DIPLOMACIA
EM ALTO-MAR
Depoimento ao CPDOC
Vasco Leitão da Cunha
DIPLOMACIA
EM ALTO-MAR
Depoimento ao CPDOC
Entrevista
Aspásia Camargo Zairo
Cheibub Luciana Nóbrega
Edição de texto
Dora Rocha
Pesquisa e notas
Alexandra de Mello e
Silva Leticia Pinheiro
ISBN 85-225-0178-5
Copyright © Pedro Leitão da Cunha e Isabel Gurgel Valente
Direitos desta edição reservados à
EDITORA FGV
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Impresso no Brasil / Printed in Brazil
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em parte, constitui violação do copyright (Lei nº 5.988)
1ª edição – 1994
2ª edição – 2003
FUNDAÇÃO ALEXANDRE DE GUSMÃO
Presidente: Embaixadora Thereza Maria Machado Quintella
Diretor do Departamento de Administração Geral: Conselheiro José Borges dos Santos Júnior
Capa: Victor Burton
Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca
Mario Henrique Simonsen/FGV
Cunha, Vasco Tristão Leitão da, 1903-1984.
Diplomacia em alto-mar: depoimento ao CPDOC/ Vasco Leitão da Cunha; entrevista Aspásia
Camargo, Zairo Cheibub, Luciana Nóbrega; edição de texto Dora Rocha; pesquisa e notas
Alexandra de Mello e Silva, Leticia Pinheiro. – 2. ed. – Rio de Janeiro: Editora FGV, 2003.
392p.il.
Co-edição Fundação Alexandre de Gusmão – Funag
ISBN 85-87-480-29-4
Inclui índice.
1. Brasil- História diplomática – 1920 – 2. Brasil- Relações exteriores – 1920 –
I. Camargo, Aspásia. II. Cheibub, Zairo Borges. III. Nóbrega, Luciana. IV. Fundação Getulio
Vargas. V. Titulo.
CDD–327.81
Sumário
Apresentação da 2ª edição VII
Apresentação IX
Introdução XIII
Prefácio XIX
O berço do diplomata 1
Os países doces 1
De Mazagão a Petrópolis 3
Lembranças do Barão 5
Estudos e projetos 6
Os dados lançados 8
A diplomacia, desde sempre 10
A casa de Rio Branco 16
A missão era um navio 16
Com os Estados Unidos, mas não a reboque 18
O ministério Mangabeira 20
As inovações de Maurício Nabuco 24
Peripécias do Protocolo 27
Primeiro posto: Lima 31
Revoluções no continente 36
O Itamaraty e a Revolução de 30 38
Bons tempos de Lisboa 41
1933: atualidades 44
Buenos Aires e a boa vizinhança 47
Santiago do Chile 52
Reflexões sobre a carreira 55
Guerra no horizonte 69
O fracasso da Liga das Nações 69
Eixo ou Aliados? 72
No gabinete do secretário geral 76
A Conferência de Havana 81
No Ministério da Justiça 83
A prisão do chefe de Polícia 88
Negócios interiores 94
Um aliado preferencial 98
A participação do Brasil na guerra 103
Problemas da guerra e da paz Missão na África 114
Amizade com de Gaulle 117
Mais notícias do Mediterrâneo 123
Amizade com a FEB 128
O fim da guerra 134
Primórdios da ONU 137
A Espanha de Franco 141
A ONU e suas medidas 145
Uma remoção difícil 149
Laços com a Finlândia 152
Ainda a ONU 155
Tempos de guerra fria 165
Volta ao lar 165
Nova reforma 168
Novas reflexões sobre a carreira 171
Relações Brasil-Estados Unidos 176
6
Medidas do segundo governo Vargas 180
Relações Brasil-Argentina 182
Secretário geral – I 186
A grande crise 191
Chuva em Bruxelas 193
Revolução nas Caraíbas 196
A dança dos asilados 200
Os rumos de Fidel 204
JK e a OPA 209
A política externa independente 220
Secretário geral – II 220
Reação aos Estados Unidos 226
Anticolonialismo e não-alinhamento 230
Aproximação do bloco socialista 233
Cuba deixa a OEA 235
Os microfones de Moscou 237
A gente russa 242
Os líderes e o regime 245
A crise dos mísseis 249
O conflito sino-soviético 252
A diplomacia na era do jato 254
Pela negociação constante 257
A guerra da lagosta 259
A política externa da revolução 264
Prevendo o provável 264
Ministro das Relações Exteriores 267
7
Problemas, asilos, cassações 273
O reconhecimento do novo governo 278
A visita de de Gaulle 282
Aliança com os Estados Unidos 285
Problemas da ONU e da OEA 291
Último posto: Washington 294
Reflexões finais 303
Índice remissivo 313
8
Apresentação da 2ª edição
Celebra-se em 2003, no dia 2 de setembro, o centenário de
nascimento do embaixador Vasco Leitão da Cunha, das figuras mais ilustres
e respeitadas internacionalmente da diplomacia brasileira. A Fundação
Alexandre de Gusmão, que tenho o privilégio de presidir, tem prazer em
associar-se mais uma vez à Fundação Getulio Vargas na divulgação do
importante depoimento que o dr. Vasco – como era chamado no Itamaraty
– deu a pesquisadores do Cpdoc no ano de 1983, poucos meses antes
de seu falecimento. Vasco Leitão da Cunha foi o meu primeiro herói no
Itamaraty, o primeiro modelo profissional.
Impressionou-me, quando recém-ingressada na carreira, a coragem,
elegância e hombridade com que se portou na crise provocada pela
assinatura, em Berlim Oriental, de um protocolo comercial pelo sr. João
Dantas, diretor do Diário de Notícias do Rio de Janeiro e que o presidente
Jânio Quadros enviara à Europa Oriental em missão especial. Esse episódio
está longamente narrado neste livro, bem como no autobiográfico Lanterna
na popa, do embaixador Roberto Campos, de forma que não vou me
estender sobre ele.
Como exemplo da coragem do dr. Vasco, basta lembrar outro caso,
ocorrido em 1942, quando, ministro interino da Justiça, deu voz de prisão
a Filinto Müller, o todo poderoso chefe de polícia. Também o episódio de
Filinto Müller, aliás, custou-lhe a função pública que ocupava. Seu pedido
de demissão em 1961 foi elegante, porque feito para preservar o ministro
de Estado (Afonso Arinos), como também está narrado no livro. Mas
9
falar de elegância tratando-se do dr. Vasco é até pleonástico, de tal maneira
foi ele sempre elegante, tanto no comportamento pessoal como no trato
com as pessoas. Seu pedido de demissão foi, sobretudo, um gesto digno,
porque feito em reação ao que foi considerado por ele, pelos seus colegas
e por toda a imprensa, à exceção do Diário de Notícias, um ato de
desrespeito ao Itamaraty; ele agiu em defesa da instituição a que serviu
por mais de 40 anos (de 1927 a 1968), sempre com competência e
desprendimento.
A motivação de seu comportamento no episódio João Dantas é
exemplar: ou João Dantas desobedecera às instruções transmitidas pelo
Itamaraty, que lhe permitiam ir a Berlim Oriental apenas em caráter pessoal,
e cometera, portanto, um ato de indisciplina – e estava justificada a nota
oficial à imprensa do dr. Vasco desautorizando-o e salvando importante
negociação financeira então em andamento com a República Federal da
Alemanha –, ou recebera efetivamente, como alegava, autorização do
presidente da República, hipótese em que o Ministério das Relações
Exteriores teria sido ignorado por Jânio Quadros, que teria tratado o
secretário geral “como um moço de recados”. Qualquer das hipóteses
representava um desrespeito ao Itamaraty e era preciso salvar-lhe a honra.
Como recordei recentemente, em conversa com dois dos meus
colegas no Instituto Rio Branco, os embaixadores Rubens Ricupero e
Orlando Soares Carbonar, nós, da turma de 1960, jovens idealistas,
fortemente impressionados com a atitude do dr. Vasco, enviamos-lhe um
telegrama em que lhe expressamos solidariedade e louvamos o seu gesto
em defesa do Itamaraty e das atribuições deste na execução da política
externa brasileira. Em agradecimento, ele nos recebeu em sua casa,
acompanhado de sua família. Ele próprio rememora essa visita em seu
10
depoimento ao Cpdoc: “Vieram muitos meninos, terceiros-secretários,
aqui em casa, nesta sala, para me homenagear”. Que ele use o plural
masculino para incluir a mim e outra colega não me causa surpresa nem
desagrado, como aconteceria nos dias de hoje. Afinal, dr. Vasco era um
homem nascido na Belle Époque.
