PPGCOM ESPM – ESCOLA SUPERIOR DE PROPAGANDA E MARKETING – SÃO PAULO – 15 E 16 OUTUBRO DE 2012
Novos Signos e Personagens nas Disputas Discursivas da Cultura de Consumo 1
Gyssele Mendes2
PPGCOM/UFF
Resumo
A proposta deste artigo é atentar para a ascensão da categoria de catador como parte do processo de
reorganização dos discursos acerca do consumo. Serão articuladas as discussões sobre a cultura de
consumo, a vida social das coisas (Appadurai, 2008) e o processo de mercantilização pelo qual
passam sujeitos e objetos (Kopytoff, 2008), construindo o panorama onde pretendemos apontar
deslocamentos de sentidos. Para exemplificar tais deslocamentos, destacamos as representações
realizadas pelo documentário Lixo Extraordinário (2009). Percebe-se que ideais de consumo
consciente, desenvolvimento sustentável e reciclagem são alguns dos termos que vêm respaldando o
reconhecimento do catador na sociedade. Tais variações de vocabulário não são meramente escolhas
individuais ou editoriais, mas elementos que participam do processo de enunciação da categoria discursiva
lixo e, numa escala maior, do consumo.
Palavras-chave: Cultura de Consumo; Produção de sentido; Universo do descartável; Catador;
Lixo Extraordinário
Introdução
O presente texto é fruto das primeiras reflexões de minha pesquisa de mestrado, que
pretende discutir as relações de produção de sentido em torno dos espaços e sujeitos que vivem no e
do lixo, a partir das representações realizadas pela mídia, sobretudo nos documentários. Para este
artigo, a proposta é atentar para a ascensão da categoria de catador como parte do processo de
reorganização dos discursos acerca do consumo. Ideais de consumo consciente, desenvolvimento
sustentável e reciclagem são alguns dos termos que vêm respaldando essa categoria. Tais variações
de vocabulário não são meramente escolhas individuais ou editoriais, mas elementos que participam
do processo de enunciação da categoria discursiva lixo e, numa escala maior, do consumo.
1
Trabalho apresentado no Grupo de Trabalho Comunicação, Consumo, Poder e Discursos Organizacionais, do 2º
Encontro de GTs - Comunicon, realizado nos dias 15 e 16 de outubro de 2012.
2
Bacharel em Estudos de Mídia e bolsista Capes no Mestrado em Comunicação pelo Programa de Pós-Graduação em
Comunicação, ambos da Universidade Federal Fluminense.
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Na contemporaneidade, o consumo realiza um circuito que vai desde a exploração dos
recursos naturais que serão enviados para as linhas de produção industrial, passando pela
distribuição desses produtos acabados nos locais designados para sua compra e uso, como
shoppings e hipermercados, até chegar a sua etapa final, o descarte nos aterros e “lixões”. Nesta
última, há um “universo do descartável”, que compreende os espaços e os sujeitos que vivem no e
do lixo, atravessados pela poluição simbólica a este atribuída.
Nos últimos anos, o universo do descartável tem sido objeto de representações na mídia
brasileira das mais diversas formas, dando visibilidade a esses espaços e sujeitos. Assim como
observa Lívia Barbosa, em entrevista recente ao Programa do Jô3, há crescente interesse em duas
etapas do ciclo do consumo: a produção e o descarte. Compreendemos que tais etapas estão
correlacionadas, no entanto, trataremos especificamente do descarte, fase que acreditamos ser
reveladora de aspectos da cultura do consumo e ainda pouco explorada.
Como recorte, nos interessa destacar as representações articuladas em Lixo Extraordinário
(Lucy Walker, João Jardim e Karen Harley, 2009) por dois motivos: primeiro, pela ampla
divulgação na sociedade brasileira do produto audiovisual e dos desdobramentos para além do
filme; segundo, por considerarmos que a visibilidade midiática adquirida pelo grupo de catadores
ali representados, cuja figura exponencial é Tião Santos, nos permite apontar rearranjos nos
discursos sobre o consumo no Brasil.
