DESPACHOS NO MUSEU:
SABE-SE LÁ O QUE VAI ACONTECER...
DESPACHOS NO MUSEU
sabe-se lá o que vai acontecer...
SUELY ROLNIK
Psicanalista, Coordenadora do Núcleo de Estudos da Subjetividade da Pós-Graduação em Psicologia Clínica da PUC-SP
Resumo: A vida em suas diferentes fórmulas de criação constitui um dos alvos privilegiados do investimento
do capitalismo contemporâneo. Para fabricar e comercializar clones, o capitalismo extrai as matrizes não só
da biodiversidade na natureza, mas também do multiculturalismo de modalidades de produção de sentido, de
territórios de existência e de subjetividade. Um dos maiores desafios do artista contemporâneo está em se
instalar no próprio âmago dessa ambigüidade, associando-se ao investimento capitalista, mas negociando para
manter a vida como princípio ético organizador, tolhendo assim seu vetor perverso.
Palavras-chave: cultura e capitalismo; arte e resistência; instauração.
Trata-se sempre de liberar a vida lá onde ela é prisioneira,
ou de tentar fazê-lo num combate incerto.
um multiculturalismo de modalidades de constituição de
subjetividade.
Assim, o neocapitalismo convoca e sustenta modos de
subjetivação singulares, mas para serem reproduzidos,
separados de sua relação com a vida, reificados e transformados em mercadoria: clones fabricados em massa,
comercializados como “identidades prêt-à-porter”(Rolnik,
1997). O que se vende são imagens destas identidades/
mercadorias que serão consumidas, inclusive, por aqueles de cuja medula subjetiva o capital se alimentou para
produzi-las. Na reinvenção contemporânea do capitalismo, a distância entre produção e consumo desaparece: o
próprio consumidor torna-se a matéria-prima e o produto
de sua maquinação.
Clones de subjetividade constituem padrões de identificação efêmeros. Para fazer girar esse mercado, é necessário que novos tipos de clone sejam produzidos o tempo
todo, enquanto outros saem de linha, tornam-se obsoletos. A diferença entre anomalia e anormalidade pode ser
útil para avançar nesta reflexão. “Anomalia” é uma palavra de origem grega, que designa o rugoso, o desigual, o
singular, enquanto “anormalidade”, uma palavra de origem latina, qualifica aquele que contradiz a regra, definindo-se em relação a características genéricas. 1 Assim,
na tradição latina, as manifestações do que é o mais próprio da vida, sua potência criadora, são interpretadas como
negação e, conseqüentemente, condenáveis. Aparentemen-
Gilles Deleuze e Félix Guattari (1992:222)
A
vida, em sua potência de variação, constitui um
dos alvos privilegiados do investimento do capitalismo contemporâneo. Tendo esgotado os
horizontes visíveis para sua expansão, é no invisível que
o capital irá descobrir esta sua mina inexplorada: extrair
as fórmulas de criação da vida em suas diferentes manifestações será seu alvo e também a causa de sua inelutável ambigüidade. É que se, por um lado, para atingir seu
alvo lhe será indispensável investir em pesquisa e invenção, o que aumenta as chances de expansão da vida, por
outro, não é a expansão da vida a meta de seu investimento, mas sim a fabricação e a comercialização de clones
dos produtos das criações da vida, de modo a ampliar o
capital, seu princípio norteador. O exemplo mais óbvio
são as pesquisas genéticas que resultam num banco de
dados de DNA, que alimenta a indústria biotecnológica
com matrizes a serem reproduzidas, até mesmo num futuro remoto. Porém, o capitalismo se interessa em extrair a
fórmula não só da vida biológica, mas igualmente da vida
subjetiva, na qual se produz o sentimento de si e se configura um território de existência, sem o qual dificilmente
se consegue sobreviver. Como a biodiversidade na natureza, fonte exuberante de investimento para o capital, há
3
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 15(3) 2001
te, no modo de produção atual, esta tradição estaria se
deslocando: as manifestações da potência criadora tendem
a não mais ser interpretadas como anormalidade, transgressão de uma referência absolutizada, mas sim como
anomalia; tomadas em sua positividade, tais manifestações
deixam de ser malditas. Pelo contrário, a anomalia é acolhida exatamente por sua singularidade, ganhando não só
lugar garantido, como também incentivo e prestígio. No
entanto, a meta desse forte investimento na anomalia é sua
conversão em matéria-prima na fabricação de novos
clones, novas formas genéricas de viver, novos tipos de
referência homogeneizadora. É, portanto, a tradição latina que insiste, numa versão atualizada.
Em outras palavras, o estatuto da potência criadora hoje
é intrinsecamente marcado por uma ambigüidade: a criação nunca foi tão festejada, mas desde que o princípio de
sua produção deixe de ser prioritariamente a vida (a
problematização do que impede sua expansão e a invenção de territórios que a viabilizem) para se submeter ao
capital como princípio organizador central. Caso contrário, por não haver outras vias de reconhecimento social a
não ser por semelhança e analogia em relação aos padrões
mesmo que efêmeros, a anomalia corre o risco de cair numa
espécie de limbo, sem qualquer presença efetiva na cena
social e, portanto, sem qualquer poder de interferência nas
transformações deste cenário. Assim, as subjetividades
nesse regime têm duas opções: serem criadoras, mas para
se converter em matéria-prima de identidades prêt-àporter, ou serem suas passivas consumidoras. Fora disso,
as invenções da vida tendem a não ter qualquer sentido
ou valor.
Exploração invisível de um bem invisível, a vida, é
igualmente no invisível que deverão operar as artimanhas
para combatê-la. A resistência, hoje, tende a não mais se
situar por oposição à realidade vigente, numa suposta realidade paralela; seu alvo agora é o princípio que norteia o
destino da criação, já que, como visto, esta tornou-se uma
das principais – senão a principal – matérias-primas do
modo de produção atual. O desafio está em enfrentar a
ambigüidade dessa estratégia contemporânea do capitalismo, colocar-se em seu próprio âmago, associando-se
ao investimento do capitalismo na potência criadora, mas
negociando para manter a vida como princípio ético
organizador. Este é um desafio que se coloca atualmente
em todos os meios, com problemas específicos em cada
um deles.
A arte é um meio no qual tal estratégia incide com especial vigor, pois constitui um manancial privilegiado de
potência criadora, ativa na subjetividade do artista e materializada em sua obra. Artistas são por princípio anômalos: subjetividades vulneráveis aos movimentos da vida,
cuja obra é a cartografia singular dos estados sensíveis
que sua deambulação pelo mundo mobiliza. É a anomalia
dos artistas e de suas criações que faz girar o mercado da
arte. Porém, se, por um lado, isto intensifica as oportunidades de criação e circulação no mercado, por outro, a
obra, para entrar no circuito, tende a ser clonada, esvaziada do problema vital que ela cartografou. Igualmente
clonada tende a ser a subjetividade do artista, esvaziada
de sua singularidade em processo e transformada em identidade, de preferência glamurizada. Juntas, obra e subjetividade traficadas, formam o pacote a ser veiculado pela
mídia e vendido no mercado da arte, cujo valor será determinado por seu poder de sedução. Se atingir um valor
alto, poderá ser ainda vendido em outros mercados – como
é o caso da moda – para agregar valor de glamour cultural
à marca que o comprar. Ao artista não clonado restam,
em geral, poucas saídas para fazer circular sua obra. O
destino de muitos é trabalhar nos departamentos de criação das agências que produzem as identidades prêt-àporter: design, publicidade, etc. É no meio da arte que
este capitalismo renovado irá encontrar os artífices de suas
clonagens.
Em função dessa política específica de separação entre arte e vida, própria do contemporâneo, a utopia de
religá-las continua na ordem do dia; mas esta questão, que
atravessa toda a história da arte moderna, recoloca-se hoje
em novos termos. É exatamente neste ponto que encontramos Tunga e suas “instaurações”, 2 que compreendem
um dispositivo singular que, com sagacidade e humor, se
instala no âmago da ambigüidade do capitalismo contemporâneo e, de dentro dele, o artista problematiza e negocia com sua nova modalidade de relação com a cultura.
Esta estratégia mantém viva a função político-poética da
arte e impede que o vetor perverso do capitalismo tome
conta da cena, reduzindo a arte à mera fonte de mais-valia e esvaziando-a por completo de sua função.
Embora o nome “instauração” seja uma invenção recente do artista, a proposta que a designa encontra-se em
sua obra desde os primórdios.3 É a possibilidade de nomeála que surge certamente depois de um determinado ponto
de sua trajetória, em que o procedimento se refina e se
radicaliza, ganhando uma explicitação maior.4 É quando
passam a acontecer mais sistematicamente as séries de
instaurações em que os objetos, materiais, questões, personagens e elementos com os quais a obra se cria não ape-
4
DESPACHOS NO MUSEU:
SABE-SE LÁ O QUE VAI ACONTECER...
do limbo e volta a pulsar. Anarquiza-se a cartografia da
avenida: instalados ali inteiramente à vontade, eles ganham
uma existência na paisagem, agora não mais passível de
ser ignorada: o espectador/transeunte é obrigado a vê-los,
e a relação entre eles não pode mais ser denegada. A força do resultado formal, tanto na escolha dos objetos e
corpos quanto em sua disposição na avenida, é inseparável do sucesso da problematização que a obra opera, seu
efeito disruptivo.
Já em Tereza, Tunga trabalhará com um grupo de semteto. O nome da instauração vem de uma conhecida prática dos presidiários que consiste em usar os cobertores
disponíveis para fazer tranças de vários metros com as
quais tentam fugir da prisão. Os sem-teto deverão fazer
“terezas” que, neste caso, servirão para fugir do museu
ou galeria onde a instauração se faz. Como pontua o próprio artista, a obra aqui é, ao mesmo tempo, individual e
coletiva; escultura e instrumento de fuga do espaço da arte;
instauração de uma ligação entre o espaço do museu e o
espaço da rua onde vivem os sem-teto. Mais uma vez, instaura-se uma confusão no mapa dominante, ao qual estes
personagens não estavam incorporados, como os office
boys Cem Terra.
Em várias vezes que realizou tanto Cem Terra como
Tereza, Tunga foi obrigado a utilizar figurantes classe D
para fazer os papéis de office boys ou presidiários. A razão alegada foi a exigência de leis trabalhistas que protegem os atores, mas talvez a razão implícita, mais decisiva, tenha sido o pavor provocado pela idéia de os espaços
institucionais da arte serem ocupados por esta “corja de
marginais”. De qualquer modo, a estratégia não perde seu
vigor, pois o que são tais figurantes senão desempregados que desempenham papéis de quem não teve oportunidade de aprender coisa alguma, e só cumpre funções
inespecíficas tanto no palco como na vida. Eles pertencem à mesma população que office boys, sem-terra e semteto, adultos ou meninos – todos eles figurantes classe D
deste mundo em que vivemos. 6 Continua portanto sendo
no mesmo meio que o trabalho instaura um deslocamento
crítico.
Em todas estas instaurações, reativa-se a função poético-política da arte, produz-se uma resistência à tentativa
de pervertê-la: a obra volta a ser problematizadora do meio
onde ela se faz. Na contramão do sistema que ou reconhece modos de fazer território para cloná-los, ou marginaliza os inclonáveis, Tunga cria para estes modos de
subjetivação um espaço de visibilidade onde eles atuam
ao vivo, protagonistas de si mesmos, com seu próprio elen-
nas são extraídos do próprio meio onde a instauração se
faz, mas, o que é mais significativo, muitas vezes são componentes do modo de fazer território no meio em questão.
Além disso, os universos escolhidos são não apenas os
mais distantes do universo da arte, mas principalmente
aqueles em que o vetor perverso do modo de produção
dominante atinge seus extremos.
Numa ponta, office boys, figurantes classe D, desempregados, sem-teto, sem-terra, ex-presidiários e, mais recentemente, meninos que já viveram na rua,5 ou seja, as
sobras do sistema, aqueles que, não podendo ser nem
matriz de clone, nem seu consumidor, não chegam sequer
a entrar no circuito e ficam vagando pelo limbo. Na outra
ponta, top-models, as mais radicalmente reduzidas a suporte de identidade prêt-à-porter, adolescentes cujo maior
desejo é prestar-se à clonagem, assim como consumir os
clones de si mesmas, a tal ponto que, quando acaba a adolescência e são expelidas deste mercado, é comum sua
subjetividade esvaziada cair em depressão.
Assim, os protagonistas que Tunga elege para suas instaurações são aqueles que ficam fora do campo de visibilidade e aqueles que, ao contrário, ocupam toda a extensão do campo e que são eles mesmos pura imagem: os
totalmente excluídos e os totalmente incluídos – duas formas de empobrecimento da vida enquanto potência criadora. Miséria material e social de uns; miséria espiritual e
subjetiva de outros. O que acontece quando estas figuras
tornam-se personagens de si mesmos no cenário da arte?
Examinemos algumas instaurações de Tunga.
Convidado pelo Instituto Itaú Cultural para propor uma
obra na avenida Paulista, Tunga decide trabalhar com office
boys, numa instauração que ele chamará de Cem Terra.