Anos mais tarde (de fins de 1973 a começo de 1977), servindo em
Montevidéu, tive por chefe outro diplomata admirável, o embaixador
Maury Gurgel Valente, casado com Isabel, a filha do dr. Vasco. Quando
este os visi-tava e eu tinha a oportunidade de estar com ele, encantavamme sua conversa e seu humor.
Mais recentemente, como embaixadora em Moscou, morando na
casa de que ele foi o primeiro ocupante brasileiro, pude constatar que ele
continua lembrado, mesmo depois de transcorridos quase 40 anos de sua
partida daquele posto, onde foi nosso primeiro embaixador depois do
reatamento de relações de dezembro de 1961.
Na verdade, não foi apenas a mim e aos russos que dr. Vasco
impressionou: ele foi um grande profissional, que fez amigos em todos os
numerosos postos em que serviu e delegações de que participou. E foi
respeitado e estimado por todos os que tiveram o privilégio de conhecêlo, dos mais humildes, a quem tratou sempre com a maior cortesia, aos
mais graduados, como De Gaulle e Fidel Castro.
Considero importante a reedição deste livro, porque dá
oportunidade às atuais gerações de brasileiros, e especialmente aos jovens
diplomatas, de conhecer a vida, a carreira profissional e as idéias desse
homem extremamente charmoso e inteligente que foi Vasco Leitão da
Cunha, diplomata, ministro interino da Justiça, secretário geral e ministro
de Estado das Relações Exteriores, embaixador em Helsinki, Bruxelas,
11
Havana, Moscou e Washington, que esteve no Norte da África como
delegado do Brasil junto ao Comitê Francês de Libertação Nacional e ao
lado das forças da FEB na Itália. E de conhecer também um longo período
da política externa do Brasil.
Embaixadora Thereza Maria Machado Quintella
(presidente da Fundação Alexandre de Gusmão)
12
Apresentação
Graças a um convênio firmado entre a Fundação Getulio Vargas e
seu Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do
Brasil – CPDOC, de um lado, e a Fundação Alexandre de Gusmão, com
o apoio do CNPq, de outro, foi possível realizar, ao longo do ano de
1983, sob a coordenação de Aspásia Camargo, o projeto “História oral
da política externa brasileira”. Dentro deste projeto, Aspásia e Zairo
Cheibub, com a colaboração de Luciana Nóbrega, fizeram uma longa e
alentada entrevista com o ex-ministro Vasco Leitão da Cunha. Foram 35
sessões de entrevista, realizadas entre 21 de junho e 18 de novembro de
1983, gravadas em 64 fitas cassete de uma hora de duração, por sua vez
transcritas em 1.450 laudas. Foi este o material que, com o apoio da
Souza Cruz, nos coube agora transformar em livro.
A tarefa foi difícil, mas sobretudo prazerosa. À transcrição, leitura e
sumário do depoimento seguiu-se, como sempre acontece nas edições de
entrevistas de história de vida, uma reordenação do diálogo, buscando
reconstituir um roteiro original que funciona como fio condutor mas
inevitavelmente envereda por caminhos secundários. Todo diálogo, por
mais programado que seja – e é este o caso da história oral, que a partir
de uma pesquisa prévia pretende provocar um depoimento que se
transformará em fonte histórica –, produz digressões, repetições, saltos.
Já que a leitura de um depoimento integral é tarefa árdua que só o
pesquisador interessado é capaz de enfrentar, e já que um livro é feito
para ser lido por todos, é preciso voltar à estrada, mas é preciso também
13
reconhecer e respeitar as enervações unindo idéias que afloram cá e lá.
São justamente esses caminhos subterrâneos que conduzem àquilo que
cada depoimento traz de original e revelador.
Se isto é o que sempre acontece, no caso de Vasco Leitão da Cunha
havia circunstâncias bastante especiais. Em primeiro lugar, as condições
da própria entrevista. Aos 80 anos, dono de uma memória e vivacidade
de espírito impressionantes, que o faziam reviver sua história recheandoa de casos, citações, exemplos, e sobretudo risadas, Vasco Leitão da
Cunha articulava as palavras com dificuldade. Ao contrário de muitos
homens públicos que têm um discurso pronto, por meio do qual dão asas
à vaidade e pretendem controlar a própria imagem, tinha um evidente
prazer no diálogo, no jogo das palavras. Às vezes, é no meio desse jogo,
temperado por seu fino senso de humor, que se percebe a importância de
sua posição ou de suas atitudes em determinadas situações. Daí as frases
curtas, tantas perguntas, tantas respostas, e mais uma vez, tantas risadas.
Difícil compactar tudo isso e traduzir, apenas com a linguagem escrita, o
clima da entrevista que as gravações deixam perceber.
Difícil, também, descobrir na escrita o registro de certos nomes, certas
expressões que distinguíamos mal nas gravações ou que simplesmente não
conhecíamos. Não só por ter profissionalmente corrido o mundo, mas por
ter um quadro de referência cultural extremamente amplo, Vasco Leitão da
Cunha mencionava com familiaridade heróis finlandeses ou generais alemães,
maiorais russos ou diplomatas paquistaneses, autores, obras, ditos e ditados
em línguas diversas. A escuta cuidadosa, a pesquisa e o recurso a seu próprio
arquivo, depositado no CPDOC, nos permitiram recuperar muita coisa que
corria o risco de se transformar em lacuna.
O arquivo de Vasco Leitão da Cunha é personagem fundamental,
tanto desta edição como da preparação da entrevista. Trata-se de um
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caso exemplar de diálogo entre a fonte escrita e a fonte oral, ambas se
amparando, lançando-se mutuamente luz. A exploração feita pelos
entrevistadores dos documentos guardados no arquivo sem dúvida os
municiou de precioso material e possibilitou a evocação detalhada de
episódios que talvez passassem despercebidos ou permanecessem
obscuros. De outro lado, a entrevista também serviu para esclarecer
situações sugeridas pelos documentos. Esta interação vem apenas reiterar
a validade da entrevista oral como fonte de pesquisa histórica. Assim como
o documento escrito, o documento oral revela e esconde, afirma e nega.
Mas sua subjetividade, também presente nos diários e memórias, apontada
até algum tempo atrás como um “defeito”, é hoje aceita e valorizada como
fonte adicional para a reflexão do historiador. Um depoimento como o de
Vasco Leitão da Cunha, que abrange um período da história diplomática
cujo registro oficial ainda permanece vedado à maioria dos pesquisadores,
torna-se por isso mesmo duplamente significativo. Acreditamos que este
livro será fonte imprescindível para o estudo da política externa brasileira
dos anos 20 até o final dos anos 60.
A riqueza do depoimento de Vasco Leitão da Cunha está não só na
revelação de uma personalidade fascinante, no relato dos episódios
singularmente interessantes que vivenciou – afinal, esteve presente nos
lugares e momentos em que este século se fez –, mas também em suas
reflexões sobre política internacional, sobre o Estado brasileiro, sobre a
carreira diplomática, sempre envolvendo exemplos e ilustrações. Foi esta
mesma riqueza que nos convenceu da necessidade de suprir o leitor com
informações complementares sobre episódios e personalidades
mencionados. Procuramos reunir em notas dados histórico-biográficos
que contextualizassem o fato ou o ator citados, quer pelo entrevistado,
quer pelos entrevistadores. Assim, do Império à Revolução de 64, de
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Petrópolis a Salônica, da Primeira Guerra Mundial à détente, reunimos
esclarecimentos que vêm se somar ao fabuloso volume de informações
trazido pelo depoimento.
Há uma presença em quase todas as sessões da entrevista que não
aparece no livro: a da irmã do ministro, dona Helena Leitão da Cunha.
Sempre pronta a acudir lembrando um nome esquecido, avançando algum
assunto carinhosamente repelido com um “Meu bem, isso virá
oportunamente”, ou comentando, a respeito do comportamento pouco
ortodoxo de certo personagem citado: “Diz que era bebida”, dona Helena
certamente contribuiu para o bom resultado dos trabalhos. Foi ela quem
advertiu os entrevistadores para o fato de que o general de Gaulle cita
Vasco Leitão da Cunha em suas memórias, como se verá em nota ao
capítulo “Problemas da guerra e da paz”. Ofereceu-se para rever a
transcrição das primeiras fitas e escreveu pequenos bilhetes aos
entrevistadores com informações tão interessantes que vale a pena
reproduzir. Por exemplo:
As botas de sete léguas
Vasco, aos cinco anos, calçou as botas de Agnes (sua mãe) e
saiu pelas ruas de Petrópolis, sem ninguém dar por isso. Andou,
andou, até encontrar uma senhora que o devolveu à casa.