Propõe-se o seguinte percurso: primeiro, serão discutidas as relações entre a cultura de
consumo e o universo do descartável, destacando os sentidos hegemônicos na construção dos
imaginários sobre o lixo e o aparecimento de novos signos que passam a fazer parte deste universo.
Em seguida, recorremos a Appadurai e Kopytoff para o debate acerca da vida social das coisas e do
processo de mercantilização de coisas e pessoas, indicando uma possível explicação dos
deslocamentos de sentidos apontados no decorrer deste artigo. Por fim, partimos para a análise
discursiva do filme Lixo Extraordinário, que busca representar o Aterro de Gramacho e os
catadores que nele vivem, articulando os signos ecológicos que passam a agregar valor ao lixo,
valorizando também os sujeitos ao seu redor e evidenciando deslocamentos nos discursos sobre o
consumo.
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A entrevista foi veiculada no dia 25 de novembro de 2011 e pode ser assistida através do endereço
http://www.youtube.com/watch?v=eYTFK1VBiQQ. Acessado em 01/09/2012.
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Breve apresentação da cultura de consumo
Os estudos do consumo têm como marco significativo o livro O mundo dos bens – para uma
antropologia do consumo, lançado em meados dos anos 70 por Mary Douglas e Baron Isherwood.
Os autores constroem a ponte entre economia e antropologia, de modo a ampliar as discussões que
se restringiam às teorias economicistas, conferindo ao consumo a dimensão de processo social e
enfatizando o seu papel de mediação cultural, de produção de sentidos.
Os significados culturais são configurados nas interações sociais e nesse jogo evidenciam-se
as ideias dominantes nas produções de sentidos sobre o consumo. De um modo geral, os autores
saem da ideia maniqueísta do consumo como ato individual para a noção de que este é um
importante fator na construção das sociedades e das culturas. Dessa relação, conclui-se que os bens
são marcadores simbólicos, que comunicam estilos de vida, posições identitárias e visões de mundo,
num processo ativo em que as categorias sociais são continuamente redefinidas (2006, p. 83).
Para Don Slater, a cultura de consumo vem sendo relançada como produto acadêmico ou
político desde o século XVI, além de existir como um problema para os críticos sociais, uma
ideologia para a população e uma realidade para a burguesia desde o início do século XIX (2002, p.
23). Em relação às formas anteriores de consumo, a cultura do consumo se distingue por ter se
tornado o modo dominante de reprodução cultural desenvolvido no Ocidente, baseando-se em
práticas, instituições, infraestrutura, experiências e sujeitos consolidados na modernidade. O autor
diz que a cultura do consumo adquire o sentido de cultura de consumo na modernidade, designando
um acordo em que as relações sociais são mediadas pelo consumo e daí derivadas.
Slater aponta três fatores que levaram à revisão dos moldes da cultura do consumo na
modernidade: novos registros históricos que oferecem evidências do “mundo de mercadorias” em
expansão; o surgimento e a disseminação do sistema da moda para um público consumidor
ampliado; e as novas formas de empresa e de organização comercial, que configuram novas
infraestruturas de consumo na modernidade (ibidem, p. 29). Para o autor, a década de 20 surge
como o primeiro período consumista, resultado de um longo processo iniciado em 1880, com o
surgimento de um sistema de produção em massa cada vez mais dedicado a produzir bens de
consumo. É nesse período que as regras modernas referentes aos modos como os objetos de
consumo devem ser produzidos, vendidos e assimilados pela vida cotidiana ganham força. O
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exemplo mais significativo desse processo é a ascensão do modelo fordista de produção seriada e
em massa, para atender mercados consumidores cada vez mais amplos geográfica e socialmente.
