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claraboia
Tive a oportunidade de participar como curador visitante do Programa Clarabóia do Largo das Artes e,
naquele momento, achei que a validade da minha presença se estabelecia pelo exercício de escuta junto
aos artistas e através disto, deste encontro e deste afeto, tentar fundar linhas de fuga, nichos conceituais,
nós plástico-textuais que estruturam o tecido estriado da cons-trução poética de cada trabalho.
Obviamente tal proposta precisou eliminar a todo o tempo, o desejo recôndito e a cobiça vã que eventualmente, invade algumas propostas curatoriais: a de enclausurar o trabalho dentro de um repertório estreito
que talvez surgiria como um norte redentor para a compreensão de tais práticas. Se a contemporaneidade
é em certo sentido, um conjunto imbricado e hipertextual de referências, naquele caso, a contribuição só
poderia ser justa se aproveitasse tal deambulação para provocar um exercício de explosão e precipitação
de sentidos, além de erigir a teoria como uma terceira margem que, apesar de eximir-se da possibilidade
de oferecimento de segurança, terminaria por elencar algumas questões e alguns trabalhos icônicos que
talvez servissem como um doce parceria.
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O trabalho de JULIA HARTUNG é legítimo inclusive na escolha conscientemente tímida de sua potência. A
jovem artista, ao perceber a entropia do seu corpo e o desgaste inevitável da matéria física que lhe compõe,
resolve escolher um significante bastante preciso para, a partir disso, produzir suas peças. Os restos, os
vestígios, a memória dos fios de cabelo abandonados durante o banho e a vida servem como força motriz
para a lembrança poética e política da desconstrução de uma certa subjetividade que nasce no século XX e
ainda ganha força neste século XXI. O gesto de recolher tais elementos, tais traços, tais gráficos humanos
perdidos em sua banalidade cotidiana, evidencia de maneira antagônica o método obtuso de dispersão da
atenção que nos norteia. Paradoxalmente, ao perceber a perda inevitável de sua matéria, o trabalho
termina por endossar a relação de aderência e de distanciamento entre o eu e seus pequenos ornamentos
em sua inevitável pulsão de morte. O fio do cabelo mergulha na resina e numa forma mimética assumidamente representacional, redescobre a sua força enquanto relíquia enclausurada em pseudo-cristais e
também em alguns desenhos. É como se a mesma, talvez sem clara certeza, tentasse num exercício desesperado, reter aquilo que lhe escapa. A matéria e o tempo.
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O trabalho de DEVANEY CLARO é um ótimo exemplo de como a pintura ainda pode e merece ser reprocessada. Invadindo com muita potência toda a herança do espaço pictórico e sabendo visivelmente todas as
revoluções que o atravessaram, o artista pensa e produz um objeto pintura que extravasa seus limites e
decide apaixonar-se pelo espaço, pelo entorno e pela paisagem que o envolve. Entendendo a tela da
história como uma tessitura, Devaney opta por pensar microscopicamente nos fios que a compõe. E mais
ainda, sabendo que a tela sempre foi, é e será um recorte determinado, um campo de tensões estrito,
busca com vigor e rara beleza, a expansão de seus limites até o infinito íntimo da poesia matérica da linha
e da cor. A pintura expandida percebe-se como uma odisseia e termina nos perguntando em que medida
ainda seria possível revisitar a herança dos anos 1960 e 1970; onde a questão do outro, do sítio, da metalinguagem e da naturalidade dos meios objetuais parecem ser questões relevantes. Entendendo com preciosa
sagacidade o minimalismo, o pós-minimalismo, a Op Art e a arte conceitual, Devaney Claro nos propõe um
jogo, um duelo infinito de composição (musical?) entre o objeto e o sujeito, numa fricção sensibilíssima
entre a potência feminina da forma e a poética masculina da presença encravadas na história do olho da
humanidade (e vice-versa; sem gênero algum).
Alexandre Sá (maio 2015)
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