“A vida é para ser vivida” , disse ele, agora, aos oitenta anos,
quando alguém ponderou que não devia se cansar.
O gosto da aventura está no esPírito do homem.
Ponce de Leon, no século 16, já em idade avançada, se pôs ao
mar, na sua caravela, para “ver algo de nuevo”.
Um detalhe: dentro das botas estavam as jóias que o Vasco
apanhou na penteadeira de Agnes.
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Esta deliciosa história familiar certamente se completa com o
testemunho de dona Helena sobre a “aventura” da entrevista agora editada:
Aspásia
Luciana
Zairo
queridos amigos, ontem eu não os conhecia, mas a amizade é um
sentimento instantâneo, que poderá ser consolidado.
Eu gostaria que vocês soubessem o bem que estão fazendo ao
Vasco e ao “respeitável público”. Se os jovens soubessem o beneficio
que trazem aos velhos... é uma esPécie de transfusão de sangue...
Felizmente o Vasco conserva o seu sense of humour o que ajuda a ver
as coisas nas devidas proporções, e a vencer os percalços da idade.
Vocês não estão apenas colhendo e analisando dados para a “memória
nacional”, vocês estão realizando uma verdadeira terapia em favor
de um ancião, que, por sua vez, tem algo a dar em troca.
Vejo o rosto ansioso do Zairo, querendo captar o pensamento
do entrevistado, ouço a lúcida intervenção da Luciana para esclarecer
algum ponto obscuro, e, quando temos a sorte de sua presença, as
conclusões inteligentes da Aspásia.
Essas sessões memoráveis ficarão nos anais da família como
uma, extremamente, grata recordação.
Rio, out. 1983
H. T. L. C.
Não nos foi possível contar com a revisão de dona Helena para
esta edição. Faleceu no mesmo dia que o irmão, em 11 de junho de 1984.
Mas contamos com o interesse, disponibilidade e ajuda da família, nas
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pessoas de Isabel Gurgel Valente e Pedro Leitão da Cunha, a quem
expressamos nossos agradecimentos.
Somos gratas também a Clodomir Oliveira Gomes, técnico de som,
aos responsáveis pela Biblioteca e Arquivo Histórico do ltamaraty, que
abriram as portas ao auxiliar de pesquisa Osvaldo Sebastião Andrade
Caruso, e, por esclarecimentos que muitas vezes nos socorreram, à
professora Mônica Herz, sr. Trajano Carneiro, embaixadores José Arthur
Denot Medeiros e Sebastião do Rego Barros.
Este livro só se tornou possível porque, a despeito das dificuldades,
há instituições que permanecem e dão continuidade a antigos projetos.
Incentivados pela direção do CPDOC, na pessoa de Alzira Alves de Abreu,
Zairo Cheibub e Paulo Sergio Wrobel empenharam-se em momentos
diferentes na busca de recursos para a edição deste depoimento. Não
podemos deixar de mencionar o interesse da Funag, na pessoa de seu
presidente, embaixador Gelson Fonseca Jr., e do Ipri. cujo diretor
executivo, conselheiro Sérgio Nabuco, encaminhou o projeto à Secretaria
de Apoio à Cultura para que fosse beneficiado pelos mecanismos de
patrocínio cultural previstos pela Lei Rouanet. Cabe registrar que os
recursos fornecidos pela Souza Cruz excederam aqueles cobertos pela
isenção fiscal estabelecida na lei, constituindo-se este num exemplo do
que pode ser feito em termos de apoio empresarial ao desenvolvimento
cultural e científico do país.
Dora Guimarães de Mesquita Rocha
Alexandra de Mello e Silva
Leticia Pinheiro
agosto de 1994
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Introdução
No reino da diplomacia
É difícil imaginar uma visão do Brasil mais surpreendente e reveladora
do que esta que nos é retratada pelo sofisticado, disciplinado e brilhante
diplomata que foi Vasco Leitão da Cunha. De quantas coisas nós não
sabíamos, sem sequer suspeitarmos de nossa imperdoável ignorância!
Nestas memórias ele revela um pedaço da alma profunda de nosso país,
de seu talento e de suas grandezas, que cultivamos muito pouco. Trata-se
então de aqui fazer o culto do herói, dos grandes homens que fizeram o
Brasil? Sim e não. Sem dúvida, parece hoje mais fácil convencer a academia
e o público bem formado de que as biografias são um capítulo indispensável
da cultura política em sua função de guardar a memória e de zelar pelo
autoconhecimento de um povo. Nenhum país digno deste nome pode
abrir mão destes relatos individuais, profundamente reveladores das
práticas, do ambiente no qual os personagens emergem e circulam.
Cada geração tem obrigação de zelar para que estes preciosos
conhecimentos não se percam, garantindo que a inovação possa mudar
as prioridades e os rumos mas nunca destruir o fio condutor que liga o
passado ao futuro. Ao concentrar-se tão exaustivamente nos relatos da
geração de 1930 o CPDOC contribuiu para salvar um imenso patrimônio,
aprofundando a compreensão deste laboratório de experiências políticas
que esta geração ajudou a forjar. O ato de vasculhar a memória nada tem
a ver com o culto do herói carlyliano, ungido pela chama sagrada. Mais
19
discretamente, estamos tratando de um conjunto de pessoas que fizeram
parte de uma elite seleta que imprimiu sua marca na História governando
o país. Vasco Leitão da Cunha foi, de fato, membro dos mais destacados
desta elite longeva que inicia sua vida pública na década de 1920 estendendo
seu poder e influência pelo menos até o período posterior a 1964.
Falar em elites no Brasil de hoje é quase uma temeridade, tal é a
reação que o termo provoca, associando elites com elitismo e confundindo
os seus “ciclos de ouro”, nos quais novas classes dirigentes emergem,
com a chocante decadência que se abateu sobre nós nos últimos 15 anos,
esmagando cada lampejo de inteligência e criatividade que tentou se
sobressair à mediocridade reinante. Cada país tem a elite que merece,
poderíamos concluir parafraseando o velho ditado. Em nossos dias, os
compromissos democráticos exigem que a qualidade de seus quadros
seja tão importante quanto os critérios e os meios que garantem seu acesso
ao poder.
Desde as primeiras páginas, acompanhamos os passos iniciais deste
jovem e disciplinado talento, trilíngüe desde a mais tenra infância, que
permaneceu analfabeto até os nove anos graças às idéias originais de sua
mãe inglesa. Suas remotas memórias se fixam em Nápoles, em Veneza ou
no Vaticano. As origens paternas adentram o século XVIII, vindo de
Mazagão de África para a inacessível região do Amapá, zona de disputa
de fronteiras. O bisavô, Ambrósio Leitão da Cunha, alcançou as glórias
do Império, recebendo o honroso título de barão de Mamoré. Foi, como
ministro do Império, responsável pela viagem de estudos para a construção
da estrada de ferro Madeira-Mamoré, que deveria ligar a Bolívia ao
Amazonas. Um de seus filhos morreu nesta missão arriscada. Como outros
de sua geração, Vasco revela esta surpreendente ambigüidade de origens,
ao mesmo tempo cosmopolitas e interioranas.
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O traço máximo de distinção está, no entanto, contido na antológica
cena que nos retrata o menino Vasco passeando de carruagem em
Petrópolis junto com seu pai e o barão do Rio Branco. Ao longo de todo
o relato paira a imagem e a inspiração deste grande barão, que o Itamaraty
cultivou buscando sempre a combinação singular de pioneirismo e tradição.
Com a mesma desenvoltura encontramos nestas páginas o tzar Ferdinando
ou o general de Gaulle. E descobrimos, mais perto de nós, o extraordinário
talento de administrador que foi Maurício, filho de Joaquim Nabuco. Ele
foi, sem dúvida, um dos grandes inspiradores e executores da reforma
administrativa de Vargas.
Vendo desfilar sob nossos olhos tantas iniciativas e tantos
personagens, não podemos deixar de constatar algo de surpreendente:
recebemos como herança do século XIX uma diplomacia de Primeiro
Mundo, como é de praxe na estrutura política dos grandes impérios. Diz
Vasco Leitão da Cunha: “Sou um saudosista. E um sebastianista, como
diziam no princípio da República a respeito dos monarquistas.” Nossa
diplomacia institucionalizou de maneira consistente e duradoura as pequenas
e as grandes lições do passado, imprimindo posturas e princípios gerais
às suas decisões de política externa e ao mesmo tempo particularizando
suas relações com cada país em função de cumplicidades comuns e de
atos de solidariedade pretérita que permanentemente se atualizam.