Slater ressalta que os anos 80 representaram a redescoberta do consumo, adotando o
consumidor como o novo herói moderno, comportamento percebido na juventude yuppie desse
período. É inegável a influência das teorias neoliberais da era Reagan 4, que viam no consumo o
motor da prosperidade, uma ferramenta proeminente para administrar a estabilidade econômica e
política e a recompensa por abraçar o sistema. Deste modo, o consumidor é construído como o
modelo obrigatório para todas as relações sociais e exemplos de dinamismo e liberdade cívicos
(2002, p. 20).
Slater diz que as relações de mercado que mediam o consumo moderno tendem a ser
universais e impessoais, retratando um campo de liberdade em que todos podem ser consumidores,
ao mesmo tempo em que devem ser consumidores. Outro aspecto é a identificação entre liberdade e
escolha/vida privada, que confere ao consumidor a imagem sedutora de liberdade e demonstra a
centralidade da noção de indivíduo no consumo.
O universo do descartável e a vida social das coisas
Em Higiene e Ilusão (1995), José Carlos Rodrigues desenvolve um breve histórico sobre os
diferentes significados do lixo nas sociedades e como tais sentidos estão vinculados às culturas em
que se inserem. Rodrigues parte da perspectiva do lixo como um invento sociocultural, afirmando
que para a visão holística que predominava no período pré-moderno, a noção de lixo como
conhecemos hoje não fazia sentido, pois não havia algo que restasse e que fosse nocivo por conta
disso.
Rodrigues afirma que o processo de fragmentação do amálgama medieval levaria a
separações antes não encontradas nestas sociedades. As cisões que foram se construindo entre o
mundo natural e o divino, as esferas pública e privada, o espírito e a matéria, o campo e a cidade,
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Para uma discussão aprofundada do assunto, recomendamos o estudo empreendido por Douglas Kellner em A cultura
da mídia (2006), relacionando as produções de sentido de filmes com Rambo e Top Gun à ascensão das teorias
neoliberais conservadoras na era Reagan nos EUA. Com isso, Kellner chama atenção para o lugar estratégico ocupado
pela mídia na construção dos imaginários e visões de mundo na contemporaneidade.
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constituiriam as condições preliminares para o surgimento da noção de lixo, de dejeto, de algo
residual.
Para o autor, lixo e morte estão profundamente relacionados, seja porque o que vai para o
lixo é aquilo considerado morto ou porque morrer é mais ou menos como ir para o lixo, daí uma das
angústias em torno de ambos os fenômenos (ibidem, p. 12). No universo medieval, os cemitérios
povoados por sepulturas coletivas situavam-se no entorno das igrejas, o centro da vida social, onde
também aconteciam as festas, os rituais e o comércio. Rodrigues cita ainda que não há registros
históricos de reclamações do mau cheiro dos cadáveres.
Com a separação entre rural e urbano, a preocupação neste segundo espaço passa a ser com
a ordenação das coisas, tarefa dos urbanistas e higienistas. No fim do século XVIII, é iniciado o
movimento de remoção dos cemitérios das cidades, transferidos para as periferias urbanas. Paralelo
a isso, surgem os primeiros projetos de limpeza pública, que possuíam a mesma finalidade:
transportar os dejetos para longe das novas moradias e olfatos modernos.
A relação entre sujeira física e sujeira moral se estabelece após o século XVIII, sendo
associado à pobreza e à marginalidade social somente após o século XIX (1995, p. 53). A partir
desta ideia, instituíram-se graus de hierarquia social e justificativas para a separação, classificação e
higienização das camadas populares. Estes corpos, por sua vez, passaram a ser disciplinados por
mecanismos de controle social e auto-controle, cada vez mais exigentes com relação às regras e
códigos de poluição.
Em Pureza e Perigo, Mary Douglas aborda a construção das noções de impureza na
sociedade burguesa, quando o “discurso médico assolando o caráter simbólico das manifestações
ritualísticas” (1991, p. 26) vai conferindo poderes e perigos a esses signos. Isso está intimamente
ligado à concepção de civilização que se tornava dominante, à medida que a burguesia ascendia
como classe social protagonista da modernidade e buscava se distinguir do que considerava
“primitivo”, da “idade das trevas”.
