MOVIMENTOS URBANOS E DIREITO A MORADIA:
COMENTÁRIOS SOBRE “AS CIDADES REBELDES”
DE DAVID HARVEY
Irineu Bagnariolli Junior*
Resumo
Este trabalho tem como objetivo produzir breves reflexões sobre o livro de David Harvey “As cidades Rebeldes”,
de 2013, publicado no Brasil em 2014. O livro constitui-se basicamente numa compilação analítica de artigos
dotados de encadeamento, sobre as insurreições populares surgidas contemporaneamente nos grandes centros
urbanos, e o ideal da cidade inclusiva, suas causas e consequências. Harvey destaca o papel desses movimentos
na luta contra o contra hegemônica antiliberal e anticapitalista, e afirma serem estas ações coletivas fundamentais
na perspectiva de uma revolução urbana transformadora.
A obra abrange temas amplos e dotados de diferentes características. Abordamos quatro aspectos, desenvolvidos por
Harvey, que julgamos fundamentais para compreensão de seu pressupostos: a) a importância do autor e seu trabalho,
para a compreensão da sociedade contemporânea; b) a concepção de Harvey sobre o direito a cidade, a partir da obra
de Lefebvre; c) a crítica a forma como se produzem as cidades, a partir da lógica da acumulação e reprodução do capital e; d) uma visão dos movimentos sociais como instrumentos indispensáveis na luta contra hegemônica antineoliberal.
Palavras Chave: Revolução urbana. Movimentos sociais. Direito a moradia.
*Sociólogo, Cientista Político, Mestre em
Urbanismo pela FAU/USP, doutorando em
Planejamento e Gestão do território pela
UFABC, Professor de Sociologia Jurídica e
Ciência Política da USJT.
Abstract
This work aims to produce brief reflections on the book by David Harvey “The Rebels cities”, 2013, published in
Brazil in 2014. The book is basically an analytical compilation of articles endowed thread on the popular uprisings
emerged contemporaneously in large urban centers, and the ideal of inclusive city, its causes and consequences.
Harvey emphasizes the role of these movements in the fight against anti-liberal and anti-capitalist hegemonic
against, and states that these are fundamental collective action with a view to transforming urban revolution.
The work covers broad themes and endowed with different characteristics. We address four aspects, developed by
Harvey, which we consider fundamental to understanding your assumptions: a) the importance of the author and
his work, to the understanding of contemporary society; b) the design of Harvey on the right to the city, from the
work of Lefebvre; c) criticism of how they produce the cities, from the logic of accumulation and reproduction of
capital and; d) a vision of social movements as essential tools in the fight against neoliberal hegemony.
Keywords: Urban revolution. Social movements. Right to housing.
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1. A importância da obra de Harvey para a compreensão
da produção do espaço urbano contemporâneo
D
avid Harvey é um dos mais profícuos pensadores
marxistas contemporâneos. A temática abrangente de sua obra inclui questões múltiplas que interessam a todos quantos ainda entendem o marxismo como
o método de análise mais preciso e adequado para a compreensão do processo de desenvolvimento capitalista até a
atualidade. Desde os “Limites do Capital” (1982), passando pela “A Condição Pós-moderna” (1989), até os escritos
mais recentes como, “O Enigma do Capital” e finalmente a
obra que é objeto dessa análise, “As Cidades Rebeldes”,
de 2013.1, além do campo da geografia econômica, sua
área de reflexão por excelência, suas teses tem, além disso,
adquirido importância crescente para os urbanistas, uma
vez que a temática da relação entre a produção, circulação
e reprodução do capital, e a produção do espaço urbano,
tem ocupado papel de destaque em seus trabalhos.
Uma das características importantes da obra de Harvey é
sua insistência em remeter a explicação dos fenômenos
contemporâneos, às categorias originais que Marx utiliza
para explicar o processo de acumulação em “O Capital”,
sem, no entanto, reforçar os equívocos do marxismo ortodoxo, ou seja, rejeita a possibilidade de encapsular a realidade nos pressupostos teóricos originais de Marx, mas
considera esses pressupostos a partir de sua evolução
histórica como categorias que possibilitam dar sentido
e continuidade ao processo de evolução do capitalismo.
Em outras palavras, deixa claro que a lógica do processo
desvendado por Marx não terminou, e nem se transformou
em algo ontologicamente diverso, mas ao contrário, continua evoluindo e se adaptando, muitas vezes, como afirma
o próprio Harvey2, iludindo o observador incauto, sem, no
entanto, perder as características que determinam sua essência. Nesse sentido, para Claval:
A ideia mais constante na Geografia de David Harvey situa-se no papel central que atribui à teoria: não existem resultados científicos sem uma base teórica. A evidência empírica nunca é suficiente para convencê-lo do valor de um
resultado, que precisa de uma explicação racional — o que
significa que os processos envolvidos no fenômeno têm de
estar analisados. Para David Harvey, depois de 1970, essa
teoria tornou-se a marxista.(Claval, 2013, 73)
Continuando, Claval (2013), em sua análise sobre as características da análise marxista na obra de Harvey, deixa claro, que Harvey utiliza os pressupostos marxistas para aclarar, a relação entre a reprodução do capital e a produção do
espaço socialmente construído:
“O método de Marx, que consiste em descer da aparência
superficial dos eventos particulares em direção às abstrações reinantes sobre a superfície […], implica considerar
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cada grupo de eventos particulares como internalização
de forças subjacentes fundamentais que os guiam. O alvo
do trabalho de pesquisa é identificar tais forças através da
análise crítica e da inspeção detalhada de cada exemplo
individual” (Harvey, 2010b, p. 209-210).