Eis que aprendemos que as amizades entre os países muito se
parecem com as relações entre as pessoas. Nossa arbitragem favorável
na questão do bloqueio rompido pelo Alabama foi fundamental na relação
com os Estados Unidos, e o protesto contra o bombardeio de Valparaíso
nos valeu uma especial relação de confiança com o Chile. Em compensação,
a Argentina nunca nos perdoou a deposição de Rosas e a invasão de seu
território pelas tropas de Osório. O fato é que nos mantivemos, muito
21
mais do que se imagina, sempre em linha direta com o Império, preservando
ao longo da Primeira e da Segunda República o know-how e as tradições
do passado.
Isto não impediu que a reforma administrativa, o plano de carreira e
o concurso público começassem no Itamaraty, tendo sido Vasco, no final
da década dos 20, um dos primeiros aprovados. E que a Revolução de
1930 tivesse dado seus primeiros passos no governo Washington Luís,
sob o comando administrativo de Maurício Nabuco e de um brilhante
político da República Velha, o ministro das Relações Exteriores Otávio
Mangabeira. Tal fato ensejou um comentário polêmico, porém de grande
atualidade. Segundo Vasco, os melhores embaixadores são os diplomatas
de carreira, e os melhores ministros são os que vêm de fora, isto é, os
políticos. Que tenhamos sido os pioneiros da institucionalização e
valorização da carriere e que tenhamos posteriormente recuado para
depois sermos imitados pelos americanos em nada desmerece o espírito
inovador que vem sendo permanentemente posto à prova pelas constantes
revoluções tecnológicas.
Como avaliar, de fato, a redução do peso político da diplomacia
sob o impacto do telefone e da comunicação direta quando a sua força se
devia justamente às distâncias insuperáveis e à ausência do poder político
imediato? Seriam os embaixadores de hoje, como querem alguns autores,
meros office boys? Qual a autonomia do diplomata frente ao poder político
e ao peso esmagador da hierarquia administrativa? Estas e outras questões
foram tratadas com extrema profundidade, permitindo ao leitor ganhar
intimidade com as lides da profissão, com suas peculiaridades,
condicionadas pelas remoções permanentes e pela deambulação. É
também interessante observar como as cumplicidades profissionais e
pessoais funcionam neste mundo impenetrável para os que o vêem de
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fora, criando entre os próprios pares proximidades sutis ou afastamentos
inevitáveis.
O que a entrevista de Vasco Leitão da Cunha verdadeiramente
possibilita é que se abram as portas deste mundo particular e isolado para
que um público maior possa penetrá-lo em suas íntimas sutilezas. Para
Vasco, a carreira diplomática assemelha-se à Marinha. “A missão
diplomática era como um navio em alto-mar.” Seria uma excepcional
oportunidade para as novas gerações conhecerem o Brasil mais de perto
sem ter que enfrentar o enfado do livro didático e das narrativas anódinas,
onde faltam a emoção e a compreensão dos tempos diversos e dos fatos.
Questões aparentemente inacessíveis, como as vantagens do
bilateralismo sobre o multilateralismo, podem perfeitamente ser
compreendidas nesta longa conversa, na qual aprendemos também como
tem sido longa a luta do Brasil, desde Artur Bernardes, para fazer parte
do Conselho da Liga das Nações e, como membro permanente, do
Conselho de Segurança da ONU. Não faria nenhum mal que nossos jovens
aprendessem sem esforço que o ataque a Pearl Harbor desencadeou a
guerra porque o deslocamento do conflito para o Pacífico deixou mais
vulnerável a Califórnia e o Meio-Oeste dos Estados Unidos, até então
contrários à entrada na guerra porque não gostavam da Inglaterra.
Não seria cabível mencionar aqui o valor incomensurável das
observações em torno dos personagens e dos períodos com que Vasco
conviveu. Para ele, a Revolução de 1930 foi precipitada demais, e as
mudanças que já se esboçavam viriam inevitavelmente com o sucessor de
Júlio Prestes. Esta é uma observação original que a leitura cuidadosa da
década de 1920 permitiria a qualquer observador atento corroborar. Em
compensação, o golpe de 1937, que Vasco apoiou em nome do princípio
de autoridade, o desiludiu aos poucos até que acabou chegando à
23
conclusão de que “um governo mais forte é um governo mais fraco”. Isto
porque a imprensa livre é a maior proteção que pode ter um chefe de
Estado contra seus subordinados.
Tampouco imaginávamos que a derrota integralista em 1938 tivesse
no continente as repercussões favoráveis que teve em favor de Getúlio e
do regime. Vasco definiu Getúlio como o gentleman que era: “grande
autoridade, uma autoridade cortês”, por vezes capaz de gestos decisivos,
de impulsos gaúchos. Com a mesma cortesia desculpou Salazar, por ele
definido como uma dona de casa no Ministério das Finanças. Seu pecado
capital foi, segundo Vasco, não ter sabido preparar, como Franco, a
própria sucessão. Veremos que o mesmo se pode dizer de Getúlio a partir
de 1942, aos poucos engolido pelos militares segundo advertência do
mineiro e experiente ministro da Justiça Francisco Campos.
Devemos nesta introdução uma palavra de esclarecimento sobre a
metodologia da história oral, cujo objetivo é fazer falar aqueles que em
condições normais permaneceriam emudecidos. mas que, dispostos a
iniciar o diálogo, sentem-se estimulados pelo clima de interesse e
cumplicidade que rapidamente se cria, contribuindo para reavivar a
memória e esquadrinhar os fatos. Neste caso, o que diverge em relação à
autobiografia é que o entrevistado não diz apenas o que quer dizer, mas é
induzido a falar daquilo que, em favor ou contra os episódios assinalados
e os clichês estabelecidos, o entrevistador pergunta.
Vivemos com Vasco Leitão da Cunha a mais rica experiência de
um diálogo que se desdobrou aos poucos e que nos possibilitou o
virtuosismo derecompor um episódio obscuro que, como ficou
demonstrado, marcou o ocaso do Estado Novo. De fato, a aliança próAliados se cristaliza no dia seguinte ao ataque a Pearl Harbor, selando a
cumplicidade entre três ministérios, o da Justiça, que Vasco interinamente
24
comandava, o das Relações Exteriores, com Aranha, e o da Fazenda,
com Sousa Costa. Do outro lado, os militares e a polícia de Filinto Müller.
O grande confronto entre as duas facções se adensa em torno do dia 4 de
julho de 1942, quando Filinto Müller desobedece ordens do próprio
Vargas, transmitidas por Vasco, então encarregado do expediente do
Ministério da Justiça, autorizando uma passeata de estudantes em apoio
aos Estados Unidos. Vasco manda prender o chefe de Polícia, autor do
desacato. O episódio abalou o edifício estadonovista, provocando o
fortalecimento dos militares, o crescente oposicionismo civil e a inevitável
fragilidade de Vargas, cada vez mais oprimido entre as duas correntes.
Entre esse distante 1942 e 1968, ano em que Vasco Leitão da
Cunha se aposentou, outros episódios revelam a independência altaneira
de um disciplinado diplomata que não hesita em enfrentar situações que
lhe parecem descabidas. Sem dúvida é por isso mesmo que ocupa os
postos que ocupou nos governos Vargas, Jânio Quadros e Castelo Branco;
que faz em Cuba amigos fidelistas e antifidelistas; que é embaixador na
União Soviética e nos Estados Unidos. A leitura de seu depoimento deixará
perfeitamente claro o que queremos dizer.
Queremos, finalmente, deixar aqui registrada a humana experiência
de realizar uma entrevista a despeito da enorme dificuldade vocal que
afetou Vasco Leitão da Cunha ao final de sua vida. O inesperado e
surpreendente foi vê-lo transformar-se, ampliar aos poucos a força de
sua voz, retomar através do depoimento o desejo de se comunicar, de
narrar suas impressões e experiências. Quando se aproximava o final da
longa série de gravações, reverteu-se o processo, como se fôssemos
obrigados a cortar simbolicamente o fluxo da vida. Soubemos por seus
parentes, e especialmente por sua irmã Helena, que a entrevista que
realizamos juntos foi importante para ele. Para nós, foi a oportunidade
25
única de um contato profundamente humano com aquele homem amável,
fino e educado, inteligente e irônico, que nos envolvia com as sutilezas de
sua cultura e de seu espírito. Perdê-lo alguns meses mais tarde foi uma
dor profunda que guardarei para sempre e que só é possível resgatar
neste ato final de divulgar, com enorme esforço de transcrição, a plenitude
e a grandeza daqueles momentos.
Aspásia Camargo
agosto de 1994
26
Prefácio
“I like his choice of words. I like his choice of ideas.”