As reflexões sobre impureza, segundo Douglas, levam às dicotomias acerca da “ordem e a
desordem, o ser e o não ser, a forma e sua ausência, a vida e a morte” (ibidem, p. 9). Dessa forma,
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aquilo que é tido como impuro é associado também ao sujo, à poluição, à anomia, ao desordenado,
posto em oposição ao que representaria a pureza e a inserção social.
Estar à margem significa estar em ligação com o perigo, tocar numa fonte de poder. (…)
Quando o indivíduo não tem lugar no sistema social, quando é, numa palavra, marginal, cabe
aos outros, parece, tomarem as devidas precauções, precaverem-se contra o perigo. O
indivíduo marginal nada pode fazer para mudar a sua situação. Na nossa própria sociedade,
observamos uma atitude análoga em relação aos seres marginais (DOUGLAS, 1991, p.74).
A autora elucida a associação construída entre impureza, perigo e marginalidade. Tanto o
lixo quanto os sujeitos que estão ao seu redor tornam-se fontes de perigo e poder que, na
perspectiva trazida por Douglas, possuem funções na manutenção da ordem e da coesão social.
Maurício Waldman nos traz um exemplo de como isso é articulado no imaginário construído sobre
o lixo: o mito do “homem ou velho do saco”, retratado como um homem pobre, morador de rua e
sem escolaridade, que utiliza o disfarce de catador de lixo para raptar crianças (2010, p. 23).
Diferente do que se costuma pensar, o problema da poluição em nossa sociedade é uma
questão de magia, não de higiene, portanto, antes de caráter simbólico, como afirma José Carlos
Rodrigues. O autor completa: “O medo de poluição funciona apenas em uma direção: quem está no
alto jamais polui quem está embaixo (…) quanto mais próximo do centro de poder, mais distante da
sujeira; quanto mais periférico em relação ao centro de poder, tanto mais íntimo com a sujeira”
(1995, p. 96). Rodrigues nos apresenta diferentes mentalidades e sensibilidades no tratamento das
questões relacionadas à poluição, desnaturalizando tais relações e complexificando o que
entendemos hoje por lixo.
A grande demanda por bens associada à crescente urbanização das cidades e ao aumento na
velocidade da produção industrial, afeta diretamente a produção de rejeitos, fazendo com que o lixo
se torne o produto mais abundante na contemporaneidade. Waldman reforça que “o lixo passa a
constituir agente de primeira linha na territorialidade urbana” (2010, p. 17). O autor explica:
Obras de engenharia como os aterros sanitários, esculturam a paisagem. Incineradores e
depósitos de sucata, comuns em muitos centros urbanos, são vetores de uma movimentação
apoiada pela oferta incessante de resíduos urbanos. Outra variável seriam os chamados
“lixões”, áreas de descarte indiscriminado de resíduos, que por esta via se transformam na
síntese das adjetivações negativas que povoam o imaginário sobre o lixo. Representação
emblemática do descaso dos poderes constituídos por suas áreas de periferia, tais espaços
são, em várias cidades do Terceiro Mundo, apropriadas por levas de migrantes pobres. (...)
Por fim, num momento no qual o mundo assiste a um acirramento feroz da escassez de
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matérias-primas, os resíduos se transformaram numa opção para gerar renda e trabalho para
um verdadeiro exército de catadores, cujo labor foi, nas últimas décadas, dotado de um signo
ecológico. (...) Hoje em dia, os catadores tornaram-se aspecto relevante na rotina dos centros
urbanos de todo o mundo. (ibidem, p. 17)
No trecho acima, Waldman indica outro signo que passa a ser agregado ao universo do
descartável: o ecológico. Há algumas décadas, mais precisamente pós-anos 50, a preocupação com
o meio ambiente e os recursos naturais do planeta começam a ganhar força. Conferências
internacionais são organizadas para discutir questões relacionadas à produção de lixo, reciclagem,
emissão de carbono na atmosfera, o “buraco” na camada de ozônio e outros problemas ambientais
que passam a fazer parte do cotidiano dos noticiários.