O meio de eliminar o espaço? A análise do processo da
exploração do trabalho pelo capital. A diferença entre o que
o trabalhador recebe e o que ele produz enquanto mercadoria, a mais-valia, gera o lucro. Este mecanismo não é
ciente para a ampliação e desenvolvimento do processo de
acumulação. Assim as necessidades de ampliação da geração de lucros, através da reaplicação necessitam novas
formas de investimento.
Harvey determina que a criação de novos espaços urbanos, se caracterizada pela produção de infraestruturas que
favorecem a maximização do excedente, ou seja, segue a
lógica da acumulação original. A produção da cidade, para
Harvey, é portanto função da reprodução do capital.
consciente: a economia clássica ignorou-o porque ela só
tratava das realidades empíricas. Ela não tinha a capacida-
“O capitalismo, fundamenta-se como nos diz Marx, na
de analisar os mecanismos implícitos.
eterna busca de mais valia (lucro). Contudo, para produzir
mais valia, os capitalistas tem de produzir excedentes de
O teórico marxista tem uma posição diferente. Ele tem a
produção. Isso significa que o capitalismo está eternamen-
capacidade de entender os processos sociais no momento
te produzindo os excedentes de produção exigidos pela
em que a evolução econômica faz com que eles surjam; em
urbanização. A relação inversa também se aplica . O capi-
consequência, ele pode ver o que, para outros, permanece
talismo precisa da urbanização para absorver o excedente
oculto. É graças ao fato de que a consciência (concreto
de produção que nunca deixa de produzir. dessa maneira
do pensamento) das novas formas do real (concreto real)
surge uma ligação íntima entre o desenvolvimento do capi-
se desenvolve muito cedo na mente do bom teórico que
talismo e a urbanização.” (Harvey,2014,p.30)
ele pode entender as forças que transformam o mundo. Na
medida em que a exploração dos trabalhadores resulta da
compra de seu trabalho, é fácil eliminá-la por intermédio da
supressão das relações capitalistas. Basta uma ação revolucionária.” (Claval, 2013, pp. 41-45)
Tanto quanto é reincidente entre os teóricos marxistas o debate em torno das novas formas de conflito características
do espaço urbano, Harvey propõe sua releitura a partir das
necessidades da reprodução do capital, cujo excedente,
produto da mais valia auferida através da produção industrial quando reinvestido no mesmo setor, mostra-se insufi-
Em Harvey, essa articulação entre a produção do espaço
urbano e o desenvolvimento capitalista, é uma das formas
materiais mais importantes no processo de acumulação.
Quando ocorrem as crises de superacumulação, e/ou superprodução industrial, que são por sua natureza cíclicas,
os capitalista investem o excedente, não mais nos setores
produtivos tradicionais, mas na produção de infraestruturas e equipamentos no espaço urbano, que permitam novas formas de apropriação para além da mais valia tradicionalmente obtida através da produção industrial. Essa
prática não se resumo somente a especulação imobiliária,
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e da supervalorização das características monopolísticas
de espaços exclusivos produzidos para uso da elite urbana (Harvey,2014, cap. 4), como a criação de condomínios
fechados, por exemplo. O investimento é concentrado na
produção de espaços urbanos que futuramente permitam a
geração de novos excedentes, seja através da valorização
do solo, na especulação imobiliária “pura”, ou na diversificação das formas de seu uso e ocupação, criando novas
categorias de serviços e necessidades, que irão gerar excedentes através da exploração da espoliação de setores
trabalhistas não organizados, e sem tradição reivindicatória,
como no caso dos Shopping Centers.
“Afirmo aqui - diz Harvey, que a urbanização desempenha
um papel particularmente ativo...ao absorver as mercadorias excedentes que os capitalistas não param de produzir
em busca da mais-valia”. (Harvey, 2014, 33)
Na medida em que os investimentos valorizam o espaço,
no entanto, cria-se uma limitação - a valorização do espaço
- para a continuidade dessa forma de apropriação. Os capitalistas então procuram novos espaços não valorizados,
que possam aportar os excedentes gerados anteriormente.
O solo urbano torna-se simultaneamente, objeto e realizador do excedente e obstáculo a sua obtenção, na medida
em que a elevação dos preço, tanto do solo, como dos imóveis, inibe a continuidade do processo, nos níveis em que
vinha se desenvolvendo. Procura então, novas oportunidades, em especial nas periferias e regiões suburbanas, onde
a valorização ainda não ocorreu:
“O capitalismo conduz à criação de equipamentos em certas áreas. Como resultado, o espaço torna-se mais rígido.
Os preços da terra tornam-se mais altos...Para os capitalistas, essa evolução significa salários mais altos, lutas sociais mais frequentes com os sindicatos. Os custos da terra
evoluem de acordo com o nível geral de vida. Para manter
os seus lucros, os capitalistas só têm uma solução: investir
em outros lugares onde o preço do solo é mais baixo, os
operários permanecem sem organização sindical e a proteção social é menos forte. Daí a tendência de migração das
zonas industriais: as regiões atraentes para o capital num
certo momento tornam-se zonas repulsivas uma geração
ou duas mais tarde.” (Claval, 2013, pp.45-46)
Daí resultam os processos expulsórios que transferem
grandes contingentes populacionais das antigas periferias,
então valorizadas pelos investimentos privados e públicos,
para locais cada vez mais distantes, e menos estruturados,
longe do trabalho e dos centros de serviço. Esta expulsão
se dá tanto a partir da oferta de valores tentadores para famílias carentes, como pelo o aumento dos custos indiretos
como impostos, aluguéis, transporte, etc. É o que ocorre
atualmente na Zona Leste da Capital paulista, em especial
o bairro de Itaquera, tradicional bairro periférico da cidade, com características típicas das regiões dormitório. Uma
sequência de investimentos públicos e privados, liderados
pela construção de um grande estádio de futebol para a
copa do mundo, tem atingido os antigos moradores de
Itaquera, que não só não tem se apropriado dessa valorização, como tem sido expulsos para regiões muito mais
distantes e desvalorizadas como Guaianazes, Cidade Tiradentes, Poá, ou Ferraz de Vasconcelos.