Office boys transitam pela avenida durante todo o horário
do expediente, pois são eles os mensageiros não-eletrônicos entre os escritórios de luxo das corporações que substituíram as mansões dos barões do café e a elegante avenida e outras áreas da cidade. No entanto, é como se não
pertencessem à paisagem oficial, que se interpõe entre o
olho e a realidade, como um filtro que impede de enxergálos e os transforma em “sem-terra”. Quando Tunga leva
uma centena deles a ocupar um quarteirão inteiro da avenida, o que se instaura ali é uma terra que eles criam a seu
modo, com a cultura de seus gestos, suas marmitas, as redes
onde descansam seus corpos nordestinos, sua facilidade
em montar barraca em qualquer lugar a qualquer hora,
habituados que estão a nomadizar pela cidade. É a instauração deste mundo que se fará aqui obra de arte. O nada
daquelas vidas supostamente inexistentes reanima-se, sai
5
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 15(3) 2001
co de ferramentas e materiais de construção de território.
Os clonáveis, como é o caso das top-models, vivem na
cena o movimento contrário àquele que os converte em
clichês: a instauração parte exatamente de sua imagem
clonada, no próprio meio em que é lançada ao mercado, o
desfile de moda, mas para tentar liberar a vida que ficou
ali aprisionada. Os não-clonáveis, sobras tornadas invisíveis, como office boys, sem-teto, presidiários e figurantes
de classe D, saem dos bueiros da marginalidade e ganham
a cena. Embaralham-se as cartas, redistribuem-se os sujeitos no campo de visão, desautoriza-se a cartografia oficial estabelecida pelo capital como princípio norteador.
Neste contexto, pode-se problematizar a instauração
Salitre + Enxofre + Carvão, que Tunga propôs para a
parceria entre A Quietude da Terra II e o Projeto Axé. 7 O
objetivo era criar um cotidiano de convívio entre um certo tipo de artistas, de diferentes origens, e garotos ex-habitantes das ruas de Salvador que, inseridos no Projeto
Axé, tentam libertar-se do confinamento na marginalidade,
tendo na arte uma de suas principais armas. A que vem
esta curiosa iniciativa? É verdade que entre crianças e
artistas há ressonâncias: ambos tendem a explorar o meio
onde vivem, ensaiar conexões e desconexões, experimentar devires. É nessa lúdica irreverência que tomam corpo
seus territórios de existência – brincadeira, num caso, obra,
no outro –, subjetividades em elaboração, indissociáveis
do meio. Criança e artista seriam, portanto, os modos de
subjetivação que mais se distanciam da situação reinante
de torpor do sensível e nivelamento da percepção e que
mais se aproximam da anomalia.
Entretanto, a realidade está longe disso: exatamente por
sua anomalia, artistas e crianças interessam especialmente ao capitalismo renovado. Se o artista, como visto, é
incontestavelmente atraente para a indústria da clonagem,
na criança, o exercício da capacidade poética tende a ser
inibido pela infantilização, produto das forças aliadas do
familialismo, da pedagogização e do mercado que fazem
dela um consumidor mirim.
Ora, crianças que vivem ou viveram na rua talvez sejam as que mais escapem à infantilização, pois sua própria condição as obriga a explorar e cartografar os meios
por onde circulam, de modo a improvisar territórios de
existência. São pequenas comunidades autogeridas, que
se formam e se dissolvem na velocidade de seu nomadismo
forçado pelos imprevisíveis remansos da vida urbana. Mas
atenção, seria certamente ingênuo idealizar essas crianças: confinado à cloaca da cidade, o exercício desta sua
potência não desemboca em nada além da sobrevivência,
isto quando bem-sucedido, o que já é muito em face do
destino de morte violenta e prematura que ameaça aquelas existências sem-valia.
É verdade que o equívoco mais recorrente em relação
a essas crianças não é sua idealização, mas sua diabolização ou vitimização. Quando diabolizadas, o desejo é
de eliminá-las do cenário, e o caso é de polícia ou de justiça; quando vitimizadas, o desejo é de salvá-las, e o caso
fica então entre à psicologia, à pedagogia e à arte. É evidente a necessidade de serem criadas, para estas crianças,
oportunidades de sair da marginalidade e, portanto, é incontestável o valor de iniciativas com esta pretensão, seja
da psicologia, da pedagogia, da arte, ou de qualquer tipo
de associação entre elas. O perigo é de, ao invés de reconhecerem o modo próprio de subjetivação daquelas crianças em sua positividade, para dele extrair uma potência
em sua inserção, tais iniciativas as enxerguem como vítimas que deverão ser salvas através do modelo da criança
infantilizada, que tentam projetar sobre elas. Quando isto
prevalece, um efeito paradoxal pode resultar da generosidade que move esse tipo de prática: não encontrando ressonância, a força poética, especialmente viva naquelas
existências, corre o risco de minguar. Neste caso, em vez
de combatida, a inibição dessa força estará sendo reiterada, agora não mais pela exclusão social, mas pela
domesticação, que pretende integrar essas crianças ao mundo dos clones infantis; no lugar de anômalos, lhes caberá
então o destino de cidadãos normais, provavelmente com
menos chances de “sucesso” – isto quando não caírem na
categoria de anormais e em sua conseqüente patologização.
Como criar meios para favorecer a inserção dessas
crianças sem que elas percam sua preciosa anomalia? O
que a arte tem a ver com isto? Estas e outras perguntas
envolvem tal complexidade, que a única coisa que se pode
pretender é pensá-las o mais precisamente possível, e experimentar estratégias que as problematizem o mais fortemente que se conseguir.
A proposta de Tunga vai nesta direção: encontrar procedimentos que façam do encontro com aqueles garotos a
ocasião, por mais fugaz e incerta, de driblar, na alma da
criança que já viveu na rua, mas igualmente na alma do
artista, a faceta perversa do sistema econômico vigente
que tende a cercear sua potência criadora, excluindo um e
clonando o outro. Para isso o artista terá que contar com a
cumplicidade de uma sintonia efetiva com aquelas crianças. É na anomalia, comum aos dois, que ele irá encontrar
esta cumplicidade; mais precisamente, na anomalia que
busca afirmar-se enquanto tal sem ser clonada, nem mar-
6
DESPACHOS NO MUSEU:
ginalizada. De fato, há provavelmente sintonia entre uma
criança que já viveu na rua e está em luta contra sua
marginalização, mas tentando através da arte não perder
sua singularidade, e um artista que se associa ao sistema
da arte que lhe oferece oportunidades de realização, mas
não perde a força problematizadora de seu trabalho de
criação, artista que resiste, portanto, à cafetinagem do sistema, sem cair no man’s land da marginalidade – sem
dúvida, o caso de Tunga. De todo modo, há provavelmente
mais sintonia entre este tipo de criança e este tipo de artista do que entre uma criança que já viveu na rua e a
maioria das crianças infantilizadas que vivem em família.
Do mesmo modo, há provavelmente mais sintonia entre
este tipo de artista e este tipo de criança, do que entre ele
e artistas que se submetem sem crítica a tal cafetinagem,
e até a desejam, chegando inclusive a conduzir a criação
para tornar-se seu objeto (Gil, 1998); ou entre este tipo
de artista e aqueles que se mantêm fora da jogada, remanescentes tardios de um romantismo supostamente heróico. Atualizar esta sintonia virtual entre anômalos, para criar
um campo de forças que os sustente, que lhes permita resistir à cafetinagem de sua força criadora e que libere
devires nos dois campos, ainda que infinitesimais, é o
desafio que Tunga parece propor-se a enfrentar. O quanto isso será possível não dá para prever. Efeitos deste tipo
dependem de uma trama complexa e sutil de fatores; não
há como planejá-los; eles acontecem ou não.
Tunga apostará todas suas fichas na potência do ritmo
na cultura baiana, que ele pretende convocar em sua instauração Salitre + Enxofre + Carvão. Este ritmo é uma
importante força no processo de subjetivação dos baianos
que, por sua exuberância, tornou-se de uns anos para cá a
menina dos olhos da indústria fonográfica, a qual extrai
daí matéria-prima para a fabricação de um de seus mais
rentáveis produtos, seguindo a lógica do capitalismo contemporâneo anteriormente mencionada. Em sua ambigüidade imanente, esta estratégia tem ampliado espantosamente as oportunidades para os músicos baianos; mas, por
outro lado, a tendência é o ritmo ser clonado e destituído
de sua vitalidade, para ser devolvido ao mercado como
um conjunto limitado de trejeitos estereotipados, mímica
empobrecida que forma a identidade prêt-à-porter “estilo baiano”: carcaça de um corpo reduzido a clichês de sexualidade, que perdeu o erotismo e a potência poética de
sonhar mundos. A vertente perversa se completa com o
consumo deste produto pelo próprio baiano de quem se
extraiu a seiva para produzi-lo. O “baiano” que vem conquistando seu lugar no mercado multicultural do Brasil e
SABE-SE LÁ O QUE VAI ACONTECER...
do mundo globalizado tende a ser, em muitos casos, esta
imitação servil de seu clone.
“Axé music” é o nome de um dos produtos desta
vampirização do “axé” – palavra de origem iorubá que
designa a energia sagrada dos orixás, poder vital presente
em todos os seres e todas as coisas, força criadora, e que
neste sentido mais amplo foi incorporada à língua brasileira. A indústria fonográfica, em seu vetor perverso, tem
o cínico requinte de usar o próprio nome da força que
parasitou – o axé –, para batizar seu clone estéril que ela
fabrica e comercializa. Porém, o ritmo naquela cultura é
um manancial tão rico que, apesar do sucesso desta maquinação sinistra, seu axé não se esgota, sua força de
existencialização mantém-se viva, a criação não pára.
A instauração terá início com os garotos reunidos numa
área lateral da exposição, como numa concentração de
escola, formando um grupo compacto e fazendo uma certa algazarra. Com um aceno de Tunga, a arruaça se generalizará sob a forma de um bloco que desfilará arrastando
e rolando os tambores pelo chão, armando uma verdadeira hecatombe musical. Aos poucos, cada um irá se desgarrando do grupo, sozinho ou em par, com a tarefa de
encontrar seu lugar naquele espaço. Uma vez instalado,
irá descobrir as substâncias e utensílios domésticos que
Tunga colocou a seu dispor.8 Com curiosidade investigativa, deverá então improvisar um uso musical daqueles apetrechos, com a única ressalva de evitar qualquer
referência conhecida.
Tunga fará do museu o espaço de um ritual, que oficiará a abertura da exposição, transformando o museu num
híbrido de arte e terreiro. Ao pedir aos garotos que busquem um a um seu lugar naquele espaço, é o traçado de
seus corpos que demarcará ritualmente os territórios, criando uma nova paisagem na geografia tanto do museu quanto de suas existências. Ao pedir em seguida, que uma vez
instalados, pesquisem os utensílios de seu cotidiano e façam com eles um som desconhecido, também os objetos
estarão adquirindo uma função ritualística. O tambor é o
objeto emblemático por excelência do tráfico do ritmo
efetuado pela indústria fonográfica, a qual o faz transitar
de instrumento ritualístico e criador, para matriz de
clonagem e sua mimese. Não por acaso, aqui é exatamente o tambor que será o agente do caminho de volta, ou
mais precisamente do caminho de ida, agente da resistência. Com os tambores se arrastando e rolando pelo chão,
produzindo aquela balbúrdia sonora e, depois, no encontro dos tambores com os utensílios domésticos transformados em instrumentos improvisados, gerando aquele som
7
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 15(3) 2001
estranho, um quebra-quebra ou arrastão sonoros se anunciarão eventualmente na memória. Porém, na verdade, se
algo estará se quebrando, por um breve momento, é o invisível jogo de cartas marcadas da relação entre o museu
e seu fora, levando de roldão a marginalização daqueles
meninos, a clonagem de seu ritmo e da força do artista.
Por um breve momento, talvez se quebre a tendência de
mimetizar o clone de si mesmo que uma cena como esta,
de grande visibilidade e prestígio, poderia estar mobilizando no artista, como nos garotos; e, ao invés disso, se
reative, no artista, a potência crítica da arte e, nos garotos, a potência do ritmo como agente de construção de
território. Um quebra-quebra invisível, macumba para os
novos tempos.
O caráter ritual das instaurações de Tunga situa-se no
rastro do caminho aberto na arte por Lygia Clark, para
quem o artista contemporâneo é o propositor de “um rito
sem mito”. De fato não haverá aqui nem rito, nem mito,
estabelecidos a priori. O ritual será comandado pela realidade sensível daqueles garotos, convocada em sua alma
e encarnada em seus gestos, na ginga refinada de seus
corpos e em seu modo de explorar os objetos conhecidos
naquele universo desconhecido, tateando o estranhamento que esta ambigüidade mobiliza. O mito se engendrará
do próprio ritual, mapa imanente da singularidade daquelas vidas. É esta liberdade de cartografar, driblando a
clonagem de suas cartografias, que estará se inscrevendo
em sua alma, como um mito apropriado para o contemporâneo, na contracorrente da eternidade de mitos absolutizados do passado, mas também do valor genérico dos
mitos descartáveis do presente.