Tais discursos não são exclusivamente modernos. No caso da reciclagem, por exemplo,
materiais velhos e desgastados eram utilizados na produção de novos materiais há vários séculos. A
nosso ver, hoje a diferença está, sobretudo, na incorporação desses signos ecológicos pela cultura de
consumo. Atitudes tidas como ambientalmente responsáveis, - por exemplo, a separação do lixo
doméstico, a coleta seletiva e a reciclagem – tornam-se valorizadas e agregam valor aos sujeitos,
coisas e instituições. Waldman ressalta que
A crise ambiental encostou a sociedade de consumo contra a parede, impondo a revisão da
“cultura” da descartabilidade, incentivando o resgate de práticas profusamente encontradas
no próprio teatro temporal da modernidade. A atividade recicladora, pondo em marcha uma
recuperação de materiais que alivia a pressão sobre os recursos naturais, conquistou
merecido prestígio junto ao imaginário social (WALDMAN, 2010, p. 175).
O prestígio conquistado pelo lixo advém do seu potencial mercadológico, que o reinsere no
estado simbólico e temporal de mercadoria, podendo ser consumido novamente. Este processo será
explorado na seção seguinte, quando trataremos da vida social das coisas (Appadurai, 2008)
articulada ao processo de mercantilização de pessoas e objetos (Kopytoff, 2008).
Como vimos, múltiplos sentidos foram atribuídos ao lixo no decorrer da história. Durante a
modernidade, estes sentidos foram predominantemente relacionados à impureza primitiva, à
poluição simbólica e à marginalidade social. Com o adensamento da lógica do consumo e a pressão
sobre os recursos naturais, outras atitudes passam a ser valorizadas e outros signos passam a ser
mobilizados nas disputas discursivas em torno do universo do descartável.
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No livro A vida social das coisas (2008), Arjun Appadurai nos mostra uma abordagem da
circulação de mercadorias nas sociedades. Em sua definição, as mercadorias são como coisas que,
numa determinada fase de suas carreiras e em um contexto delimitado, preenchem requisitos
simbólicos, classificatórios e morais que condicionam a sua trocabilidade. Esses valores iriam muito
além do valor de troca puramente econômico, abarcando também tipos de trocas como as permutas
e os presentes.
O autor afirma que as mercadorias circulam em diferentes arenas socioculturais e essa
variedade de contextos produz o vínculo entre o estado simbólico e o ambiente social em que se
encontram a mercadoria. Ressalta ainda que a ideia é “concentrar-se em toda a trajetória, desde a
produção, passando pela troca/distribuição, até o consumo” (ibid, p. 27). Para este artigo, se faz
importante acrescentar outra fase da vida social das coisas, assim como outra arena social de disputa
a ser observada: o descarte.
Em certa fase de suas trajetórias, as coisas seriam dotadas de potencial mercantil, inserindose em regimes de valor que possibilitariam suas trocas e fluxos, constituindo seu estado de
mercadoria. Seguindo essa lógica, em algum momento de sua circulação essas mercadorias seriam
demarcadas simbolicamente pelos signos atribuídos ao descartável, inicialmente sem valor social de
uso ou troca, e geralmente destinadas aos aterros sanitários e “lixões”.
Confirmando nossa abordagem, Igor Kopytoff explica que “a produção de mercadorias é
também um processo cognitivo e cultural: as mercadorias não devem ser apenas produzidas
materialmente como coisas, mas também culturalmente sinalizadas como determinado tipo de
coisas” (2008, p. 89). Como afirmamos anteriormente, os bens atuam como marcadores de sentidos
culturalmente construídos, que variam de acordo com as interações sociais estabelecidas. Deste
modo, ao serem considerados sem valor, os objetos são deslocados do estado simbólico de
mercadoria para a “forma-lixo”, atravessada por signos de impureza e poluição simbólica que
abafam os demais sentidos possíveis para esta categoria discursiva.
