
e tal contribuiu para uma diminuição da
independência percebida das ONG, para
aumentar os riscos dos trabalhadores
voluntários e para reduzir as áreas em
que as ONG podem operar com segurança”.
Além do óbvio perigo para os trabalhadores do desenvolvimento, esta estratégia está também a minar a autonomia e
a credibilidade das agências de desenvolvimento e a eliminar as possibilidades
potencialmente progressivas do seu trabalho. O nosso silêncio é cumplicidade.
074-075 educadores da paz 3/16/10 9:24 AM Page 74
educadores pela paz
Encontro
galego-português
em Leiria
A construção da Escola Democrática
exige, dos vários actores, o exercício de
uma cidadania crítica, assente em práticas de liberdade, participação, pluralismo, justiça, responsabilidade e solidariedade. Neste sentido, é imprescindível
incrementar – a nível internacional,
nacional, regional e local – modelos e
processos de formação, educação e cultura que criem alternativas cada vez mais
solidárias, com vista à melhoria da
humanidade. A responsabilidade pela
paz é tarefa de todos.
É com estes pressupostos que, de 23 a 25
de Abril, se realiza em Leiria (Escola
Superior de Educação e Ciências Sociais)
o XXIV Encontro Galego-Português de
Educadores pela Paz – não se trata apenas
de inventar lugares de profecia e de caridade, mas de arquitectar formas concretas de intervenção que valorizem o paradigma democrático, de matriz cultural,
social e local da educação, centrado na
transformação e emancipação da pessoa
humana.
A iniciativa – que conta com o apoio da
PÁGINA (entre outros) – é organizada
pela Associação Galego-Portuguesa de
Educação para a Paz (AGAPPAZ);
Educadores Pola Paz/Nova Escola
Galega; Faculdade de Ciências da
Educação da Universidade de Vigo;
ESECS/Leiria e Movimento dos Educadores pela Paz de Portugal (MEP). As
inscrições decorrem até 10 de Abril.
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PRIMAVERA 2010 I N.º188
074-075 educadores da paz 3/16/10 9:24 AM Page 75
23 de Abril
16:00h
18:00h
19:15h
19:30h
22:00h
15:00h
Recepção
Jogos cooperativos: Cândida Santos e Belén Piñeiro
(Agappaz)
Abertura e boas-vindas: Helena Proença (presidente da
Agappaz/Portugal); Carmen Simón (coordenadora da
Agappaz); Luís Barbeiro (director da ESECS/Leiria)
Conferência Educação, Justiça e Solidariedade na
Construção da Paz: Isabel Baptista (Univ. Católica/Porto);
Xosé Manuel Fernández (Univ. Vigo/Ourense).
Moderadores: Cathryn Teasley (Univ. Corunha) e Emília
Gregório (Junta Directiva da Agappaz)
Apresentação das organizações, conferencistas e participantes; actuação do grupo musical Luangraal
24 de Abril
09:30h
10:30h
11:30h
12:00h
13:15h
Debate Mediação Sócio-Pedagógica na Escola: Ricardo
Vieira (ESECS/Leiria); Pedro Silva (ESECS/Leiria); Rita
Gradaille (Univ. Santiago de Compostela); Rosa Marí
(Univ. Castilla – La Mancha). Moderadores: Américo
Peres (Univ. Trás-os-Montes e Alto Douro e Junta
Directiva da Agappaz); Manuel Rábade (Educadores
Pola Paz – Nova Escola Galega)
Trabalho em grupos
Pausa
Apresentação/discussão em grande grupo
Foto da Paz
18:30h
22:00h
Oficinas simultâneas: “Danças do Mundo” (Paulo
Ferreira, ESE/Lisboa); “Ferramentas para a Formação
de Professores Tutores: a entrevista motivacional e a
psicologia positiva” (Ramiro Alvárez, professor, psicólogo e escritor de Lugo); “Teatro para a Paz e Paz pela
Expressão Teatral” (Marcelino Sousa Lopes, Univ. Trás-os-Montes e Alto Douro, e Mariana Peres, psicóloga e
doutoranda Univ. Santiago de Compostela);
“Confecção de Bonecos de Papel” (Bene Tielas, ilustradora, e Bernardo Carpente, Agappaz); “Comunicação
Afectiva = Comunicação Efectiva?” (Carmen Marqués,
professora de música, Lugo); “Oficina de Fotografia”
(Andrei Kowalski e Maria Kowalski, ESECS/Leiria)
Visita guiado por Leiria
Festa da Paz
25 de Abril
10:00h
11:30h
13:00h
13:15h
Apresentação de experiências, comunicações e materiais – coordenação: Alcides Lé e Noa Camaño
(Agappaz)
Avaliação do Encontro e Assembleia Anual da
Agappaz – coordenação: Teresa Ferreira e Marisa
Bouzo (Agappaz)
Gaitas-de-foles e largada da Pomba da Paz (Castelo de
Leiria)
Almoço de encerramento
Informações/Inscrições: Portugal: EB1 n.º 4 do Barreiro: 212 156 303 (Helena Proença); [email protected] –
Galiza: Educadores Pola Paz/Nova Escola Galega: 981 56 25 77; www.nova-escola-galega.org – www.educadorespolapaz.org
Feira tem projecto de intervenção precoce no Pré-Escolar
O pelouro da educação da Câmara
Municipal de Santa Maria da Feira vai pôr
em prática um projecto-piloto com o
objectivo de detectar necessidades educativas especiais em crianças até à idade
escolar. A medida será para já implementada em três jardins-de-infância do concelho, alargando-se posteriormente aos 86
estabelecimentos da rede pública da autarquia.
A iniciativa, intitulada “Sorrisos felizes”, tem
como principal missão diminuir o número
de alunos que chegam ao 1º Ciclo do
Ensino Básico com dificuldades de aprendizagem. A avaliação psicológica, no sentido
de intervir o mais precocemente possível e
evitar atrasos de desenvolvimento nos mais
pequenos, é o primeiro passo para que se
possam atingir os três propósitos que
orientam o projecto: maximizar o potencial
de desenvolvimento de cada criança; proporcionar apoio e assistência à família; rentabilizar os benefícios sociais dos menores e
respectivos agregados familiares.
Para dar corpo a esta intervenção, a autarquia conta com uma equipa de psicólogos
que trabalhará em parceria com os educadores dos jardins-de-infância. O projecto
implicará, ao mesmo tempo, a celebração de
protocolos de colaboração com diversas
entidades, entre as quais se conta um agrupamento de escolas, de forma a maximizar
os recursos e assegurar o reencaminhamentos nas valências da terapia da fala, psicologia e terapia ocupacional. Detectados os
casos, e em conformidade com cada situação, os técnicos direccionam posteriormente a criança para o acompanhamento
mais adequado.
076-077 olhares de fora 3/16/10 9:25 AM Page 76
olhares de fora
O humanismo
concreto e a
“questão do certo”
“Sento-me aqui nesta sala vazia e relembro. Uma lua
quente de Verão entra pela varanda, ilumina uma jarra
de flores, e escuto o indício de um rumor de vida, o
sinal obscuro de uma memória de origens. (...) Tento,
há quantos anos, vencer a dureza dos dias, das ideias
solidificadas, a espessura dos hábitos, que me
constrange e tranquiliza. Tento descobrir a face última
das coisas.”
[Vergílio Ferreira, «Aparição»]
Ivonaldo Neres Leite
Universidade do Estado
do Rio Grande do Norte (Brasil)
Cumprindo o Estatuto Editorial, a Página respeita
a grafia original do texto
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PRIMAVERA 2010 I N.º188
Por que se deve fazer o que é certo? E, o
que é o certo? Ao realçar estas indagações,
Kant lançou-se na busca por um fundamento racional para as questões ético-morais. A formulação que ele apresenta
como resposta não é nada desprezível:
uma regra de conduta moral certa é
aquela que, sendo adotada universalmente por todos, torna o mundo mais
feliz.
Por outro lado, as religiões se encarregaram de criar preceitos morais de tal
forma que a pergunta “por que se deve
fazer o que é certo?” não precisava de
resposta lustrada pela razão. Aliás, nem
mesmo haveria sentido em fazê-la. Uma
única resposta podia ser dada: para agradar, ou pelo menos não desagradar, os
deuses. Afinal, desrespeitar preceitos religiosos significa, conforme essa compreensão, provocar a reacção divina –
por via dos mais variados tipos de castigos – e a condenação na suposta vida do
pós-morte.
Embora não seja de se desconsiderar a
formulação kantiana, há que se reter,
entretanto, por outra parte, que o ad infinitum da metafísica não permite apreen-
076-077 olhares de fora 3/16/10 9:25 AM Page 77
der que os conceitos
variam no tempo e no
espaço. Como bem realçou Leôncio Basbaum, a
“questão do certo” relaciona-se à temática do
humanismo, que deve,
no entanto, ser adjetivado como concreto. Isto
é, diferente do humanismo transcendente e
vulgarmente compassivo, o humanismo concreto concebe o
ser humano situado em contextos vivos,
em situações concretas, nas quais ele vive,
convive e intervém como ente em busca
de superação.
O humanismo concreto não se caracteriza apenas pelo reconhecimento do ser
humano abstrato, genérico, mas é marcado pelo reconhecimento do ser total,
dentro de uma determinada situação –
historicamente variável – perante a qual
ele se deve autonomizar.
Se as épocas e as situações são historicamente variáveis, a dimensão éticomoral – como esfera da indagação valorativa e de juízos normativos dessa
valoração – deve ser concebida tendo o
factor contextual como um dos seus pressupostos de conceptualização. Dentre
outros aspectos, a moral configura-se
como uma forma de autodefesa das
sociedades, em sua luta contra os instintos do ser individual e as ações colectivas de mudança – sociologicamente,
poder-se-á dizer, a moral consubstanciase em factos sociais cuja transgressão
requer um preço a ser pago.
A “questão do certo”, transcendendo o
formalismo abstracto da metafísica, só
ganha sentido se a sua inteligibilidade
estiver conectada à efetivação do humanismo concreto – mesmo que, vá lá,
admitamos, o humanismo concreto signifique o delineamento de um imperativo categórico, à maneira kantiana. Mas
dois de seus postulados superam o universo da mera abstracção, quais sejam: o
redescobrimento e a valorização antecedente do ser humano; e a sua autonomização e totalização.
Ou seja, o humanismo concreto assume
como condição básica a necessidade de
integrar o ser humano na posse de si
mesmo e devolver-lhe a capacidade
autónoma de escolha. Compreende que
o ser humano, como ser social, é antes
de tudo um complexo de relacções, que
não existe em si e por si, mas é o resultado de um processo histórico onde
estão presentes relacções de poder, desigualdades, interesses em jogo, etc.
Do ponto de vista analítico, parece, portanto, insuficiente chancelar proclamações a-históricas como norma de con-
duta humana, do tipo
“amai-vos uns aos
outros”. Mais do que
isto, importa ter presente imperativos de
hominidade, das condições que produzem o
ser humano e que o
colocam em relacção
no contexto em que
ele está situado.
Os seres humanos não
nascem bons nem maus. Esses são conceitos que adquiriram significação no
decurso da história e que foram internalizados pela consciência social a partir
da vivência das pessoas em seu habitat.
As ideias que as pessoas têm de si resultam da sua cultura. Variam de acordo
com o patamar civilizacional, aqui e
acolá, segundo as especificidades do
meio natural e social, bem como de
acordo com as convicções correntes nos
grupos em que as pessoas estão integradas e conforme as crenças que lhes
foram inculcadas espiritualmente.
A efetivação do humanismo concreto é
um incessante devir. Uma totalização
dialética. Algo que não é estranho às afinidades eletivas de Goethe. Incursão
moral e psicológica no jogo da atratividade e repulsa. Alegoria química pela
qual os elementos se separam para se
unirem. Crepúsculo da existência,
opções nas fronteiras da ação. Síntese de
impossibilidades. A “questão do certo”
potencializa-se pela práxis do humanismo concreto. Sem recusar enfrentar a
face inusitada da vida e a grande insônia
do mundo.
078-079 cultura e pedagogia 3/16/10 9:45 AM Page 78
cultura e pedagogia
Crianças
não escapam
à volúpia
do mercado
“A característica mais proeminente da sociedade de
consumidores – ainda que cuidadosamente disfarçada
e encoberta – é a transformação dos consumidores em
mercadorias”.
[Zygmunt Bauman]
Paula Deporte de Andrade
Rede Municipal de Educação de Venâncio Aires,
Rio Grande do Sul
Marisa Vorraber Costa
Universidade Federal do Rio Grande do Sul,
Universidade Luterana do Brasil
Cumprindo o Estatuto Editorial, a Página respeita
a grafia original do texto
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PRIMAVERA 2010 I N.º188
Conforme vamos refletindo e também
conhecendo e nos apropriando do pensamento de diversos analistas da contemporaneidade – Bauman, Jameson,
Harvey, Bocock, Sennet e muitos outros
–, vamos fortalecendo o entendimento
de que o consumo se transformou em
dominante cultural, em eixo organizador da sociedade.
Bauman afirma que na condição pósmoderna, vivemos em uma “sociedade
de consumidores”, na qual o consumo se
manifesta como ímpeto constante e irrefreável de obter para imediatamente descartar e substituir, num movimento em
que a posse está marcada pela efemeridade, pela volatilidade, diferentemente
da “sociedade de produtores” em que o
valor da posse dos objetos se expressava
por sua solidez e durabilidade [Zygmunt
Bauman: «Vida para consumo. A transformação das pessoas em mercadorias»,
2008].
Na mesma linha de reflexão, Bocock, ao
abordar a diferença entre o consumo no
capitalismo moderno e no pós-moderno,
salienta que o consumo, no final do
século XX, transformou-se em um fenômeno social e cultural deixando de ser
unicamente econômico. Ele está relacio-
Projeto Criança e Consumo / Instituto Alana (Brasil)
078-079 cultura e pedagogia 3/16/10 9:45 AM Page 79
nado com aquilo que os indivíduos são
ou desejariam ser, e também com os processos implicados na identidade [Robert
Bocock: «El Consumo», 2003].
Trazemos essas abordagens sobre o consumo de hoje para incitar os leitores e
leitoras a pensarem um pouco sobre o
enredamento da infância nesta trama.
Assim como o consumo é ressignificado a
partir da segunda metade do século XX, o
mesmo acontece com a infância e as
crianças no interior desta nova lógica que
configura a “sociedade dos consumidores” de que nos fala Bauman. Nela, “todo
mundo precisa ser, deve ser e tem que ser
um consumidor por vocação (ou seja, ver
e tratar o consumo como vocação)”.
E quando o autor diz “todo mundo”, isso
inclui particularmente as crianças,
potenciais consumidoras, seja pelos
recursos que mobilizam em vista da centralidade que ocupam nas famílias de
hoje, pela influência que exercem sobre
as escolhas de seus pais, ou porque as
crianças consumidoras de hoje são os
jovens e adultos consumidores de amanhã. Para que a formação das crianças
ocorra em consonância com a cultura do
novo capitalismo, onde as fronteiras
entre consumo e política se confundem,
um conjunto articulado de pedagogias
culturais entra em ação.
Schor nos diz que a partir da metade do
século XX, em especial nas décadas de
80 e 90, emergiu uma nova aliança – a
aliança entre crianças e consumo. A produtividade das crianças para o consumo
e para o mercado econômico começa a
ganhar relevância e espaço por meio das
campanhas publicitárias, onde o objetivo central é fazer destas crianças consumidoras [Juliet Schor: «Born to Buy. The
commercialized child and the new consumer
culture», 2004].
Neste artigo, pretendemos chamar a
atenção para a publicidade, a partir de
uma pesquisa que investiga peças publicitárias de revistas de grande tiragem,
com circulação semanal, e o uso que
nelas se faz de imagens de crianças.
Constatou-se, em concordância com as
análises de Schor, que quando a publicidade aciona crianças para vender determinado produto, vende-se não apenas o
produto, mas uma representação de
infância útil ao mercado.
E vende-se tanto a imagem física, o corpo
destas crianças, quanto padrões de beleza
e de conduta. Mercantiliza-se e molda-se
uma infância própria aos interesses de
mercado, tanto como estratégia para vender mercadorias como para vender e consumir as próprias crianças. Meninos e
meninas ainda bem pequeninos já sobem
nas passarelas da moda e suas fotos inundam campanhas publicitárias que apontam tendências e marcas. Seus corpos
infantis são crescentemente erotizados e
transformados em mercadorias que vendem e sugerem muito mais do que o
desejo de adquirir simples produtos.
Pelos estudos que temos realizado, as
imagens de crianças que encontramos
em peças publicitárias indicam ser este
mais um sintoma de uma sociedade que
não faz exceções. Sugerem também, sob
outro ângulo, que devemos ficar atentos
à afirmação de que “o advento da instantaneidade conduz a cultura e a ética
humanas a um território não mapeado e
inexplorado” [Bauman: «Modernidade
líquida», 2001].
É assustador pensar que na sociedade de
consumidores nem mesmo as crianças
pequenas escapam da volúpia do mercado.