(Palavras do presidente Lyndon Johnson sobre Vasco)
De Vasco Leitão da Cunha
sobre a carreira:
A diplomacia é uma arte, não é uma ciência. De maneira que o
sujeito tem que ter os elementos constitutivos de um artista. Tem que ter
vocação. E tem que ter uma dose moderada de burocrata, tem que lidar
com o bureau sem se escravizar. Também tem que gostar de Tombuctu.
Diplomata que quer ser diplomata em Londres e Paris tem de sobra.
O Itamaraty tinha uma tradição diplomática muito boa, porque era
uma casa de profissionais...
sobre o seu tempo:
Naturalmente, as jovens gerações consideram que as anteriores estão
superadas. E estão mesmo: o calendário é inexorável.
sobre o seu papel como ministro de Estado:
Tive a desvantagem de ser da carreira, mas acho que tive também
a vantagem de ser da carreira, porque pude fazer uma proteção em
torno do Itamaraty. Uma trincheira.
Por duas razões, recebi com imenso prazer o convite para escrever
estas notas sobre o depoimento que o embaixador Vasco Leitão da Cunha
27
fez para o CPDOC da Fundação Getulio Vargas. Em primeiro lugar, pelo
fato de a Fundação Alexandre de Gusmão estar associada, desde as suas
origens, desde a sua concepção, à iniciativa de entrevistar o ex-chanceler.
Mas sobretudo porque, lendo o texto, eu, que não o conheci pessoalmente,
tive a oportunidade de conviver com a trajetória de um diplomata que
marca o seu tempo e, de muitos modos, serve, pela sua atuação, ao
prestígio do Itamaraty e do Brasil.
Hoje, vivemos situações muito diferentes das que o embaixador
Leitão da Cunha descreve: o Ministério cresceu, perdeu sua dimensão
quase familiar e adquiriu as características de uma instituição burocrática
complexa; a política externa incorpora temas inéditos e encontra campos
de negociação desconhecidos na prática tradicional. Ficam, porém, suas
muitas lições de como praticar diplomacia, e, mais do que isto, tenho a
certeza de que, para quem pretende conhecer a história do Itamaraty,
este livro passará a ser um documento indispensável.
Como nasceu a idéia do depoimento? Desde princípios da década
de 80, quando o embaixador Wladimir Murtinho assume a presidência da
Funag, começam entendimentos com o CPDOC e com o CNPq para
realizar entrevistas com ex-chanceleres e diplomatas que registrassem temas
e questões importantes da nossa política externa. A motivação era evidente:
a escassez dos livros que registravam memórias de diplomatas. Havia uns
poucos, é verdade. Alguns ficavam na descrição do pitoresco; outros,
mais ambiciosos, traziam narrativas mais completas, combinando
lembranças pessoais e referências ao exercício diplomático. Mas,
curiosamente, os formuladores principais da política externa, os
chanceleres, com exceção de Monso Arinos, não se haviam preocupado
em deixar outra lembrança de suas gestões, que não as coletâneas de
discursos e documentos oficiais. Talvez por falta de tradição memorialista
28
na política brasileira. talvez pela necessidade de discrição que naturalmente
cerca a atividade diplomática, o fato é que, para o historiador, o
conhecimento do processo de formulação e as idéias mais pessoais de
quem comandou o Itamaraty simplesmente faltavam. Ou melhor, tinham
de ser buscadas nos arquivos, ainda em boa parte fechados, pois não
estava definida claramente uma doutrina de acesso.
A idéia de suprir a lacuna com depoimentos de história oral ganha
corpo em conversas com Aspásia Camargo, Celina do Amaral Peixoto,
Gerson Moura, Celso Lafer, sempre estimuladas pelo embaixador Murtinho
e também pelo embaixador Ronaldo Sardenberg, chefe da equipe de
planejamento político do Itamaraty na gestão Saraiva Guerreiro e pioneiro
na articulação de esquemas de diálogo com a comunidade acadêmica (é
dele a idéia de criação, em 1985, do Instituto de Pesquisas em Relações
Internacionais). Na verdade, antes disso houve uma iniciativa pioneira e
isolada, conduzida pelo CPDOC. Foi a entrevista que Mônica Hirst e
Maria Regina Soares de Lima fizeram com o embaixador Azeredo da
Silveira logo depois que deixou o Ministério. A entrevista iniciou-se em
1979 no Rio de Janeiro e prosseguiu em Washington, onde Silveira chefiava
a nossa embaixada. Acrescento que as conversas que se seguiram incluíam
sempre o tema da reivindicação dos pesquisadores por uma abertura
sistemática dos arquivos do Itamaraty.
Articulam-se. então, por volta de 1983, duas iniciativas. A primeira.
a de tomar depoimentos dos ex-chanceleres, divulgando-os em livros. O
CPDOC da FGV aparecia como a instituição talhada para essa tarefa,
pois, além de ter iniciado os procedimentos de história oral no Brasil,
acumulava documentos e análises absolutamente imprescindíveis para quem
pretendesse conhecer a história contemporânea do país.
29
Escolheu-se o embaixador Vasco Leitão da Cunha para iniciar a
série, que prosseguiria com as entrevistas de Saraiva Guerreiro e Gibson
Barbosa. Depois de 11 anos, idas e vindas, dificuldades várias, sai agora
o esplêndido e revelador depoimento de Vasco Leitão da Cunha, o dr.
Vasco, como o chamam, em singular sinal de respeito e distinção, no
Itamaraty.
De certa forma, o esforço já deu outros frutos porque, certamente
motivados pelas entrevistas, os ex-chanceleres Gibson Barbosa e Saraiva
Guerreiro trataram de escrever as suas memórias do tempo em que
chefiaram o Itamaraty e as publicaram em forma de livro, respectivamente,
Na diplomacia, o traço todo da vida e Lembranças de um empregado
do Itamaraty.
A segunda iniciativa, que só se materializa em 1988, foi a de constituir
uma Comissão Permanente de Revisão do Arquivo Histórico, composta
de diplomatas e acadêmicos, sob a presidência do embaixador Sérgio
Bath, a qual passa a examinar, de forma mais coerente, os pedidos de
acesso à documentação diplomática. Só na gestão de Celso Lafer, em
1992, porém, são definidas por portaria regras claras e modernas de
acesso, e nova comissão é criada, a de Estudos de História Diplomática,
de caráter permanente, sempre com vistas a “liberalizar” a pesquisa no
Arquivo Histórico do Ministério das Relações Exteriores.
Até aqui, as histórias do livro e da abertura dos arquivos, que nascem
juntas. Agora, umas poucas palavras sobre o depoimento do dr. Vasco.
Para os de minha geração, que chegamos ao Itamaraty e já
encontramos o dr. Vasco aposentado, em atividades privadas, ele encarnava
o mito do diplomata exemplar e do defensor da instituição. As lembranças
de quem trabalhou com ele eram as de um homem gentil, um tanto irônico,
acolhedor nas conversas com os mais jovens, bom contador de casos e
30
que impunha naturalmente respeito e confiança. Um homem seguro de si,
elegante de gestos e palavras, de atitudes senhoriais mas nunca arrogantes,
conhecedor das minÚcias da etiqueta diplomática e à vontade para
conversar sobre opções difíceis de política externa. Sua vida, suas atitudes,
sua coragem eram conhecidas simplesmente pela tradição oral. Afora o
que está nos arquivos, nada deixara escrito; não existem estudos sobre a
sua trajetória pessoal e profissional.
Assim, li o depoimento com curiosidade e com a parcialidade de
quem procura demonstrações de que o mito não era ilusório. Fácil foi
colecionar, na riquíssima memória do dr. Vasco, na simplicidade com que
apresenta a sua trajetória, as provas de que, realmente, nele. as melhores
virtudes do diplomata brasileiro apareciam com naturalidade. Representa
uma época e um estilo.
A primeira idéia que se desenha na leitura do depoimento é a de
que, para o dr. Vasco, a diplomacia é uma vocação, quase necessária,
algo que vem do berço, que “estava à espreita, desde sempre”, e se
exprime, ainda no menino, em umas tantas virtudes. E a mais elementar,
exigência natural para o bom desempenho profissional, é o gosto e a
facilidade para línguas. Vasco falava inglês em casa (era a língua de sua
mãe); conta, pitorescamente, como aprendeu francês aos cinco anos em
Paris e dominou mais tarde o espanhol, o italiano e um pouco de russo. Lê
“apaixonadamente” os clássicos da literatura e da história e ganha cultura
humanística, outra condição necessária para quem quer entender outros
povos e outros costumes. Mas lembra que um traço do diplomata é saber
ouvir e, como diria Anthony Eden, saber calar.