Por outro lado, os trabalhadores que tentam apropriar-se
desse pseudo desenvolvimento, empregam-se junto ao co-
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mércio ou setores de serviço locais, recebendo salários significativamente inferiores aos dos centros tradicionais, mesmo que o preço final dos produtos e mercadorias oferecidos,
sejam equivalentes ou em alguns casos, superiores aos dos
grandes centros, ampliando a captação da mais valia.
Chamamos atenção, no entanto, para o fato de que, ainda que em “Cidades Rebeldes” Harvey apenas tangencie
o problema, não é desprezível a participação do Estado na
exacerbação desse processo. Frequentemente a ação do
poder público, longe de desenvolver políticas sociais para
mitigar os danos causados pela produção expropriadora
dos espaços, corrobora com essa prática. Concepções de
planejamento urbano orientadas para o desenvolvimentismo imediatista, comuns em cidades grandes e médias,
principalmente nos países em desenvolvimento, transportam fórmulas aplicadas em situações diversas daquelas em
que foram pensadas, sem que se proceda a crítica de sua
intervenção em realidades tão díspares. Os investimentos
públicos, nesses casos, privilegiam a questão estética, e
o desenvolvimento formal, contribuindo para a reprodução
da lógica perversa do capitalismo monopolista ou seja, a
“cor local” produzida pela construção da vida comunitária
em situações adversas, ganha uma “maquiagem digerível”,
transformando-se em símbolos de exclusividade. Porém os
agentes que criaram esse caldo de cultura não mais são
bem vindos, nessa paisagem reconfigurada.
política excludente que rejeita boa parte do que é a globalização”, diz Harvey (Harvey, 2013,200). Referindo-se ao monopólio, isto é ao princípio marxista, de que o capitalismo
é essencialmente monopolista, ou seja, define a “exclusividade” como principal forma de valorizar a mercadoria, a cor
local deve, no entanto associar-se às características mais
globais que a tornam identificáveis, como “objeto do desejo”, da classe dominante. Na concepção desenvolvimentista acrítica, a cidade deve construir seu desenvolvimento a
partir da criação de uma “marca”, que traga a valorização
necessária. “O sucesso na criação da ‘marca’ de uma cidade, - afirma Harvey , no entanto - pode requerer a expulsão
ou erradicação de todas as pessoas ou coisas que não sejam adequadas a marca”. (Harvey, 2013, p.200)
Mesmo quando o desenvolvimento urbano é pensado através de projetos urbanísticos, supostamente inclusivos, mas
que não destroem a lógica do que Harvey chama de “desapropriação”, o “tiro” pode acabar saindo pela culatra, a
fixação da população em seu local de moradia, através da
aplicação rigorosa da garantia de direitos normativa, não
estanca o processo de transferência:
“E o mesmo acontece com a proposta aparentemente progressista de conceder direitos de propriedade privada aos
ocupantes, oferecendo-lhes os bens necessários para sair
da pobreza. Esse é o tipo de proposta atualmente debatida
para as favelas do Rio de Janeiro, mas o problema é que
“Se esses projetos mais restritos de estética e práticas discursivas excludentes se tornam dominantes, seria difícil comercializar livremente o capital coletivo simbólico, criado,
pois suas qualidades muito especiais o situariam, em grande medida, fora da globalização e dentro de uma cultura
os pobres , atormentados pela escassez de seus rendimentos e pelas consequentes dificuldades financeiras, são facilmente convencidos esses bens a preços relativamente
baixos...Aposto que se as tendências atuais prevalecerem,
em quinze anos todos aqueles morros ocupados por fa-
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velas estarão repletos de condomínios arranha-céus com
vistas deslumbrantes para a Baía de Guanabara, enquanto
os antigos favelados estarão morando em alguma periferia
distante” (Harvey, 2014,p.56)
Em núcleos habitacionais que passa por processos de
urbanização, para o morador, até então, a moradia se
constituía em exclusivo valor de uso, uma vez que os
barracos erguidos em situação precária, e mantidos em
áreas deterioradas, na em sua maior parte não eram
mercadorias comercializáveis. Quando o núcleo recebe investimentos públicos que agregam valor ao todo
e a unidade, convertem-se imediatamente em mercadorias com valor de troca, ou seja inserem-se no mercado. Mesmo que esse valor, para as classes de maior
renda, sejam irrisórios, para os proprietários originais, a
venda do barraco, proporciona um “fôlego” no atendimento emergencial de suas outras necessidade, como
alimentação, vestuário, educação, mobilidade, etc. Em
síntese, na urbanização das favelas os investimentos
públicos, via de regra, melhoram a condição de vida
estrutural das pessoas (mais saúde, e mais dignidade,
inclusive), mas não resolvem a lógica perversa, de serem cotidianamente espoliados, em outras áreas, pelo
processo de acumulação.
Para Harvey, são, entre outros, justamente os desapropriados pelo urbanismo desenvolvimentistas, que moverão no
ostracismo da exclusão, as engrenagens da revolução urbana. A cidade é arena onde as forças anticapitalistas e neoliberalistas, se confrontarão ainda por muito tempo.