080-083 REPÚBLICA DOS LEITORES 3/16/10 9:44 AM Page 80
república dos leitores
Justiça global:
uma questão política,
antes de tudo o mais
I
80 81
PRIMAVERA 2010 I N.º188
É, hoje, comum ouvirmos falar de cidadania global, dando a entender que
todos somos cidadãos do mundo e que
esta questão ultrapassa, há muito, o estatuto legal da pertença a um Estado, com
o consequente conjunto de direitos e
deveres de cidadania.
Se a última afirmação é verdadeira, a primeira está longe de o ser. Há muita gente
sem qualquer poder de participação,
mesmo a nível local – desde logo, todos
os que vivem abaixo de um determinado
nível de bem-estar, quer vivam em países
subdesenvolvidos quer vivam nas margens do mundo rico, onde o crescente
aumento do desemprego veio pôr a nu
fragilidades e situações de exclusão antes
insuspeitadas.
Deveríamos, por isso, falar, em primeiro
lugar, de justiça global. Difícil? Obviamente, porque os desafios a que nos
enfrentamos estão para lá da retórica e
da proclamação de princípios e de boas
intenções. São desafios de ordem prática,
exigem vontade, pragmatismo e acção
concertadas, só possíveis se levarmos a
sério a interdependência e a solidariedade, entre todas as pessoas e todos os
povos, vivam na nossa rua ou num qualquer lugar do mundo. Isto implica que a
política leve a sério o princípio da igualdade de oportunidades, pilar fundamental da equidade social, e sem o qual não
poderemos falar de verdadeira democracia, de respeito pelos direitos humanos,
de cidadania ou de desenvolvimento. As
maiores dificuldades à justiça são o confronto de interesses, onde sempre ganha
o mais forte, e o modo ultrajante como
se divide a riqueza produzida – para uns
poucos, tudo e cada vez mais, e, para a
maioria, um lugar nas margens, no
limite da sobrevivência.
Não será possível um compromisso universal sobre a Justiça que crie as possibilidades efectivas para o desenvolvimento, tendo em conta os valores da
pessoa e da comunidade, incorporando
o melhor das tradições liberal e comunitarista e, também, reconhecendo que os
povos têm em si mesmos a capacidade
de tomar nas mãos o próprio destino?
Tem de ser possível. Pois, não parece difícil, apesar de podermos ter diferentes
perspectivas sobre a vida e o modo como
desejamos e queremos vivê-la, que todos
nos reconheçamos, reciprocamente,
como seres humanos, como pessoas
“livres e iguais, em dignidade e direitos”
(Declaração Universal dos Direitos do
Homem, artigo 1º); e, igualmente, que
todos nos reconheçamos como seres
situados, num contexto e numa história,
com diferentes valores culturais, sociais,
religiosos, etc.
Este reconhecimento permitiria que
todos se pudessem olhar nos olhos, sem
laivos de sobranceria, estabelecendo relações simétricas e dando sentido e conteúdo às palavras justiça e desenvolvimento. Só no dia em que passarmos a ver
no outro (indivíduo ou país) um igual,
isto passará a ser possível. A nível individual, a questão é ética, cada um escolhe
como quer e pode agir; mas ao nível dos
países, a questão é política, é quem
governa nas mais diferentes esferas do
poder que escolhe como quer olhar para
o mundo subdesenvolvido ou em desenvolvimento.
Maria Rosa Afonso
Professora
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O ensino público deve ser o
eixo vertebrador do sistema educativo
Inegável que se torna hoje a estreita ligação entre os processos educacionais e os
processos sociais de reprodução mais
abrangentes, isto é, reconhecida a condição de concorrência e simultânea complementaridade do campo escolar e do
campo económico “comprometidos
ambos com circuitos de trocas cada
vez mais eficazes simbolicamente”
(Bourdieu), a reestruturação capitalista,
imposta a ferro e fogo nalguns países e a
golpes de mercado noutros, vem produzindo um modelo de acumulação que já
não precisa de massas trabalhadoras qualificadas, mas de uma pequena elite de
especialistas e de uma massa de trabalhadores flexíveis, descartáveis e intercambiáveis com o espectro do desemprego
como espada de Dâmocles. A escola
inclusiva deixa, então, de ser funcional
para o actual modelo económico. Como
consequência desta disfuncionalidade,
sobreveio uma crise de sentido que atravessa todo o dispositivo escolar (Maldonado).
As políticas de descentralização e de desconcentração, retirando progressivamente a tutela do Estado, vão no sentido
de um reescalonamento que dilui as formas de desinvestimento na Educação,
com tal eficácia que nem damos pela
influência da Organização Mundial do
Comércio na sua reconfiguração.
Sobretudo a partir de 1994, evidencia-se
um fortíssimo movimento consertado de
mercantilização da Educação. É assim
que ela está a ser reconfigurada, mas nós
continuamos a olhar para ela só através
do centro que era o Estado-Nação. De
mansinho, a lógica de uma “exclusão
disciplinada” vem, vigorosamente,
impondo-se. Reconvertido o discurso à
escala deste centro, a linguagem eufemística é a cortina de nevoeiro em que se
dilui a realidade
violenta, como a
fome que se está
sub-repticiamente
instalando,
afectando já não só os
visivelmente excluídos, começa a sentar-se nas cadeiras
das nossas salas de
aula, onde a indisposição de alguns
alunos, sem eufemismos, quer dizer
fome.
O retorno da fome ao Portugal Europeu
do Tratado de Lisboa, onde não se fala de
pormenores sem importância, como o
da exploração de mão-de-obra infantil
em zonas industriais, em que, no recato
da habitação, se cosem sapatos, pagos a
5 cêntimos a gáspea. Mobilizado o
alento roubado ao tempo de brincar ou
de fazer os deveres encomendados a
todos, no alheamento de alguns (que
fazer?), ao fim de coser 10 sapatos...
Apesar da crise de sentido que a atravessa, não se lhe reconhecendo alternativa, a Educação escolar é entendida
como um direito universal e um bem
público, instituída em ferramenta
imprescindível na formação emancipatória e na potenciação de convivência
cidadã. E é, por isso, uma responsabilidade colectiva que a Administração tem
o dever de garantir em condições de qualidade e de igualdade. Daí ser imprescindível que o ensino público seja o eixo
vertebrador de todo o sistema educativo
e que conte com o necessário prestígio
social para se converter na concepção
maioritária, capaz de afrontar estratégias
privatizadoras e de inculcação de lógicas
de mercadorização que se processam no
seu próprio interior, desencadeando, no
seu seio, mecanismos eficazes de fragmentação social. Afinal, o que define o
carácter público de uma instituição é a
sua subtracção às leis da oferta e da procura.
Se vivemos no país da Europa onde as
desigualdades sociais têm maior expressão e a pobreza atinge os níveis que são
conhecidos, algo diferente do que fazemos deverá ser feito – e a Universidade, e
a investigação e formação que dentro
dela se fazem, não pode a isto ficar
imune – para que as escolas públicas,
sobretudo ao nível da Educação Básica,
não sejam recipientes onde se guarda o
descartável, o excedente, mas construtoras de sujeitos que, tomando a palavra,
nela se revejam na luta por um outro
tempo, que este é de muito sofrimento.
Interrogando os próprios movimentos
anti-sistémicos, Wallerstein alerta para
que, enquanto eles permanecerem na
ambivalência sobre a orientação ideológica do sistema mundial, enquanto estiverem inseguros quanto à forma de responder ao sonho liberal, podemos dizer
que não estão em posição de travar uma
guerra contra as forças que defendem a
desigualdade no mundo.
Rosa Soares Nunes
Faculdade de Psicologia e de Ciências
da Educação da Universidade do Porto
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república dos leitores
Na escola há literatura a mais... Desculpe?
A literatura em estado cru está de volta.
É possível que durante as últimas décadas estivéssemos convencidos do contrário. Uma certa crueza literária não deve,
no entanto, confundir-se com as escritas
de grau zero. A neutralidade na escrita,
na qual Roland Barthes viu uma busca de
“inocência” imune à linguagem literária,
propriamente dita, define-se pela ausência ideal do estilo, da forma, do refúgio.
É sóbria como uma equação, às vezes
acre. Mas sempre supôs uma problemática da linguagem e do social, uma responsabilidade motivada, sobretudo, pela
ordem do pensamento e não tanto por
convenções de cunho literário, de que a
metáfora é um entre outros exemplos.
Quando durante os anos sessenta do passado século se fez mais um anúncio apocalíptico da literatura, esgotada, aparentemente, nas suas convenções artísticas e
dominada pela ideia da morte do autor,
apelava-se, porém, à necessidade de pensar o literário, e em particular o
romance, acima da discussão entre realismo e irrealismo, conteúdo e ficção,
génese e forma. Numa palavra, acima de
qualquer dicotomia. Ainda assim, tratava-se de uma problemática da linguagem, de revitalizar o literário.
Experimentar escritas, mesmo quando
parecem surgir de uma árvore sem história, implica um grau neutro de relação
com a linguagem, o que é diferente de
dizer que essa relação simplesmente não
existe. Muito pelo contrário, a obra literária que é uma obra de arte verbal,
como diria Todorov, constrói-se na
mediação entre os patrimónios linguístico e semiótico de uma cultura, e através dela subvertem-se convenções e instauram-se novas propriedades discursivas relativamente à linguagem.
Zero é, portanto, diferente de cru, porque o primeiro indica a negação das convenções (e por isso, ele é a antecipação
de coisas novas e vivas), enquanto o
segundo, prisioneiro da sua norma, vive
impassível numa impessoalidade só. Foi
por isso que, há dias, numa sessão
pública onde se discutia o papel da metáfora na compreensão do texto literário,
tive pena ao ouvir que “na escola há literatura a mais”.
A aspereza com que nos fomos habituando a interpretar o que ouvimos,
levou-me a recear o que na altura senti.
Defender a ideia de que “na escola há
literatura a mais” surge, contudo, num
contexto de investigação onde a descrição formal dos elementos linguísticos é,
para os alunos, mais importante do que o
sentido que eles têm num texto de natureza literária. E, todavia, naquele ou
noutro contexto, certamente ninguém
duvida de que ensinar literatura na escola
é importante. A diferença de posições
deve-se antes à ideia de literatura e à sua
realidade enquanto recurso educativo.
Tive pena ainda de não ter ouvido as palavras de Proust, hoje tantas vezes citado,
para quem a metáfora, vista como uma
“metamorfose das coisas representadas”,
corresponde a uma noção que vai além
do nome que se dá às coisas; é em si uma
inteligência que se deixa atingir por
outros sistemas de signos.
Como forma de pensamento e inteligência, a literatura não está a mais na escola,
mas isto não significa que os alunos, globalmente, não saibam ler e usar a linguagem em termos conceptuais e criativos, e
em especial a metáfora na compreensão
de um texto literário. Saber usar a linguagem, expressão de cujo sentido tanto nos
chegam as crenças na literacia como a
desconfiança relativamente ao seu domínio, exige saber usar o pensamento, algo
que, segundo aquela afirmação, há a
mais na escola.
É difícil que algum dia a literatura na
escola venha a ter um consenso. O valor
de um texto não pode ser medido, apenas, pelo trabalho que custou a ser
escrito. Lê-lo, muito menos.
Paulo Nogueira
Faculdade de Psicologia e de Ciências
da Educação da Universidade do Porto
Alunos e professores colaboram na edição de livro
Conceber um livro do princípio até ao final.
Foi este o projecto a que se propuseram os
alunos do 12º ano de Humanidades da
Escola Secundária Maria Amália Vaz de
Carvalho, em Lisboa. A ideia tinha nascido
no ano lectivo anterior, mas a sua concretização só agora chegou a bom porto. Os
alunos de Português ficaram encarregues
dos textos, as ilustrações a cargo dos alunos
de Artes Visuais. Intitulado «A Linha do
Pensamento, a Cor da Emoção», o livro
recentemente apresentado tem 220 pági-
nas e contou com a participação de 150
autores
A responsável pelo projecto, Conceição
Ramos, professora de Ar tes Visuais
naquela escola, afirma que o tema O Eu e
o Mundo funcionou como ponto de partida do qual “os alunos escreveram textos
reflexivos sobre a sua relação com o
mundo”. A ela juntaram-se quatro professores de Português e dois de Artes, que
aplicaram a ideia nas aulas. A partir deste
tema aglutinador, outros assuntos foram
surgindo em paralelo: o amor, a violência, a
crítica social, a alegria, a tristeza, tanto em
poema como em prosa. Prisioneiros da
indiferença, Bizarros Minutos, Caro, Quem
Somos?, são alguns dos títulos escolhidos
pelos alunos.
Este é um exemplo de projecto inovador,
transversal e inclusivo – a concepção do
livro contou com a participação de alunos
invisuais –, servindo para comprovar que os
saberes não são estanques e que o conhecimento pode ser multidisciplinar.
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Bibliotecas escolares:
uma realidade em mudança
Desde este ano lectivo, a organização e gestão das bibliotecas escolares estão a cargo de
professores bibliotecários “a
tempo inteiro”, aos quais
compete desenvolver estratégias que garantam a sua rentabilização ao serviço das escolas, dos processos formativos e
das aprendizagens dos alunos.
A propósito desta “nova” funcionalidade docente, a PÁGINA
foi ao encontro do professor
Pedro Moura, que trabalha em
duas bibliotecas no concelho
de Mafra, e cruzou-se com um
poeta que vive intensamente
os desafios da promoção da
leitura e do livro junto de
crianças e jovens.
José Paulo Oliveira
Jornalista
I
84 85
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084-089 BIBLIOTECAS 3/16/10 9:25 AM Page 85
José Fanha:
Queridas bibliotecas!
Falar de bibliotecas escolares implica falar dos desafios da
leitura e do amor pelos livros, duas presenças essenciais
no dia-a-dia de José Fanha, arquitecto “não praticante”
nascido em 1951, professor, poeta e divulgador de poesia
de enorme talento, comunicador por excelência, autor de
letras para canções, de histórias para crianças e de textos
para televisão, rádio e teatro. Patrono de várias bibliotecas escolares, pintor nas horas vagas e cidadão a tempo
inteiro, Fanha alimenta com carinho o blogue queridasbibliotecas e considera que “as bibliotecas escolares estão a
polarizar uma nova forma de trabalhar a leitura nas escolas”, constituindo a RBE “um dos instrumentos fundamentais em que pode assentar o desenvolvimento da literacia e da leitura em Portugal”.
Que balanço faz do queridasbibliotecas?
As “queridasbibliotecas” foram uma
brincadeira no seu início, uma experiência, uma tentativa de entender como é
que se trabalhava um blogue e que
impacto tinha. Rapidamente apercebi-me que tinha atraído uma quantidade
significativa de pessoas e, de repente, dei
comigo a sentir-me responsável por con-
tinuar a “alimentar” essas pessoas, muitas vezes sem rosto.
O blogue tem várias facetas…
Em primeiro lugar, trata-se do diário de
um cidadão, de um escritor, de um
homem que sente necessidade de partilhar reflexões e paixões com os outros.
Depois, trata-se de um lugar onde vou
guardar/buscar recordações de momen-
tos especiais e de amigos que tenho
vindo a cruzar numa vida que tem passado pela canção, pela rádio, pelo teatro,
pelo cinema, pela televisão, pelo ensino
e pela promoção do livro e da leitura.
Finalmente, é onde vou deixando registo
da minha passagem por escolas e bibliotecas, constituindo assim uma espécie de
diálogo prolongado com os professores e
os meninos com que me vou cruzando
ao longo do país.
Ser patrono de várias bibliotecas/centros de recursos escolares deve ser um
motivo especial de contentamento...
É uma imensa alegria. A minha infância
teve lugar na casa da minha avó, cheia
de livros e histórias. Para mim, entrar
numa biblioteca é regressar à minha casa
de pequenino – uma casa calorosa, feita
de viagens sem fim, maravilhas, mistérios, grandes amigos saídos de dentro das
páginas de cada livro. Ler é indispensável à minha vida, ao meu equilíbrio, à
minha relação comigo próprio e com o
mundo. Por isso, é fácil perceber a alegria
e emoção que tenho por ir acumulando
bibliotecas escolares a que tiveram a gentileza de dar o meu nome [EB2,3 da
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bibliotecas
Venda do Pinheiro, EB1 nº 3 do Cacém, EB1
do Olival Basto, EB2,3 de Pombais, EB2,3
Mestre Domingos Saraiva]. De alguma
forma, tratar-se-á de um reconhecimento pela minha obra na área infantojuvenil e pela atitude que tenho procurado manter de cidadão solidário e
empenhado na promoção do livro e da
leitura.
As bibliotecas escolares portuguesas
estão diferentes. Quer comentar?
Muito melhores. Estão a polarizar uma
nova forma de trabalhar a leitura nas
escolas. Neste momento, a Rede de
Bibliotecas Escolares, em conjunto com
a Rede de Leitura Pública e o Plano
Nacional de Leitura – com todas as críticas que se possam fazer –, constitui um
dos instrumentos fundamentais em que
I
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PRIMAVERA 2010 I N.º188
pode assentar o desenvolvimento da literacia e da leitura em Portugal e o esforço
para ultrapassar as nossas profundas
carências neste campo.
Há que assinalar, no entanto, a necessidade de envolver as famílias neste processo, e esse é um passo difícil e moroso.