O segundo traço, revelador da vocação, é o prazer com a
diversidade da carreira. Aceita, sem titubear, os postos e comissões que
as injunções determinam. E, em todos, encontra a motivação certa para o
31
exercício profissional. Como diz, “todos os postos que ocupei foram
interessantes”. Gosta da experiência do novo e, ao mesmo tempo, tem a
noção exata de como construir, em cada posição, o prestígio necessário
para servir ao país. Revela sua vocação para o teatro, pois, afinal,
“representar” é função essencial da diplomacia. Foi embaixador em
Moscou e em Washington, as duas capitais que concentram poder no
tempo da guerra fria. Mas sabe apreciar os palcos menores, como Lisboa,
Lima, Helsinque e Santiago. Vive as dificuldades de situações de guerra
no convívio com a FEB na frente de batalha, ou como “agente confidencial”
na Argélia de de Gaulle, mas não se furta de recordar os prazeres de uma
aula de esgrima vespertina que a aprazível vida de secretário de embaixada
em Lisboa, nos anos 30, lhe concede. Tem um certo orgulho da rapidez
com que decifra telegramas quando secretário em Lima, e assume com
altivez as responsabilidades da mais alta hierarquia no Ministério. Tem o
dom das gentes e a perspicácia do observador (suas notas sobre a vida
em Moscou e a falência da economia planificada são premonitórias).
Conhece muitos dos grandes da sua época, com quem convive com
naturalidade, com o orgulho de representar uma grande nação. Participa,
com prazer e ironia, da pompa da entrega de credenciais em Bruxelas,
seu primeiro posto como embaixador, e registra, quase orgulhoso, que
sua primeira tarefa diplomática é cuidar da bagagem de Lloyd George,
ex-primeiro-ministro britânico, em visita ao Brasil.
Tem a noção do dever e da disciplina e, ao mesmo tempo, preza a
independência, não teme defender suas idéias e convicções, assumindo
os riscos necessários de alguém que tem noção clara do que é “serviço
público”. Em um ponto do depoimento, ressalta a sua linha própria: “De
fato, devo ser suspeito aos esquerdizantes e direitizantes, porque não sou
enfeudado a nenhum dos dois lados. De maneira que ficam todos contra
32
mim.” É claro que aí exagera. A sua independência não o isola; ao contrário,
serve para lhe granjear o respeito dos pares, mesmo daqueles que não
concordavam com suas posições.
A diplomacia vive de idéias. de interesses, e de um cotidiano de
pequenas atenções. Em muitos passos do depoimento. o dr. Vasco revela
o cuidado com as formas. com as minúcias do protocolo e da etiqueta.
Sabe conviver com o pitoresco, ilustrado por seus encontros com o tzar
búlgaro. caçador de borboletas, e pela apresentação de credenciais em
Moscou, em recepção “principesca” de Brejnev; ou com os dramas
pessoais quando, em Havana, recebe inúmeros asilados, tidelistas em um
primeiro momento e, depois, antifidelistas. Enfrenta. com tranqüilidade e
decisão, situações políticas delicadas, como quando manda prender. num
interinato como ministro da Justiça, o poderoso Filinto Müller. ou quando
pede demissão da Secretaria Geral em 1961.
Em todos os momentos ressalta. sobretudo, a devoção ao Itamaraty,
à sua Casa, que, quando ministro, procura proteger, quase como um pater
familias que vê os seus ameaçados.
Uma terceira virtude diplomática – depois do domínio das línguas e
do prazer pela diversidade e pela convivência – é o realismo, que talvez
defina a sua atitude básica diante das pessoas e das situações. Realismo é
um conceito de múltiplas conotações. No universo do dr. Vasco. traduzse basicamente por uma atitude antidogmática, pelo senso de medida
(“nacionalista mas não xenófobo”, repetirá em várias passagens do
depoimento). Não que lhe faltem valores – manifestos no horror ao
nazismo, numa valorização, bem ao gosto de Nabuco, do mundo anglosaxônico; não que resista a preferências ideológicas – e as exprime em um
liberalismo claro. que preconiza um Estado pouco intervencionista e se
conjuga com suas amizades udenistas; não que lhe falte uma perspectiva
33
clara do Brasil no mundo (sobre a qual falarei adiante); entende, contudo,
que ° mundo da política é tecido de relações de poder que exigem
aproximação cuidadosa. sem preconceitos, como se a cada problema
correspondesse uma solução específica. Tinha o senso agudo do relativo
e do concreto, a visão das coisas como são e não como deveriam, ser. *
Uns poucos exemplos de seu realismo: como ministro da Justiça,
reclama da dificuldade de decidir enquanto impera a censura jornalística,
por não reconhecer o efeito de seus atos. e defende “realisticamente” a
democracia porque, afinal, “o governo mais forte se torna o mais fraco”
justamente por lhe faltar a base da opinião pública. Também não condena
a condecoração de Che Guevara por Jânio, simplesmente a enquadra no
jogo da barganha diplomática: “Depende do que ele prometeu em troca.”
A mesma linha realista aparece na sua defesa da “finlandização” de
Cuba como solução para manter aquele país no sistema interamericano.
Ou ainda quando discute os efeitos da aproximação entre a Argentina e o
Chile ao tempo de Perón, a qual poderia prejudicar o Brasil. A respeito,
propõe: “If you can’t beat them, join them.”
Talvez a melhor expressão do realismo, da aceitação da “razão de
Estado” como um dado inelutável da vida diplomática ocorra por ocasião
da “guerra da lagosta”. De Gaulle, com quem entretinha relações pessoais,
nega-lhe agrément como embaixador em Paris. O dr. Vasco recorda,
sem constrangimento e com fria dose de compreensão, a explicação do
emissário do chefe de Estado francês à sua filha, então funcionária da
embaixada brasileira em Paris: “Dites à M. da Cunha que je lle peux
pas faire passer mes sentiments personnels au-dessus de la raison
d’État”.
* São qualidades que Otavio Tarquínio vê cm outro “realista”, Bernardo Pereira de Vasconcellos
(Rio de Janeiro, José Olympio, 1937, p. 39).
34
Passemos a examinar, agora, ainda que superficialmente e apenas
para sugerir linhas – das muitas possíveis – para a leitura de seu
depoimento, algumas de suas concepções de política externa. A chave,
como veremos, será sempre o realismo.
A memória é, por excelência, a matéria-prima do trabalho
diplomático. Um dos instrumentos para treinar a sensibilidade é justamente
o domínio dos “antecedentes”. A prudência, qualidade necessária do bom
trabalho diplomático, exige aproximar situações atuais de problemas
anteriores, avaliar soluções passadas como guia do que se vai fazer no
presente. Uma das virtudes do depoimento do dr. Vasco é justamente a
de mostrar como se cultiva a tradição, sem transformá-la em padrão rígido,
empobrecedor. De certa forma, o Itamaraty do dr. Vasco, que começa
nos fins dos anos 20 e se estende até 1967, ainda está muito próximo da
figura dominante do barão do Rio Branco. O menino Vasco passeia, em
carruagem, com o Barão pelas ruas de Petrópolis, vai a seu enterro, e
retoma freqüentemente as suas lições como inspiração para o
comportamento diplomático: “Todos procuravam fazer como o Barão havia
ensinado. O Barão era um homem extraordinário, tinha o sentido da
conveniência e da oportunidade (...) não admitia o exagero.”
Esse respeito pelo passado confere às suas reflexões sobre política
externa dois traços marcantes. Em primeiro lugar, a marca da transição,
pois o dr. Vasco, que encarna a tradição do Barão, será secretário geral
de Arinos, o chanceler de Jânio, e executor da política externa
independente que, de alguma forma, inaugura uma perspectiva mais
universalista, menos hemisférica, da diplomacia brasileira. Em segundo
lugar, a preferência pela sensibilidade ao argumento analítico. O dr. Vasco
tem a nítida consciência de que representa uma tradição, uma maneira de
ver o Brasil no mundo, que serve como primeira baliza para as decisões
35
concretas, para as opções e atitudes da política externa. Dominar a
sensibilidade que essa tradição ensina é talvez mais importante para a
formulação do que as peripécias analíticas, as soluções cerebrinas e, em
certo sentido, a inspiração de ideais ou ideologias. Insista-se que ele nunca
é simplesmente um “aplicador” linear de lições passadas, inclusive, como
veremos, porque tais lições são esquemas iniciais que sempre necessitam
refinamento e, sobretudo, inteligência nos procedimentos de adaptação
às novas realidades. Lembra a resposta do Barão quando o criticaram,
evocando a política de seu pai, pela concessão ao Uruguai do condomínio
da lagoa Mirim: “tinha procurado fazer não o que seu pai havia feito, mas
o que seu pai faria se estivesse no seu lugar. Isso é muito importante. Isso
é que é tradição.”