Terminada a instauração, espera-se que o acontecimento
não se pacifique e que sua memória permaneça vibrando
durante todo o tempo da exposição, nos objetos que compõem a instalação: restos do ritual que se deu naquele recinto, como ficam restos de despachos na natureza ou em
encruzilhadas das cidades, esperando que o recado chegue aos Orixás. Contaminada pelo meio onde se produziu
desta vez, a obra de arte revela-se como despacho, portadora de um poder mágico de interferência energética no
ambiente, para nele combater as forças reativas e liberar
a criação. Interferência imperceptível, mas efetiva. E, como
todo despacho, fica na obra gravada a memória desta experiência: a afirmação da força político-poética na prática artística e a afirmação da força do ritmo de criança não
infantilizada na subjetividade daqueles meninos – memória de uma linha de desterritorialização que os arrastou
ambos, o que só foi possível por se tratar de um encontro
entre as forças da anomalia em cada um deles, e assim
mesmo por um breve instante. Não dá para saber se esta
memória estará reverberando naqueles objetos, se os
Orixás a terão ouvido e abençoado, nem por quanto tempo permanecerá no ar depois que a instalação tiver sido
desmontada.
“Não há ato de criação que não pegue a revés, ou não
passe por uma linha liberada”, escrevem Deleuze e Guattari
(1997). Promover algo que se pareça “com uma atmosfera ambiente, onde só a vida pode engendrar-se” (Nietzsche
apud Deleuze e Guattari, 1997:363), ainda que fugazmente,
é o que Tunga deseja com seus despachos nos museus. E,
mesmo assim, como ele próprio prudentemente adverte,
“sabe-se lá o que vai acontecer...”.
NOTAS
E-mail da autora: [email protected]
Conferência apresentada em The Deleuzian Age, Californian College of Arts and
Crafts (São Francisco, 2000).
1. Distinção proposta por Canguilhem (s.d.:81-82), e retomada por Deleuze e
Guattari (1997).
2. Antonio Mourão, conhecido por Tunga, que nasceu em Palmares-PE, em 1952,
é um artista reconhecido não só no país, mas com trabalhos que circulam no cenário internacional. “Instauração” é o nome dado por Tunga para uma estratégia
recorrente em seu trabalho, consiste em incorporar à obra pessoas estranhas ao
mundo da arte, protagonistas de uma espécie de performance, seguindo um ritual
com objetos e materiais sugeridos pelo artista; restos da performance compõem
uma instalação que permanece exposta. O conjunto formado pela performance +
processo + instalação “instaura” um mundo.
3. Já em Camera Incantate (Palazzo Reale, Milão, 1980), obra em que Tunga
trabalha com vários tipos de luz, o artista incorpora a performance de dois albinos
e dois negros, o claro e o escuro. O albino fica dizendo que veio fazer uma “instalação” elétrica e que esse negócio de arte não lhe interessa. Depois desta primeira experiência, virão instaurações que se repetirão em diversos contextos, diferenciando-se a cada vez, formando séries, como acontece com suas instalações.
São elas: Xifópagas Capilares (três vezes, em 1985, e três vezes, em 1989); Sero
te Amavi (três vezes, em 1992 e uma, em 1995); Caro Amigo (1996); Passeio de
Vanguarda em Veneza ou Debaixo do meu Chapéu (abertura da Bienal de Veneza,
1995 e retorna incorporada à Inside Out, Upside Down, abertura da X Documenta, Kassel, 1997). As séries de instaurações são sempre intercaladas com séries
de desenhos, esculturas, ou instalações sem performance. Além disso os vários
tipos de séries se compõem entre si, resultando em outras tantas obras. Por exemplo: Xifópagas Capilares com a instalação Lagarte/Lizart/Lesarte (Congresso
de Psicanálise, Rio de Janeiro,1985).
4. Com Espasmos Aspiratórios Ansiosos (AIS ou Anxious Inhaled Startles; Rio
de Janeiro, MAM, 1996); Experiência de Física Sutil (An Experiment on Keen
and Subtle Physics) ou Avant-Garde Walk in Soho (Nova York, 1996), que retorna
com outro nome em 1996 e novamente em 1997, incorporada à Inside Out, Upside
Down.
5. É o caso das instaurações: Cem Terra, São Paulo, 1997, que volta no Reina
Sofia, Madrid, 2001; Tereza, entrega do prêmio Johnny Walker, Museu de Belas
Artes, Rio de Janeiro, 1998, que retorna no mesmo ano na galeria Cristopher Grime,
Los Angeles, em 1999, no Centro Cultural Ricoleta, Buenos Aires, e em 2000, na
Bienal da Coréia e na Bienal de Lyon; e, por último, a proposta para The Quiet in
the Land II, Salvador, 2000, aqui privilegiada.
6. A esse respeito, são significativas as anedotas em torno de Tereza. Quando a
instauração foi feita pela primeira vez, com figurantes recrutados no Rio de Janeiro, muitos deles já haviam passado por registro policial, talvez a maioria deles
fosse composta de ex-presidiários. Quando Tunga lhes ensinou como fazer uma
8
DESPACHOS NO MUSEU:
tereza, foi motivo de gargalhada geral. Na terceira vez que a instauração foi feita,
em Buenos Aires, os protagonistas foram sem-teto recrutados nas ruas por um
grupo de jovens anarquo-surrealistas. A notícia de uma vaga de emprego, tão
rara para aquela população, espalhou-se muito rapidamente pela cidade, provocando uma fila enorme de candidatos no dia da seleção.
SABE-SE LÁ O QUE VAI ACONTECER...
em barracas de feira, lamparinas, fiofós, agulhas e fios. Acrescentará, ainda, objetos de algodão – rolos e cotonetes –, mas também limpadores de copo e garrafa,
coadores de café, etc. E mais outros tantos apetrechos: luvas de borracha de operário, rabinhos de coelho, etc. Entre as substâncias, ceras, farinhas e ingredientes
do gênero, e três bacias contendo salitre, enxofre e carvão, respectivamente.
7. A Quietude da Terra II é um projeto criado por France Morin (fundadora da
revista de arte canadense Parachute e ex-curadora do New Museum of
Contemporary Art de Nova York). A curadora convidou 17 artistas contemporâneos de diferentes países, para que cada um desenvolvesse, durante um mês e
meio, um projeto com grupos de crianças que já viveram nas ruas de Salvador. O
conjunto dos trabalhos teve sete meses de duração, entre 1999 e 2000. Uma exposição com as obras resultantes dos 17 projetos foi organizada no MAM da Bahia,
em julho de 2000, acompanhada de um livro/catálogo bilíngüe. O acesso às crianças se deu através de uma parceria com o Projeto Axé, instituição baiana que há
vários anos vem desenvolvendo um trabalho pedagógico e artístico com meninos
que vivem na rua.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CANGUILHEM, G. Le normal et le Pathologiqe. s.l., PUF, s.d.
DELEUZE, G. e GUATTARI, F. “Percepto, afecto e conceito”. O que é a filosofia? São Paulo, Ed. 34, 1992 (Tradução Bento Prado Jr. e Alberto Alonso
Muñoz).
_________ . “1730 – Devir-intenso, devir-animal, devir-imperceptível…”. Mil
Platôs. São Paulo, Ed. 34, v.4, 1997 (Tradução Suely Rolnik).
8. Entre os objetos, Tunga privilegia os de folha de flandres, utensílios artesanais
que imitam aqueles de alumínio fabricados industrialmente e recriam, à sua maneira no dia-a-dia das casas mais humildes, um certo cenário das casas abastadas
– funis, raladores, assadeiras, batedores de clara, pás de pegar farinha ou açúcar
GIL, J. “A confusão como conceito”. Os anos 80. Lisboa, Culturgest, 1998.
ROLNIK, S. “Toxicômanos de identidade”. Conferência na X Documenta. Kassel,
1997.
9
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 15(3) 2001
CULTURA AUDIOVISUAL E
ARTE CONTEMPORÂNEA
JOSÉ MARIO ORTIZ RAMOS
Professor do Departamento de Sociologia do IFCH da Unicamp
MARIA LUCIA BUENO
Professora do Mestrado em Comunicação da Universidade Anhembi Morumbi
Resumo: Tendo como fio condutor a cultura audiovisual e as artes plásticas contemporâneas, procurou-se enfocar
a reorganização da produção cultural no cenário globalizado, considerando particularmente a participação de
dois fatores: as políticas culturais e as pesquisas acadêmicas.
Palavras-chave: cultura e globalização; cinema e televisão; arte contemporânea.
de mais de 16 bilhões de francos. 1 Ultimamente, se em
países onde este mercado já está consolidado – como os
Estados Unidos ou mesmo a França – alguns setores começam a colocar em questão o grande afluxo de capitais
consumido pelo setor, trata-se de uma outra questão. Para
a reflexão neste artigo, o que importa reter é que, de diferentes formas, com maior ou menor participação, o Estado aparece como parceiro na organização do campo da
economia da cultura no contexto globalizado.
Foi nos Estados Unidos, na década de 30, durante a
depressão econômica, que ocorreu o primeiro surto de
expansão da cultura e das artes, particularmente da indústria cultural, que, apesar de ser um fenômeno norte-americano, adquiriu proporções internacionais. Em menor
escala a questão entrou também para a pauta dos projetos
do Estado e do mercado de parte dos países do mundo
ocidental. A explosão da indústria cinematográfica em
Hollywood e a emergência dos museus de arte moderna
em Nova York e nas principais cidades dos Estados Unidos estão entre as expressões mais significativas deste processo no cenário norte-americano.
No pós-guerra, principalmente depois dos anos 60, esse
processo de expansão da cultura acentuou-se, levando inclusive a uma redefinição do papel da produção cultural na sociedade contemporânea, como também a uma reorganização das formas de gestão e organização dos
domínios da cultura. Na base dessas transformações, pode-
o final do século XX, a produção cultural transformou-se num dos principais domínios da economia mundializada, sem que este fenômeno tenha derivado um estado de degradação cultural generalizada, conforme os prognósticos mais pessimistas de
Theodor Adorno. Porém, o processo de consolidação da
cultura em setor econômico, após os anos 60, só veio a
ser um empreendimento bem-sucedido, nos países ricos,
graças à atuação conjunta do mercado com o Estado
(Pommerehne e Frey, 1993). A gestão cultural do Estado
na sociedade contemporânea ocorre de forma diversa dos
momentos históricos anteriores, quando assumia um caráter intervencionista, procurando orientar e conduzir a
organização da produção. Atualmente sua ação se mantém restrita ao papel de parceiro da cultura, fornecendo
subsídios e suporte, sem interferir diretamente sobre os
conteúdos.
A consolidação da cultura como um campo econômico
foi um trabalho que envolveu políticas culturais, alterações nas legislações, criação de novos mecanismos fiscais e, sobretudo, aplicação de um volume de capitais
considerável. Um caso exemplar é o da evolução do orçamento do Ministério da Cultura francês desde a gestão de
Andre Malraux em 1968, quando girava em torno de 0,38%
do PIB, até a atual, de Catherine Tasca, que em 2001 atingiu a cifra de 0,98%, representando a mais alta dotação
para a cultura da história do país, envolvendo um capital
N
10
CULTURA AUDIOVISUAL E ARTE CONTEMPORÂNEA
se mencionar o peso considerável de pelo menos dois fatores. O desenvolvimento do que Armand Mattelart (1994)
designa sistema de comunicação mundo construiu uma
nova base material, a partir da qual a vida, em diferentes
partes do planeta, passa a evoluir num movimento de conexão crescente, desempenhando um papel determinante
na ampliação da esfera da cultura.
Aliado a esse fenômeno, no âmbito da cultura contemporânea, houve uma multiplicação dos campos de produção em diferentes regiões do planeta, que redundou na
desterritorialização da indústria cultural. Aquilo que até
então era um fenômeno norte-americano com expressão
internacional assumiu uma diversidade de configurações,
que começaram a entrar em confluências e a se entrelaçar, com o desenvolvimento do sistema de comunicação,
formando os fluxos que constituem o espaço cultural globalizado em que vivemos. O sistema de fluxos impõe uma
dinâmica nova à realidade contemporânea e, através dele,
os componentes se misturam aleatoriamente numa seqüência sem princípio e nem fim, que está em constante transformação. Alguns conteúdos adquirem mais visibilidade
– seja por estarem ligados a tradições fortes, seja por contarem com um respaldo sólido da mídia, como é o caso
das produções cinematográficas hollywoodianas que combinam as duas condições.
Em decorrência da influência desses dois fatores – o
desenvolvimento do sistema de comunicação mundo e a
desterritorialização da indústria cultural – tem-se uma
expansão sem precedentes do universo da cultura, que
termina transformando o setor numa das principais economias da sociedade globalizada. Essa mudança quantitativa implicou outras transformações de caráter qualitativo, trazendo redefinições ao papel da cultura num
contexto social que se globaliza marcado por um crescimento acelerado da população do mundo.