2. A cidade e as lutas sociais
Harvey, neste e em trabalhos anteriores, critica a rigidez
com que o pensamento marxista tradicional trata a questão
da luta de classes, e dos conflitos dela decorrentes. O trabalho industrial, graças a elevação da produtividade, do desenvolvimento tecnológico e da especialização, vem ocupando, em termos quantitativos, um espaço cada vez mais
reduzido no universo da mão de obra urbana. Novas formas
de trabalho tem surgido e se desenvolvido, de maneira mais
rápida e efetiva, do que o trabalho industrial. A economia
urbana tem mostrado que o crescimento, por exemplo, do
setor de serviços, é mais expressivo, não só na criação de
postos de trabalho, mas na rápida inclusão da mão de obra
não especializada no universo da população economicamente ativa. Tornou-se também significativamente mais
lucrativa, na medida que a desorganização desses trabalhadores, e seu elevado nível de desinformação, impedem
ações reivindicatórias e lutas sindicais tornando-os presa
fácil da espoliação e da superexploração. Basta observar o
que se passa entre os trabalhadores das famigeradas empresas de “telemarketing”, em tudo similares as formas arcaicas de trabalho do início da revolução industrial.
A tradicional configuração, “burgueses x proletários”, no
qual os operários desempenham o papel de vanguarda no
combate a exploração capitalista e ao processo de individualização da sociedade, já não se constitui na referência
lógica da luta de classes. A proximidade dos operários com
o processo de espoliação de seus salários, quando, libertos do fetiche da mercadoria, e do processo de alienação,
que compara o valor final daquilo que produz, e o quanto é
apropriado por si mesmo, desenvolve a aguda consciência
de sua exploração. Esse processo foi diluído, de um lado
pela evolução salarial produto da organização sindical, e
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de outro pela crescente hegemonia do pensamento liberal,
que define como “justo”, que quem detém os meios de produção, possa apropriar-se daquilo que foi gerado por sua
propriedade.
o subproletariado das favelas para sobreviver à crise. Uma
nova forma de capitalismo se desenvolve: o capitalismo
por espoliação.
Tal interpretação é muito diferente da oferecida pelo O Capital. A exploração cessa de aparecer como resultado de
Do espaço urbano, criado a partir da lógica da reprodução
do capital, emergem novas formas de espoliação. A cidade
contemporânea, tendo em vista a diversidade de funções das
quais se apropriou, desorganiza as relações de produção, no
que se refere a organização dos trabalhadores. As novas formas de “ganhar a vida”, assumem tamanha diversidade, que
torna-se extremamente difícil organizar esses trabalhadores
em torno de causas coletivas, ainda que os interesses sejam
comuns. Por isso, os capitalistas, encontram na produção do
espaço urbano, o meio ideal, para gerar novos excedentes,
a partir tanto do afastamento dos trabalhadores dos centros
de decisão, como das novas formas de exploração criadas a
partir da reorganização do espaço:
“David Harvey deve a Hannah Arendt a seguinte leitura:
“[Arendt] deu-se conta pela primeira vez que o pecado original da pilhagem pura e simples que, séculos antes, tinha
permitido ‘a acumulação original do capital’ (Marx) e preparado a acumulação futura, teve finalmente que se repetir
processos puramente econômicos. Ela tem uma dimensão
política fundamental: é graças ao fato de que os capitalistas têm um poder de dominação sobre as mulheres, os
marginais do mundo industrializado ou sobre as classes
pobres do terceiro mundo, que eles mantêm a possibilidade de obter lucros.” (Claval, 2013,pp. 74-75)
Harvey, no entanto, defende em “Cidades Rebeldes”, que
essa mesma configuração, que facilita ao domínio global do
capital expandir suas formas de apropriação e espoliação,
que desorganiza e desideologiza os assalariados, pode
converter-se no caldo de cultura necessário, ao desencadeamento de mobilizações urbanas de caráter revolucionário,
tal como ocorreu na “Comuna de Paris”, exemplo sempre
presente em sua obra e na de Lefebvre. Os movimentos
sociais, que despontam nas grandes metrópoles mundiais,
são segundo ele o embrião de um processo irreversível, que
se oporá, as formas mais arcaicas e particularmente selvagens de expropriação dos mais pobres:
se não quisesse ver morrer subitamente o motor da acumulação...
“A luta anticapitalista no sentido marxista formal, é funda-
O que Arendt ensina a David Harvey é que “No capitalismo,
mental e apropriadamente interpretada como sendo em
existe uma contradição central entre lógicas territoriais e
relação da abolição da relação de classe entre capital e
lógicas capitalistas do poder” (Harvey, 2010b, p. 229). No
trabalho na produção que permite a produção e a apro-
mundo atual, o capitalismo não tem mais a possibilidade de
priação da mais valia pelo capital. O objeto último da luta
criar lucros somente a partir da produção industrial, como
anticapitalista é a abolição dessa relação de classe e de
no tempo do fordismo. Ele tem de explorar as diferenças:
tudo que acompanha , pouco importando onde ocorra.
por isso ele envolve mulheres, imigrantes marginalizados e
Na superfície, esse objetivo revolucionário parece não ter
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nada a ver com a urbanização em si. Mesmo quando essa
luta deva ser vista, como invariavelmente deve, através das
perspectivas de raça, etnia, sexualidade e gênero, e mes-
indivíduo na sociedade a partir de suas conquistas individuais, e não da posição estratégica que ocupa na produção
bem estar coletivo. Afirma Bourdie:
mo quando ela se desenrola mediante conflitos urbanos
interétnicos, raciais ou de gênero nos espaços vitais da ci-
“ La teoria de las clases debe, pues, superear la oposicíon
dade, a concepção fundamental é que a luta anticapitalista
entre las teorias objetivistas que identifican ls clases (si-
deve em última análise, chegar as entranhas do sistema
quiera para demosntrar por absurdum su inexistência) con
capitalista e extirpar o tumor canceroso das relações de
grupos discretos, meras poblaciones enumerables y sepa-
classe na produção.” (Harvey, 2014, p.218)
rables por fronteras objetivamente inscritas en la realidad, y
las teorias subjetivists (o, si, prefuere, marginalistas) que re-
A própria existência de classes sociais e em conflito no
espaço urbano é questionada por parte dos planejadores
vinculados ao pensamento conservador. Alegam que as diferenças econômicas entre as diversas categorias de assalariados, empreendedores de porte reduzido, são hoje
estatisticamente indefinidas, e que não seria o caso de hodiernamente proclamarmos a luta de classes como motor
econômico da sociedade, uma vez que os antagonismos,
entre trabalhadores assalariados e proprietários dos meios
de produção, pela variedade de segmentos envolvidos,
se dissolveu numa miríade de questões econômicas, políticas, culturais e sociais subjetivas, que não podem ser
quantificadas a partir de pesquisas objetivas. Portanto, se
não podem ser claramente definidas pela lógica científica,
não existem, na forma tradicional proposta pelo marxismo.