Temos, também, de inscrever a leitura
nos temas mediáticos e torná-la uma
moda. Acima de tudo, é fundamental
conseguir que as nossas classes política e
empresarial, tão alheias à cultura e a
tudo o que diga respeito ao livro e ao
pensamento, tornem a leitura um desígnio nacional indispensável ao desenvolvimento social e económico.
Afinal, os jovens e as crianças gostam
de poesia? Fale-nos da sua experiência
nesta matéria…
Claro que os jovens gostam de poesia! A
poesia é a grande forma que os portugueses tiveram de expressar as suas alegrias e
tristezas, toda a sua identidade. Creio
que o gosto dos jovens pela poesia passa,
em grande parte, pela oralidade e pelo
desfrute da musicalidade da língua e não
pela análise e interpretação dos textos.
Quem gosta do que lê, interpreta necessariamente. Quem só interpreta, em
muitos casos, não aprende a gostar.
Já agora, uma palavra sobre projectos.
O que é que está a preparar neste
momento?
Vão sair dois livros, muito brevemente:
um de histórias, intitulado «Histórias
Para Contar Em Noites De Luar», e outro
de História e de histórias, que se chama
«Era Uma Vez A República».
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Pedro Moura:
Ainda há muito a fazer, mas estamos no bom caminho
Pedro Moura é professor-bibliotecário em serviço
no Agrupamento de Escolas Venda do Pinheiro,
no concelho de Mafra. Divide o seu tempo por
dois estabelecimentos: Póvoa da Galega e Santo
Estêvão das Galés, ambas escolas do 1º Ciclo com
jardins-de-infância. Foi à procura de formação e
hoje está a fazer um mestrado em regime póslaboral, exactamente com a temática das bibliotecas escolares. Na sua opinião, o enquadramento
legal é “um grande e importante passo para
todos. Por um lado, legitima a posição dos professores bibliotecários perante toda a comunidade
educativa, por outro, dá-nos mais responsabilidade”.
No âmbito das escolas a que estás associado, que balanço fazes da tua actividade como professor-bibliotecário?
O balanço parece-me muito positivo,
apesar de ser uma tarefa nova para mim.
O facto de conhecer o agrupamento dos
dois anos lectivos transactos é um elemento facilitador para a articulação que
é necessária entre os professores das turmas de 1º ciclo ou do jardim-de-infância
e o professor bibliotecário. Ainda há
muito a fazer neste campo, mas, garantidamente, estamos no bom caminho.
Os professores-bibliotecários têm um
enquadramento legal. Sinteticamente,
o que é que essa legislação trouxe de
novo?
Foi um grande e importante passo para
todos. Por um lado, legitima a posição
dos professores bibliotecários perante
toda a comunidade educativa, por outro,
dá-nos mais responsabilidade. Desde
logo, a afectação de vários professores
bibliotecários a um agrupamento (consoante o número de alunos) com horário
completo, faz com que muitas BECRE
[bibliotecas escolares/centros de recursos
educativos] sejam, hoje em dia, mais
valorizadas, dinamizadas de forma mais
permanente e constante. Mas no fundo,
mais importante que tudo, é que os seus
recursos sejam realmente rentabilizados
em prol dos alunos.
Trabalhar em bibliotecas escolares dáte, certamente, uma alegria especial…
Queres partilhar connosco essa sensação?
É uma sensação muito boa partilhar com
os professores das turmas a formação de
todos os alunos e ter a minha quotaparte no seu crescimento como indivíduos conscientes do seu lugar na escola e
na sua comunidade.
Como é que os professores em geral
encaram o papel das bibliotecas escolares? Aproveitam todas as potencialidades desse espaço?
Mentiria se dissesse que todos os colegas
percebem o papel das BECRE na totali-
dade. Os imensos papéis que são pedidos
aos professores, de um modo geral, dificultam a planificação das actividades e a
articulação entre os docentes, o que faz
com que nem todas as potencialidades
das bibliotecas sejam rentabilizadas na
íntegra. Uma articulação mais eficiente
é, sem dúvida, o desafio maior que os
professores enfrentam hoje na relação
com a BECRE.
E os encarregados de educação?
O ritmo quotidiano deixa pouco tempo
para as famílias acompanharem os educandos como gostariam, e isso também
se reflecte na relação com a BECRE. No
entanto, sempre que são convidados a
participar em actividades lançadas pelas
bibliotecas, por norma, aceitam o desafio: em feiras dos livros organizadas pelas
escolas, em visitas para relatarem experiências de vida ou dinamizarem contos
de histórias, etc.
A requisição domiciliária para os meninos de jardim-de-infância reflecte esse
envolvimento, pois implica a leitura por
084-089 BIBLIOTECAS 3/16/10 9:26 AM Page 88
bibliotecas
parte da família e, ainda por cima, o
preenchimento de uma ficha de leitura,
o que consome alguns minutos. Os blogues das bibliotecas são elementos divulgadores das acções das BECRE e alguns
comentários que são deixados por lá, ou
o conhecimento dessas acções pelo que
nos apercebemos em conversas informais, são sinais que há muitos pais que
estão atentos ao que se passa nas escolas
e próximos do que interessa aos alunos.
mas de saúde. Hoje em dia, essa situação
já não se coloca, uma vez que as bibliotecas têm a orientação da Rede das
Bibliotecas Escolares e estão a cargo de
professores motivados para esta função,
que vão tendo pelo menos formação contínua, para que compreendam o que deles
se espera, para além do apoio essencial
que é dado pelas bibliotecas municipais.
Já fizemos esta pergunta ao Zé Fanha:
as bibliotecas escolares portuguesas
estão diferentes, para melhor. Estás de
acordo? Queres comentar?
É uma grande alegria trabalhar com
todas as crianças das escolas, e não só
com os meus alunos, e como a quase
totalidade das tarefas que lhes são solicitadas são de carácter lúdico – ou de
carácter pedagógico, mas com uma
envolvência especial, num espaço diferente da sala de aula –, a esmagadora
maioria dos alunos adora vir à BECRE. É
muito agradável saber que eles estão
Penso que sim. Antigamente, as bibliotecas eram espaços exíguos e fechados, com
livros velhos, pouco atraentes para as
crianças e sem computadores. Muitas pessoas que tinham a seu cargo as bibliotecas
eram escolhidas porque tinham proble-
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As crianças gostam das bibliotecas?
Fala-nos da tua experiência…
sempre ansiosos e ávidos da hora semanal em que vêm à biblioteca. O número
de requisições domiciliárias prova que os
meninos que não têm acesso a livros em
suas casas e nas suas famílias estão cada
vez mas motivados para a leitura
Já agora, uma palavra sobre projectos.
O que é que estás a preparar neste
momento? Ou que projectos queres
realçar?
Penso continuar a dinamizar a participação das minhas escolas em projectos Etwinning, que são altamente motivantes
para os alunos, e tentar aumentar as percentagens de alunos que sabem pesquisar sobre determinado tema e reconhecem e seleccionam a informação relevante. Se conseguir ainda aumentar, ou
contribuir para o aumento das leituras e
sua compreensão por parte dos alunos,
melhor ainda…
084-089 BIBLIOTECAS 3/16/10 9:26 AM Page 89
Valorizar a biblioteca
no desenvolvimento da aprendizagem
Com o intuito de proporcionar melhores
condições para o bom desenvolvimento
das actividades das bibliotecas escolares
e de institucionalizar o papel do professor bibliotecário, a Portaria n.º 756/2009,
de 14 de Julho, veio permitir dotar as
escolas de recursos humanos com qualificação adequada e em número suficiente para desenvolver os projectos –
com carácter cada vez mais pedagógico –
que se exigem às “novas” bibliotecas
escolares, valorizando-as como estrutura
axial no desenvolvimento das aprendizagens.
Para além das competências técnicas de
gestão de recursos físicos e humanos e de
informação, a portaria enuncia um alargado conjunto de competências pedagógicas do professor bibliotecário, para as
quais é exigido que trabalhe com todas
as estruturas do agrupamento/escola,
através da participação nos conselhos
pedagógicos, de departamento e de
docentes, em reuniões informais e também com as famílias e toda a comunidade escolar alargada.
Para coadjuvar os professores bibliotecários, é aconselhada a constituição de
equipas, também previstas na portaria,
por forma a conseguir um grupo de trabalho multidisciplinar, com valências
necessárias para responder às diferentes
necessidades relacionadas com as literacias actuais. Destas equipas devem fazer
parte auxiliares da acção educativa,
sendo recomendável – sobretudo nas
escolas com 2.º e 3.º ciclos e/ou Ensino
Secundário – que exista, no mínimo, um
auxiliar a tempo inteiro, permitindo
manter a biblioteca em funcionamento
durante todo o período de actividade da
escola, no horário mais alargado possível
e abrangendo os vários públicos: alunos
regulares e alunos dos cursos CEF e EFA,
entre outros.
As atribuições dos professores bibliotecários (e equipas) adaptam-se de acordo
com diversos factores: tratar-se ou não
de um agrupamento, dimensão e dispersão do agrupamento e existência ou não
de outros professores bibliotecários na
equipa, destacando-se a conveniência de
estas questões serem consideradas no
regulamento interno ou no regimento.
Os professores bibliotecários devem
cumprir 35h semanais (horário a estipular pelo director), distribuídas pelas actividades inerentes às funções de coordenador de biblioteca e prevendo tempos
para preparação de actividades e participação em reuniões de vária ordem, internas e externas.
Adaptado de nota informativa enviada aos directores de escola/agrupamento pela coordenadora do programa Rede de Bibliotecas
Escolares, Maria Teresa Calçada.
090-091 saúde escolar 3/16/10 9:22 AM Page 90
saúde escolar
Da literacia em saúde
locais pela aplicação do vasto Programa
Nacional de Saúde Escolar – a trabalhar
todas estas dimensões nos futuros adultos?
Centremo-nos apenas nos conhecimentos
em saúde e nas competências para ter atitudes e comportamentos salutogénicos.
Uma das estratégias fundamentais de
empowerment para aumentar o controlo
da população sobre a sua saúde, a sua
aptidão para procurar informação e a sua
competência para assumir essa responsabilidade, é a promoção da literacia em
saúde. Como literacia em saúde referimo-nos à competência para tomar
decisões relacionadas com a saúde nos
mais diferentes contextos do quotidiano,
seja em casa, no local de trabalho, na
comunidade, no sistema de saúde, no
comércio ou na esfera política.
Considera-se frequentemente que a literacia em saúde engloba quatro dimensões:
1. conhecimento básico em saúde,
conhecimento e aplicação de comportamentos de promoção de saúde,
protecção da saúde e prevenção da
doença, primeiros socorros e cuidados ao próprio e à família;
2. competências para utilização dos sistemas de saúde e actuação adequada
como parceiro dos profissionais;
3. competências de consumidor para
tomar decisões na selecção e utilização de bens e serviços de saúde e
acção de acordo com os direitos de
consumidor, se necessário;
4. comportamento de decisão informada na esfera política, conhecimento dos direitos de saúde, participação activa na defesa de questões
de saúde e filiação em organizações
de saúde e de doentes.
Estarão as escolas, a nível curricular, e as
equipas de saúde escolar – responsáveis
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PRIMAVERA 2010 I N.º188
No que diz respeito à educação para a
saúde, o currículo escolar e a informação
passada pelos profissionais de saúde concorrem em grande desvantagem com
outras duas fontes.
Por um lado, os anunciantes têm como
alvo frequente as crianças e, ainda mais
agressivamente, os jovens, havendo
inclusivamente alguns esforços nacionais e internacionais para se limitar este
tipo de publicidade. Num estudo norteamericano, por exemplo, estimou-se em
mais de 20 mil milhões de euros por ano
o dinheiro despendido tendo como alvo
os adolescentes na televisão, revistas e
internet, entre outros meios. Ou não
fosse de 5 horas o tempo médio diário de
exposição dos adolescentes aos media.
Por outro lado, é frequente encontrar
erros graves quando é realizada a educação
para a saúde pelos media, inclusivamente
quando o propósito é apenas o de esclarecer os seus clientes. Este facto origina um
novo tipo de crenças na comunidade,
baseadas nos meios de comunicação, os
quais curiosamente transmitem credibilidade aos conceitos transmitidos, apesar
das frequentes contradições entre os agentes de informação ou do mesmo agente
relativamente ao tempo em que a transmissão é realizada. Daí a importância de,
nos programas de promoção de saúde, se
proporcionar tempo aos alunos para analisarem como se constrói a publicidade e a
desinformação, de modo a dar-lhes competência para a desconstruir e acrescentar
ou contrapor aquilo que não é dito.
Há mais de 50 anos que as estratégias de
marketing têm vindo a ser desenvolvidas
e introduzidas na vida económica dos
países industrializados para venda de
produtos, criando desejos e necessidades
no consumidor, de modo a controlarem
a dinâmica do mercado. E alguns destes
produtos afectam directamente a saúde.
Actualmente, não existem anúncios televisivos ao tabaco e a bebidas alcoólicas –
estas últimas, continuam, porém, a ser
frequentemente patrocinadoras de festivais de Verão –, mas, apenas para citar
alguns exemplos, todos os dias somos
bombardeados com publicidade a alimentos e a medicamentos de venda
livre. De qualquer modo, há formas de
contornar a legislação, como o product
placement, isto é, a colocação de produtos em filmes, séries e telenovelas, filmados em segundo plano.
Se a simples transmissão de informação
não se traduz na mudança de atitudes e
comportamentos, o marketing tem esse
objectivo. É importante, portanto, considerar esta ferramenta quando se tem
como finalidade a promoção da saúde,
especialmente se a aliarmos a um programa estruturado.
O marketing social pode ser definido
como a utilização de princípios e técnicas para a promoção de uma causa, ideia
ou comportamento social. O marketing
social em saúde tem vindo a ser utilizado, mas não com o investimento desejado e frequentemente sem um fio condutor. É fundamental que seja apelativo
para o público-alvo, que tenha objectivos perfeitamente definidos e que equacione o que pode influenciar os comportamentos, de modo a poder-se responder
a duas questões com perfeita clareza: o
que se vai fazer e como?
Poderão os alunos ser um elemento-chave na concepção do marketing social
em saúde que lhes é destinado? Na próxima revista, analisaremos como.
Nuno Pereira de Sousa
Médico de Saúde Pública
090-091 saúde escolar 3/16/10 9:22 AM Page 91
A construção de um
“eu” virtual em idade escolar
Usando uma plataforma comunicacional, uma adolescente
conhece um rapaz de quem se
agrada. Pouco importa o contexto internauta em que tal
sucedeu, como o Messenger,
uma sala de chat, o HI5, o
Second Life, o Twitter ou uma
outra rede social. Sabemos bem
que as fronteiras são fluidas e
que um contacto num qualquer
dos suportes referidos pode ser
desenvolvido num outro. Por
exemplo, um avatar do Second
Life tem a sua própria página,
enquanto personagem fictícia,
no Facebook…
A nossa adolescente é uma internauta
experimentada. As muitas horas passadas em vários suportes explicam o sentimento de mestria e de segurança que
sente. Queremos dizer: ela acha que consegue seleccionar pessoas interessantes
pelo seu estilo de teclar ou pelas escolhas
que fazem no virtual. De qualquer
modo, interessa-se pelo rapaz e os contactos intensificam-se…
A dada altura enche-se de coragem:
marca um encontro no real. Escolhe um
local seguro ou então leva uma ou duas
amigas como forma de protecção. E não
nos alarmemos, a pessoa que comparece
ao encontro é, de facto, um rapaz, da
mesma idade que a nossa personagem.
Não é de estranhar, pois já tinham falado
via webcam e trocado fotografias. Esta
intimidade tinha minimizado qualquer
tipo de surpresa (pelo menos aparentemente).
Quando o encontro terminou, a decepção era uma nota dominante. E porquê?
O rapaz era extremamente tímido, muito
nervoso, não conseguia manter uma
conversa até ao fim. Tratava-se do com-
pleto oposto à maneira de ser da internauta com quem interagia. É que o avatar aparentava ser extremamente seguro
e autoritário. Exalava um desprendimento atractivo.
A adolescente estava desconcertada.
Sentia uma paixão incipiente que foi totalmente defraudada. Quando chegou ao
quarto, ligou o computador. Tratava-se de
um gesto maquinal: dentro em pouco
estava novamente a teclar com o amigo…
E a atracção reacendeu-se… Eram lançadas
as bases para um relacionamento afectivo
problemático e confuso, em que os planos
de realidade se cruzavam, criando amplas
margens de ambiguidade.
Não pretendemos exercer aqui uma
acção moralizante ou alarmista. Existem
casos de comunidades virtuais plenamente estimulantes e ricas em termos de
troca de ideias e de relações humanas.
De resto, será praticamente impossível
“desinventar” estas possibilidades. Tratase, também, de reflectir sobre as modificações que estas novas socializações
poderão provocar.
Pensamos em famílias com dificuldades em impor regras e
limites, ou em famílias com
regras muito rígidas, em que os
maus-tratos possam surgir.
Nestes casos, e em muitos
outros, a internet abre um
espaço ao lado da realidade, que
poderá fornecer respostas mágicas a muitos impasses biográficos que as crianças e adolescentes possam estar a viver.
Trata-se de uma problemática
que adquire uma certa representatividade em termos de pedidos de consulta de psicologia.