Uma das mudanças qualitativas, relacionada com a
questão da recepção, diz respeito ao fato de a arte e a cultura, após a década de 60, terem se transformado de simples reduto de lazer numa das principais esferas de construção de identidade. Andreas Huyssen (1997:247) observa
que, “sobretudo nas culturas ou subculturas juvenis, as
identidades se adotam provisoriamente e se articulam
mediante pautas de vida e complicados códigos subculturais. A atividade cultural em geral não é mais encarada como
algo que ofereça descanso e compensação (..) O crescimento e a proliferação da atividade cultural são melhor
interpretados como um agente da modernização, representante de uma nova etapa da sociedade de consumo.”
Outra mudança referente à esfera da produção cultural
está intimamente relacionada com os redirecionamentos
da função da cultura no âmbito da recepção. Desde o final da Segunda Guerra Mundial, a produção cultural e
artística não pode mais ser encarada apenas do ponto de
vista do entretenimento ou do prazer estético. A partir de
então, fica patente uma das principais vocações da cultura e da arte moderna desde o final do século XIX, que é a
de se tornarem espaços que trazem à tona problemáticas
importantes do mundo contemporâneo, que podem ser
tanto de ordem local como universal, discorrendo sobre
temáticas muito variadas que abarcam tanto a esfera pública quanto o domínio da intimidade.
No final dos anos 70, teve início uma nova revolução
no domínio da indústria cultural, desta vez no âmbito da
tecnologia. Um novo aparato tecnológico, até então de
difícil manipulação e de alto custo, tornou-se acessível ao
uso doméstico, introduzindo transformações nas relações
das pessoas com o universo audiovisual. Esse fenômeno
é responsável por uma nova reorientação no mundo da cultura. Os aparelhos mais econômicos e de fácil manipulação transformam todo receptor num produtor virtual. Com
isso, tem-se uma nova forma de desterritorialização da
produção audiovisual: para além das fronteiras dos grandes estúdios e das grandes gravadoras. Nos anos 80 e 90,
houve uma ampliação considerável do número de produtores que conseguiram entrar no mercado utilizando a tecnologia doméstica. O campo das artes plásticas também
foi afetado, com os artistas incorporando em suas produções os recursos audiovisuais, modificando o próprio universo material do artista plástico.
Outra mudança mais radical, ainda associada à tecnologia, diz respeito ao próprio processo de recepção, que
passou por grandes transformações com o uso corrente de
aparelhos como o videocassete, as câmeras de vídeo e,
mais recentemente, os microcomputadores. Manuel
Castells (2000) observa que, a partir de então, a audiência deixou de ser objeto passivo para se tornar sujeito interativo. As pessoas “começaram a filmar seus eventos,
de férias a comemorações familiares, assim produzindo
as próprias imagens, além do álbum fotográfico. Apesar
de todos os limites dessa autoprodução de imagens, tal
prática realmente modificou o fluxo de mão única das
imagens e reintegrou a experiência de vida e a tela”
(Castells, 2000:363). Conseqüentemente, houve uma
complexificação do fluxo e uma intensificação da segmentação da recepção no domínio da cultura de massa. Seria
o que Nestor Garcia Canclini (1997:304) designa como
11
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 15(3) 2001
descolecionamento: “As culturas já não se agrupam mais
em grupos fixos e estáveis (...) Agora as coleções renovam sua composição e sua hierarquia com as modas,
entrecruzam-se o tempo todo, e, ainda por cima, cada usuário pode fazer sua própria coleção. As tecnologias de reprodução permitem a cada um montar em sua casa um
repertório de discos e fitas que combinam o culto com o
popular, incluindo aqueles que já fazem isso na estrutura
das obras.”
Com a globalização, as imagens e os conteúdos culturais passam a circular e interagir em escala planetária,
transformando o espaço da cultura de massa (compreendida como ampliação do público) e da indústria cultural
num domínio da diversidade e da heterogeneidade, mesmo que elas ainda dependam de formatos e padrões para
serem veiculadas. No entanto, estes padrões vêm se revelado cada vez mais flexíveis, com um grande potencial
para incorporar as inovações.
A partir de então verificou-se – nos países ricos – um
aumento da atuação do Estado na área, fomentando o crescimento do setor cultural, sem deixá-lo inteiramente ao
sabor do mercado em globalização, procurando fornecer
respaldo aos núcleos de produção nacionais. Esta atuação do Estado, na maior parte dos países onde se concretizou, viabilizou-se embasada em extensas pesquisas no
setor, que levaram a uma expansão da sociologia da cultura, da comunicação, das artes e, posteriormente, dos
estudos econômicos aplicados a esses domínios.
O aumento deste campo de estudos nas últimas décadas se deu em decorrência de dois fatores. O primeiro
está ligado à ampliação do público, do mercado de bens
simbólicos e da importância do setor na sociedade, que o
transformou em alvo privilegiado dos pesquisadores. Este
crescimento sem precedentes da área levou, como já mencionado, a uma reorganização do mundo da cultura e das
artes, implicando também redefinições das formas de gestão pública e privada nesse domínio. Os novos desafios
derivados das mudanças, que abarcam desde a ampliação
e a segmentação do público, até a redefinição das fronteiras tradicionais – entre o alto e o baixo – que haviam configurado este universo, geraram uma série de pesquisas
acadêmicas formuladas a partir de demandas específicas
do setor, que se transformaram em base de informação para
as estratégias de atuação nesse campo.
O fenômeno acarretou duas transformações fundamentais. Através das políticas estatais, houve um crescimento
da participação dos intelectuais no desenvolvimento do
campo cultural, exemplificando bem o que Anthony
Giddens (1990) designa como o papel reflexivo de ciências, tais como a sociologia e a economia, na constituição
da sociedade contemporânea. A segunda transformação
importante foi a reestruturação, a partir de então, do debate intelectual em torno da questão da cultura e da comunicação. Até os anos 60 e 70, o campo intelectual, na
sua maior parte, atuava com uma autonomia considerável, se contrapondo ao campo empírico das pesquisas de
mercado. Nesse universo, disciplinas ligadas à estética e
à semiologia tendiam a dar o tom nos estudos. Com a ampliação das pesquisas acadêmicas geradas pelas demandas governamentais e privadas, desenvolveu-se uma nova
área, fundada na sociologia, na história e, posteriormente, na economia, que tem como principal objetivo mapear
os campos de produção e recepção, procurando identificar a dinâmica de seu funcionamento, apoiando-se em
extensas pesquisas empíricas. A propósito, Bernard Miége
(1999:37) observa: “Na França as pesquisas em comunicação se orientaram desde cedo para o estudo das indústrias da cultura e da informação dentro de perspectivas
que misturam as aproximações econômicas e sociopolíticas, mesmo as geopolíticas, com a preocupação, apesar
das diferenças entre os autores, de ultrapassar visões muito
unilaterais como as da Escola de Frankfurt ou as análises
do Imperialismo cultural.”
Focando o caso francês, observa-se que, a partir dos
anos 70, houve uma multiplicação de institutos de pesquisa e instituições de fomento à produção cultural operando em estreita cooperação com o Estado (Pineau,
1999; Moulin, 1992; Domínguez e Morató, 1991). Um
exemplo é a constituição de um organismo como o La
Documentation Française, que centraliza as pesquisas
governamentais, contemplando uma gama ampla de setores (cultura, saúde, política internacional, etc.) e congregando, no interior de cada área, diferentes núcleos
de pesquisa. O curso destas pesquisas vem se desenvolvendo em consonância com as direções imprimidas
às políticas culturais.
No decorrer dos anos 70 e 80, por exemplo, as pesquisas no setor cultural de um modo geral contemplaram prioritariamente aspectos relacionados à produção e à criação. Na década de 90, houve um crescimento das pesquisas
de recepção. Esta mudança de rumo está associada a uma
alteração de orientação das políticas culturais, relacionada com a segmentação do público. Se até a gestão de Jack
Lang, no governo François Mitterrand, elas se concentravam no âmbito da criação cultural, atualmente a tendência é de, cada vez mais, canalizar os esforços para atrair
12
CULTURA AUDIOVISUAL E ARTE CONTEMPORÂNEA
No livro Cinema, Estado e lutas culturais, anos 50/
60/70 (Ortiz Ramos, 1983), é enfocado o início desse processo no Brasil, com a criação da Embrafilme, no final
dos anos 60, e seu desenvolvimento pleno na década de
70. O cinema brasileiro chegou a produzir 100 filmes em
1978 e ficou na faixa de 80 a 100 filmes nos anos 80, indo
à bancarrota com a chegada de Collor à Presidência do
país, que praticamente extinguiu o aparato de fomento
estatal. Na França, até hoje o Estado mantém apoio ao
cinema, que vem conseguindo, durante toda a década de
90, ocupar cerca de 30% a 40% do mercado, enfrentando
seu principal opositor que é, obviamente, os Estados Unidos (Documentation Française, 1998).
Na Europa presenciou-se – desde 1995, mas com mais
intensidade a partir de 1997 – uma verdadeira revolução
no campo da produção cinematográfica, através das televisões privadas, na tentativa de fazer frente às produtoras
norte-americanas, transformando-se nas principais agentes do cinema europeu contemporâneo. Itália, França,
Alemanha, Espanha e Reino Unido – nesta ordem – são
os pólos cinematográficos mais beneficiados por essa ação.
A parceria entre cinema e televisão na Europa não é nova.
Ela surgiu na década de 70, por uma determinação das
políticas culturais nacionais, visando a proteção das indústrias cinematográficas locais. No entanto, foi apenas
nas últimas duas décadas, através das cadeias privadas,
numa política de consolidação da indústria audiovisual
européia, que essa relação veio assumir grandes proporções, transformando a televisão numa parceira fundamental
do cinema. O canal + ( Plus) francês aparece como o mais
importante agente desse processo, tendo sido responsável pela realização de 108 produções cinematográficas,
em 1997, e 111, em 1998 (Le Monde, junho de 1999). Embora o parque cinematográfico europeu fique com a maior
fatia dos investimentos, a atuação do canal + é mais
desterritorializada, sendo que algumas produções brasileiras já vêm se beneficiando com ela. Um exemplo é o
filme dirigido por Walter Salles, “O primeiro dia”, que
foi uma produção da televisão francesa. Paralelamente, o
Estado francês, ancorado em instituições como o CNC
(Centre National de la Cinematographie), o INA (Institut
National de l’Audiovisuel) e o CSA ( Conseil Supérieur
de L’Audiovisuel), que atuam simultaneamente como núcleos de pesquisa e agências de fomento à produção, vem
desempenhando um papel fundamental no desenvolvimento da indústria cinematográfica francesa.
Boa parte dessa nova geração de pesquisadores pode
contar com recursos vultosos que lhes possibilitaram a
diferentes segmentos do público, concentrando uma parte substantiva dos recursos na construção da recepção
(Telerama, 2000b).
A seguir, a abordagem enfoca o tema a partir de dois
domínios específicos: a cultura audiovisual e a arte contemporânea, sendo que em ambos continua-se a privilegiar o contexto francês.
CULTURA AUDIOVISUAL
A produção audiovisual – o cinema e, particularmente, a televisão – é um caso exemplar e se constitui num
dos setores mais sólidos da economia da cultura. Com relação ao cinema, a sua expansão começou nos anos 30 nos
Estados Unidos, durante a recessão provocada pela queda
da bolsa em 1929. No final da década, a indústria cinematográfica já havia se transformado na 14a dos Estados Unidos em volume e na 11a em patrimônio, sendo que na ocasião existiam mais cinemas (15.115) do que bancos no país
(14.952).
Inicialmente o boom da indústria cinematográfica foi
um fenômeno identificado com os grandes estúdios de
Hollywood. Após o final da Segunda Guerra Mundial,
emergiram novos pólos cinematógráficos, em diferentes
países, que, apesar de apoiados em bases indústriais pouco sólidas, conseguiram um impacto cultural muito forte,
vindo a redirecionar não apenas os caminhos da produção e da linguagem cinematográficas, mas também o papel do cinema enquanto produção cultural no mundo contemporâneo. Podem ser citados como exemplares o cinema
neo-realista italiano, logo após a guerra, a nouvelle vague
francesa e o cinema novo no Brasil. A maior parte dos
governos não ficou insensível ao potencial cultural explosivo desses produtores emergentes, dando-se conta também que um movimento apoiado em bases culturais tão
frágeis não teria condições de ir adiante sem o respaldo
de subsídios do Estado.
Paralelamente, ocorreu um outro fenômeno, que foi a
expansão da indústria televisiva, com o preço dos aparelhos domésticos tornando-se cada dia mais acessível, configurando-se no novo campo audiovisual como uma
ameaça à indústria cinematográfica. Na França, desde o
início da década de 70, o Estado passou a intervir gradativamente no setor. Depois dos anos 80, com a expansão
das televisões comerciais francesas, multiplicaram-se os
núcleos de pesquisa em torno da questão, que passaram a
se constituir numa das bases da construção de um projeto
de políticas públicas na área.