O que significam as lições do Barão? Esquematicamente: o respeito
pela diplomacia imperial e, portanto, o sentido de continuidade da política
externa; a noção de interesses permanentes, ditados até pela geografia
brasileira; o afastamento das questões diplomáticas das conjunturas
internas; a aceitação da complexidade das negociações internacionais,
que exigem, como nas negociações de fronteiras, o conhecimento profundo
da geografia e da história; a importância do direito como solução para as
controvérsias; o prestígio diplomático na América Latina; uma determinada
visão das relações com os EUA.
Vamos tomar este último ponto. já que muito do perfil da política
externa brasileira se define pelas atitudes que tomamos frente aos EUA. É
sintomático que, ao longo do depoimento, haja observações recorrentes
sobre esse tema. Lembremos que o apogeu profissional da carreira do dr.
Vasco coincide com o tempo da guerra fria, e que a política externa
americana tem peso regional e mundial. A premissa é de alinhamento com
os EUA, expressa na perspectiva de uma aliança preferencial. O objetivo
36
é “ter os Estados Unidos contentes”, como dizia o Barão, apoiando aquele
país em suas questões internacionais relevantes para que “retribuíssem”
quando de nossas divergências com os hispano-americanos; porém, o
objetivo é qualificado e o apoio será oferecido “dentro do maior respeito”.
O que isto significa? Qual o limite dessa aliança? Uma frase de Lauro
Müller, repetida várias vezes: “com os Estados Unidos, mas não a reboque”,
indica que a própria formulação dos limites da aliança supõe uma visão
clara do que queremos, justamente para evitar a adesão simplista, o estar
a reboque. A lição vale quando assume o Ministério em 64 pois seu
“conselho” ao presidente Castelo Branco é simples e direto: “Recomendei
que tivéssemos a nossa política tradicional, que nos mantivéssemos com
os Estados Unidos, mas com a ressalva de Lauro Müller: não a reboque.”
A manifestação mais clara dessa atitude vai acontecer quando o Brasil
apóia os EUA no episódio da República Dominicana em 1965. A questão,
extremamente controvertida, é analisada de forma direta e simples pelo
dr. Vasco: “os Estados Unidos tinham pedido auxílio e nós devíamos dar
esse auxílio.” O recurso à OEA garante legitimidade ao processo de
intervenção.
A amizade tem seus limites, e a adesão aos EUA não é irrestrita.
Devemos ser aliados, comenta, mas ter uma política de iniciativas próprias,
avançar com o nosso próprio motor. Em vários momentos revela uma
medida de “incômodo” com a preeminência americana, lembrando várias
propostas concretas para contrabalançá-la: a entrada do Canadá na OEA
como contra-peso aos EUA, a constituição da polêmica Força
Interamericana de Paz para evitar intervenções unilaterais, ou mesmo a
mudança da sede da OEA para Havana (antes da ruptura, é claro), tirandoa das asas de Washington. Enfim, não mitifica os EUA que, para ele, pelo
próprio sucesso de seu desenvolvimento, tendem a transplantar
37
simplisticamente suas soluções para o universo das relações internacionais,
correndo. assim, o risco de perder o sentido de “realidade” e de nuance.
A respeito, lembra. com ironia, a observação de um colega no sentido de
que os EUA deveriam contratar o Foreign Office para fazer a sua política
externa.
A aliança com os Estados Unidos é mais pragmática do que
ideológica e se explica, em última instância. pela concepção de sermos
“diferentes” dos demais latino-americanos. Como se o legado imperial,
que nos distanciava dos vizinhos até pelas instituições, não tivesse sido
superado. Cita uma frase de Saavedra Lamas que, em 1933, durante a
visita ao Brasil do presidente Justo, diz: “A vosotros vos ahorraran ias
turbuiencias de ia infancia porque toda vuestra infancia ia pasastes
bajo ia púrpura de un manto imperial.” É curioso que o “apoio”
americano a um eventual isolamento regional não impede que o dr. Vasco
admita que pudéssemos atuar como porta-vozes do continente e mesmo
como catalisadores da aproximação continental. A ambigüidade. fruto
certamente da atitude realista, completa a primeira linha do argumento
político clássico da diplomacia brasileira, que nasce do próprio fato de
que a unidade que o Império cria conduz a uma diplomacia mais segura e
constante, em contraste com a dos vizinhos. Para encerrar este tópico,
vale a pena ler com atenção as suas observações sobre o relacionamento
Brasil-Argentina, em que se misturam desconfiança, rivalidade e, ao mesmo
tempo, necessidade de aproximação.
Uma decorrência do realismo do dr. Vasco, da idéia de que não se
pode ser “teórico-abstrato no exercício da política”, é a preferência pelo
bilateral e uma medida de descrédito, sempre qualificada – é verdade –
em relação às instituições multilaterais. Sabe que, para funcionarem, essas
instituições dependem da vontade dos países fortes e que uma participação
38
efetiva do Brasil pressupõe participação no núcleo decisório, o que leva a
preconizar que busquemos um assento permanente no Conselho de
Segurança da ONU. Para seu argumento, o pano de fundo é o fracasso
da Liga das Nações e a “demagogia” da Assembléia Geral: “Pessoalmente,
acho que é melhor termos relações bilaterais bem desenvolvidas porque o
que é multilateral e cai na Assembléia, que não tem veto, fica à disposição
da demagogia; quando vai para o Conselho, onde não estamos ou só
estamos de vez em quando, tem o veto. De maneira que o nosso interesse
é não exagerar no multilateralismo.”
Para o dr. Vasco, o Brasil não pode “dissolver-se” em alinhamentos
globais. O país tem sua individualidade. tem posições próprias. É assim.
aliás, que aceita, com naturalidade. a política externa independente. Afinal,
dirá, a “nossa política já era mais independente do que parecia”. Não
teme relações com a URSS, mas descarta o exagero no antiamericanismo:
“Não era necessário ser subserviente para ser aliado.”
Além das concepções “clássicas” da política externa, o depoimento
vale ser lido pela extraordinária riqueza de observações e interpretações
sobre situações e pessoas. O dr. Vasco esteve, muitas vezes, perto do
poder. O que diz sobre os processos de decisão no governo Vargas e,
mais adiante, nos primeiros momentos da “restauração”, como ele chama,
de 1964, é sempre interessante. As distinções que faz entre o nacionalismo
positivo, como o do Império na defesa das fronteiras. e o “errado”,
sustentado pelo que acredita ser uma proteção distorcida do interesse
nacional. são reveladoras e atuais; critica as atitudes, para ele
preconceituosas. de Artur Bernardes e, mais adiante, a criação da Petrobrás
e a expansão das empresas estatais (“um Estado dentro do Estado”).
Fala, com a mesma segurança e intimidade. sobre as minúcias do
cotidiano diplomático, ao discutir os processos de promoção no Itamaraty.
39
É preciso na análise da crise dos mísseis, das perspectivas da Cuba préCastro, da falência do socialismo soviético etc. É sempre revelador quando
lembra seus contactos com personalidades como Getúlio e Aranha.
Outros elementos de interesse são a sua intuição diplomática e a
capacidade de iniciativa que demonstra em várias ocasiões, como no
rompimento com o Eixo, no reconhecimento do Comitê Francês de
Libertação na Argélia. ou em propostas que não foram adiante, como a
de “finlandização” de Cuba, a da FIP e outras. Afinal, sabe que “os países
vivem das grandes decisões que tomam”.
Finalmente, umas poucas palavras sobre a visão que tem o dr. Vasco
do Itamaraty. visão que ele mesmo classifica de “saudosista”. O tema é
riquíssimo pois ele conheceu, em todos os seus aspectos, a vida diplomática:
as rotinas de trabalho nas embaixadas, as remoções e promoções, a
convivência “clubística” que o círculo diplomático impõe nos postos, a
construção do prestígio nas chefias de missão, as condecorações, a questão
da mulher na carreira, a perda gradual da autonomia dos embaixadores
(que ele, nos primeiros anos de carreira, chega a comparar com o capitão
de um navio em alto-mar, com a responsabilidade última pelas decisões),
as recepções, o problema permanente das remunerações, as constantes
reformas institucionais, o problema da “imagem”. com o Estado Novo c
com o movimento de 64, e assim por diante. Sobretudo no exterior, a
diplomacia é um exercício do casal, e dona Nininha é personagem sempre
presente em suas recordações. De tudo que contou o dr. Vasco, valeria
selecionar um episódio para mostrar a transformação dos hábitos e da
convivência na carreira, hoje competitiva ao extremo. Em 1940, quando
Aranha pretende promover a ministro de segunda-classe Décio Moura e
Fraga de Castro, membros de seu gabinete e amigos íntimos do dr. Vasco.
nas duas vagas existentes, ambos se recusam a aceitar a promoção e
40
esperam vários meses até que se abra outra vaga e os três possam ser
promovidos. O episódio talvez seja único mesmo na época, mas não deixa
de ser ilustrativo de outros tempos e outros hábitos de convivência.