Surgem crianças que passam
noites em claro a conversar com pessoas
que não conhecem, que se aproximam
de ideologias subculturais, que desenvolvem relações ambíguas ou que são enganadas por pessoas mais velhas...
Para além de aceitar o desafio da internet
e de promover os computadores Magalhães, precisamos de nos prevenir para o
reverso da medalha. As disfuncionalidades familiares serão igualmente replicadas nestes suportes. Resta saber que rostos adquirirão.
Em todo o caso, seria necessário apostar
com tanto ou mais vigor em programas
de educação parental que possam dotar
certas famílias de instrumentos e competências. Elas terão de lidar com os novos
desafios, positivos e negativos, que o
mundo virtual consigo acarreta.
Rui Tinoco
Psicólogo clínico
Departamento de Saúde Pública do Norte,
Agrupamentos de Centros de Saúde Porto Ocidental
092-093 internet+ fora da escola 3/16/10 9:26 AM Page 92
quotidianos
Internet II
Um dia, tendo terminado uma palestra
no Instituto da Defesa Nacional, saía eu
da sala com um enorme livro referente a
estratégia. Um general interpelou-me
comentando: “Isso é uma arma de arremesso!” Aquilo era um livro, mas também podia (com restrições) ser uma
arma! Dependia da idade da pessoa que
eu atingisse com o livro.
A internet é, também, como sempre
sucedeu ao longo da História, algo que
tem múltiplas aplicações. Para o bem e
para o mal. Como nota Philippe Breton,
apenas uma arma nuclear não tem utilidade, pois o melhor é não a usar! Mas a
arma nuclear pode ter sido positiva (se
bem que isso pareça incrível). Se os soberanos europeus do Império Austro-Húngaro, o Kaiser alemão ou o czar da
Rússia tivessem visto o (seu) próprio
futuro, depois da Primeira Guerra
Mundial (1914-1918), provavelmente
não teria havido guerra!
Ora, este efeito de bola de cristal apareceu
com nitidez a Truman e a todos os líderes políticos que viram os efeitos de
Hiroshima e Nagasaki. Essa estranha clarividência foi a chave do fim das grandes
guerras, abrindo o caminho às inúmeras
pequenas(?) guerras do século XX, guerras por procuração, entre os Estados
Unidos da América (EUA) e a União
Soviética.
A internet tem a ver com isto? Tem. Ela
é fundamental para a prossecução da
louca política de deslocalização de unidades produtivas para a China. O e-mail,
praticamente sem custos, permite a
comunicação em tempo real de ordens e
imagens, gerando encomendas que os
escravos chineses produzem. Sem esta
rapidez, aliada a um incremento nunca
visto antes dos transportes marítimos ou
aéreos de mercadorias, esta globalização
seria impossível.
Carlos Mota
Universidade de Trás-os-Montes
e Alto Douro
Vem isto a propósito do seguinte:
alguém ainda duvida do porquê da existência de uma enorme internet paralela?
Há inúmeros sites de partilha de ficheiros onde se encontra de tudo. Desde filmes a música e software de todos os
tipos. Tais sites remetem para satélites
que disponibilizam o material aos que
sabem usar essa internet paralela.
Os donos dos direitos de autor não gostam disto. É natural. Mas também não
entendo – melhor, não acredito – que as
discográficas paguem o que deviam
pagar aos herdeiros de cantores já falecidos, por exemplo. Também não se
entende como se prejudica Bill Gates, se
ele é o homem mais rico do mundo (ou
se este ano está em segundo lugar). Pelos
vistos, a internet paralela não causou a
pobreza nem de Hollywood, nem dos
seus ricos actores, nem a ruína dos produtores de software.
Quando nos dizem que devemos pagar
por tudo, devemos perguntar se não
estarão a exagerar. Os governos dos EUA,
da União Europeia, o russo, o japonês e
o chinês, todos sabem muito bem do que
estou a falar. Existem satélites militares
que facilmente inutilizariam os satélites
que alojam software dito ilegal (o nome
em Inglês é warez). Não o fazem porque
convém. É crua esta frase?
E o que dizem os referidos governos dos
clones de hardware (por exemplo de
telemóveis, relógios ou computadores),
feitos na Rússia, Japão ou China? O que
dizem e fazem quando mandam os trabalhadores de todo o Ocidente para o
desemprego, fechando os olhos ao trabalho escravo ou semi-escravo da Ásia, ao
trabalho infantil, ao tráfico de crianças, à
venda de órgãos, ao “turismo de saúde”?
– quer um rim novo, vá à Índia: é barato
e garantido!
Quem nos fala com despudor dos direitos de autor finge esquecer que o Brasil
deu um exemplo quando começou, em
larga escala, a produção de medicamentos genéricos. Alguma grande indústria
farmacêutica faliu?
A internet não é um meio de comunicação social. Ela engloba os próprios meios
de comunicação social. Pode ser usada
por criminosos (e por certo é). Mas é
também, na partilha, um enorme espaço
de troca de informações e liberdade. Leia
a Wikipedia, escreva, partilhe! Eu faço
isso no meu site.
No número de Inverno, a PÁGINA publicou o primeiro artigo do autor dedicado à internet, “vista como ferramenta utilizável pelos habitantes do planeta”.
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PRIMAVERA 2010 I N.º188
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fora da escola também se aprende
Descobertas
e invenções
em narrativas
imagéticas
“Sempre compreendo o que faço depois que já fiz. (...) É sempre
uma descoberta. Não é nada procurado. É achado mesmo.”
[Manoel de Barros, «Memórias inventadas: a segunda infância», 2006]
As pesquisas que venho fazendo com
imagens de escola vêm assumindo importância crescente pelo que despertam de
interrogações e ideias, diálogos e narrativas possíveis sobre os cotidianos expressos nas imagens de escolas com as quais
entro em contato. Elas mobilizam as
minhas possibilidades de compreensão/invenção de objetos que deem conta
das tantas formas possíveis de dialogar
com aquilo que se vê/lê. Percebo, no
material observado, inúmeras pistas a respeito dos cotidianos escolares vividos,
questionados ou obedecidos, transformados por tantos e tantas alunos(as), professores(as), autoridades, inspetores, tecendo
compreensões possíveis daquilo que as
narrativas imagéticas me dizem.
Mas é sempre descoberta/invenção a posteriori. Nunca sei bem o que posso encontrar, nem mesmo tenho um objetivo na
busca de demonstrar o que quer que seja
a priori. O prazer e a aprendizagem a que
essas pesquisas me levam estão nas descobertas e invenções possibilitadas por elas,
pelo que permitem me aproximar das
redes que se põem em movimento nos
muitos cotidianos escolares.
Einstein afirmava que “nem tudo o que
pode ser contado conta, e nem tudo o que
conta pode ser contado”, questionando a
importância que nos acostumamos a conceder à quantificação. Aderindo a essa
máxima, entendo que captar e perceber as
qualidades e especificidades “que contam”
não é tarefa fácil. Encontrar nas narrativas
imagéticas indícios da realidade que,
supostamente, elas expõem, requer certa
abertura para o inesperado.
A imprevisibilidade do que se pode
encontrar é, de algum modo, expressão
da própria imprevisibilidade da vida
cotidiana, que, ao contrário das crenças
difundidas pela e na modernidade, é
espaço de permanente negociação de
sentidos, de criação e reinvenção permanente de saberes/fazeres/valores e emoções. Ou seja, para além da repetição dos
esquemas hegemônicos da organização
formal da Escola, há no seu cotidiano
outros saberes/fazeres/valores e emoções
que se insinuam também nas imagens.
No material recentemente pesquisado
(Museu Nacional da Educação – Rouen,
França), chama a atenção a função atribuída aos cartazes usados até os anos
1960, que servem de suporte a atividades
de redação, ditado, gramática, vocabulário e fixação de conteúdos de diferentes
disciplinas.
Em comum, as imagens observadas têm
muito: expressam um modelo, uma
defesa de um modo de vida mais do que
apenas de escolarização. O modelo de
Escola que neles se evidencia é aquele
que ensina expositivamente, busca a
fixação, educa para a formação do bom
cidadão/cidadã, pessoa respeitadora e
defensora dos bons costumes e dos valores
da sociedade democrática. Sem dúvida,
estamos perante a chamada “Escola
Tradicional”, ainda hoje modelo predominante. Mas não nos enganemos, essa
escola está em movimento.
Cartazes produzidos entre 1850-1940
mostram coisas diferentes e por meio de
outra estética. Tudo parece mais fixo e
menos dinâmico. Sem avançar em possíveis interpretações arriscadas, penso ser
importante destacar essa mobilidade,
pois é ela que permite questionar a
suposta permanência do modelo, a
suposta imobilidade da Escola, tida
como instituição inadaptada às mudanças do mundo. É ela que permite afirmar
que, para além das permanências, há
movimento, e se não o podemos captar
nas imagens em si, podemos captá-lo no
que elas não expressam, a sua própria
mobilidade e a daquilo que expressam/escondem.
Inês Barbosa de Oliveira
Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Brasil),
Faculdade de Educação,
Laboratório de Educação e Imagem
Cumprindo o Estatuto Editorial, a Página respeita
a grafia original do texto
094-095 visionarium +PROFEDIÇÔES 3/16/10 9:30 AM Page 94
visionarium
Mosca do vinagre
é modelo biológico
Visionarium
Departamento de Conteúdos
Científicos
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PRIMAVERA 2010 I N.º188
A Drosophila melanogaster, ou mosca do
vinagre, é um insecto com aproximadamente 3 milímetros de comprimento,
pode ser visto próximo de fruta em fermentação – o que faz com que também
seja conhecido como mosca da fruta – e
é usado como modelo biológico, para
pesquisa, há quase um século.
No laboratório de Thomas Hunt Morgan,
pouco depois da notoriedade dos trabalhos de Gregor Mendel, este organismo foi
considerado ideal para realizar estudos
genéticos. Morgan recorreu à Drosophila
melanogaster para demonstrar o mecanismo da herança mendeliana.
Os geneticistas consideram a Drosophila
melanogaster um organismo bastante útil
para o estudo da morfologia dos cromossomas e cariótipo. À medida que a genética passa de ciência descritiva a ciência
bioquímica e molecular, a Drosophila
melanogaster tem-se revelado útil para
todo o tipo de análises. Continua a ser,
desde os trabalhos de T. H. Morgan, na
primeira metade do século XX, o animal
por excelência para estudo de mutações
e toxicologia genética. Foi um dos primeiros eucariotas em que se realizou
engenharia genética e se puderam estudar as bases moleculares do seu desenvolvimento, bem como as suas consequências.
Entre 1910-1940, Morgan e os seus colegas desenvolveram uma série de trabalhos experimentais, utilizando como
material biológico a Drosophila melanogaster. Casualmente, um dos seus alunos
detectou, entre os numerosos exemplares em cultura, um macho que, em vez
de olhos vermelhos, apresentava olhos
brancos (mutante white). Na sequência do
aparecimento desta variação hereditária
em relação à cor dos olhos, Morgan efectuou o primeiro cruzamento entre
machos de olhos brancos e fêmeas de
olhos vermelhos, e um cruzamento recíproco (entre fêmeas de olhos brancos e
machos de olhos vermelhos).
Quando Morgan cruzou um macho de
olhos brancos com uma fêmea de olhos
vermelhos, obteve uma descendência
(F1) totalmente constituída por indivíduos de olhos vermelhos, estando os
resultados de acordo com a genética
mendeliana. Os resultados da F2 (¾ da
população com fenótipo dominante e ¼
da população com fenótipo recessivo)
continuavam a estar de acordo com os
princípios de Mendel, mas Morgan ficou
surpreso ao verificar que todas as moscas
de olhos brancos eram machos.
O investigador admitiu a hipótese de os
alelos condicionantes da cor dos olhos se
localizarem no cromossoma X e de no
cromossoma Y não existirem alelos para
essa característica. A interpretação dos
resultados obtidos no cruzamento recíproco confirmou a hipótese de que a
transmissão do carácter “cor dos olhos”
estava associada ao sexo (cromossoma
X), pois, ao contrário do que seria previsível, a geração F1 não foi homogénea
em relação a esse carácter.
A interpretação dos resultados obtidos
neste cruzamento vem confirmar a existência de caracteres cuja transmissão se
encontra ligada ao sexo dos progenitores, pois os genes que determinam esses
caracteres estão localizados nos cromossomas sexuais.
Apesar de já ser usada há muitos anos
como modelo biológico, a Drosophila
melanogaster continua a ser, ainda hoje,
um dos organismos mais utilizados em
investigação, quer em genética, quer
noutras áreas das ciências biológicas,
estando associada a muitos dos avanços
ao nível do conhecimento da genética,
do desenvolvimento e das ciências biomédicas.
094-095 visionarium +PROFEDIÇÔES 3/16/10 4:01 PM Page 95
livros
vimentistas surgiu, então, uma elite de vanguarda, os tecnocatólicos,
que olhou a realidade social portuguesa com os olhos da técnica,
da economia, da sociologia, enunciando um novo discurso de
denúncia do atávico atraso do país: analfabeto, impreparado, rural,
sem direitos, fechado no côncavo do regime e a necessitar, com
urgência, de outro respirar.
Albérico Afonso Costa Alho [€15.00; €13.50 c/ desconto]
Trajectórias Quebradas. A
Vivência do Desemprego de
Longa Duração. Ser desempregado não é simplesmente estar
desocupado ou privado de
emprego. É também ser reconhecido como tal e vivenciar a experiência subjectiva do desemprego.
Recentes investigações sociológicas
realçam a desestruturação da vida
pessoal, familiar e social daqueles
que estão privados de emprego por
um longo período. Aqui pretende-se
reflectir sobre as consequências
(in)visíveis de desemprego, reequacionando-se quer o papel da família, quer o papel do Estado-providência na manutenção da coesão social e a sustentabilidade de
políticas públicas na sociedade contemporânea. De forma complementar, é feita uma abordagem simultaneamente estrutural e biográfica, perspectivando-se o desemprego enquanto experiência
social que pode assumir vivências subjectivas complexas, resultado
não apenas da privação de um salário, como também das fragilidades de sociabilidade que se observam a vários níveis. Para as
pessoas que vivem o desemprego, as suas causas podem alicerçarse sobretudo na percepção de um fracasso pessoal, de uma
degradação da qualidade de vida, de uma quebra das relações de
amizade e de companheirismo.
Ana Paula Marques [€14.00; €12.60 c/ desconto]
FPA. A Fábrica Leccionada.
Aventuras dos Tecnocatólicos
no Ministério das Corporações.
Este livro tem como objectivo o
estudo da Formação Profissional
Acelerada (FPA) que teve como
contexto o Portugal dos anos 60.
Esses anos em que a sombra da
tarde caía já sobre o regime, assistiram a um processo de industrialização que necessitava de uma mãode-obra com destreza e formação
suficientes para responder ao desafio
da nova tecnologia, afinada e fordista,
propulsora de outra produtividade. A FPA surgiu como resposta a
essa industrialização, que se, por um lado, era vista como necessária e desejável pelos sectores desenvolvimentistas, por outro, era
temida e rejeitada por todos os que integravam as hostes mais
conservadoras e reaccionárias do regime. Dos sectores desenvol-
Património e Identidade. Os
museus de sítio, locais, regionais, bem
como os monumentos que se inscrevem na história de uma nação ou
de uma região (religiosos, civis e
outros), os objectos produzidos pelo
artesanato (cerâmica, vidro, têxteis,
vime e outros), pela indústria, pela
agricultura, pelas artes, etc., constituem-se como meios privilegiados
através dos quais se faz a identificação de um povo a um espaço e a um tempo e, portanto, se fabrica
a identidade. Da mesma forma, o património imaterial, sejam as
canções, as danças, os provérbios, os mitos, as romarias ou as feiras, é um símbolo aglutinador de uma comunidade, na medida em
que as pessoas o usam como reforço e coesão do “nós” social.
Assim se constrói a memória de um povo, de uma aldeia, de uma
freguesia, de um concelho, de um distrito, de uma região, de um
país. São as imagens do passado, a ritualização da memória e a
vivência do presente, ainda que sujeitas sempre a (re)invenção da
tradição, que reforçam a ordem social.
Ricardo Vieira e Fernando Magalhães, org. [€14.00; €12.60
c/ desconto]
Matéria Brevíssima, de Maria
Albertina Mitelo, encerra um ciclo
de três trabalhos em poesia. Na
sequência de O Corpo das Aves
(2004) e Uma Leve Matéria (2007),
também Matéria Brevíssima se
assume marcadamente voltado ao
transcendente. E também aqui, as
aves e os pássaros – aliás, omnipresentes em toda a obra poética da
autora – se constituem como
metáforas do ser humano em busca
de superação da sua própria finitude.
096-103 Lauro Moreira 3/16/10 2:15 PM Page 96
entrevista
LAURO MOREIRA
Por uma comunidade
de cidadãos lusófonos
Diplomata de carreira, Lauro Barbosa da Silva Moreira nasceu em 1940, em Anápolis (Goiás,
Brasil), em 1940.