13
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 15(3) 2001
produção de trabalhos que revolucionaram o campo de
estudos da cultura, porém, procurando sempre preservar
com relação à abordagem um enfoque crítico. Armand
Mattelart (1999:20-2) enfatiza que o objetivo de realizar
um balanço crítico atravessa todos os projetos na área do
audiovisual, sendo que a produção do Ministério da Pesquisa e da Tecnologia – envolvendo pesquisadores do
CNRS, das Universidades e do INA – é reveladora dessa
preocupação. Nessa geração desponta, entre os pioneiros
e como inovador, Michel de Certeau (1980), que, através
de seu trabalho tematizando as “artes de fazer”, redimensionou os estudos sobre recepção, retirando-os do impasse construído pelas teorias funcionalistas. Richard Hoggart
(1975), um dos fundadores dos Cultural Studies, também
é figura fundamental na concretização desses estudos, com
a obra precursora As utilizações da cultura, cuja primeira
edição é de 1957. Contudo, Armand Mattelart observa que
o “enfoque precoce sobre os receptores nas análises de
Hoggart não impedem que suas hipóteses permaneçam
profundamente marcadas pela desconfiança face à industrialização da cultura. A própria idéia de resistência das
classes populares que sustenta a aproximação das práticas culturais das mesmas está ancorada nesta crença.”
(Mattelart e Neveu, 1996:17).
Ainda em relação às indústrias culturais, não pode deixar de apontar que elas já atraíram a atenção até mesmo
de um sociólogo do porte de Pierre Boudieu. Em 1974
Bourdieu enfocou as empresas de jornalismo em um artigo na revista Actes de la recherche en sciences sociales.
Posteriormente publicou um pequeno livro, já traduzido
para o português em 1997, com o título Sobre a televisão
(Bourdieu, 1997). Pode-se citar, na discussão sobre “informação e comunicação”, a recente entrevista de Armand
Mattelart (2001) –professor de l’Université Paris VIII –,
na qual menciona uma “outra” sociedade de informação,
que poderia beneficiar uma maioria.
Aqui, concentra-se a abordagem na França, onde essa
relação entre Estado, mercado e pesquisa acadêmica é
muito forte, dando origem a esse modelo de organização que fortaleceu a indústria cultural francesa e a vem
tornando competitiva no contexto globalizado. O objetivo da pesquisa realizada no espaço francês foi elaborar uma análise que estabelecesse um contraponto com
a história e a organização do contexto brasileiro. No
entanto, é inevitável, e impossível, qualquer abordagem
da indústria audiovisual no segundo milênio sem se referir à produção norte-americana, que ainda permanece como uma referência forte no espaço globalizado,
com a qual as demais produções têm necessariamente
que se defrontar.
ARTE CONTEMPORÂNEA
No caso da arte contemporânea, presenciou-se, no pósguerra, um fenômeno análogo ao que ocorreu no cinema
e em outras esferas culturais, com uma multiplicação de
campos de produção fortes em vários países do mundo. A
Arte Povera italiana e o neoconcretismo no Brasil são alguns produtos desse movimento, que no domínio da arte
contemporânea têm um caráter complicador, em virtude
da repercussão extremamente restrita dessas produções.
Nos países ricos os setores público e o privado se deram
conta, desde os anos 60, que, sem o suporte de uma política cultural muito bem articulada, este campo de produção não teria condições de sobreviver.
Antes de se avançar nesta análise, é necessário definir
o que se compreende por arte contemporânea. Muito mais
do que um critério de periodização, o termo é utilizado
para identificar um segmento específico da produção artística atual. Nem toda arte produzida hoje pode ser classificada como contemporânea. A designação é atribuída à
produção de artes plásticas que começou a se desenvolver depois da Segunda Guerra Mundial, tornando-se visível a partir da década de 60. Assumindo configurações
muito diferenciadas, que culminam em repertórios teóricos e materiais muito distintos, tende sempre a estabelecer uma conexão estreita com a tradição artística ocidental. Isto não significa que a arte contemporânea seja um
produto ou uma evolução da história da arte. É certamente informada por ela. Porém, a história da arte, neste caso,
é antes de tudo um canal através do qual um grupo de artistas estabelece conexão com um mundo da arte específico e com o qual desejam ver os seus trabalhos identificados. Para Nathalie Heinich (1998a), trata-se de um
gênero da arte atual – como foram, em outras épocas, a
pintura histórica e a pintura de paisagens – e, da mesma
forma que todo gênero, tem como principal finalidade
organizar a produção no mercado.
O mundo da arte contemporânea é um espaço internacionalizado, gerido pelas redes de galerias e de instituições, em que a participação das instituições nos últimos
anos vem se revelando cada vez mais preponderante. A
partir da década de 80, as fronteiras deste espaço têm se
mostrado cada vez mais fluídas, sendo que o número de
produções que circulam em seu interior está se ampliando consideravelmente (Zolberg e Cherbo, 1997).
14
CULTURA AUDIOVISUAL E ARTE CONTEMPORÂNEA
A base do circuito contemporâneo surgiu no início do
século XX, a partir da arte moderna. Na passagem de uma
produção para outra, registrou-se uma mudança na dinâmica de operação do universo. O campo da arte moderna
organizava-se como uma esfera de bens restritos, de fronteiras muito delimitadas, em que predominava uma cultura de iniciados (Bourdieu, 1996), pontuada por um mercado de elite que girava em torno dos colecionadores
particulares (Moulin, 1967).
O pós-guerra assinalou uma ampliação considerável do
mundo das artes plásticas em escala internacional, que está
vinculado ao desenvolvimento de um sistema de comunicação mundo, passando a se converter num eficiente veículo de divulgação da produção cultural de um modo geral. A expansão da cultura nos anos 60 está relacionada
com esse processo. Neste novo contexto, as artes plásticas se consolidam, operando a partir de um novo regimento: o da comunicação, muito diferente do sistema de consumo restrito da arte moderna, no qual “a realidade da arte
contemporânea constrói-se fora das qualidades próprias
da obra, na imagem que ela suscita nos circuitos de comunicação” (Cauquelin, s.d.). A partir de então, assinalam-se duas transformações importantes nesse domínio.
Primeiramente, neste novo modo de operação, a cultura
de exposição vem se afirmando cada vez mais como a
principal vocação da arte contemporânea. No contexto
atual, o mercado privado de colecionadores passa adquirir um caráter secundário, à medida que a produção contemporânea, obedecendo a mesma lógica presente nos cinemas e nas salas de concerto, torna-se objeto de um consumo
puramente simbólico, com o espectador pagando um ingresso para ver a exposição, mas sem deter a propriedade
privada das obras. Em seguida, e em conseqüência desta
transformação, na proporção em que a globalização se
consolida, as artes plásticas passam a operar na esfera da
indústria cultural (Huyssen, 1997). As mostras de artes
plásticas, a partir da década de 80, convertem-se, cada vez
mais, em acontecimentos midiáticos, envolvendo o trabalho de muitos profissionais e tendo como objetivo o grande público (Selbach, 2000). Atualmente, por exemplo, o
custo de uma grande exposição é equivalente ao de uma
produção cinematográfica de porte, sendo que o público
e as receitas obtidas nas duas categorias de eventos também se equiparam (Bueno, 1999).
No entanto, arte moderna e arte contemporânea são
ambas produtos do ciclo da modernidade que se inicia no
século XIX e apresentam alguns traços característicos em
comum: estão constantemente transgredindo os critérios
artísticos estabelecidos, uma vez que elas não se pautam
mais pelas normas da história da arte (Belting, 1987) e
sempre foram objetos de rejeição sistemática pelo público (Heinich, 1998b). Se, no mundo da arte moderna, a sua
impopularidade se constituía como um valor – reforçando o caráter elitista de seu campo –, no contexto da arte
contemporânea ela se converteu num obstáculo (Bueno,
1999). Este problema é superado com a criação de um sistema de mediação que ajuda a decifrar o segredo, colocando a produção ao alcance do público. Nathalie Heinich
(1998a) considera que este é o triplo jogo que marca o
modus operandi da arte contemporânea: a transgressão das
fronteiras da arte pelos artistas; as reações negativas do
público; e a integração da produção a partir da intermediação de instituições e especialistas. Este triplo jogo é
um dos componentes responsáveis pelas constantes redefinições no conceito de arte corrente e também pelo movimento de ampliação dos domínios do mundo da arte.
Tendo em vista que a circulação da arte contemporânea só se concretiza a partir do desvendamento da produção para o público, a construção da recepção passou a ser
um elemento fundamental na organização de seu universo. Na esfera restrita do mercado de arte moderna, o
marchand e o crítico realizavam essa operação junto aos
diretores de museus e colecionadores. No contexto atual,
com as instituições artísticas funcionando como ramos da
indústria cultural, voltadas para um público ampliado, este
empreendimento revelou-se não apenas mais custoso,
como também mais complexo. Na sociedade globalizada,
essa integração gradativa da produção artística contemporânea, e da cultura de um modo geral, vem se consolidando nos países ricos a partir de um modelo de operação
que se desenvolve entre o mercado e o Estado.
Contrariando algumas leituras rápidas do processo de
globalização, nas décadas de 70 e 80 a participação e a
intervenção do Estado na economia e na organização da
cultura apresentou um crescimento sem precedentes. Podem ser citadas, como casos exemplares, a implantação
de uma política para a recuperação e a reorganização dos
museus de arte na Europa e nos Estados Unidos (Dimaggio,
1986; Pommerehne e Frey, 1993) – que durante a década
de 60 encontravam-se praticamente arruinados – , além
da criação de importantes fundos para as artes, como o
National Endowment for the Arts, em 1965, nos Estados
Unidos (Crane, 1987; Zolberg, 1997), e os Fonds
d’Intervention Culturelle, em 1971, na França (Moulin,
1992). Estes aparelhos atendem a uma dupla finalidade:
fornecer subsídios básicos para que a produção possa
15
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 15(3) 2001
materializar-se, provendo suporte à sua circulação e à sua
recepção.
A produção da arte contemporânea implica, geralmente, um empreendimento de alto custo, pois inicialmente,
sua concretização envolve um projeto de elaboração e
execução de longa duração e, depois, a realização deste
projeto abarca um capital considerável, porque os materiais envolvidos, na maior parte das vezes, embora muito
diversos, são caros (ferro, concreto, computadores, vídeos,
etc.) e, em outras ocasiões, embora de pequeno custo,
envolvem uma coleta longa e trabalhosa (como talheres
de companhias aéreas, sacolas plásticas de museus, sapatos velhos, cascas de ovos, vestidos de noiva, etc.). No
caso das performances, estas podem depender de uma
mobilização intensa dos meios de comunicação. Dependendo do projeto, surgem outras variantes que pesam,
como serviços de terceiros, muitos deslocamentos, longas filmagens e até negociações com as autoridades políticas, que se estendem por anos, como é o caso dos trabalhos do artista plástico búlgaro, Christo, que estabelecem
quase sempre uma relação com monumentos públicos em
diferentes cidades do mundo.
O mundo da arte contemporânea já extrapolou há muito tempo o universo da pintura e da escultura, muito embora elas ainda permaneçam como parte dele, ressurgem
com uma outra apresentação mais sintonizada com as expressões do repertório de comunicação da época em que
vivemos. Em suma, as artes plásticas contemporâneas para
poderem se realizar plenamente necessitam do apoio de
recursos substanciais, que possibilitem não apenas sua
recepção e circulação, mas também sua produção.
No caso das artes plásticas, na base desta ampliação
estão as novas políticas culturais responsáveis pela redefinição das instituições, que passaram de redutos de uma
cultura de elite para atuar como espaços da cultura de
massa. A repercussão das exposições de arte organizadas
em São Paulo por ocasião dos 500 anos da descoberta do
Brasil é um exemplo desse fenômeno globalizado que se
estende, ainda de forma errática, ao contexto cultural brasileiro. Em muitos países presencia-se a intervenção do
Estado nesse processo, gerando pólos de pesquisa fortes
que alimentam projetos culturais, cuja principal finalidade vem sendo impedir que esta expansão da cultura corra
ao sabor do mercado e à deriva dos fluxos globalizados
(Moulin, 1967). É o suporte desses projetos o responsável pela viabilização e pelo fortalecimento de algumas produções em detrimento de outras no circuito globalizado.
Cabe aqui mencionar os trabalhos pioneiros de Bourdieu
e Darbel (1969), encomendado pela Associação Européia
dos Museus de Arte, e de Moulin (1967), publicados ainda na década de 60, assinalando o início de uma parceria
entre o campo acadêmico e os projetos públicos, que permanece como um dos traços característicos da gestão cultural na França contemporânea, mas que está presente também na comunidade européia em geral (Documentation
Française, 1987), nos Estados Unidos e no Canada. É
importante enfatizar que, muito embora a partir da década de 90 tenham surgido facções políticas em diferentes
países, questionando a extensão do apoio do Estado à
cultura e às artes, esse debate se dá num momento em que
estes universos já se encontram consolidados (Zolberg,
1996; Telerama, 2000a e b).
Sendo assim, o modelo de organização das artes plásticas contemporâneas, implantado na França e nos Estados Unidos, não apenas respaldou a sua constituição num
campo de pesquisa, como também continua evoluindo até
hoje fundamentado nele. No Brasil, está se iniciando, tardiamente, um esforço de pesquisa ainda para tentar mapear esse universo.