Para explicar o processo de mercantilização de coisas e pessoas, Kopytoff utiliza como
exemplo as etapas da escravidão, desenvolvendo as noções de mercantilização, desmercantilização
e re-mercantilização:
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O que percebemos na carreira de um escravo é um processo de retirada inicial de um
determinado contexto social original, a mercantilização, seguida de uma crescente
singularização (ou seja, desmercantilização) no novo contexto, com a possibilidade de futura
re-mercantilização. Como ocorre na maioria dos processos, as sucessivas fases se sobrepõem
umas às outras. Em termos efetivos, o escravo só é uma mercadoria – sem qualquer
ambiguidade – durante o período relativamente curto entre a sua captura ou a sua primeira
venda e a aquisição de uma nova identidade social. O escravo se transforma menos numa
mercadoria e mais num indivíduo singular durante o processo da sua gradual incorporação à
sociedade que o recebe. Essa forma biográfica de abordar a transformação em escravo como
um processo sugere que pode ser útil examinar a mercantilização de outras coisas da mesma
maneira, ou seja, como parte da moldagem cultural de biografias (KOPYTOFF, 2008, p. 91).
A proposta de Kopytoff embaraça as fronteiras construídas entre sujeitos e mercadorias,
conferindo aos primeiros o status de mercadoria em determinados contextos simbólicos e temporais,
e às últimas, uma biografia cultural, uma trajetória social tanto quanto a de qualquer indivíduo. A
afirmação “o escravo é mercadoria, sem qualquer ambiguidade”, pensada no contexto atual, ressalta
o esforço dos indivíduos em se fazerem mercadorias, consumíveis, por exemplo, via mídia, o que
também configuram estratégias de luta nas disputas discursivas.
Ao serem representados no documentário, os catadores passam pelo processo de
mercantilização, conceituado acima por Kopytoff. De sujeitos invisíveis socialmente, associados ao
imaginário do descartável, os catadores retornam ao ciclo do consumo, são re-mercantilizados,
desta vez como produtos culturais. Esta relação será esclarecida em nossa próxima seção, a partir da
análise das representações construídas pelo documentário Lixo Extraordinário.
O extraordinário do lixo: catadores e os deslocamentos de sentidos no consumo
Ao propor uma teoria tridimensional do discurso, Norman Fairclough reúne a análise de
discurso orientada linguisticamente e o pensamento sociopolítico, dando ênfase ao estudo voltado
para a articulação das práticas discursivas, sociais e do texto. Segundo o autor, a linguagem
cumpriria três funções: a identitária, que daria conta da construção de posições identitárias dos
sujeitos; a relacional, referindo-se à dimensão da sociedade e a como se constituem as interações
sociais no interior desta; e a ideacional, onde seriam configurados sistemas de crença e
conhecimento, ou seja, a cultura.
Deste modo, na concepção de Fairclough,
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O discurso contribui para a constituição de todas as dimensões da estrutura social que, direta
ou indiretamente, o moldam e o restringem: suas próprias normas e convenções, como
também relações, identidades e instituições que lhe são subjacentes. O discurso é uma
prática, não apenas de representação do mundo, mas de significação do mundo, constituindo
e construindo o mundo em significado. (FAIRCLOUGH, 2001, p. 91)
Neste cenário, os embates discursivos são de suma importância, uma vez que o que está em
disputa é o poder de significar, de dar sentido a algo e, portanto, de construir mundos. Seguindo o
caminho sugerido por Fairclough, será adotado para análise o documentário Lixo Extraordinário,
onde se veem articuladas as práticas discursivas e sociais do universo do descartável.