Licenciado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, ingressou na
carreira diplomática em 1965, ano em que integrou o COLESTE (Grupo de Coordenação com
os Países Socialistas da Europa de Leste). Depois, serviu em postos diplomáticos como Buenos
Aires, Genebra, Washington, Barcelona e Rabat – ainda no quadro do Ministério dos Negócios
Estrangeiros, chefiou a Divisão de Difusão Cultural e o Departamento Cultural do Itamarati.
Em 1997, foi nomeado presidente da Comissão Nacional para as Comemorações do V
Centenário do Descobrimento do Brasil e da Comissão Executiva Bilateral Brasil/Portugal
para as Comemorações do Descobrimento do Brasil. Em 2003 foi director da Agência
Brasileira de Cooperação.
Para além das suas actividades profissionais, Lauro Moreira é um militante activo de causas
culturais e artísticas, dedicando-se, nomeadamente, às artes cénicas (actor, director e autor),
ao cinema (documentarista) e à fotografia. Esta “inquietação cultural” ficou patente em todos
os postos diplomáticos onde exerceu, realizando diversas acções de promoção da cultura
brasileira, sobretudo artes, música e poesia.
Criou o grupo Solo Brasil, com o qual apresenta o que há de mais representativo na música
brasileira do século XX. Lançou «Mãos Dadas», um CD duplo onde interpreta poetas de
todos os países de língua portuguesa, «Manuel Bandeira: o poeta em Botafogo», de quem é
afilhado de casamento.
Em 2001, o então presidente Jorge Sampaio agraciou-o com a Grã-Cruz da Ordem do
Infante D. Henrique. Desde 2006 até ao início deste ano, foi o representante permanente do
Brasil junto à Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP).
Personalidade de sólida cultura humana e lusófona e de verbo fácil, a PÁGINA foi tomar café
com Lauro Moreira num fim de tarde alfacinha.
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Ele tem um sonho
096-103 Lauro Moreira 3/16/10 9:43 AM Page 98
entrevista
Alguns dias após receber a PÁGINA numa sala da Missão do
Brasil, num 10.º andar da Avenida da Liberdade, e nas vésperas de
deixar Portugal, Lauro Moreira foi homenageado na Academia
das Ciências de Lisboa, tendo-lhe sido entregue por Adriano
Moreira o prémio Personalidade Lusófona 2009, com que foi distinguido pelo Movimento Internacional Lusófono (MIL).
profunda miscigenação, e Portugal foi quem promoveu essa
mistura. Não nos esqueçamos que Portugal era um país
extremamente misturado – Lisboa era uma esquina, um carrefour
de raças e etnias, de religiões, de tudo. O Norte de África tinha
uma presença muito forte e, a partir de um certo momento, com
os contactos todos com o Oriente, isto aqui era uma...
A lusofonia é um tema sobre o qual tenho me debruçado já há
longo tempo e tenho formulado para mim mesmo algumas
concepções a respeito.
É claro que para um leigo, lusofonia é muito fácil de definir – seria
simplesmente o universo habitado por cidadãos que falam
Português. Mas a lusofonia é muito mais, porque ela não se circunscreve ao espaço e ao universo dos falantes de Português. A
lusofonia, muito mais do que um espaço, é um espírito que emerge
de 500 anos de um convívio cuja matriz é Portugal, um convívio
que acabou formando um património linguístico, cultural, histórico,
e que teve um dia para começar, mas não tem para acabar.
A lusofonia, portanto, é algo em construção, um fenómeno in fieri,
algo que está ocorrendo.
Isto é um tesouro que não se esgota de uma hora prà outra e tão
pouco se pode formar de um dia pró outro. É fruto de um
contacto e de um diálogo intercultural. Não é uma imposição de
um lado sobre o outro; não é, sequer, diálogo multicultural, em que
se respeitam as culturas autóctones. Não, é realmente intercultural!
Houve uma troca, a partir justamente do primeiro dialogante,
daquele que propõe o diálogo, que foi Portugal, a partir do
momento em que inicia as colonizações. Então, por exemplo, o
Brasil foi português durante 322 anos (1500 a 1822). A partir daí,
é um caso muito especial: Brasil se torna independente, mas uma
independência feita por um príncipe português herdeiro da coroa
de Portugal, o que é uma coisa sui generis...
Uma plataforma cosmopolita...
Extraordinariamente cosmopolita, nesse sentido. E quando os
portugueses vão para o Brasil, eles levam um pouco esse espírito
de abertura. Mas então, como havia pouca gente para colonizar
aquele país, porque a quantidade de terras descobertas por
Portugal era tão grande que não tinha como colonizar tudo ao
mesmo tempo, o Brasil ficou abandonado durante um certo
momento, até 1530, por aí, quando se cria a capitania hereditária,
quando Martim Afonso de Sousa chega para colonizar... Porque
havia uma cobiça já muito grande por parte de outras potências.
Com isso, então, o Brasil passa a ser colonizado de maneira mais
sistemática. E aí, como não havia mulheres na colonização, porque
não havia mulheres no reino, para levar, os homens que iam para
essa aventura, eles se misturavam com as índias, inicialmente, e
depois com as africanas que foram chegando no terrível tráfego
negreiro que vai até ao século 19.
Essa mistura inicial vai dar origem à base do povo brasileiro, que
depois foi sendo enriquecida com outras etnias que foram
surgindo. E hoje, claro, o Brasil é um país profundamente misturado,
que não suporta a intolerância, no qual a abertura para o outro é
total; ou seja, ao invés de rechaçar o diferente, ele o incorpora. E
essa tem sido sempre a atitude do Brasil, esta voracidade com que
devora o outro, o diferente...
Não há estrangeiro que passe impunemente pelo Brasil. No
sentido de que será sempre marcado e, se não tomar cuidado, é
absorvido. Ora, isto é o traço distintivo, identitário, mais forte do
Brasil.
E um traço identitário...
A sensação clara que tenho é de que estamos falando de algo que
não é superficial, que não ocupa um lugar no tempo, lá atrás, mas
que permanece e continua. Com momentos de mais aproximação
e de maior afastamento, com altos e baixos, com momentos mais
felizes e bastante infelizes, com virtudes muito grandes e com
defeitos sérios, mas característicos da época – Portugal manteve o
Brasil um pouco na idade das trevas durante muito tempo, porque
era uma maneira de se assegurar melhor daqueles territórios e
segurar melhor aquele território, claro.
As comunicações entre as capitanias, eram proibidas – cada
donatário só podia ter contacto com a coroa, em Lisboa; a primeira
universidade da América Latina, se não me engano, é a de Lima, no
Peru (1526) – a primeira do Brasil é de 1922; não se promovia o
ensino absolutamente público – quem se encarregava da educação
eram os jesuítas; e a partir do momento em que Pombal os
expulsa, o Brasil passa a ser um território sem acesso a qualquer
tipo de conhecimento – as pessoas que queriam continuar os seus
estudos só podiam vir para Coimbra...
Estou apontando aspectos menos positivos, mas existe um que é
de tal modo positivo que eu não trocaria por nada, que é
justamente o maior tesouro que nós temos hoje, a meu ver o
nosso grande capital – é que o Brasil foi feito através de uma
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Trata-se, portanto, de um processo de assimilação...
Totalmente! Não é de cooptação, como acontece noutros países,
é de assimilação completa. Estamos falando de uma antropofagia
cultural, da mesma maneira que os primeiros índios eram
antropófagos e comiam lá o bispo Sardinha, que naufragou nas
costas do Nordeste... (risos).
Nós sabemos que a antropofagia era um ritual: o selvagem, ele não
comia o outro porque estivesse com fome ou para fazer mal; ele
comia simplesmente porque queria adquirir as qualidades do outro
– um covarde jamais seria aceite, o que mostra o significado da
antropofagia.
Aliás, em 1922, quando se procura uma arte mais independente,
mais voltada para dentro, um dos movimentos mais importantes
dentro do Modernismo brasileiro chama-se Movimento
Antropofágico, do Oswald de Andrade e do Mário de Andrade. A
ideia era justamente absorver, assimilar e transformar – assimilar,
não apenas engolir. E com isto você acaba transformando toda essa
coisa que absorve numa outra coisa chamada Brasil. Essa, a meu
ver, é uma ideia fundadora do Brasil, uma ideia seminal...
Que mais nós estávamos falando?
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Estávamos na questão da lusofonia...
A lusofonia, no caso do Brasil, leva em consideração tudo isto. Mas
aconteceu também com os africanos. O facto de Moçambique ter
43 línguas e de em Timor-Leste apenas oito por cento falarem
Português não tem importância, porque no fundo nós estamos
falando de lusofonia, que não se confunde apenas com o número
de pessoas que falam Português...
Tem um sentido mais lato, uma dimensão cultural...
Muito mais... Mesmo aqueles que não falam português, eles estão
dentro dessa coisa. Então, eu acredito que a lusofonia seja algo
muito claramente identificável, muito rico e que está em permanente evolução. O que vem dar sustentação à CPLP – na
verdade, e não estou sendo original, a CPLP será uma espécie de
moldura jurídico-legal para uma realidade pré-existente.
Pré-existente e abrangente. É também cultura, política, comércio...?
Economia, comércio, cultura. O carácter, o temperamento destes
países. Tudo!
Ou seja, não faz sentido pensar num “projecto” de lusofonia.
Ela existe, é uma realidade. E temos como cimento uma coisa
chamada língua portuguesa, que é a terceira mais falada no mundo
ocidental, que é uma língua de cultura, que é uma língua
extremamente rica.
Vou tentar uma provocaçãozinha: a CPLP não surgiu, também, para
enquadrar politicamente o acordo ortográfico, para o validar?
Isso seria empobrecer de mais a CPLP. Ela é um organismo com
todas as regras internacionais. E um organismo internacional não
nasce para simplesmente acompanhar um acordo ortográfico, de
menor importância neste caso.
Não. O acordo ortográfico foi assinado em 1990, e a CPLP sai em
96, só. Detalhe: um ano antes, em 89, o presidente Sarney convida
os presidentes e os chefes de governo de todos os países de língua
portuguesa para uma reunião, e nessa reunião criou-se aquilo que
viria a ser, de certo modo, o embrião da CPLP – o Instituto
Internacional da Língua Portuguesa, o famoso IILP, que nunca
funcionou, que eu saiba.
Mas a ideia de uma comunidade da lusofonia já vinha de há muito
tempo. No começo do século 20, existia já uma ideia de se fazer
uma comunidade – luso-brasileira, porque eram os únicos países
independentes que tinha naquele tempo. Foi necessário esperar a
independência de todas as colónias para que voltássemos a ter
uma comunidade. Não mais com Portugal funcionando como
cabeça, mas com igualdade de condições. Apesar da grande assimetria que existe; apesar de termos o mais antigo Estado-Nação da
Europa e o mais novo país da comunidade internacional; apesar de
termos um país de 150 mil habitantes e outro de praticamente 200
milhões...
E como é que oito países de quatro continentes, sem contiguidade...
Não têm fronteira nenhuma uns com os outros, e isso é que é
interessante.
... como é que surgem unidos? Tinha de haver um qualquer
cimento, como referiu há pouco...
Exactamente. Então, essa questão da lusofonia é muito forte e nos
une a todos. É uma realidade que não fomos nós que escolhemos
– ela aconteceu, acontece todos os dias. A CPLP, sim, é escolha
nossa. Foi uma decisão dos países darem um formato jurídico a
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entrevista
esse convívio, a esse espaço, a esse universo. Cria-se então a CPLP,
para tratar basicamente de três áreas.
A primeira é a concertação político-diplomática. Se a gente for espiar
o que aconteceu nesses 13 anos, vamos chegar à conclusão de que
a CPLP tem sido extremamente benéfica para os países lusófonos
como um todo. Porque tem sabido ser o elemento conciliador,
mediador de crises político-institucionais em países de maior
fragilidade política. Isso não aparece no jornal, normalmente, porque
não é para aparecer; não tem sentido, é um lado mais diplomático...
A diplomacia também é segredo...
Exactamente.
... E o segredo é a alma do negócio...
É uma coisa mais subterrânea...
Mas funciona? Há redes efectivas de diálogo? Às vezes dá ideia
que a CPLP é pouco visível...
Funciona... A CPLP é uma entidade metida com a mão na massa o
tempo todo. Pouco visível, no sentido de que uma crise política
nesses países, se fosse ao Conselho de Segurança, iam mandar um
finlandês para tratar... Aqui não, é tudo entre nós; aqui há um jogo
em que se percebe uma irmandade, uma solidariedade...
E sente-se, de facto, a importância da língua, da lusofonia, desse
espírito?
Evidente. Deixa fazer um parêntese, e isto não é retórica: qualquer
brasileiro que vá a Angola, a Moçambique... ele vai se sentir
muitíssimo mais à vontade (e não é só pela língua) do que se
estivesse em qualquer país vizinho na América Latina. Angola, por
exemplo, teve contacto mais estreito como Brasil do que o
contacto que havia entre Portugal e Brasil ou Portugal e Angola.
Não esquecer que dos 5 milhões de escravos que foram para o
Brasil, grande parte eram dessa região. Então, nós somos muito
marcados por essa circunstância, somos muito africanos!
Passando a outra área da CPLP...
Aí temos uma área que está se desenvolvendo muito – a da cooperação, e não apenas técnica. Nós temos hoje uma infinidade de
reuniões sectoriais, mas um dos problemas é justamente a falta de
visibilidade. Acontecem muito mais coisas do que as pessoas
imaginam, infinitamente mais....
Invisibilidade promovida, deliberada, estratégica?
Na verdade, a grande mídia dos nossos países não se debruçou
ainda sobre isto. É um pouco falha nossa, também, essa coisa de
não divulgar mais. A quantidade de reuniões na área da justiça, da
defesa, do trabalho, meio ambiente, cultura, agricultura...
Isso do ponto de vista oficial. Agora há o outro lado, que eu acho
mais importante ainda, e que é a sociedade civil a se mobilizar cada
vez mais. E aí, de repente você fica sabendo que tem um pessoal
que resolveu fazer um festival de teatro da lusofonia; de repente, o
Brasil tem o 3º festival de cinema dos países de língua portuguesa...
Por aí, as coisas estão acontecendo. Interessante, muitas vezes, que
isto é actuação não da CPLP, mas da lusofonia. O que eu estou
achando muito bonito em tudo isso é que não tenha sido a CPLP
a provocar ou a organizar.
E essas organizações trabalham directamente com a CPLP?
Não necessariamente. Algumas fazem parte de uma coisa nova na
CPLP, que são os Observadores Consultivos. Há pouco tempo, no
Brasil, havia uma só entidade que fazia parte desse quadro; aqui
havia umas três ou quatro e África não tinha nenhuma.
Há um tempo, eu acompanhei o secretário executivo numa viagem
oficial ao Brasil, onde fizemos mais de 30 reuniões. Saiu muita coisa
importante daquela visita, e uma delas foi a questão dos
observadores – fomos explicar o que é, fomos conversar com as
diversas universidades... E hoje, 30/40 já fazem parte.
Só um parêntese: uma das coisas que saiu dessa viagem foi a
ressurreição do acordo ortográfico... Estava mortinho, ninguém
falava nele. Em Março de 2007, quando fomos visitar a Academia
Brasileira de Letras, conversámos, entre outros assuntos, sobre o
acordo ortográfico. E à saída, quando os jornalistas nos perguntaram o que tínhamos conversado, mencionámos o acordo
ortográfico – também, né? Aí, os jornalistas começaram a perguntar, e a própria Agência Lusa fez uma entrevista connosco, lá.
Claro que repercutiu aqui em Portugal, mas pouco, inicialmente. Aí,
o «Jornal de Letras» fez uma matéria grande sobre o assunto e
pediu a nove pessoas, oito portugueses e eu, para escreverem um
artigo sobre o acordo. Fizemos e foi por aí que a coisa começou...
E hoje temos um problema “ortográfico”...
Não é mais problema. Hoje, já é solução, já é facto consumado.
Apesar de todo o mundo ter o jus esperneandi, a verdade é que
quem não estiver satisfeito com este acordo, têm que pensar em
outro, porque este já vai estar em vigor.
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OK. Retomando as áreas da CPLP...
A terceira é justamente aquela fundamental, que dá base às outras,
é a promoção e defesa da língua portuguesa, ou seja, a área
cultural. E essa é que não tem funcionado, ou tem funcionado mal,
de uma maneira muito tímida... Porquê? Porque se atribuiu ao IILP
a tarefa de levar isto adiante, mas nunca se lhe deu os meios
necessários. Eu estou dizendo isso há muito tempo, mas hoje na
CPLP todo mundo reconhece que o IILP é um fracasso – só que
eles demoraram mais a aceitar o que eu estou dizendo: o IILP é um
fracasso porque nós fizemos dele um fracasso; porque nunca lhe
demos os meios necessários, nem materiais, nem humanos, nem
financeiros... Nem sequer uma estratégia de actuação.
Mas é um instituto com muito peso?
Deveria ter, mas não tem nenhum.
Uma organismo do tipo Instituto Camões?
De jeito nenhum. É outra filosofia. Deveria ser um centro de
reflexão sobre a língua portuguesa, de irradiação das ideias ali
gestadas. Por exemplo, no caso do acordo ortográfico, o que é que
o IILP fez? Nada. O que é que o IILP fez até agora sobre o
vocabulário ortográfico da língua portuguesa? Zero.
E ele é justamente o Instituto Internacional da Língua Portuguesa...