NOTAS
E-mail dos autores: [email protected] e [email protected]
O presente texto é uma explanação inicial elaborada a partir de uma pesquisa
realizada em 2000, em Paris, na École des Hautes Études en Sciences Sociales/
Centre des Recherches sur le Brésil Contemporain, cujos dados ainda estão sendo processados. Neste projeto, José Mario Ortiz Ramos contou com o apoio de
uma bolsa de Pesquisa no Exterior, da Fapesp.
1. No Brasil, em 1995, os gastos públicos com a cultura representaram 0,089%
do PIB e um total de 692 milhões de reais (Fundação João Pinheiro, 1998).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BELTING, H. L’Histoire de l’art est-elle finie? Nîmes, Jacqueline Chambon, 1987.
BOURDIEU, P. As regras da arte. São Paulo, Cia. das Letras, 1996.
_________ . Sobre a televisão. Rio de Janeiro, Zahar, 1997.
BOURDIEU, P. e DARBEL, A. L’amour de l’art. Les musées d’art européens et
leur public. Paris, Minuit, 1969.
BUENO, M.L. Artes plásticas no século XX. Modernidade e globalização. Campinas, Ed. da Unicamp/Fapesp, 1999.
CANCLINI, N.G. Culturas híbridas. São Paulo, Edusp, 1997.
CASTELLS, M. A sociedade das redes. São Paulo, Paz e Terra, 2000.
CAUQUELIN, A. A arte contemporânea. Porto, RÉS-Editora, s.d.
CERTEAU, M. L’Invention du cotidien. Arts de faire. Paris, Unin Générale
d’Éditions, v.1, 1980.
CRANE, D. The transformation of the avant-garde – The New York art world
1940-1985. Londres/Chicago, University of Chicago Press, 1987.
DIMAGGIO, P. Nonprofit interprises in the arts. Nova York/Oxford, Oxford
University Press, 1986.
DOCUMENTATION FRANÇAISE. Mecenat en Europe. Paris, 1987.
16
CULTURA AUDIOVISUAL E ARTE CONTEMPORÂNEA
_________ . Indicateurs statistiques de l’audiovisuel: cinéma, télévision, vidéo
edition 1998. Paris, 1998.
MATTELART, A. e STOURDZÉ, Y. “Technologie, culture et communication,
rapport au ministre de l’industrie”. Paris, La Documentation Française, 1982.
DOMÍNGUEZ, I. e MORATÓ, A. Arte, cultura y sociedad. Barcelona, Aesca,
1991.
MIÉGE, B. “L’evolution des médias confrontés à la recherche”. Dossier de
L’audiovisuel, n.85, maio-jun. 1999.
FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO. Diagnóstico dos investimentos em cultura no
Brasil. Belo Horizonte, nov. 1998.
MOULIN, R. Le marché de la peinture en France. Paris, Minuit, 1967.
GIDDENS, A. As conseqüências da modernidade. São Paulo, Unesp, 1990.
ORTIZ RAMOS, J.M. Cinema, Estado e lutas culturais, anos 50/60/70. Rio de
Janeiro, Paz e Terra, 1983.
_________ . L’artiste, l’institution et le marché. Paris, Flammarion, 1992.
HEINICH, N. Le triple jeu de l’art contemporain. Paris, Minuit, 1998a.
_________ . Televisão, publicidade e cultura de massa. Petrópolis, Vozes, 1995.
_________ . L’art contemporain exposé aux rejets. Nîmes, Jacqueline Chambon,
1998b.
PINEAU, G. (org.). Dossier: “La recherche en information et communication en
France”. Dossiers de L’audiovisuel, n.85, maio-jun. 1999.
HOGGART, R. As utilizações da cultura. Lisboa, Presença, 1975.
POMMEREHNE, W. e FREY, B. La culture a-t-elle un prix? Essai sur l’economie
de l’art. Paris, Commentaire/Plon, 1993.
HUYSSEN, A. Memórias do modernismo. Rio de Janeiro, UFRJ, 1997.
LE MONDE. “Les télévisions, maillon fort du financement du cinéma européen”.
Paris, 13/05/1999.
SELBACH, G. Les musées d’art americaines: une industrie culturelle. Paris,
L’Harmattan, 2000.
_________ . “Le financement des films français en pleine révolution”. Paris,
13/05/1999.
TELERAMA. Dossier “L’argent de la culture”, n.2.653, nov. 2000a, primeira parte.
MATTELART, A. Comunicação mundo – História das idéias e estratégias.
Petrópolis, Vozes, 1994.
_________ . Dossier: “L’argent de la culture”, n.2.654, dez. 2000b, segunda
parte.
_________ . “Une étape decisive: le rapport, Mattelard/Stourdzé” (entrevista
com A. Mattelart). Dossier de l’audiovisuel, n.85, maio-junho 1999.
ZOLBERG, V. “Paying for art: the temptations of privatization à l’americaine”.
International Sociology, v.11, n.4, dez. 1996.
_________ . “Un autre societé de l’information est possible” (entrevista). Le
Monde Interactif – Le Monde, 28/03/2001.
_________ . “Cultura de Nova York: ascendente ou descendente?” Cultura Vozes, n.3, v.91, maio-jun.1997.
MATTELART, A. e NEVEU, E. “‘Cultural Studies’ stories. La domestication
d’une pensée sauvage?” Reseaux, n.80, nov./dez 1996.
ZOLBERG, V. e CHERBO, J.M. Outsider art. Contesting bounderies in
contemporary culture. Cambridge University Press, 1997.
17
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 15(3) 2001
BIENAL DE SÃO PAULO
impacto na cultura brasileira
RITA ALVES OLIVEIRA
Socióloga, Professora da Faculdade de Design de Multimídia do Senac-SP
Resumo: O principal evento de artes plásticas no Brasil é a Bienal de São Paulo. Na metade do século XX, um
novo cenário cultural possibilitou a criação do Museu de Arte Moderna de São Paulo e da Bienal, que chegou
ao final do século como um dos mais importantes eventos do circuito mundial, detentora de pesados investimentos patrocinados, na maior parte, pela iniciativa privada. Ganham espaço os curadores e as atividades
pedagógicas voltadas para o público de massa.
Palavras-chave: cultura; bienal; arte; artes plásticas; política cultural.
parceiros que surgia juntamente com uma nova etapa no
desenvolvimento capitalista, na qual a internacionalização do capital começava a despontar liderada pelos Estados Unidos, fazendo-se acompanhar pelo surgimento de
um mercado internacional de arte (Bueno, 1999). Para
aqueles que protestavam na entrada da bienal naquela
chuvosa noite de outubro, a parceria estabelecida entre
Rockefeller e Ciccilo Matarazzo representava a força do
imperialismo corrompendo pintores, desenhistas, escultores e arquitetos com prêmios oferecidos por empresas
interessadas na expansão ideológica americana (Jornal
Voz Operária, 13/10/1951). Para o proprietário da Metalúrgica Matarazzo, o estreitamento das relações econômicas, culturais e, no limite, políticas, entre Brasil e
Estados Unidos poderia significar um espaço diferenciado a ser ocupado por um empresário-mecenas atuante
internacionalmente.
O momento era pontuado por importantes transformações em toda a América Latina. O final da Segunda Guerra anunciava novos horizontes econômicos, políticos, intelectuais e artísticos. Um novo ordenamento mundial e
novas relações políticas articulavam-se a uma nova postura das classes dirigentes, assim como de intelectuais e artistas. Estavam sendo deixadas para trás as décadas fundamentadas no desenvolvimento nacional, com um projeto
nacional e por uma burguesia também nacional. No pósguerra, o jogo das forças internacionais tem suas regras
m 20 de outubro de 1951 a Av. Paulista vivia um
dia marcante na sua história. A festa de abertura
da primeira Bienal de São Paulo reunia a nata da
elite política, econômica e cultural do país. Do lado de
fora do Edifício Trianon (onde hoje, coincidentemente,
encontra-se o Masp), militantes políticos e sindicalistas
bradavam contra aquilo que chamavam de manobra imperialista e verdadeira farra de tubarões. Sob a conhecida garoa paulistana, os manifestantes e curiosos assistiam
ao desfile da granfinagem (Jornal Hoje, 02/09/1951 e 21/
10/1951), enquanto os bancários exibiam suas tabuletas
nas quais se lia: Chega de fome! Viva a greve! Do lado de
dentro do edifício, Francisco Matarazzo Sobrinho e
Yolanda Penteado, sua esposa, comandavam a festa oferecida a milhares de convidados, ciceroneando o Ministro da Educação e Saúde, o sr. Simões Filho, e a sra. Vargas,
ambos representantes do Presidente da República.
O principal ponto de discórdia entre esses dois lados
recaía sobre Nelson Rockefeller, o magnata do petróleo e
peça-chave na política de expansionismo cultural do Departamento de Estado norte-americano no pós-guerra. Poucos dias antes da abertura da Bienal de São Paulo, Yolanda
Penteado havia promovido um baile no próprio Edifício
Trianon, com a intenção de arrecadar fundos para o evento do MAM. Os jornais noticiaram a festa dançante, dando destaque ao presidente da Standard Oil enlaçado à anfitriã brasileira. A imagem simbolizava uma união de
E
18
BIENAL DE SÃO PAULO : IMPACTO NA CULTURA
alteradas e o capitalismo passa a propor o desenvolvimento transnacional ou associado.
Dentro desse contexto, a cidade de São Paulo vislumbrava um cenário favorável ao seu desenvolvimento econômico e cultural. No início da década de 50 a cidade já
registrava a maior concentração de brasileiros vindos de
outros Estados e também já abrigava expressivo contingente de imigrantes, inclusive daqueles estrangeiros que
para cá se dirigiam para instalar seus negócios, fábricas e
empresas, fugindo das catástrofes econômicas e sociais
do pós-guerra europeu (Pedrosa, 1995:220). Com o surto
de industrialização impulsionado pela substituição de importações, a população urbana teve um brutal crescimento e a população operária mais que dobrou entre 1940 e
1950. São Paulo acelerava sua ascensão econômica e industrial como síntese do Brasil e vitrine do mundo.
A precariedade da indústria cultural brasileira deu lugar ao processo de modernização dos meios de comunicação de massa, que passaram a desempenhar um papel
fundamental na busca de integração nacional. A consolidação de uma sociedade urbano-industrial fez-se acompanhar de um amadurecimento e uma ampliação de um
mercado de bens simbólicos (Ortiz, 1991:43-49). Do ponto
de vista cultural, o rádio consolidou-se como veículo de
massa; o cinema tornou-se, de fato, um bem de consumo;
o mercado de publicações ampliou-se com o maior número de jornais, revistas e livros; a publicidade foi dinamizada com a introdução das multinacionais no país.
Impunha-se, especialmente em São Paulo, uma linguagem metropolitana (Arruda, 2000). Buscava-se ampliar a
adesão ao novo estilo urbano que exercia pressão,
permeado pela afirmação do progresso recém-iniciado, em
que o presente e o futuro importavam mais que o passado.
Entre a aceleração cosmopolita vivida em São Paulo e
os reais avanços culturais havia um imenso abismo e a
Bienal de São Paulo surgia como um ponto de equilíbrio.
Os seus criadores buscavam estimular os avanços na produção artística nacional, mas não escondiam o fato de que
um evento como esse só poderia acontecer num ambiente
semeado pelo espírito da modernização. No catálogo de
apresentação da primeira bienal, o Ministro da Educação
e Saúde já destacava que São Paulo seria “a terra predestinada aos ímpetos da evolução brasileira”, por ser o “centro natural do modernismo brasileiro e do progresso industrial” (Simões Filho, 1951:10). Segundo Lourival
Gomes Machado, diretor do MAM-SP e diretor artístico
da mostra, a bienal deveria cumprir duas tarefas: “colocar
a arte moderna do Brasil, não em simples confronto, mas
BRASILEIRA
em vivo contato com a arte do resto do mundo, ao mesmo
tempo que para São Paulo se buscaria conquistar a posição de centro artístico mundial” (Machado, 1951:14), tendo como referência a cidade de Veneza. Esse espírito de
modernização que permeava a realização da bienal envolvia uma disputa pela hegemonia entre Rio e São Paulo.
Na primeira, a capital da República, as iniciativas vinham
basicamente do Estado; já na segunda, principal sede do
surto de crescimento industrial e demográfico, as coisas
começavam a se fazer por intermédio de particulares
(Pedrosa, 1995:239), representantes de uma nova prática
cultural que emergia com as transformações pelas quais a
cidade passava.
Naquele momento, realizar uma bienal significava colocar a cidade de São Paulo no patamar das práticas sociais vividas pelas nações modernas. A bienal nasce, portanto, como um produto cultural construído a partir das
relações entre determinados produtores culturais, instituídos a partir de relações sociais. Essas práticas sociais envolvem a vida econômica, o cotidiano da metrópole, a formação de uma nação tipicamente moderna e a intenção de
acompanhar as práticas metropolitanas internacionais.