Bourdie, oportunamente ironiza este ponto de vista, citando
Pareto, “Daria igual señalar, prosigue Pareto, que no existem
viejos porque no se sabe a qué edad, en qué momento de
vida, comienza la vejez.” (Bourdie, 2013, p.202).
Transformar os conflitos de classe, na sociedade capitalista
em mera questão estatística, é capitular claramente com a
concepção neoliberal, que define a situação econômica do
ducen el “orden social” a una suerte de clasificacíon coletiva obtenisa de la sumatoria de clasificaciones individuales,
enclasadas y enclasantes, merced a las cuales los agentes
se clasifican y clasifican a los demás.” (Bourdie,2013,p.201)
Harvey afirma, portanto, que a luta de classes não foi abolida
pela evolução do capitalismo, como declara a ideologia neoliberal. No que se refere as distintas formas que os conflitos
assumem na construção de nosso cotidiano contemporâneo, ela disseminou-se e permeou, outras formas de dominação, que tem como origem o capital. Agrupamentos sociais diversos, reunidos sob as distintas formas de combate
a exploração, surgem nas grandes cidades corriqueiramente, e muitas vezes desaparecem com a mesma efemeridade,
tendo em vista que as condições concretas que lhes deram
causa, também foram efêmeras. Outros porém, ligados a extensão da lógica reprodutiva, e as estratégias históricas de
dominação de classe (como o antipatrimonialismo, ou a luta
feminista, por exemplo), permanecem enquanto essas estruturas não forem superadas. As lutas sociais que transbordam
o universo da relação capital/trabalho, tendem a mascarar a
primazia do conflito econômico que está sob sua superfície,
mas não iludem o observador atento:
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“Uma palabra final acerca del modo en que encaramos las
tareas más urgentes de la izquierda. Várias vozes se an
oído recientemente proclamando:”Volvamos a la lucha de
clases!” Elas sostienen que la izquierda se ha identificado demasiado estrechamente con cuestiones “culturales”
y que ha abandonadola lucha contra las desigualdades
eocnómicas...Es verdad que la evolucion de los partidos
de izquierda ha sido de un caráter tal que su principal preocupacion ha passado a ser las classes médias, en dtrimento dos trabajadores.Pero isso non sse debe a ninguna
unilaterlizacíon de los problemas de “identidad”, sino su
incapacidad de concebir una alternativa ao neoliberlismo
y su aceptacíon acrítica de los imperativos de “flexibilidad”. La solucion no es abandonar la lucha “cultural” para
volver a la política real. Una de las tesis de Hegemonia e
Stratégia Spocialista es la necesidad de crear una cadena de equivalências entre las varias luchas democráticas
y en contra de las diferentes formas de subordinacíon. “
(Laclau e Mouffe, 2011, 19)
Em nenhum momento, devemos nos afastar do pressuposto de Marx de que é a partir das relações econômicas que
se desenvolvem as demais relações de produção, ou como
propõe Marx, “os modos de produção, determinam a um
conjunto de relações que independente de sua vontade
correspondem a uma determinada fase de desenvolvimento
das suas forças produtivas materiais”. São essas relações
de produção, originárias da “produção da vida material, que
condicionam o processo da vida social política e espiritual em geral”. Assim quando essas relações de produção,
atingem um estágio em que “tornam-se um obstáculo”, ao
desenvolvimento da vida material, o capitalismo encontra
uma forma de superá-las (Marx, 1977, p.301).
Portanto, quando as relações de produção, que determinam as relações sociais em nossa vida cotidiana, tornam-se empecilho a geração de excedentes pelo processo de
acumulação, os capitalistas encontram formas de superá-la, e segundo Harvey, é através da produção do espaço
urbano lucrativo, que esse excedente é expandido e reaproveitado. Mas em que medida essa questão se relaciona
com os movimentos sociais? As agruras urbanas (ambientais, entre outras),nessa linha de raciocínio, são então metamorfoses da exploração originária promovida pelo processo acumulativo. As exploração do trabalhador assalariado
como vimos, através da apropriação da riqueza que produz,
se estende a todas as formas da vida urbana. As classes
mais pobres são (segundo Harvey) “desapropriadas” de seu
patrimônio natural, que é transferido para o processo de
acumulação através da valorização do espaço de convívio
e moradia, e da elitização dos espaço construído. Portanto,
os movimentos sociais de base urbanística (moradia, participação, mobilidade, etc.), respondem a mesma lógica das
lutas contra a apropriação indevida da riqueza produzida
coletivamente e apropriada por poucos, como no caso dos
trabalhadores assalariados.