Mas agora, com a presidência portuguesa da CPLP, as coisas estão
mudando. De tal maneira que – também essa foi uma batalha
nossa – a própria escolha do director, do quadro técnico do IILP,
não pode mais ser feita por indicação dos países, politicamente e
em bases rotativas, como tem sido feito até hoje. De acordo com
o que vai ser, a escolha do director-geral e do corpo técnico se fará
por concurso público internacional – exactamente como a escolha
do director-geral e dos directores de cada uma das áreas.
Já agora, em termos culturais, como estão as relações entre
Portugal e o Brasil? Em tempos falava-se de défice português na
balança de trocas musicais, por exemplo, ou televisivas...
Se de um lado, a cultura pode ser vista como um produto, uma
mercadoria, por outro lado, a meu ver, é uma mercadoria muito
especial, muto peculiar. Se, por exemplo, um país consome muito
mais a música de outro país, é porque acha aquela música melhor
– e a música brasileira é cantada no mundo inteiro, tem uma
presença muito forte. Aqui, é natural que seja mais forte ainda, por
causa da língua e das afinidades todas. Por outro lado, a música
brasileira é muito diversificada, tem ritmos diferentes, enquanto a
música portuguesa é um pouco mais restrita, pelo menos o fado.
Ora, o fado não é muito o género de música do brasileiro – eu
gosto, mas o povão todo gostar é mais difícil, sobretudo se não se
faz um movimento maior. E quem faz esses movimentos são os
empresários, as televisões. É a sociedade civil. Se eles perceberem
que há um tipo de música que pode agradar no Brasil, a minha ideia
é que as televisões vão tratar de propagandear e abrir caminho.
Mas a eventual dificuldade de penetração dos produtos, a falta de
incentivos para a constituição e circulação de embaixadas culturais, não são também responsáveis?
Sim, sim... E a meu ver, o incentivo deve ser dado sempre. Se eu
faço uma programação cultural para o ano inteiro, os custos serão
cobertos por verbas oficiais, do departamento cultural do
Ministério dos Negócios Estrangeiros – portanto, é uma coisa
subsidiada, é um incentivo. Agora, evidentemente, eu jamais vou
colocar no meu programa um show do Chico Buarque ou da Ivete
Sangalo. A minha verba é deste tamanhinho e eles não precisam, já
estão dentro dos grandes canais de comercialização.
Os incentivos oficiais foram feitos justamente para aqueles que têm
muito talento, mas não têm tanta visibilidade. Então eu trago aqui,
por exemplo, Roberto Corrêa, um instrumentista extraordinário,
unanimemente considerado o mais importante cultor da viola
caipira (antiga viola portuguesa) no Brasil e que deixou todo o
mundo extasiado. Coisa maravilhosa, poder dar a conhecer um
sujeito que tem esse nível e que, se não fosse assim, não estaria
circulando. E assim eu tenho feito a vida inteira.
É assim, também, com o seu projecto Solo Brasil?
Solo Brasil já esteve em 20 países, Portugal inclusive, e onde vai é
uma coisa absolutamente louca. Obviamente, se tivesse um cantor
pop star, custaria cinquenta vezes mais. Mas Solo Brasil é o oposto
do estrelismo, porque a grande estrela do projecto se chama
música brasileira, e você tem ali uma plêiade de músicos de
primeiríssima ordem a serviço da música brasileira – não ao
serviço de seu repertório, do seu disco, das suas preferências... Solo
Brasil exige uma humildade muito grande por parte desses caras
todos que participam, que são figuras fantásticas, que têm carreiras
próprias. Solo Brasil é uma espécie de selecção que, num momento
determinado, é convocada para apresentar Uma Viagem Através da
Música do Brasil; é a história da música brasileira, mostrada, interpretada, cantada, explicada, vista. E isto merece ser patrocinado,
promovido, incentivado.
Voltando ao acordo, que entrou em vigor em Janeiro...
Gostaria de dizer só duas coisas, porque desde que cheguei aqui
eu falo sobre essa questão.
Primeiro, estamos diante de um facto consumado: Portugal já
adoptou, e em seis anos tem que estar tudo pronto; o Brasil já
adoptou, e em 2011 estará tudo pronto; dos restantes países,
apenas Angola e Moçambique não o fizeram, mas não vão demorar
muito, evidentemente; quando não, ficam muito isolados nessa
história.
Depois, eu já me recuso a discutir os acertos e os equívocos do
acordo ortográfico em termos técnicos, porque acho que é uma
coisa também in fieri – futuramente, você pega uma regra e muda,
se todos estiverem de acordo. Não tem problema nenhum.
A tendência é, portanto, simplificar...
Claro! A língua é um animal vivo, ela evolui e, por isso, se nós
tomarmos as modificações que se observam na língua portuguesa
a partir da ortografia, em quatro séculos, são muitas. Mas nada
disso vai matar a língua, né?
Na verdade, há muito mais diferenças fonéticas entre os nossos
países do que ortográficas. O brasileiro, ele tem uma fonética
absolutamente aberta, pronuncia as palavras de uma maneira
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entrevista
aberta. Isto tem uma explicação: quando os portugueses chegaram
ao Brasil, em 1500, encontraram milhões de pessoas morando lá,
eram os índios. A tribo que habitava as costas do Brasil eram os
tupis, e a língua tupi é uma língua absolutamente aberta, vocálica. E
quando os portugueses chegaram, os nomes, ou melhor, a
toponímia estava feita: aquela lagoa tinha um nome, aquela montanha tinha um nome, tudo tinha um nome – nomes tupis. Então, a
pronúncia nossa é muito mais aberta.
Ainda o acordo: a polémica não terá a ver, também, com o facto
de os linguistas se sentir, de certa forma, posta à margem?
Vou lhe contar um caso. Desde 1911, foram feitos todos os
esforços para corrigir uma anomalia: haver dois países só de língua
portuguesa. Portugal fez uma bela reforma, profunda, mas tem um
problema: não consultou o Brasil, e o Brasil não participou.
O Brasil começou então fazer uma série de pequenas reformas
internas para ir tentando acompanhar, porque Portugal estava com
uma língua, com uma ortografia moderníssima. Assim começou a
fazer um esforço, também unilateral, interno, para poder se adaptar
à nova situação. E também houve várias tentativas para se reunificar
aquilo que foi unido no passado. A mais importante foi a de 194345. Depois, o Brasil fez outras reformas internas, nos anos 70.
Até que, em 1986, os filólogos, gramáticos, escritores, as academias
dos nossos países, se juntaram em Lisboa para negociar um acordo.
Nesse tempo, o António Houaiss apresentou um projecto
considerado pelos portugueses como demasiado avançado. E
então esse acordo foi fulminado. Depois, os portugueses
apresentaram uma contraproposta, um anteprojecto novo – novo,
a partir do texto do Houaiss – que foi discutido e aprovado em
1990. Ou seja, o texto do acordo ortográfico é português, e é bom
que os portugueses saibam disto.
Fica o recado...
Então, quando o senhor Vasco Graça Moura tem a coragem de
chegar na Assembleia da República e dizer que isso é invenção de
brasileiro para “passar a perna” na língua portuguesa e nos
portugueses e se apropriar da língua, isso é de um grotesco, de um
ridículo, que não tem tamanho!
O Brasil nem tinha que se preocupar, porque, afinal, com o tempo,
seria a ortografia em uso lá que iria prevalecer no resto do mundo
– o universo de lusófonos é de 240 milhões de pessoas, só que a
gente esquece que de cada cinco pessoas que falam Português,
quatro são brasileiras!
No exacto momento em que a cassete fazia inversão de marcha
no interior do velhinho gravador, o embaixador dava conta dos
seus interesses pessoais. A par da experiência nas áreas da
Economia, Gestão, Consultoria e, obviamente, das Relações
Internacionais, Lauro Moreira, como já se percebeu, professa a
lusofonia (he has a dream: a Casa da Lusofonia) e tem como hobby
a cultura: teatro, cinema, fotografia, divulgação literária...
Eu sempre me envolvi muito na área económica, mas nunca deixei
de estar visceralmente ligado à área cultural. Convivi com grandes
personalidades da cultura brasileira. Muito jovem, fui amigo de
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figuras queridas, como Manuel Bandeira, que foi meu padrinho de
casamento, e Clarice Lispector a madrinha. Fui casado durante 17
anos com uma das grandes figuras da poesia brasileira, que é Marly
de Oliveira, falecida já... Drummond, Houaiss, Aurélio Buarque de
Holanda, Cecília Meireles – eu conheci tudo, fui um privilegiado
nesse aspecto. Então, a cultura para mim...
Aconteceu-lhe em termos profissionais?
Em termos profissionais, apenas conheci o João Cabral de Melo
Neto, que era diplomata como também o Guimarães Rosa, mas
esse eu o conheci antes de entrar para o ministério, porque eu
fazia teatro e montei uma peça que era a dramatização de um
conto dele.
Desse ponto de vista, repito, eu fui um privilegiado, porque no Rio
de Janeiro tive contacto com essa gente toda. Agora, a partir do
momento em que eu entro para o ministério, vou fazer aquele
caminho que pode ser tanto da área política, da económica como
da cultural. Eu fiz as três, claro, mas os meus primeiros anos foram
na área económica, inclusive em Genebra. Trabalhei muito tempo
com o GATT [General Agreement on Tariffs and Trade – Acordo Geral
sobre Pautas Aduaneiras e Comércio].
Mas a verdade é que a questão cultural sempre esteve dentro de
mim: quando saía, ia tratar de fazer uma filmagem qualquer,
escrevia, passava noites inteiras montando os meus filmes... Nunca
me afastei um minuto sequer dessa área, e a partir de um certo
momento, resolvi juntar as coisas e comecei então a trabalhar na
área cultural.
Eu acredito nisto, acredito muitíssimo na cultura como um instrumento-chave, decisivo também para a diplomacia. Acredito na
cultura como elemento fundamental para todo o tipo de
relacionamento entre países – porque não existe relacionamento
entre países, em abstracto; existe entre pessoas de países
diferentes.
Como disse há pouco, não estará a fazer falta tornar estes organismos uma coisa mais dos cidadãos?
Mas isso é o grande desafio. A meu ver, a CPLP se realizará um dia
em que tivermos menos uma comunidade de países membros e
mais uma comunidade de cidadãos lusófonos. Lógico que os
Estados têm sempre os aspectos políticos, mas o que interessa é o
relacionamento entre os membros da sociedade, entre os
cidadãos. Curiosamente não falamos sobre isso, mas veja que entre
as três áreas da CPLP eu não citei a económica
E reparei que também não citou a educação...
Não, mas ela está na terceira área, ou até na segunda. A economia
eu não citei porque não está entre as áreas da CPLP. Porque ela não
é um organismo económico, nem de comércio internacional, não é
um organismo que vá discutir tarifa... A CPLP não é nada disto!
Mas na área da educação, há projectos previstos ou em curso?
Vou lhe dar um exemplo. O presidente Lula decidiu, há um ano e
meio, criar a Universidade Luso-Afro-Brasileira.
Essa universidade vai entrar em funcionamento em 2010, ainda.
É uma universidade criada para África, fundamentalmente, e para a
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lusofonia; uma universidade que terá 50% das vagas reservadas
para os países africanos e 50% para o Brasil, porque o que interessa
é a integração. O corpo docente será todo ele dos nossos países,
Portugal inclusive. Vai funcionar na cidade Redenção, no Nordeste
– uma escolha com sentido simbólico, porque foi a primeira cidade
brasileira a libertar os escravos.
Esse projecto está sendo levado adiante por uma pessoa escolhida
a dedo pelo presidente, que é o Paulo Speller, antigo reitor da
Universidade de Mato Grosso e que trabalhou muitos anos em
Moçambique. As disciplinas são todas voltadas para os interesses
da África, e há a ideia de os alunos completarem o último ano no
país de origem, num campus avançado, para evitar essa de terminar
o curso e ficar.
E não tem currículos clássicos, tipo engenharia, medicina, direito?
Tem sobretudo a ver com agricultura, zootecnia, construção civil;
deve ter informática... Mas não tem direito; medicina, muito
provavelmente, não terá no primeiro momento, mas vai ter
enfermagem, seguramente.
Portanto, na sua opinião, a CPLP está a mexer?
Eu sou optimista com relação à CPLP. Não é um optimismo
descabido e sem base, não. Eu conheço os obstáculos todos, eu sei
das dificuldades todas, eu sei que há uma tendência para, por
exemplo, se privilegiar o bilateral em detrimento do multilateral.
Portugal gosta muito mais de fazer coisas directamente com cada
um dos países do que fazer com a CPLP – e o Brasil também. É
mais fácil, muito mais directo. Mas tem uma coisa, só aquele país se
beneficia daquele projecto.
A diplomacia é arte de consenso ou de convencimento?
Não se consegue o consenso sem convencimento... Eu acho que é
do convencimento, sim. Do convencimento no sentido de procurar
colocar uma questão que leve a outra parte a acreditar que você está
certo, que o seu caminho é o adequado. Mas o consenso só pode ser
obtido a partir do momento em que haja um certo nível de
abdicação por parte de cada um. Se eu só tento convencer e ponto
final, então não vou ter nenhum consenso.
Já agora, aproveito para falar sobre uma das coisas bonitas da CPLP, e
que ao mesmo tempo é uma das que mais dificulta o nosso dia-a-dia.
Tudo na CPLP se decide por consenso. Portanto, todos nós somos
responsáveis por qualquer decisão que se tome. Mas a decisão é
uma coisa – na sua implementação, evidentemente, cada um tem
um ritmo diferente. E então nós temos que nos adequar a cada
situação.
E há dificuldades específicas...
Há projectos que se arrastam há anos.
Portugal e Brasil contribuem muitíssimo. Quer dizer, somos todos
iguais em termos de direitos e deveres, mas na questão da contribuição, claro, contribui-se na medida das possibilidades dos
países. Há uma média ponderada e, grosso modo, podemos dizer
que Brasil e Portugal aguentam com praticamente 70%.
Angola, que é um país rico, continua se comportando, de certo
modo, como um primo pobre, quando já podia estar assumindo
muito mais responsabilidades. Outros, como S. Tomé e Príncipe, só
podem contribuir com uma coisa muito modesta. É um país que
vive muito em função da cooperação, que tem dificuldades
financeiras muito grandes. Por exemplo, não dá para mandarem
uma pessoa a uma reunião a Lisboa ou no Rio de Janeiro. Então,
nós é que asseguramos: Portugal paga parte das passagens de cada
vez que eles vêm aqui, e o Brasil paga quando eles vão lá...
Como agora. De 25 a 31 de Março, vai haver uma grande
conferência internacional sobre os destinos da língua portuguesa
no mundo. O Brasil está convidando e pagando tudo para uma
quantidade muito grande de autoridades, professores, etc.
Essa reunião cabe no âmbito do Plano Estratégico de Gestão da
Língua?
Não, isso deve ser o plano do IILP. De qualquer maneira, nós vamos
discutir o ensino da língua no mundo, o acordo ortográfico, a
inserção do Português como língua de trabalho nos organismos
internacionais. Tudo isto vai ser discutido, e de uma maneira muito
pragmática – a ideia é fazer documentos dizendo já o que tem de
ser feito, concretamente.
Por isso, acredito que a coisa vai funcionar. Pena que eu estou indo
embora agora, mas acho que contribuí modestamente para isto...
ANTÓNIO B ALDAIA
JPO / fotos
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cinema
Alain
Resnais
o cineasta
da memória
Paulo Teixeira de Sousa
Conservatório de Música do Porto
I
104 105
PRIMAVERA 2010 I N.º188
Alain Resnais, nascido na Bretanha em
1922, foi sempre apaixonado pela animação e pela BD, tanto que vários dos
seus filmes têm influência notória destas
artes. Estudou arte dramática durante
dois anos, mas a chegada da II Guerra
Mundial interrompeu-lhe os estudos. Só
no final do conflito passou a dedicar-se
ao cinema, começando com curtas-metragens dedicadas às artes plásticas. A
sua primeira foi Van Gogh (1948),
seguindo-se Gaugin e Guernica (1950).
Fez ainda Les Statues Meurent Aussi
(1953), sobre a arte africana e a sua apropriação pelo colonialismo – proibido em
França durante vários anos –, e Toute la
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Mémoire du Monde, um percurso poético
pelo labirinto da Biblioteca Nacional de
França.
Apesar de ser muitas vezes identificado
com o nascimento da Nouvelle Vague,
Resnais tinha muito pouco contacto
com o grupo dos «Cahiers du Cinema».
Muito influenciado por Vertigo (1958),
de Hitchcock, a sua sensibilidade estética
está mais próxima de realizadores como
Chris Marker e Agnès Varda, pelo seu
amor pelo documentário, do filme como
documento literário. Desde La Nuit et le
Broulliard (1958) até Providence (1977),
usou como argumentistas grandes figuras do meio literário, como Jean Cayrol,
Marguerite Duras, Alain Robbe Guillet e
David Mercer, na procura de histórias
originais que passavam para além do
puro naturalismo, entrando directamente no mistério e na poesia.
No número de Novembro de 2009, os
Cahiers publicaram uma entrevista com
Resnais a propósito da estreia do seu
último filme – Les Herbes Folles, estreia
em Portugal a 25 de Março – que gostaria de partilhar aqui.