O PÓS-GUERRA EM SÃO PAULO
Os novos empreendimentos culturais na capital paulista foram sustentados por um novo mecenato, proveniente
dos setores emergentes da sociedade: a indústria e as organizações da imprensa. Nos anos 20 e 30, os escritores e
pintores modernistas haviam sido ‘adotados’ pela burguesia local, principalmente pelas famílias Prado, Penteado
e Freitas Valle. Nessa adoção, pretendiam repetir nas suas
mansões o modelo dos salões literários franceses descritos por Marcel Proust. Empenhavam-se numa tarefa
civilizadora, numa São Paulo ainda provinciana. Já nos
anos 40 a relação entre a produção artística e o mecenato
seria bem diferente. A atmosfera dos salões seria deixada
de lado em nome da criação de uma série de instituições
artísticas bastante internacionalizadas. Esses novos personagens do fomento cultural localizavam-se num pequeno grupo de burgueses, fruto de uma mistura da antiga elite
da terra e de uma elite mais recente de origem italiana.
Segundo Maria Arminda do Nascimento Arruda, esse processo foi um “sintoma de deslocamento, ou perda de exclusividade dos grupos tradicionais e, de toda espécie,
manifestação insofismável de transformação das atividades produtivas (Arruda, 2000:33). Essa camada emergente passava a financiar a cultura em empreendimentos
19
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 15(3) 2001
conectados a um movimento de ascensão e de busca de
legitimidade. A velha intelectualidade oficial burguesa
incorporava uma nova intelectualidade surgida no seio da
classe média, especialmente por meio daquela formada na
década de 40 pela USP. Esse novo mecenato, diversamente
daquele característico dos anos 20 e 30, dirigiu-se para a
criação de instituições, alterando as bases dessa atividade
e da vida cultural paulistana. As atividades culturais passaram a usufruir, de diversas maneiras, da presença dessas instituições.
Dois empresários paulistas começaram, no pós-guerra, a descobrir os caminhos de um certo mecenato moderno: de um lado, Assis Chateaubriand (1891-1968), empresário ligado às comunicações que se embrenhou pelos
trâmites artísticos; do outro, Francisco Matarazzo Sobrinho (1898-1977), o Ciccilo, industrial de ascendência italiana, hoje considerado Presidente Perpétuo da Fundação
Bienal. Chateaubriand e Ciccilo acrescentaram aos seus
dotes empresariais uma atitude de mecenas que os fez
entrar para a história deste país com esta marca. As disputas entre esses dois empresários, afeitos ao mecenato,
tornaram-se quase um folclore na cidade de São Paulo.
Ambos apareceram como um novo tipo de empresariado
que buscava se projetar no mundo econômico através dos
empreendimentos culturais de cunho internacional.
Ciccilo Matarazzo era sobrinho do Conde Francisco
Matarazzo, italiano que construiu um dos maiores complexos industriais do Brasil. Francisco Matarazzo Sobrinho nasceu em 1898, em São Paulo, na rua Major
Quedinho. Estudou no conceituado Instituto de Educação
Caetano de Campos, na Praça da República, mas em 1908
foi enviado a Nápoles, acompanhado de um preceptor, a
fim de completar o ensino médio. Depois seguiu para
Liège, na Bélgica, onde cursou engenharia na universidade local. Viveu na Europa entre os 10 e os 20 anos, recebendo formação humanística da belle époque. Por conta
desses anos vividos na Europa e da forte ascendência italiana, seu sotaque ficaria marcado para o resto da sua vida,
com uma mistura de italiano e francês ao falar o português. Nessa época gostava de pinturas, mas seu gosto estava apegado ao estilo acadêmico. Ciccilo deixava-se atrair
mais por “uma Bugatti reluzente ou uma Fiat modelo esportivo” (Almeida, 1976:20) do que pelas artes.
O pós-guerra abria caminho para o fortalecimento institucional e a atuação desse novo mecenato cultural e, em
1948, Ciccilo Matarazzo e Franco Zampari fundaram o
Teatro Brasileiro de Comédia (TBC). O engenheiro
Zampari era amigo de infância, compatriota e funcioná-
rio de Ciccilo. Dentre tantos outros empreendimentos culturais construídos por estrangeiros já aclimatados, “o TBC
acabou sendo reconhecido como símbolo da cidade”
(Arruda, 2000:138). No ano seguinte, Ciccilo Matarazzo
fundou a Cia. Cinematográfica Vera Cruz, também em
parceria com Zampari. Desde o início, a Vera Cruz foi
um projeto da burguesia paulista de criação de um cinema de qualidade no país. A dupla de origem italiana sonhava trazer para o ABC paulista a posição ostentada pela
carioca Atlântida. Para dar início ao projeto, Ciccilo cedeu parte do terreno de sua granja, em São Bernardo do
Campo (hoje Jardim do Mar), para erguer os estúdios da
Cia. Cinematográfica, que durou até 1954.
A criação do TBC e da Vera Cruz não foi um fenômeno isolado. Pelo contrário, eles inscreveram-se em outras
iniciativas que procuravam fazer de São Paulo um pólo
cultural, contribuindo para transformar esta capital, no final
dos anos 40, num importante centro de produção de cultura. Em 1947, Chatô havia inaugurado o Masp e destacava-se como empresário da cultura que acenava para algo
novo: o empreendimento cultural como uma forma de luta
hegemônica. Ciccilo também fundou ‘seu’ museu, o de
Arte Moderna, no ano seguinte. Em 1951, como extensão
das atividades do MAM, Ciccilo criou o seu mais poderoso empreendimento: a Bienal de São Paulo.
As primeiras bienais contaram com o esforço de
Yolanda Penteado, esposa de Ciccilo na época. D. Yolanda
pertencia a uma tradicional família paulista que construiu
sua fortuna a partir da cultura do café (Penteado, 1976).
Nasceu em 1903, na Fazenda Empyreo, em Leme, interior de São Paulo. Foi criada num ambiente de senhores
de escravos e teve, durante sua infância, muitas mães-pretas. Viveu até os sete anos na fazenda e depois mudou-se
com a família para São Paulo. Seu pai era amigo de Júlio
Mesquita e de Antônio da Silva Telles, pai de Jayme Telles
(o ‘Rodolfo Valentino’) com quem Yolanda viria a se casar mais tarde. Assim como Ciccilo, Yolanda também estudou no Caetano de Campos e, depois, como interna, no
Colégio Des Oiseaux, onde só se falava francês. Mais tarde passou a estudar em casa, com professores particulares.
Era sobrinha de dona Olívia Guedes Penteado, que nos
anos 20 e 30 freqüentava os salões de Freitas Valle e costumava também acolher em sua casa artistas modernistas.
Entretanto, Yolanda Penteado teve, aparentemente, pouco contato com essas rodas artísticas e com a arte moderna, pois não menciona isso em sua autobiografia. Sua juventude foi marcada pelo interesse que despertava nas
pessoas ao seu redor. Jovem, bonita, culta e alegre,
20
BIENAL DE SÃO PAULO : IMPACTO NA CULTURA
BRASILEIRA
Moderna de Nova York (Jornal Hoje, 15/08/1951). Mas
as relações com Rockefeller para a criação do MAM de
São Paulo já tinham sido iniciadas anos antes de Ciccilo
atentar para essa questão, e diziam respeito às articulações do envolvimento do Brasil nas transformações da
economia mundial.
Entre o final dos anos 30 e o início dos 40, Sérgio
Milliet, como professor da Escola de Sociologia e Política, esteve em contato com representantes americanos interessados na política de aproximação com os países latino-americanos. Em 1942, o dr. David Stevens, diretor da
Divisão de Humanidades da Fundação Rockefeller, visitou a Escola e doou cinco contos de réis destinados à constituição de um acervo bibliográfico e à pesquisa social,
repetindo a atitude em 1944 e 1946. O adido cultural do
Consulado Americano em São Paulo, Carleton Sprague
Smith, era também professor na Escola de Sociologia e
Política e empolgava-se, àquela altura, com a idéia da criação de um museu de arte moderna, acabando por tornarse um intermediário desse processo com a Fundação
Rockefeller (Gonçalves, 1992:80). Segundo Lisbeth Gonçalves, São Paulo recebeu, em 1946, a primeira doação
de Nelson Rockefeller para a constituição de um museu,
num total de sete obras que ficaram sob a guarda do Instituto dos Arquitetos do Brasil (IAB),1 mas que permaneceram na Biblioteca Municipal, provavelmente na Seção
de Arte criada por Milliet no ano anterior (Gonçalves,
1992:81). A partir desse momento, cresceu rapidamente
o número daqueles que apoiavam o projeto do museu,
envolvendo arquitetos, jornalistas, intelectuais e artistas
que se encontravam nas sucessivas reuniões no Instituto
dos Arquitetos. Chateaubriand e Ciccilo também aderem
ao projeto, participando das reuniões no IAB. A partir do
aval americano, Matarazzo passou a encabeçar a lista daqueles que apoiavam essa idéia. Segundo Vilanova Artigas,
em depoimento à Lisbeth Gonçalves (1992:82):
“A palavra final que leva ao encaminhamento do processo de criação do Museu de Arte Moderna de São Paulo sob a liderança de Matarazzo surge numa reunião de
Nova York, da qual ele participa, quando bolsista nos
Estados Unidos. Carleton Sprague Smith é o porta-voz de
Rockefeller, falando do seu interesse pela participação
daquele empresário no projeto”.
Esse novo tipo de mecenato representado por Ciccilo
Matarazzo surge num período de expansão do capitalismo internacional que exigiu mudanças também na atuação dos representantes da burguesia local, a qual passou a
adotar uma posição aberta à penetração das grandes cor-
Yolanda colecionava uma legião de fãs, entre eles Júlio
Mesquita Filho, Alberto Santos Dumont e, principalmente, Assis Chateaubriand, que a teria pedido em casamento
várias vezes. Ela dedica muitas passagens de sua autobiografia a ele, a quem se refere como o melhor amigo que já
tivera. No decorrer de sua vida, a roda de amizades de
Yolanda Penteado incluiu Getúlio Vargas, Oswald de
Andrade, Tarsila do Amaral, Di Cavalcanti, Maria Martins
e Gilberto Freyre.
Separou-se de Jaime Telles em 1934 e, com 30 anos e
sozinha, tornou-se responsável pela Fazenda Empyreo. Por
lá passaram alguns dos principais personagens do cenário
artístico, intelectual, político e econômico do país. Yolanda
Penteado sabia receber e o fazia muitíssimo bem, especialmente em sua fazenda. Durante as primeiras bienais,
por exemplo, ela organizou inúmeros jantares para os convidados especiais do evento. A abertura da IV Bienal de
São Paulo (1957) deu-se na fazenda de Leme, com os convidados transportados em aviões que pousavam na pista
construída nas terras de Yolanda e depois cedida ao poder público municipal. Naquela noite, o principal convidado era o presidente Juscelino Kubitsckek, que jantou e
pernoitou no local.
MUSEU DE ARTE MODERNA
Yolanda Penteado casou-se com Ciccilo em 1947, enquanto estavam em Roma. De lá partiram para Paris, onde
Ciccilo adoeceu. Por recomendação médica, foram passar uma temporada de sete meses em Davos, no sanatório
Schatzalp, onde ocuparam o melhor quarto. Durante esse
período, conviveram com pessoas que lhes revelaram o
mundo das artes e atuaram de forma definitiva na fundação do Museu de Arte Moderna de São Paulo. Ciccilo
registrou apenas que já planejava a organização de um
museu por ocasião de sua estadia no sanatório (Penteado,
1976:34). Lá conheceu o museólogo Karl Nierendorf, diretor do Museu Guggenheim, com quem idealizou a montagem de uma exposição de arte abstrata para a abertura
do museu paulistano. Nierendorf, com quem tinha uma convivência diária no cenário de Montanha Mágica, havia
pertencido à Bauhaus e durante a guerra tinha ido para os
Estados Unidos, onde lidou com arte e freqüentava as rodas modernistas.
Pelo contato com Nierendorf, foi estabelecido um acordo entre Ciccilo Matarazzo, responsável pelo MAM-SP e
Nelson Rockefeller, da Standard Oil, estabelecendo a fusão das atividades do museu paulista e do Museu de Arte
21
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 15(3) 2001
porações estrangeiras (Fernandes, 1975). Com isso a burguesia ganhou condições mais vantajosas para estabelecer uma relação mais íntima com o capitalismo financeiro
internacional, sustentando-se sobre uma base nacional e
outra internacional. Essa burguesia mudou seu relacionamento com o poder político estatal e o funcionamento do
Estado, alterando sua capacidade de aproximação com o
capital financeiro internacional e com a intervenção do
Estado na vida econômica, ganhando maior controle da
situação interna. As grandes corporações, por outro lado,
passaram a concorrer fortemente entre si pela expansão
induzida das chamadas economias periféricas. Foi nesse
contexto que se deu a aproximação entre Ciccilo Matarazzo
e a Fundação Rockefeller. No momento em que o capitalismo monopolista investia suas energias nas nações do
continente latino-americano, a burguesia mudava sua estratégia com relação ao poder político e passava a atuar
visando o capital internacional.