Para Harvey, a mudança da configuração dos conflitos de
classe, bem como o local onde eles se desenvolvem no
capitalismo do Século XXI, é o dará fôlego, a luta contra
hegemônica pela justiça social, deslocando o eixo das mobilizações classistas industriais, para o proscênio urbano:
“O que importa para o conjunto da classe capitalista se o
valor é extraído dos circuitos comercial e monetário, e não
diretamente do circuito produtivo? A lacuna entre o lugar
onde se produz a mais-valia e aquele onde ela se realiza é
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crucial tanto teoricamente quanto na prática. O valor criado
na produção pode ser recuperado dos trabalhadores em
benefício da classe capitalista por aluguéis altos cobrados
pelos proprietários... Em segundo lugar a própria urbanização , é produzida. Milhares de trabalhadores, participam
de sua produção, e seu trabalho gera valor e mais valia.
Por que então não concentrar na cidade em vez de na
fábrica, como lugar de excelência da produção da mais-valia?...Nesse momento da história nas partes do mundo
caracterizadas como capitalismo avançado, o proletariado
fabril convencional foi radicalmente diminuído. Então agora
temos de fazer uma escolha: lamentar a perda da possibilidade de uma revolução porque aquele proletariado desapareceu, ou mudar nossa concepção de proletariado para
incluir as hordas não organizadas de produtores da utilização (do tipo que se mobilizava nas marchas pelos direitos
dos imigrantes) e explorar suas capacidades e forças revolucionárias específicas” (Harvey,2014,pp.232-233).
3. O caráter anti hegemônico dos movimentos sociais
urbanos
Os ideais socialistas perderam considerável força hegemônica, junto as populações, diante das investidas globais da
doutrina neoliberal. As formulas heterodoxas dessa corrente tem, até o momento, demonstrado uma capacidade frequentemente inabalável de recuperar momentaneamente o
capitalismo de suas crises, cada vez mais frequentes.
A ideologia neoliberal propõe uma visão de sociedade onde
os indivíduos são vistos como sujeito particular, não coletivo. O ser humano é proposto como individualidade, e sua
identidade pessoal, como um universo próprio e complexo,
apartado do conjunto dos demais indivíduos. Essa compreensão estrutura todo o pensamento burguês dos Século
XVIII e XIX, calcado na luta contra o absolutismo monárquico, e propõe a liberdade, como elemento essencial do
progresso humano. Um dos aspectos formais dessa liberdade é o reconhecimento de que o homem possui direitos
pessoais inalienáveis, que devem ser garantidos pelo direito
positivado (Código de Napoleão de 1804, por exemplo), e
inatingíveis pelo Estado. A isonomia legal, apregoada pela
burguesia como a universalização dos direitos, vem para
substituir ilusoriamente, as demandas igualitaristas das
classes mais pobres. O perspicaz escritor frances do Século XIX, Anatole France, ironiza essa pretensa igualdade
normativa: “A lei em sua majestática igualdade, proíbe ao
pobre como ao rico dormir sob as pontes, mendigar nas
ruas e roubar pão”3.
Outro característica importante do ideário liberal burguês, é a
liberdade econômica, ou seja, a autonomia dos agentes sociais em administrarem sua vida econômica sem a intervenção do Estados, e limitados tão somente pelas leis naturais
do mercado, definidas por Smith e Ricardo.Sem dúvida esse
é o pilar estrutural do liberalismo, e ainda hoje seu principal
preceito. É também produto da luta da burguesia contra o
controle da atividades econômica, e a imposição de limitações competitivas ao comércio e a industria, determinadas
pelo absolutismo. O capitalismo, no período em clara consolidação, necessita da competição e da liberdade de iniciativa
para progredir. O liberalismo transforma a sociedade numa
paradoxal composição de “individualidades coletivas”.
A visão liberal burguesa, que tem em Locke, seu brilhante
representante no período, atribui sempre ao esforço indivi-
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dual, o sucesso ou fracasso, do progresso humano. Nesse
sentido a sociedade, em termos econômicos, não é mais do
que um corpo de agentes particulares, que ao desenvolverem um esforço pessoal em busca de sua própria felicidade,
estão produzindo de maneira natural, a felicidade coletiva,
como no prega o pensamento utilitarista de Jeremy Bentham (1738-1832), e Stuart Mill ( 1806-1873).
Mas a concepção liberal que vinha a passos largos, dominando os países na Europa e em algumas outras regiões,
fracassou em apresentar alternativas viáveis as crises capitalistas da primeira metade do Século XX, e as investidas
do modelo socialista que no início do Século XX, também
apresentava-se como alternativa ao capitalismo, e suas
mazelas. A partir daí, surgem novas formulações para “salvar” o capitalismo como o Keynesianismo, o Estado do
Bem Estar Social, etc.
Por outro lado, como um “camaleão”, o neoliberalismo muda
constantemente de feições. Não se constitui num arcabouço
teórico definido, com pressupostos e objetivos claros, mas
num conjunto de medidas que se adaptam as necessidades do capital. Seus detratores e adversários, em especial
no campo progressista, tem dificuldade em combatê-lo, pois
com exceção de algumas poucas “recomendações” bastante conhecidas, e exaustivamente repetidas (o “decálogo
do consenso de Washington, por exemplo), seus demais caminhos são obscuros e erráticos. Daí a dificuldade de criar
mecanismos e ferramentas para combatê-lo. Em entrevista
recente, ao Boletim Campineiro de Geografia, o geógrafo Jamie Peck, de postura antineoliberal, afirma:
“Temos que entender que o neoliberalismo é o que eu chamaria de uma teoria da crise — ele explora situações de
crise, se prolifera na crise e, durante esse tempo em que
tantos estavam dizendo que seria sua morte, meu medo
No pós guerra entretanto, com o acirramento da disputa
entre capitalistas e socialistas, e as sucessivas arremetidas dos capitalistas contra um Estado regulador, além da
necessidade da retomada das atividades produtivas, fez
ressurgir com “força total”, a ideia da sociedade como um
cenário onde os homens concorrem entre si, e somente
através da criatividade e dos talentos individuais, podem
obter seu progresso, independentemente da ação coletiva.