“O nível do cinema de hoje, tenho a
impressão, é melhor do que o de antiga-
mente. Há uma tal abundância: 583 filmes saem em Paris por ano. Como escolher? Vou ser mais preciso: não vejo um
filme desde 15 de Julho, já não vejo três
filmes por semana. E o cinema, para
mim, não é forçosamente o de 2009, mas
o de 1920. Divirto-me a passear…
(…) Os filmes que vou ver automaticamente são todos os Rohmer, os
Rivette, os Varda, os Marker. Gosto também de todos os filmes de Arnaud
Desplechin. No cinema asiático, gosto
muito de Zhang Yimou. Onde não se
pode acusá-lo de ser formalista… Gosto
tanto de Viver! como de O Segredo dos
Punhais Voadores.
(…) Vejo todos os David Lynch, e às
vezes duas vezes. Vi três vezes Mulholland
Drive. Fascina-me, mas não poderia darvos qualquer razão para tal. É uma questão que se põe: porquê, se as personagens e a intriga não interessam, de
repente vamos ter um prazer enorme? O
interessante é quando as coisas encantam no sentido mais forte do termo.
Como esses momentos de bruma de
calor do Verão nas estradas onde há um
tremer do asfalto que não tem nada a ver
com a paisagem. Quando se produz num
filme qualquer coisa que não se pode
analisar e que comove, é isso que faz
valer a pena filmar um argumento. Há
filmes de Frank Borzage ou de Leo
McCarey que me podem comover sem
eu saber porquê. Por vezes penso que o
único género interessante no cinema é a
comédia musical. Quando vemos aqueles filmes, temos a certeza que vão passar
em três meses. Quem poderia imaginar
que os filmes de Fred Astaire ainda hoje
seriam vistos? O que se passa lá dentro?
Não podemos dizer que é o enredo, as
personagens, ou os diálogos. Mas têm
um charme...
(…) Continuo a ver as séries; são a concretização do sonho de Erich von
Stroheim ou de Abel Gance de fazer filmes muito longos. Acho que Os Sopranos
são um único filme. Conheço seis ou
sete séries. Gosto muito de Millenium,
The Shield e 24 Hours, mas esta só a segui
até à sexta temporada. Diverti-me muito
com Alias de J.J. Abrams. Por que magia
o criador consegue manter uma tal unidade com tantos realizadores diferentes?
(…) Não quero falar do meu próximo
filme. Gostava de começar a rodar rapidamente, antes do Verão. Mas, bom, graças ao Santo Oliveira, estamos protegidos.”
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textos bissextos
Emerenciano
o poeta e o pintor
Pintor de méritos consolidados e reconhecidos, Emerenciano é também cultor da
palavra escrita. Em poesia, dá expressão àquela parte do seu mundo emocional,
partilhada pela pintura, de que esta todavia não se reclama em níveis de
mobilização excessivos. Mesmo existindo um compromisso entre palavra e cor,
verso e traço, semiótica do texto e fulguração visual do signo, o artista reserva à
poesia o canteiro do espírito onde ajardina a matéria sensível excedentária do rasgo
pictórico. Matéria depois ordenada e encaminhada para as páginas dos livros
através dos quais vai acumulando reputação de escritor.
Júlio Conrado
Escritor
I
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PRIMAVERA 2010 I N.º188
Estamos em presença, provavelmente,
de um homem dividido, de subjectividade fendida pelo raio fulminante de
duas paixões – a escrita poética e a pintura –, que para elas procura estabelecer
pontes de modo a criar fios harmónicos
capazes de o salvarem dos desalinhos
desse duplo preito. Por salvação
entenda-se o desaparecimento da angústia vital que se diria submergi-lo
enquanto poeta e da qual se resgata pela
alegria da pintura. E se falo de “alegria”,
isso não significa que o pintor possa estar
inundado de contentamento enquanto
trabalha. Quero dizer que a alegria emana
do traço pictórico como resultado de uma
atitude positiva ante as dificuldades do
processo criativo, desde o seu início até ao
fim. Contudo, unir as margens do grande
rio que corre entre as duas vocações é, certamente, utópico projecto. E nem se afigura ser qualquer espécie de dialéctica a
solução para o caso, visto não existir oposição rígida de contrários, mas antes pragmática boa vizinhança entre linguagens
estéticas distintas.
Por outro lado, dir-se-ia haver no artista
uma mal cicatrizada ferida narcísica,
potenciadora da dispersão de nexos, que
torna o poeta refém do pintor, em termos
formais. Se se considerar que a pintura de
Emerenciano é, na sua inspiradora sintaxe e no seu efeito de esplendor, poética,
isto é, que se pode dar ao luxo de prescindir da palavra para ser também poesia, talvez seja possível encontrar no peso que o
texto escrito tem na obra do pintor o
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aceno magnânimo deste último ao vate
em ascensão, como que delegando nele
fatia considerável do seu prestígio.
Julgo não escandalizar ao defender que a
poesia de Emerenciano beneficiaria com
a maturidade (leia-se ênfase criadora) que
a sua pintura exibe. Sobram, com certeza,
ao poeta as qualidades que, bem traduzidas em palavras, levarão à superação
esperada, mormente no registo tão português da amargura (veja-se o «Só», etc.): a
vida interior sofrida; a morte omnipresente; o verso sibilino que dá resposta ao
hipotético ou real cerco social hostil; o
paralelismo com “o homem revoltado”
em assumida afinidade camusiana; esse
desgosto tão próximo do desassossego de
Bernardo Soares que inquieta mais do
que insubordina; o pendor para a censura
austera aos que gravitam em torno da
grande arte sem jamais cederem à tentação de a saborear.
A poesia de Emerenciano enjeita a referencialidade estrita, subtraindo-a à acomodação fácil à lógica das coisas. Se não tem na
mira, que se vislumbrem, horizontes
astrais, também não se fica pela superfície
rasa. Tudo aponta para que o seu alvo se
situe numa zona do ser – o chão secreto do
“meu secreto ser” – governada por sombras, silêncios, às vezes raiva, outras vezes
revolta, e ainda um fundo persistente de
tristeza, talvez mais consequência de litígio com o social envolvente, alheio
(ainda? talvez?) à especificidade da sua
arte, do que resultado de improvável
aliança da palavra escrita com as vibrações
da coreografia estelar ou qualquer outra
mediação de transcendência.
Da presunção de alguém que quer abarcar o mundo que o não abarca, emergem
sintomas de crise existencial. O monólogo do sujeito briga com as realidades
em trânsito nas cercanias. Ao mesmo
tempo, os desesperos nem sempre contidos, soam, amiúde, indóceis. Apesar de
subterrânea, e das tentativas de voo para
as alturas serem no geral equívocas, por
nelas estar previamente declarado o
“regresso” à normalidade “decepcionante”, na querela psicológica de um
desajuste social se vai mapeando a
memória autobiográfica do artista.
Da lírica de Emerenciano brota um exasperado mal-estar ôntico materializado
no verso curto, certeiro, pronto para o
exercício do direito à indignação, e
deste, sem dúvida, braço armado. É uma
poesia protegida por um grande rigor na
preparação da estrofe, a que se agrega a
escolha de um vocabulário enxuto, veículo da clareza clássica, e cujo desafio
principal é, talvez, encontrar para essas
bem identificadas coordenadas estruturais mensagem capaz de pôr em causa a
tirania da palavra e do seu reportório,
jamais exaurido, de significados e representações.
Mas a palavra não deixa ao artista a liberdade de que ele desfruta na pintura, em
que um discreto signo pode dar azo a
múltiplas interpretações, associações,
especulações, etc. A palavra escrita
retém, exige, coage. No verso dilacerado
entrevêem-se sinais da intranquilidade
do poeta, ao validar a provocação deste a
todo um historial do “contínuo”, do
“antecedente” e do “consequente”, da
“lógica diacrónica”, etc., que constitui
também repto à poesia formalmente
bem comportada, racionalizada no sentido da “compreensão” – do seu “triunfo
prático”, para usar a oportuna definição
de Eduardo Lourenço.
Neste último caso, o aparecimento
espontâneo de conteúdos sem relação
aparente entre si dinamita o local de
encontro com o leitor. São contribuições
para que uma certa incomodidade no
acto da leitura vá juntar-se à depressiva
alteridade do Mesmo e do Outro, lá onde
se recupera como eco persistente a intromissão do verbo crispado, remetendo
para um sarcasmo fruto da sua própria
circunstância.
Em alguma da poesia ainda inédita do
autor, a que tive acesso, assiste-se uma
vez mais ao jogo das perplexidades do
homem que cumpre novo segmento da
viagem ao fim da (sua) noite, deixando
vislumbrar desejos só parcialmente realizados ou quiméricos anseios por alcançar. De uma maneira ou de outra, o sentimento trágico da existência manifestado através de persistente interrogação
sobre o que falha na procura “da similitude”, e acerca dos “tus da conveniên-
cia” que esmagam os “tus da procura
essencial”, ou a busca na pureza da
infância do alento “para sustentar a
criança que me habita”, ou ainda a premonição da herança possível na morte
“quando já sepultado / começa a descarnação / para deixar a única / fortuna
indesmentível / do meu corpo / ossos”,
projectam no leitor a imagem de um ser
amargurado, entregue à interpelação que
isole e esclareça as causas da sua solidão.
Correlacionando a poesia de Emerenciano com a sua pintura, coloco-me,
quanto a esta – com toda a humildade –
na posição do receptor atingido pelo prazer da descoberta de algo que simultaneamente arrebata e apazigua. Sim, a
pintura de Emerenciano apela para sensações festivas e para a reflexão sobre as
intertextualidades tonificantes que nesta
matéria são legíveis. A fruição estética
aliada à gratidão que, pela sua finura e
requinte, ela suscita, é a quota mínima
do que é lícito manifestar em sinal de
apreço e congratulação.
Por este flanco irrompe a contradição
maior – e fascinante – de um discurso
poético pesaroso, alternando com uma
pintura de delicado traço que é celebração perfeita do júbilo: cores tépidas e
confortáveis, visualidade exuberante,
subtis aberturas, no quadro, à palavra
escrita, fixando na tela, como confissão
feliz, a lealdade do autor às formas de
arte predilectas, aqui em interlúdio cordial de comunicação, numa entreajuda
empenhada na exaltação da beleza que
põe à mostra o lado solar de um “outro”
Emerenciano.
O que acrescentará a poesia de Emeren ciano à pintura de Emerenciano
enquanto disciplinas intrínsecas ao carácter do artista, é enigma ainda por resolver. Para já, fica a pairar a ideia de que a
pintura emerenciana se instalou num
patamar de excelência, apreensível, por
exemplo, nas emoções e sensações que
provoca. E que a poesia emerenciana
ainda não fechou o capítulo do seu crescimento; quando atingir o zénite, então
se verá até que ponto e para que paragens evoluiu esta impressionante alteridade.
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perspectivas
Luís Vendeirinho
Escritor
(na comemoração do Dia de S. Valentim de 2010)
I
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PRIMAVERA 2010 I N.º188
É um instante, um assomo de urgente
vontade, uma comoção doce fora de qualquer realidade, misteriosa, breve, num
relance em que dissolve o espanto e a
ansiedade derramada pela vida sempre
que nos perguntamos a lógica de renunciar, quando se pressente ser possível essa
inatingível felicidade, e no momento
desiludido de um amor impossível, perdido na vertigem e na loucura de uma
falsa liberdade, sentimos no peito, surpresos e sem jeito, que houve um tempo em
que podendo-nos enamorar não houve
senão um vento que em sonhos nos deu
uma ilusão de amar. Em segredo, sempre
em segredo, que à face deste mundo, e
do desatino de um amargo destino, se
escondem os beijos, as carícias, as confissões e as promessas, os delírios em que o
prazer se agarra, como se o degredo da
alegria e da mais verdadeira fantasia seja
maior que o nosso próprio desejo,
quando de súbito se incendeia, para
morrer sem razão antes mesmo que possamos ateá-lo no olhar esquivo e suplicante de uma alma gémea.
Haverá um outro dia, uma outra vida,
livres desta sina em que sem a glória de
um imenso e pedido abraço, o amor se
adia, haverá toda a nossa memória a
lembrar cada gesto de súplica banido
desta vida, deste magoado dia, e o tempo
desatará da mordaça o laço, para nos
fazermos amar tendo como nosso leito
todo o universo. Haverá, e até lá a sombra luminosa que o teu olhar encosta no
meu sonho, noite fora, vai despertando
em mim o fulgor incontrolado das paixões, e eu, perdido nesta fúria das perdidas multidões, demando esse morno
abrigo, a ternura que perdure sobre o
desencontro das nossas desilusões.
Por cada beijo teu, por cada beijo meu,
por cada olhar em que nada mais do que
o olhar aconteceu, se agita o nosso mar
de espuma a tocar o céu.
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Pedagogia da catástrofe
ração manifestadas pelo primeiro-ministro aos madeirenses, através de actos e
no imediato – “não é momento para
haver recriminações nem disputas”,
declarou.
Esperemos que o poder pedagógico da
catástrofe na Madeira conduza à correc-
Celso F. Sousa
Na formação dos cidadãos, a Escola cultiva os valores da solidariedade e da cooperação, cristalizados em expressões
populares como há sempre lugar para
mais um ou a união faz a força.
Não obstante, a vida prática, como a tragédia que se abateu sobre a ilha da
Madeira no dia 20 de Fevereiro, tem um
poder pedagógico tremendo, no sentido
em que as circunstâncias de emergência
impelem, até instintivamente, para a
prática da solidariedade e da cooperação. Paradoxalmente, a mesma condição humana que permite actos excepcionais em momentos de tragédia, não
permite ao ser humano respostas excepcionais nos outros dias “normais”.
Quando estamos absorvidos pelas tarefas de sobrevivência na vida quotidiana,
tratando do nosso canto, prevalece mais
o individualismo e a competição.
Quando está em causa a vida, a sobrevivência e a dignidade humanas, as pessoas unem-se, convergem e, com naturalidade, alargam o conceito de parentesco de sangue. Falam os valores morais
e civilizacionais mais nobres. Afinal,
estamos juntos no mesmo barco, atingidos todos pela mesma condição de fragilidade. A onda de solidariedade nacional
relativamente aos habitantes da Madeira
tem sido notável.
Veja-se o que aconteceu ao nível dos
governos. Num ápice, o presidente do
Governo Regional e o primeiro-ministro
relativizaram e ultrapassaram os diferendos políticos que os têm oposto. Há
males que vêm por bem.
Por um lado, deve tirar-se o chapéu ao
líder madeirense por sanar diferendos e
mudar de direcção, tendo em vista o
essencial, o interesse dos seus concidadãos: “este país pode enterrar uma série
de machados que não têm importância
nenhuma e em que andamos a gastar
uma série de energias”, afirmou. Por
outro lado, é de salientar o elevado sentido de Estado, a solidariedade e coope-
ção de alguma gestão do território, de
forma a minimizar, no futuro, os danos
humanos e materiais provocados por condições climatéricas extraordinárias.
Nélio de Sousa
Escola Básica/Secundária da Calheta
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dizeres
Quando eu era pequena, nunca ouvia
falar de infância. Se um mistério havia,
era o daqueles meninos que passavam às
vezes por nós e que pareciam ter sempre
de comer, usavam sapatos e roupas que
os cobriam todos e não apareciam cá
fora. a não ser quando já nós andávamos, há muitas horas, na lide no campo.
Havia coisas de que não se falava. Elas
falavam por nós.
Biografia
Angelina Carvalho
Colaboradora do Centro de Investigação
e Intervenção Educativas (FPCEUP)
I
110 111
PRIMAVERA 2010 I N.º188
Eu não sei se era educação sexual ou não,
mas aprendíamos como uma mulher se
sujava de sangue todos os meses. Não sei
como nos ensinavam, mas sabíamos
como, à noite, atrás do cretone que nos
separava da cama dos nossos pais, a
minha mãe gemia e o meu pai arfava,
entre o chorar dos irmãos pequenos; via
o catre que abanava e, debaixo dos
cobertores esfarrapados que mal cobriam
o vento que entrava pelas frestas, sabia
que alguma coisa importante estava a
acontecer. Também soube cedo como
nasciam os meninos: eu tinha que estar
lá, quando já tinha sete anos, para levar
água quente e toalhas à tia Josefa, que
empurrava a barriga da minha mãe para
ajudar a nascer mais um irmão. Desgraçado, dizia a minha mãe enquanto o
punha no peito, mais uma boca para
passar fome e para tirar o sustento aos
outros.
De política eu não ouvia falar, excepto
uma vez, quando, muito em segredo,
contaram do que aconteceu ao Alfredo
da tia Zulmira, que trabalhava na
Marinha Grande. Um dia foram buscá-lo
e desapareceu.
De pedofilia nunca ouvi falar. Ninguém
falava. Nem a minha irmã Zilda, de 13
anos, quando chegou a casa, ao entarde-
cer, com o rosto vermelho, os cabelos
desgrenhados e o vestido sujo, ainda
mais sujo de terra, e se foi enrolar num
canto atrás da cama, a chorar, e me falou
entre soluços do que o feitor a obrigara a
fazer. Nem eu ouvi falar, nem falei
nunca, mesmo no dia em que fui à casa
grande levar uns mimos do pomar, que
mandava o meu pai, e o Senhor
Engenheiro me encostou à parede atrás
da porta e me quis apalpar e me agarrou
e magoou até que pude fugir.