Nesse vasto e rico leque de observações, destaco alguns pontos.
Em primeiro lugar, sempre na tradição do Barão, a idéia de que a
diplomacia é uma arte política, e o direito, a sua forma preferencial de
expressão. Por isto, é sintomático que reclame da hipertrofia do setor
econômico, que se acentua durante a guerra. Quando assume o
Departamento Político e Cultural, no ministério João Neves, dirá a seus
pares: “Vocês estão acabando com uma tradição que o Itamaraty não
pode perder, de autoridade em matéria de direito internacional. Isso não
nasceu no setor econômico, já vinha desde a Monarquia.”
Merece reflexão cuidadosa o que diz sobre o problema de conciliar
a necessidade de servir e a necessidade de independência. As forças da
instituição e da consciência individual nem sempre têm encontro marcado.
A sua premissa é servir, e a primeira obrigação, a da disciplina. Há
observações que soam como conselhos a quem pretende entrar na carreira:
“Quando eu era secretário geral, sustentei com os rapazes que entravam
para o Itamaraty que, se não estivessem dispostos a gostar de Tombuctu,
não deviam entrar para a carreira.”; “Eu tinha preferências, mas nunca
foram consultadas. Fui para onde me mandaram.”; “Um diplomata não
deve ter ideologia, deve exercer, com a melhor capacidade profissional, a
política que lhe é determinada pelo governo.”
Mas nele, a disciplina combina-se com independência, em regra
ligada à defesa da instituição. Suas atitudes de coragem se explicam, assim,
menos por discordância com “políticas” do que por razões institucionais.
Ainda jovem, como ministro da Justiça, prende o poderoso Filinto Müller
que desacatara uma ordem. Vicente Rao o convida para o seu primeiro
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exercício como secretário geral quando revela que quer convidar alguém
que seja capaz de dizer não ao ministro de Estado. Outro episódio bem
conhecido – e que ele insiste em justificar por razões institucionais e não
por discordar da orientação diplomática do governo – ocorre quando
pede demissão da Secretaria Geral ao não aceitar que João Dantas, em
missão aos países do Leste europeu, receba instruções diretas de Jânio
Quadros: “o secretário geral do Itamaraty não é moço de recados.” É sua
atitude firme nessa ocasião que vai explicar sua nomeação para o Ministério
em 64, quando escolhem “aquele rapaz que havia enfrentado Jânio
Quadros”.
As relações entre a política interna e a instituição merecem umas
tantas observações valiosas. Prefere que o Itamaraty se mantenha afastado
das injunções da política interna e diz ter sempre entendido que “os
funcionários deviam servir a qualquer governo (...). Mas quando se trata
de mudança de regime, da Monarquia para a República, da República
para o comunismo, acho que o funcionário tem o direito de se manifestar,
com as conseqüências dessa manifestação.” Relata, elogiosamente, o
episódio em que “Araújo Castro teve o bom senso de não deixar o
Itamaraty comparecer ao comício da Central e com isso salvou muito
funcionário”. Após o movimento de 64, quando começam as cassações,
avolumam-se as pressões para que o Itamaraty entre em um período de
caça às bruxas. Relata o vigor das pressões de Carlos Lacerda,
determinando que tal ou qual funcionário fosse punido, a truculência das
ameaças dos “assedas” do general Taurino, chefe da Comissão Geral de
Investigações, para obter o depoimento de um diplomata. Se eles
aparecessem na rua Larga, o dr. Vasco diz que mandaria fechar as portas
do palácio e, saindo de seu tom tranqüilo, lembra sua indignação: “Entrem
aqui para verem o que acontece! Vão para o pau!” Nesses episódios, age
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efetivamente como “protetor da instituição” e impede que o processo de
cassações se alastre porque, como diz, tinha a certeza de que muitos da
juventude que se iniciava na carreira iriam ser perdidos. Era a sua Casa,
conhecia os funcionários, e, sobretudo, não revela em seu depoimento
traços de agressividade ou vingança. É alguém de bem com a vida, com a
carreira. O seu mundo é o mundo da boa convivência, de uma aristocracia
de modos. É curioso que assinale que tomou a si a “inquisição” para evitar
injustiças, mas que ainda assim houve injustiçados.
São sempre interessantes as suas observações sobre o trabalho do
embaixador: o bom embaixador deve “criar uma situação na qual se possa
influir favoravelmente ao próprio país. O bom embaixador prepara o
terreno.” E, muitas vezes, não é o trabalho, mas o prestígio inerente à
personalidade do chefe de missão que traz o melhor serviço ao país. A
lembrança de Campos Sales em Buenos Aires é marcante.
Outro ponto que sublinha é o do ministro “ideal” para a chefia do
Itamaraty. Apesar de ter sido ministro de Estado e ter defendido o Itamaraty
com uma “trincheira”, prefere a designação de um político para a pasta:
“Eu sempre fui contra o embaixador ser ministro porque ele fica preso à
sua posição de funcionário graduado e tem de continuar obedecendo ao
presidente mesmo quando discorda. O ministro não; o ministro joga a
pasta.”
O seu saudosismo não o inibe de defender reformas e, nesse sentido,
tem uma palavra de louvor a Otávio Mangabeira e Maurício Nabuco,
sobretudo ao último, que, com seu espírito prático, é o inspirador da
modernização dos métodos de administração no Itamaraty e no serviço
público brasileiro nos anos 20 e 30. Cria o Serviço de Comunicações,
organiza o Arquivo com base na classificação decimal, estabelece o
concurso para a admissão de diplomatas, começa a prática de enviar
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notas em português para as missões sediadas no Rio de Janeiro, instala o
setor econômico, reforma o palácio da rua Larga. É o realismo de Nabuco
que talvez explique por que o dr. Vasco o considera seu “mestre na vida
pública”, como seu pai o foi na vida privada.
Para um diplomata de profissão, o depoimento de Vasco Leitão da
Cunha é de tal interesse que, creio, corri o risco de ter-me excedido na
tarefa de propor um guia de leitura, de chamar a atenção para alguns
temas do depoimento. Mas o fato é que se constata, na entrevista, um tal
gosto pelo fazer diplomático, uma tal sabedoria, que nada que o dr. Vasco
diz parece ser it-relevante, secundário, supérfluo. O livro revelará um tempo,
uma maneira de fazer diplomacia. A trajetória de Vasco Leitão da Cunha
é única, e suas memórias confirmam que foi um dos grandes diplomatas
de sempre. Por isto mesmo, foi um dos que modelaram o prestígio do
Itamaraty, menos por suas concepções, pois não pretendeu originalidade,
e sim pelo comportamento, por um estilo que fica como exemplar.
Não conheci pessoalmente o dr. Vasco. Na verdade, estive com
ele uma única vez em 1984. Tinha ido visitar o Museu do Itamaraty, na rua
Larga, guiado pelo seu diretor, embaixador Murtinho, que, para minha
surpresa, convidara o dr. Vasco para a mesma ocasião. Ele percorre as
salas do palácio com a familiaridade de quem trabalhara em todas; relembra
a origem de cada peça, sua localização original: reconhece os quadros,
sabe quando chegaram ao palácio, que sala decoravam. Fala do Itamaraty
com a nostalgia de quem trata das coisas que deram prazer, deram sentido
à vida. Nada ali lhe era estranho. Era efetivamente a sua casa, estabelecera
com aquele prédio. seus móveis e suas peças uma relação de intimidade e
respeito que, para mim, significou uma perfeita expressão de lealdade a
serviço do Brasil. Talvez tenha sido a última visita à sua casa.
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Finalmente, uma palavra de elogio aos entrevistadores e
organizadores do volume. Lembro-me, sobretudo, de Aspásia me falando
emocionada do depoimento, da admiração que havia criado pelo dr. Vasco,
pela maneira sempre gentil, pela ausência de vaidade, pelo interesse das
entrevistas na recordação de fatos e pessoas. Estava doente. a voz falhava,
mas a memória, retomada, tansformara-se em alimento para mais viver. O
resultado é perfeito e, de novo, serve a enaltecer o CPDOC e o
extraordinário trabalho que faz para que compreendamos melhor nossa
gente, nossa elite, nosso país.
Gelson Fonseca Jr.
Presidente da Fundação Alexandre de Gusmão
agosto de 1994
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