Ressurge o liberalismo, que, com novas estruturas, agora
chamado de neoliberalismo, restaura as propostas burguesas originais de que as leis de mercado acabam por resolver autonomamente os problemas gerados pela crises sistêmicas. A força do neoliberalismo vem justamente de sua
capacidade de criar novos e repetidos mecanismos, ainda
que efêmeros, para o enfrentamento dessas crises.
era de que isso seria outro renascimento, e diria que foi
exatamente isso que aconteceu. O neoliberalismo tem sete
vidas, pois não é um projeto fixo, ele constantemente se
autorreproduz através da crise, então esses são momentos
posteriores à mutação do projeto, não o seu colapso. Isso
nos força a considerar algumas questões difíceis sobre as
bases nas quais o neoliberalismo pode ser definitivamente
contestado ou transformado. “ (Peck, 2012,p.367)
Essa tese é reforçada, com uma crítica do geógrafo à forma
como alguns pensadores de esquerda, pensam a superação do neoliberalismo a partir dos mesmos pressupostos
de sua concepção, com ideias “quase keynesianas”, como
Paul Krugman e Joseph Stiglitz (Peck, 2012,p.368). Para
Peck não se constituem realmente em alternativas trans-
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formadoras e universais para o neoliberalismo a serem
elaboradas pelo pensamento de esquerda, como a redistribuição de social e espacial, de movimentos em direção
a propriedade coletiva, e um controle democrático da economia (Peck, 2012,p.367). Ainda segundo Peck, enquanto
não houver uma elaboração coletiva e instrumental de alternativas práticas e teóricas que sirvam objetivamente ao
combate contra-hegemônico, o neoliberalismo manterá sua
hegemonia, e sua capacidade de ressurgimento, bem como
terá, como ideologia dominante, prisioneiros os corações e
mentes dos espoliados urbanos e de qualquer espécie:
“Essa é uma das razões para que, após a crise financeira,
eu tenha dito que o neoliberalismo pode estar entrando em
uma fase “zumbi”, na qual voltaria dos mortos. Agora estamos sendo avisados de que temos que usar o remédio
do neoliberalismo porque é o único remédio disponível, é
mais um “nós temos que fazer”, “sabemos que isso vai nos
machucar”. É isso que estão dizendo às pessoas na Grécia e na Espanha: que não temos alternativa além de fazer
isso. Ninguém mais diz “isso será ótimo para você”, “você
que precisamos privatizar, que precisamos desregular, que
precisamos de mais espaço para as forças de mercado e
que a longo prazo isso seria melhor. E nós sabemos, através de uma amarga experiência, que não é assim. “ (Peck,
2012, p.373)
A hegemonia neoliberal, no entanto, vem se mantendo viva
e conquistando regularmente a ampliação de seu espaços,
entre todas as classes sociais. Para combatê-la, é necessário, como apontamos a clara compreensão de seus mecanismos e suas formas de penetração. Para Peck, se a
esquerda tem encontrado algumas soluções locais eficientes para combater as propostas neoliberais, tem falhado em
traduzir essas alternativas locais em formulações globais,
que possam ser traduzidas universalmente de forma a estimular a mobilização social. O mesmo pensa Boaventura de
Souza Santos, que em seu recente trabalho, “Se Deus fosse
um ativista dos direitos humanos”, onde aborda a problemática, de como o pensamento progressista pode contrapor-se, criar ações contra hegemônicas, em um cenário de
dominação conservadora:
irá gostar”, “será bom para todos nós”. Dizem que “temos
de fazer isso para colocar as finanças públicas em ordem”.
“Considero ser hegemônica, no nosso tempo, uma rede
Estamos em um momento no qual o neoliberalismo está
multifacetada de relações econômica, sociais, políticas,
sendo vendido negativamente, não porque esse é o modo
culturais e epistemológicas desiguais baseadas nas inte-
ótimo de organizar as coisas, mas porque é a única solução
rações entre três estruturas principais de dominação - ca-
prática para os problemas que estamos enfrentando atual-
pitalismo, colonialismo e patriarcado - que definem sua
mente... Os zumbis buscam corpos de sangue quente, e os
legitimidade(ou dissimulam sua ilegitimidade) em termos
zumbis neoliberais continuarão a procurar por esses cor-
do entendimento liberal do primado do direito, democracia
pos, continuarão a atacar os mesmos lados. Continuarão
e direitos humanos, visto como a personificação dos ideais
a marcha contra o mundo social e farão as mesmas coisas
de uma boa sociedade. Paralelamente, considero ser con-
de novo e de novo, como zumbis. Nos dirão novamente
tra hegemônica, a mobilização social e política que se traduz em lutas movimentos ou iniciativas , tendo por objetivo
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eliminar ou reduzir relações desiguais de poder e transfor-
partidos começando a emergir – o Syriza na Grécia, por
má-las em relações de autoridade partilhada,recorrendo,
exemplo. O que me preocupa é o que comento no livro
para isso a discursos e práticas que são inteligíveis trans-
como um estado de alienação em massa, que está sen-
nacionalmente mediante a tradução intercultural e articula-
do capitalizado amplamente pela direita. Há sim, portanto,
ção de ações coletivas.” (Santos, 2014, p.34)
alguma urgência em tratar da questão de como nós nos
institucionalizaremos como força política, para resistir con-
Segundo Harvey, atualmente se apresenta como tarefa urgente das forças anticapitalistas, a transformação do conjunto de manifestações e insurreições populares que despontam na grandes cidades do mundo, e que tem tido uma
caráter efêmero e pouco organizativo, em fóruns influentes
de debate, que possam viabilizar novas perspectivas de
transformação, e participação nos processos decisórios,
com vistas a transformar o espaço urbano de mero instrumento da reprodução do capital e na geração da mais valia,
em um espaço pluralista e inclusivo. Em entrevista recente,
concedida ao Boletim Eletrônico “Outras Palavras”, sobre
seu mais novo livro, “Seven Contradictions and the End of
Capitalism”, Harvey afirma, recuperando aquilo que já havia determinado em “Cidades rebeldes”, que o apartamento
dos trabalhadores da política institucional, a partir dos mais
diferentes processos alienantes, como a segregação espacial, pode ser revertido se houver um esforço coletivo das
forças progressistas, e um encaminhamento eficiente das
manifestações espontâneas:
“Uma das coisas que temos de aceitar é que está emergindo um novo modo de fazer política. No presente, ainda
é muito espontaneísta, efêmero, voluntarista, com alguma
relutância a deixar-se institucionalizar. Como poderá ser
institucionalizado é, creio eu, questão aberta. E não tenho
resposta para isso. Mas é claro que, de algum modo, terá
de institucionalizar-se ou ser institucionalizado. Há novos
tra um retrocesso de direita e atrair parte significativa do
descontentamento que está nas ruas e empurrá-lo numa
direção progressista, não em direção neofascista...