Vivíamos num país mágico, onde, apesar
da fome e do frio, da terra gelada que nos
cortava os pés descalços, do peso dos
canecos de água que acartávamos da
fonte à cabeça; apesar das doenças sem
medicamentos, dos invernos longos e
escuros, com o vento chiando entre os
buracos da parede; apesar dos irmãos
pequenos, que ajudávamos a nossa mãe
a amortalhar; apesar das frieiras que nos
cortavam os dedos em gretas purulentas;
apesar da escola longe, onde íamos, às
vezes, um ano só, enquanto se era demasiado franzina para ir para o campo; apesar de tudo isto, acreditávamos neste
mundo mágico, onde este sofrimento
era por vontade de Deus, como dizia o
Senhor Padre; acreditávamos neste
mundo mágico, em que alguns meninos,
bem vestidos, agasalhados e sem fome,
não precisavam de sofrer para serem
bons – magicamente, nasciam assim,
bons e puros, sem dores nem mágoas.
Não comíamos à mesa com os adultos,
mas à volta da lareira ou da braseira
acesa com os restos de vides queimadas
da padaria. Das conversas deles eu não
entendia, mas sentia o medo e a dor nas
suas palavras, quando falavam do que a
colheita não dera e de como tinham
recebido ainda menos.
Corríamos, às vezes, aos regatos, para
tentar arranjar alguns agriões para o jantar, ou algumas azedas que, junto com as
batatas, sempre aumentavam mais o que
ia no prato.
Nesse tempo não fechavam escolas, porque quase não havia escolas abertas. Os
que lá andavam mais tempo, como os
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idade a que se chama adolescência. Na
altura sabia que tinha crescido e que a
senhora da casa se aborrecia porque a
farda já estava a ficar curta, que as
minhas formas estavam a ficar maiores e
que o filho mais velho, a estudar em
Coimbra, me perseguia com os olhos e
com as mãos, quando ia a casa, aos finsde-semana.
Aos 17 anos, mandaram-me embora. E fui
trabalhar para a fábrica de lanifícios, nos
teares. Aos 19 casei-me. O Manel era operário lá na fábrica. No início foi melhor.
Fiquei a morar perto da vila, num cortelho pequeno que o Manel, que era jeitoso
de mãos, preparou. O telhado é que era
pior, pois deixava cair um pedaço de água
durante as chuvas.
Depois começaram a nascer os filhos.
O primeiro vingou e ao fim de três dias
fui trabalhar. O segundo morreu pequenino. Depois vieram mais três e depois
dois que também morreram. Eram
magrinhos e definhados, sobretudo os
últimos. Tinham mais fome do que os
primeiros e eu menos força e menos
leite para lhes dar, até que o leite secou.
O Manel ficou mais velho e doente, já
não fazia horas extraordinárias e cada
vez tínhamos menos dinheiro. A fome
estava muitas vezes em nossa casa. Tive
que deixar a fábrica e lavava roupa para
as senhoras da vila. No Inverno era difícil. Muitas vezes parti o gelo do tanque
do lavadouro para poder lavar. Os ossos
doíam-me cada vez mais e custava-me a
levantar o peso da roupa.
filhos da professora, do Afonso regedor, do
Marcelino da venda, do guarda
Almerindo, do feitor ou da D. Gervásia,
mulher do caseiro da casa grande, deviam
aprender muitas coisas de que nunca
tínhamos ouvido falar antes e nunca ouviríamos falar depois. Depois havia a infância para perceber como o trabalho era cada
vez mais e cada vez se tinha menos tempo
para se perder entre os campos e os animais, entre algumas corridas e saltos de
macaca desenhada na terra.
Não aprendi a ler, nem fazia versos.
Aos seis anos, ensinaram-me a cuidar dos
meus irmãos, a acender a lareira e pôr o
caldo ao lume, a acartar os canecos da
água, a apanhar as batatas. Aos nove,
ensinaram-me a ceifar a erva, a abrir os
regadios, a espetar os rebentos de couve,
a acartar os molhos de lenha, a sachar.
Aos 13, fui servir, interna, para casa de
uns familiares do Senhor Engenheiro, na
vila. Ali vi muitas coisas que nem imaginava que existiam. Hoje sei que era a
Os filhos cresceram. Dois rapazes foram
para a guerra. Um morreu lá. O outro
veio “esquisito”, dizem que foi do que lá
viu. O mais novo estava na construção
civil, mas caiu do telhado e ficou inválido. O seguro não pagou, disseram que
não estava legal. Outro foi para a
Venezuela. As raparigas foram para
França e outra para Lisboa.
O Manel morreu já há muito tempo.
Fiquei muitos anos sozinha. Às vezes
passava muito mal e quem me valia era
uma vizinha.
Morri a 2 de Fevereiro de 2010, com 77
anos.
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colaboradores
rubricas
Adalberto Dias de Carvalho – Universidade do Porto,
Faculdade de Letras
Adelina Silva – Universidade Aberta, Centro de Estudos das
Migrações e das Relações Interculturais, Laboratório de
Antropologia Visual
Almerindo Janela Afonso – Universidade do Minho, Instituto
de Educação e Psicologia, Departamento Sociologia da
Educação e Administração Educacional
Américo Nunes Peres – Universidade de Trás-os-Montes e
Alto Douro, Departamento de Educação e Psicologia
Ana Efe – Artista plástica
André Escórcio – Escola Básica/Secundária Gonçalves Zarco
(Madeira)
Angelina Carvalho – Universidade do Porto, Faculdade de
Psicologia e Ciências da Educação, Centro de Investigação
e Intervenção Educativa
António Magalhães – Universidade do Porto, Faculdade de
Psicologia e de Ciências da Educação
António Mendes Lopes – Instituto Politécnico de Setúbal,
Escola Superior de Educação
António Teodoro – Universidade Lusófona de Humanidades
e Tecnologias, Instituto de Ciências da Educação
Ariana Cosme – Universidade do Porto, Faculdade de
Psicologia e de Ciências da Educação
Arsélio de Almeida Martins – Escola Secundária de José
Estêvão (Aveiro)
Betina Astride – Escola Básica 1 de Ciborro
Carlos Cardoso – Instituto Politécnico de Lisboa, Escola
Superior de Educação
Carlos Mota – Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro,
Departamento de Educação e Psicologia
Casimiro Pinto – Universidade Aberta, Centro de Estudos das
Migrações e das Relações Interculturais, Laboratório de
Antropologia Visual
David Rodrigues – Universidade Técnica de Lisboa, Fórum de
Estudos de Educação Inclusiva
Débora Cláudio – Nutricionista, Administração Regional de
Saúde/Norte (Porto)
Domingos Fernandes – Universidade de Lisboa, Faculdade de
Psicologia e de Ciências da Educação
Fátima Antunes – Universidade do Minho, Instituto de
Educação e Psicologia, Departamento de Sociologia da
Educação e Administração Educacional
Felisbela Lopes – Universidade do Minho, Instituto de Ciências
Sociais, Departamento de Ciências da Comunicação
Fernanda Rodrigues – Universidade Católica Portuguesa
Fernando Faria Paulino – Universidade Aberta, Centro de
Estudos das Migrações e das Relações Interculturais,
Laboratório de Antropologia Visual
Fernando Santos – Escola Secundária de Valongo
Filipe Reis – Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da
Empresa, Departamento de Antropologia
Francisco Marano – Universidade Aberta, Laboratório de
Antropologia Visual
Francisco Silva – Engenheiro
Gustavo E. Fischman – Arizona State University, Mary Lou
Fulton College of Education (EUA)
Gustavo Pires – Universidade Técnica de Lisboa, Faculdade de
Motricidade Humana
Henrique Vaz – Universidade do Porto, Faculdade de
Psicologia e de Ciências da Educação
Isabel Baptista – Universidade Católica Portuguesa, Faculdade
de Educação e Psicologia
Isabel Menezes – Universidade do Porto, Faculdade de
Psicologia e de Ciências da Educação
Ivonaldo Leite – Universidade Federal de Pernambuco (Brasil)
Jaime Carvalho da Silva – Universidade de Coimbra,
Faculdade de Ciências
João Barroso – Universidade de Lisboa, Faculdade de
Psicologia e de Ciências da Educação
João Paraskeva – Universidade do Minho, Instituto de
Educação e Psicologia, Departamento de Currículo e
Tecnologia Educativa
João Teixeira Lopes – Universidade do Porto, Faculdade de
Letras
112
PRIMAVERA 2010 I N.º188
Joaquim Marques – Instituto das Comunidades Educativas
Jorge Humberto – Mestre em Educação Especial
José António Caride Gómez – Universidade de Santiago de
Compostela, Faculdade de Ciências da Educação
José Catarino – Instituto Politécnico de Setúbal, Escola Superior
de Educação
José Maria dos Santos Trindade – Instituto Politécnico de
Leiria, Escola Superior de Educação
José María Hernández Díaz – Universidade de Salamanca,
Faculdade de Educação
José Miguel Lopes – Universidade Estadual de Minas Gerais
(Brasil)
José Pacheco – Professor
José Rafael Tormenta – Escola Secundária de Oliveira do
Douro (V.N. Gaia)
José Silva Ribeiro – Universidade Aberta, Centro de Estudos
das Migrações e das Relações Interculturais, Laboratório de
Antropologia Visual
Júlio Conrado – Escritor
Júlio Roldão – Jornalista
Jurjo Torres Santomé – Universidade da Corunha, Depar tamento de Pedagogia e Didáctica
Leonel Cosme – Escritor, investigador
Licínio Lima – Universidade do Minho, Instituto de Educação
e Psicologia, Departamento Sociologia da Educação e
Administração Educacional
Luís Souta – Instituto Politécnico de Setúbal, Escola Superior
de Educação
Manuel António Ferreira da Silva – Universidade do Minho,
Instituto de Educação e Psicologia, Departamento
Sociologia da Educação e Administração Educacional
Manuel Matos – Universidade do Porto, Faculdade de
Psicologia e de Ciências da Educação
Manuel Pinto – Universidade do Minho, Instituto de Ciências
Sociais, Departamento de Ciências da Comunicação
Manuel Sérgio – Professor jubilado, Universidade Técnica de
Lisboa, Faculdade de Motricidade Humana
Margarida Gama Carvalho – Universidade de Lisboa,
Faculdade de Medicina, Instituto de Medicina Molecular
Maria Antónia Lopes – Universidade Mondlane (Moçambique)
Maria Fátima Nunes – Universidade Aberta, Centro de
Estudos das Migrações e das Relações Interculturais,
Laboratório de Antropologia Visual
Maria Gabriel Cruz – Universidade de Trás-os-Montes e Alto
Douro, Departamento de Educação e Psicologia
Maria João Couto – Universidade do Porto, Faculdade de Letras
Maria Paula Justiça – Universidade Aberta, Centro de Estudos
das Migrações e das Relações Interculturais, Laboratório de
Antropologia Visual
Mario Novelli – Universidade de Amesterdão (Holanda)
Marisa Vorraber Costa – Universidade Federal do Rio Grande
do Sul e Universidade Luterana do Brasil
Miguel Ángel Santos Guerra – Universidade de Málaga,
Departamento de Didáctica e Organização Escolar
Nilda Alves – Universidade do Estado do Rio de Janeiro,
Laboratório de Educação e Imagem
Nuno Pereira de Sousa – Médico de Saúde Pública,
Administração Regional de Saúde/Norte, Agrupamento de
Centros de Saúde de Guimarães
Otília Monteiro Fernandes – Universidade de Trás-os-Montes
e Alto Douro, Departamento de Educação e Psicologia
Paula Cristina Pereira – Universidade do Porto, Faculdade de
Letras
Pascal Paulus – Escola Básica Amélia Vieira Luís (Outurela)
Paulo Raposo – Instituto Superior de Ciências do Trabalho e
da Empresa, Departamento de Antropologia
Paulo Sgarbi – Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Brasil)
Paulo Teixeira de Sousa – Conservatório de Música do Porto
Pedro Silva – Instituto Politécnico de Leiria, Escola Superior de
Educação
Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva – Universidade de São
Carlos (Brasil)
Raúl Iturra – Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da
Empresa
Raquel Goulart Barreto – Universidade do Estado do Rio de
Janeiro (Brasil)
Regina Leite Garcia – Universidade Federal Fluminense,
Grupo de Investigação em Alfabetização das Classes
Populares
Ricardo Campos – Universidade Aberta, Centro de Estudos
das Migrações e das Relações Interculturais, Laboratório de
Antropologia Visual
Ricardo Vieira – Instituto Politécnico de Leiria, Escola Superior
de Educação
Roberto da Silva – Universidade de São Paulo, Faculdade de
Educação (Brasil)
Roger Dale – Universidade de Bristol, Grã-Bretanha
Rui Namorado Rosa – Universidade de Évora, Departamento
de Física
Rui Pedro Silva – Universidade do Minho, Centro de Investigação em Ciências Sociais
Rui Tinoco – Psicólogo clínico, Administração Regional de
Saúde/Norte, Agrupamento de Centros de Saúde do Porto
Rui Trindade – Universidade do Porto, Faculdade de Psicologia
e de Ciências da Educação
Sara Pereira – Universidade do Minho, Instituto de Estudos da
Criança, Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade
Sérgio Bairon – Universidade Aberta, Laboratório de
Antropologia Visual
Susan Robertson – Universidade de Bristol, Grã-Bretanha
Susana Faria – Instituto Politécnico de Leiria, Escola Superior
de Educação
Virgínio Sá – Universidade do Minho, Instituto de Educação e
Psicologia, Departamento de Sociologia da Educação e
Administração Educacional
Visionarium – Centro de Ciência do Europarque (Santa Maria
da Feira)
Xavier Bonal – Universidade Autónoma de Barcelona (Espanha)
Xavier Úcar – Universidade Autónoma de Barcelona, Depar tamento de Pedagogia Sistemática e Social (Espanha)
escritas soltas
Agostinho Santos Silva – Engenheiro
Ana Benavente – Universidade de Lisboa, Instituto de Ciências
Sociais
António Branco – Universidade do Algarve
António Brotas – Professor jubilado, Universidade Técnica de
Lisboa, Instituto Superior Técnico
Cristina Mesquita Pires – Instituto Politécnico de Bragança,
Escola Superior de Educação
Jacinto Rodrigues – Universidade do Porto, Faculdade de
Arquitectura
João Pedro da Ponte – Universidade de Lisboa, Faculdade de
Ciências, Departamento de Educação
José Alberto Correia – Universidade do Porto, Faculdade de
Psicologia e de Ciências da Educação
José Guimarães – Universidade Aberta
Luís Vendeirinho – Escritor
Luísa Mesquita – Professora
Manuel Pereira dos Santos – Universidade Nova de Lisboa,
Faculdade de Ciências e Tecnologia
Manuel Reis – Professor, investigador
Manuel Sarmento – Universidade do Minho, Instituto de
Estudos da Criança
Maria de Lurdes Dionísio – Universidade do Minho, Instituto
de Educação e Psicologia
Maria Emília Vilarinho – Universidade do Minho
Rui Canário – Universidade de Lisboa, Faculdade de Psicologia
e de Ciências da Educação
Rui Santiago – Universidade de Aveiro
Rui Vieira de Castro – Universidade do Minho, Instituto de
Educação e Psicologia
Serafim Ferreira – Escritor, crítico literário
Sofia Marques da Silva – Universidade do Porto, Faculdade de
Psicologia e de Ciências da Educação
Telmo Caria – Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro
Victor Oliveira Jorge – Universidade do Porto, Faculdade de
Letras
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3/15/10 3:44 PM
Há cidades cor de pérola onde as mulheres
existem velozmente. Onde às vezes param e são morosas
por dentro. Há cidades absolutas
trabalhadas interiormente pelo pensamento
das mulheres.
(...)
entrevista com Helena Araújo
a página da educação - PRIMAVERA 2010
Há mulheres que colocam cidades doces
e formidáveis no espaço, dentro
de ténues pérolas.
Que racham a luz de alto a baixo
e criam uma insondável ilusão.
(...)
A I República
e a retórica ambígua
sobre a emancipação
da mulher portuguesa
A última entrevista
de Rogério Fernandes
“Ainda não se dá o espaço suficiente
para que os professores recuperem a
sua vocação de construir uma escola
nova pelas suas próprias mãos e com
os seus alunos.”
centenário do Dia Internacional
da Mulher
Semana de Acção Global
pela Educação
Herberto Hélder
Lugar IV, fragmento
Série II | nº 188 | PRIMAVERA 2010 | www.apagina.pt | 4€
objectivo: educação para todos
DEVESAS
Série II | nº 188
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Ousar ousar!
Pragmatismo,
educação e democracia:
o legado universal
de Jane Addams
É indispensável que as universidades sejam credíveis e ofereçam formação de boa
qualidade (Alberto Amaral) | O texto do acordo ortográfico é português, e é bom que os
portugueses saibam disto (Lauro Moreira) | Precisamos de um ensino missionário? (Leonel Cosme)
3/15/10 3:43 PM
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