Lixo Extraordinário é uma produção brasileira e inglesa, gravada entre agosto de 2007 e
maio de 2009. O filme documenta o processo de produção da série fotográfica Pictures of Garbage,
de Vik Muniz, artista plástico e fotógrafo brasileiro radicado em Nova York há quase 30 anos. Em
busca de novos materiais e perspectivas para a composição do projeto, Muniz “descobre” o Jardim
Gramacho através de Fábio Ghivelder, seu assistente. Escolhe seis fotografias para a série de
trabalhos e os catadores fotografados se tornam personagens do filme: Ísis, Tião, Irmã, Zumbi,
Suelem e Magda. A partir das imagens, o artista elabora quadros que vão ganhando forma no
preenchimento com material reciclável. As criações são vendidas e o dinheiro arrecadado revertido
para a ACAMJG – Associação de Catadores do Aterro Metropolitano de Jardim Gramacho, da qual
Tião é presidente.
De acordo com Vik, a ideia é “mudar a vida de um grupo de pessoas com o mesmo material
que elas lidam todo dia”. O documentário é construído nessa direção, destacando o sofrimento na
vida dos catadores e, posteriormente, as mudanças que ocorreram como consequências da
interferência do artista naquele espaço. Paralela ao registro do projeto, no filme é narrada a
trajetória de Vik Muniz, de limpador de lixeiras a expositor no Museum of Modern Art – MoMa.
Na procura pelo local em que vai desenvolver seu projeto, Vik assiste a um vídeo no
YouTube sobre o Aterro Metropolitano do Jardim Gramacho. Fábio alerta-o sobre “a própria
estabilidade das pessoas, elas são excluídas da sociedade. Algumas passam a noite ou a semana
inteira por lá. Vai ser difícil”, mas que mesmo assim deveriam tentar, por acreditarem na
capacidade de transformação que podem levar à vida dessas pessoas.
Nessa mesma cena, a esposa de Vik Muniz se impressiona com as imagens do lugar e
questiona se aquelas pessoas aceitariam realizar sua proposta, ao que ele responde “(...) devem ser
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as pessoas mais rudes em quem podemos pensar. São todos drogados. É o fim da linha. (…) É pra
onde vai tudo que não é bom. Incluindo as pessoas”. Nessa fala, nota-se que são atribuídos ao lixo
sentidos de marginalidade, o “fim da linha”, aquilo que é considerado sem valor ou utilidade,
morto. Os sujeitos localizados em torno desse lixo são considerados socialmente descartáveis e a
eles são atribuídos características marginais de antemão, como “drogados” e “rudes”, assim como
nos mostraram Douglas, Rodrigues e Waldman, na discussão acerca da produção de “sujeitos
descartáveis” na cultura de consumo.
A esposa questiona ainda como ficará a saúde de Vik, já que o trabalho seria desenvolvido
ao longo de dois anos e o aterro não parecia um lugar exatamente seguro para se trabalhar. Vik
responde que os catadores não questionam isso, ao que Janaína retruca "mas nós questionamos",
evidenciando as fronteiras estabelecidas entre o lugar do descartável, de onde emanam perigosos
poderes, e o "nós" representando os sujeitos esclarecidos que conhecem e questionam esses perigos.
Como aponta José Carlos Rodrigues, há uma hierarquia social na relação com o lixo e com a
impureza, onde quanto mais afastado o indivíduo se encontra do centro de poder, mais impuro e
perigoso se torna, cabendo aos demais precaverem-se do perigo.
A voz de Vik Muniz vai sendo construída como guia do documentário, dando a entender por
vezes que ele ocupa o papel de documentarista, o olhar sobre o qual o filme se apoia. Mas Vik
também é personagem, tendo sua história de vida contada, a casa da infância e família mostradas,
assim como os catadores do filme. Ora documentarista, ora personagem, o artista representa uma
posição ambígua no filme, mas que esclarece o lugar de quem tem o poder de inscrever o outro
nessa relação.
Numa das cenas, Vik observa os modos com que se organizam os catadores em meio à
desordem do aterro. Lúcio, administrador do local, define que ali é uma “bolsa de valores do lixo”,
onde a demanda é ditada pelas indústrias de reciclagem no seu entorno. O espectador é então
apresentado às dinâmicas próprias daquele lugar e os seus modos particulares de vida.