A alienação brota, entendo eu, de um sentimento de que temos capacidade e poder para ser alguém muito diferente do
que é definido por nossas possibilidades. Daí surge a questão de até que ponto o poder político é sensível à criação de
outras possibilidades? As pessoas olham os partidos políticos e dizem “Aqui, não há nada que preste.” Há, pois, a alienação que empurra para longe do processo político, que se
manifesta em comparecimento declinante nas eleições; há
a alienação para longe da cultura da mercadoria, também,
que cria uma carência e o correspondente desejo por um
outro tipo de liberdade. As irrupções periódicas que foram
vistas pelo mundo – parque Gezi em Istanbul, manifestações
no Brasil, quebra-quebra em Londres em 2011 – obrigam a
perguntar se a alienação pode vir a ser uma força política
positiva. E a resposta é sim, pode, mas não se vê nada parecido nos partidos ou movimentos políticos.” (Entrevista com
Harvey, em “Outras Palavras”, 2014).
Conclusão
Olhando para o atual cenário de nossas cidades a resposta
parece mais do que óbvia do que nunca. Como vimos, a
cidades são o cenário-espelho da desigualdade e da injus-
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tiça social. O próprio Piketty, ao apresentar sua exaustiva
pesquisas para compreender a desigualdade contemporânea, afiança que: “A apropriação do capital parece se tornar
cada vez mais concentrada neste início do Século XXI, isso
dentro do contesto de tendência de alta da relação capital/
renda e de baixo crescimento”.(Piketty,2014,p.328)
oportunidades únicas no sentido de que sejam criadas as
condições políticas, para as transformações:
“Los periódicos estallidos de protesta contra la expúlsion
de los sujetos del âmbito de la toma de decisiones políticas y la produccíon compulsiva de espectadores (uno
podría sospechar, el verdadero detonador de los happe-
Porém, acredita Harvey, da mesma maneira com que a desigualdade assola a vida urbana, é possível, como afirma o
autor, corromper esse sistema espoliativo em seu próprio
interior (o que Harvey chama da “teoria do cupim”), ou seja
a semente de uma nova relação social nas cidades se dará
a partir do momento em que a hegemonia do pensamento
neoliberal for rompida, e a população urbana, tomar consciência de que suas mazelas são produto de um sistema que
visa unicamente a geração de mais valia e a reaplicação
dos excedentes, e não o bem estar da população.
nings “antiglobalizacíon” de estilo guerrillero) parecen ser
la única alternativa , terriblemente inadecuada, a la passiva aceptacíon del estado de cosas imperante. Atraen la
atención, llaman a reflexionar sobre los riesgos que estan
acechando; as veces logran torcer el brazo de los poderosos en algumas questiones en discusión. A fin de contas
, sin embargo, con toda su vehemencia, su incidencia, en
la balanza de poderes es mínima, por más valerosos que
sean sus actores. Por otra parte, un compromiso firme a
largo plazo, para la accíon colectiva, que pretenda atacar
las mismas raízes de la miséria humana, nacido en el seno
Os pressupostos para que a revolução urbana possa acontecer, segundo Harvey, são a possibilidade de tornar as manifestações populares, que traduzem a insatisfação generalizada da população com a forma como a vida urbana vem
sendo conduzida (não apenas pelo estado, mas pela apropriação privada do território), e são em sua maioria efêmeras e politicamente eficazes num meio eficiente com vistas
a arregimentar as massas populacionais não organizadas,
em torno de objetivos comuns, e do combate a ideologia do
lucro e da competição individualista como forma exclusiva
de organizar a vida social.
de este nuevo vacío ético global, tiene una apariencia nebulosa. Es la misma nebulosa que envuelve a los anuncios
del tipo “fin de la historia” de Fukuyamaen la bruma de la
credibilidad.
Pero sólo un compromiso como ése, un compromiso firme
a largo plazo merece ser llamado “la oportunidad política
por exelencia”, como propone Luc Boltanski, “un ato que
transforme al espectador en actor”. Ningún otro compromiso bastaria.” (Bauman, 2013, p.266)
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proposta central de Harvey, vê os movimento sociais, como
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david harvey // Irineu Bagnariolli Junior
Notas
1. Harvey, David – “As cidades Rebeldes”, 2014
2. Harvey refere-se a queda do muro, e a derrocada do socialismo real, e aos autores que em função do episódio chegaram a decretar “o fim da história”.
3. Citado em “Titãs do Humorismo”, Coleção Titãs, Livraria “El Ateneo” do Brasil, Rio de Janeiro, 1961, p.251.
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