Um grupo de catadores de materiais recicláveis vai identificando, a partir da análise do lixo
no aterro, classes sociais e estilos de vida associados àquela mercadoria descartada. Observam um
sapato e o relacionam a uma “mulher executiva”, pegam um saco de lixo e dizem que é “lixo de
pobre, porque a sacola é pequena”, definem determinados objetos como sendo de classe média,
enfim, apresentam ao espectador uma classificação construída a partir da experiência cotidiana com
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o lixo e da vivência no aterro. Nesta cena, os catadores é quem conduzem os documentaristas ao seu
universo, trazendo à tona o seu mundo possível e promovendo deslocamentos de sentidos na
representação do descartável, por exemplo, ao enxergarem o lixo como algo “vivo”, com resquícios
das atribuições simbólicas do status de mercadoria, para além das demarcações de poluição
simbólica e impureza.
Através das visões de mundo dos catadores, dos seus sonhos e ambições, o documentário dá
uma guinada rumo à desconstrução das ideias pré-concebidas sobre o universo do descartável,
dominantes no começo do filme. Os personagens são representados como vencedores das condições
adversas da vida, assim como o próprio Vik é representado quando entra em cena o seu passado e
história.
No decorrer do filme, percebem-se mudanças na representação do universo do descartável,
como se guiados por Vik, fôssemos acompanhando as mudanças atravessadas pelo próprio artista
em relação à Gramacho e aos catadores. A representação deste “outro descartável” fica subordinada
ao olhar do artista, produzindo como resultado aquilo que Michel de Certeau (1982) critica em Jean
de Léry: um relato de si para si, mediado pelo outro.
Em Lixo Extraordinário, a emergência dos signos ecológicos conferem autoridade a Tião
Santos, um dos personagens principais do filme e figura importante na articulação do movimento
social dos catadores. Após o trabalho com Vik Muniz, Tião adquire status de “pop-star”, como ele
mesmo afirma numa das cenas do filme. O personagem catador é deslocado do universo do
descartável, via mídia, e conquista visibilidade diante da sociedade.
A campanha Cada garrafa tem sua história, da Coca-Cola, tem Tião como um dos seus
garotos-propaganda e exemplifica o embaralhamento das noções de sujeito e mercadoria. A
campanha, lançada em 2011 para divulgar os projetos de sustentabilidade que a Coca-Cola financia,
apoia a ACAMJG, instituição presidida por Tião. A história do catador é contada nas latas de
refrigerante, distribuídas para toda a América Latina. A campanha também veicula vídeos com cada
representante dos projetos apoiados, que são disponibilizados pela empresa no YouTube.
Esse exemplo nos remete ao pensamento de Appadurai, referente à vida social das coisas.
Em determinada parte de sua trajetória, os objetos adquirem o status simbólico de mercadoria, se
tornando objetos de desejo e consumo. A afirmação de que cada garrafa tem sua história, associada
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aos relatos de vida impressos nas latas, apontam para a biografia daquela mercadoria. Assim, é
atribuída à lata de refrigerante uma história de vida, positivando a marca, ao mesmo tempo em que
confere a Tião o status simbólico de mercadoria.
Apesar de recorrer aos imaginários “negativos” do descartável, o filme também articula os
signos ecológicos emergentes na cultura de consumo aos catadores, respaldando esta categoria e
evidenciando as disputas discursivas aí presentes. Pode-se adotar o lixo como o “in-audito”
(Certeau, 1982) dos discursos do consumo, aquilo que fica como resquício dos valores embutidos
em tais discursos, tanto material quanto simbólico. A nosso ver, tal resquício surge de modo a
reorganizar os discursos acerca do consumo, levando, por exemplo, às ideias de “consumo
consciente” e redução de desperdícios, que vão de encontro aos princípios das produções industriais
contemporâneas, assim como da própria cultura de consumo.
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Novos Signos e Personagens nas Disputas Discursivas da