O MAM de São Paulo foi uma das instituições organizadas a partir desse estreitamento das relações entre a
burguesia industrial brasileira e as grandes corporações
norte-americanas. Fundado em 1948, mas inaugurado em
março de 1949, o MAM chamou para si toda a polêmica
que girava em torno da ascendente arte abstrata, organizando, para a sua abertura, a mostra Do figurativismo ao
abstracionismo que, apesar do nome, só trazia trabalhos
abstracionistas.
Tanto o MAM quanto o Masp carregavam consigo promessas civilizatórias relativas às “ações de grupos esclarecidos da classe dominante, ou dos seus representantes,
que desenvolviam uma pedagogia em relação à sociedade, tendo em vista educá-la” (Arruda, 2000:280). Esses
dois museus de arte paulistanos foram criados numa conjuntura tensa, num momento fervilhante de debates em que
artistas, intelectuais e escritores, polarizavam-se em torno das polêmicas sobre a cultura de participação da arte
social, base dos conflitos entre novas e antigas gerações
que desaguavam na questão do realismo e abstracionismo.
uma extensão do MAM e completando sua função, que
era a de fornecer, como em Veneza, uma possibilidade de
iniciação às novas correntes de arte. Um esforço conjunto
tentava ligar a América Latina ao circuito internacional
de arte e a bienal funcionou como um mecanismo de divulgação e consolidação da arte moderna e do campo artístico internacional (Bueno, 1999:151).
Para dar conta dessa empreitada, Yolanda Matarazzo
viajou por toda a Europa juntamente com a escultora Maria
Martins em caráter semi-oficial e com o apoio irrestrito
de Getúlio Vargas, que telegrafara às embaixadas brasileiras pedindo que fosse dado todo apoio às duas senhoras (Penteado, 1976:178). A I Bienal do Museu de Arte
Moderna de São Paulo, presidida por Francisco Matarazzo
Sobrinho, foi considerada um sucesso e colaborou para a
sedimentação do museu como uma instituição cultural alinhada ao mercado artístico internacional.
Mas o sucesso e a continuidade da bienal devem-se,
em grande medida, às atuações de Sérgio Milliet e Lourival
Gomes Machado à frente da diretoria artística do evento
durante suas primeiras edições. Os anos 40 viam entrar
em cena uma nova crítica de arte decorrente da institucionalização da vida universitária que exalava principalmente
da USP (Pontes, 1998). Dentro da nova linguagem metropolitana que ganhava espaço em São Paulo, a crítica
de arte sofria transformações pela atuação de jovens intelectuais recém-saídos da Faculdade de Filosofia, inaugurando um novo sistema de produção intelectual totalmente firmado em critérios científicos e acadêmicos.
O estilo acadêmico de cultura passa a constituir um
estilo de vida. O saber científico é visto como o fundamento da dignidade e do prestígio profissional. O conhecimento, enfim, começa a exigir novos requisitos: a produção norteada pelos cânones científicos, as reflexões
apoiadas em exaustivas referências bibliográficas e erudições pertinentes ao campo da investigação. Nos anos
40 e 50, ao contrário do que ocorria com as gerações passadas, a elaboração de idéias e a atividade intelectual sofriam os rigores das exigências acadêmicas.
A presença de Lourival Gomes Machado (1917-1967),
na época, diretor do MAM, foi fundamental para o sucesso da primeira edição da Bienal de São Paulo, em 1951.
Como diretor artístico do evento, adaptou o regulamento
da Bienal de Veneza às características nacionais e supervisionou a montagem das instalações e seleção das obras.
Sua carreira de crítico de artes plásticas teve origem no
seio da academia, mas foi como diretor da revista Clima,
lançada em maio de 1944, que se notabilizou na área, pas-
A BIENAL DE SÃO PAULO
A organização de uma mostra bienal – ou um festival
nos moldes do festival de Veneza, como afirmou Ibiapaba
Martins, um dos diretores do recém-fundado museu (apud
Amaral, 1987:236) – já estava nos planos de Ciccilo desde os primeiros momentos do MAM. Se a meta era a internacionalização, o melhor caminho seria a criação de
uma bienal. A Bienal de São Paulo surgiu, assim, como
22
BIENAL DE SÃO PAULO : IMPACTO NA CULTURA
sando a constituir essa nova geração de críticos ligados
ao conhecimento acadêmico. Lourival Gomes Machado
foi o primeiro diretor artístico da Bienal de São Paulo e,
sem dúvida, um dos principais mentores do evento e dos
mais atuantes na sua implantação.
Sérgio Milliet (1898-1966) foi primeiro-secretário na
I Bienal e a partir da segunda substituiu Lourival Gomes
Machado na diretoria artística. Citando Antônio Cândido, Lisbeth Gonçalves considera Milliet o homem-ponte
entre a geração modernista e a geração de artistas que
surgiram nas décadas de 30 e 40. Milliet era “consciente
defensor da criação de entidades voltadas para a ação organizada em prol da arte moderna na cidade” (Gonçalves, 1992:XV) e por isso seu nome liga-se à criação do
Departamento de Cultura, da Biblioteca Municipal, do
Museu de Arte Moderna e da bienal. Milliet nasceu em
São Paulo, adquiriu conhecimentos de sociologia em Genebra e Berna em longos anos de educação suíça, impregnando-se de discussões acerca da verdade e da objetividade que ocupavam todo o pensamento europeu a partir
do reconhecimento do valor da ciência para o conhecimento da realidade. Assim, como crítico, trazia a sociologia como principal eixo de reflexão. A partir da aproximação das posições do cristianismo social ou socialismo
cristão que proliferavam na Suíça durante os anos em que
lá morou, Sérgio Milliet foi mais tarde tocado diretamente pela questão engajamento/não-engajamento e o papel
do intelectual no seu tempo. No Brasil dos anos 30 foi um
dos primeiros a aderir ao Partido Socialista, tendo inclusive participado da Revolução de 1932 como informante
(Gonçalves, 1992:20 e 57). Nas noites paulistanas passou
a freqüentar a casa de Paulo Duarte, onde conviveu intensamente com intelectuais e políticos de tendência liberal,
em encontros que resultaram na idealização do Departamento de Cultura dirigido nos anos 30 por Mário de
Andrade. No Departamento de Cultura Milliet atuou como
diretor da Divisão de Documentação Histórica e Social.
No início dos anos 40, já sob a intervenção do Estado Novo
na prefeitura paulistana, Milliet foi transferido para a Divisão de Bibliotecas, vindo a atuar na Biblioteca Municipal, onde criou a Seção de Arte em 1945. Essa seção da
Biblioteca Mário de Andrade, que hoje se chama Sérgio
Milliet, surgiu da necessidade de se erguer instituições
voltadas para a arte moderna na cidade e fundamentadas
por ações mais organizadas. Desde o final dos anos 30,
Milliet e Mário de Andrade anunciavam a necessidade da
criação de um museu de arte moderna em São Paulo. Foi
na Biblioteca, com a Seção de Arte organizada por Milliet,
BRASILEIRA
que se iniciaram as bases essenciais para a criação do
MAM.
Ao mesmo tempo em que atuava na prefeitura, Milliet
colaborava na Escola de Sociologia e Política desde sua
abertura, primeiro como secretário, depois como professor e tesoureiro. Ao longo da década de 50, o projeto de
Sérgio Milliet reforçou o internacionalismo na arte, movimento que já vinha se manifestando de modo gradativo em
eventos anteriores mesmo às bienais, entre os quais os
Salões de Maio e o advento dos museus em São Paulo.
Milliet trouxe para a crítica o cosmopolitismo de sua formação européia: nunca assumiu a ótica da ‘cultura nacional’ e nunca se prostrou em reverência pelo que era importado. Era um polivalente que escrevia com igual
propriedade de conhecimentos sobre literatura e artes visuais, sociologia e política, filosofia e psicologia. Com
gosto pelas viagens e atento, Milliet inaugurou um novo
perfil profissional no meio até então dominado por bacharéis apegados a frases rebuscadas, egressos da advocacia
ou da medicina, no geral contrários às novas linguagens.
A II Bienal do museu, realizada em 1953, aconteceu
sob a direção artística de Milliet e pegou uma carona no
ritual de celebração do IV Centenário da cidade de São
Paulo. Mais conhecida como a Bienal da Guernica, aquela
edição nunca foi superada em importância e respeito.
Milliet atuou ainda como diretor artístico na terceira e
quarta bienais realizadas pelo Museu de Arte Moderna
(1955 e 1957), colaborando de maneira fundamental para
a sedimentação e continuidade deste evento que estava
inserindo a cidade de São Paulo no seleto circuito internacional de arte. Nos anos em que esteve à frente da diretoria artística da bienal, Milliet deixou transparecer, mais
uma vez, a característica pedagógica que marcou sua atuação como crítico de arte, privilegiando a preocupação com
a formação e informação dos artistas e do público, com a
educação do gosto da comunidade, de modo a abrir condições para o diálogo com a arte do presente (Gonçalves,
1992:87). De uma certa forma, essa preocupação pedagógica estaria presente em toda a história da Bienal de São
Paulo, chegando ao final do século XX como um dos seus
principais pontos de apoio.
Em 1959, a V Bienal voltou a contar com Lourival
Gomes Machado à frente da direção artística. Essa foi a
última bienal realizada pelo MAM; a partir da VI edição,
a mostra passou a ser organizada pela Fundação Bienal.
Em 1961, a bienal passou a ser uma entidade autônoma
com a autorização do presidente Jânio Quadros ao crítico
Mário Pedrosa, então secretário do Conselho Nacional de
23
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 15(3) 2001
Cultura, para que a tornasse uma instituição pública a partir
da redação um projeto de lei (Amarante, 1989:106). Transformada em Fundação, a Bienal de São Paulo poderia
passar a receber verbas da prefeitura e do governo do
Estado para a execução da exposição. Até então, as exposições do Ibirapuera eram financiadas basicamente – e
oficialmente – pela iniciativa privada.
A VI Bienal (1961) comemorou os dez anos de bienais
com o crítico Mário Pedrosa como diretor-geral, mas foi
apenas na sétima edição (1963) que a bienal ocorreu definitivamente desvinculada do MAM, mas ainda sob a presidência de Ciccilo Matarazzo. Quatro meses após o término dessa bienal os militares tomariam o poder no Brasil
e, daí para frente, a Fundação Bienal começa a entrar numa
outra etapa de sua existência.
A edição de 1967 (IX Bienal) foi a Bienal Pop, nas
palavras de Liliana H. T. Mendes de Oliveira (1993). As
categorias tradicionais de classificação das obras de arte
(pintura, escultura, desenho e gravura) já não mais comportavam as obras de última geração e o regulamento foi
alterado de modo a permitir as inovações radicais que
estavam em plena expansão (Pedrosa, 1995:273), como a
arte cinética de Júlio Le Parc, por exemplo. No mesmo
ano em que a censura apenas começava a mostrar suas
garras, a pop art americana chegava ao público brasileiro
através de uma sala especial com a participação de Hooper,
Warhol, Rauschenberg e Lichtenstein.
A partir da X edição (1969), a pressão da ditadura militar começou a aumentar. Financiada agora pelo poder
público, a Bienal de São Paulo começava a entrar num
longo período de decadência de seu prestígio internacional. A censura e os conseqüentes boicotes por parte de
delegações estrangeiras esvaziavam paulatinamente a
bienal.
Em 1975, por ocasião da XIII Bienal, Ciccilo não mais
exercia controle total sobre a Fundação. Doente, pediria
demissão naquele mesmo ano. Dois anos depois, a Fundação Bienal organizava sua primeira mostra sem o seu
fundador, que morrera seis meses antes. Oscar Landmann
seria o primeiro presidente da Fundação Bienal depois da
Era Ciccilo. A partir desse momento, as bienais passariam a ter a cara de seus presidentes e a história da Fundação Bienal passaria a ser a história da sucessão desses homens.
A Fundação Bienal viu a década de 80 chegar, tendo
de enfrentar sérios problemas para se sustentar. Com a
abertura política e a mudança nas relações dos poderes
público e privado com a cultura, a forma de financiamen-
to da Fundação Bienal passaria por uma drástica transformação, especialmente por conta do expressivo aumento
da participação da iniciativa privada no patrocínio da
mostra. Transformações rápidas estavam começando a
acontecer, especialmente na estrutura da Bienal, envolvendo, além da forma de financiamento, também o final
das premiações. Era um momento de tentativa de desvinculação do oficialismo e do surgimento dos curadores
como produtores. Essas mudanças, sem dúvida, vão aparecer mais concretamente na segunda metade dos anos 80.
Em 1981, com o industrial Luiz Villares como presidente e Walter Zanini como curador, a XVI Bienal foi um
marco na história desse evento e o início da retomada do
prestígio internacional. A forma de organizar a mostra
mudou, abandonou-se a montagem com separações por
países e introduziu-se o trabalho curatorial baseado em
analogias de linguagem. Saía de cena o poder público como
o principal patrocinador das exposições bienais e entrava
em jogo a iniciativa privada, que descobria o marketing
cultural como uma forma de associar sua imagem a projetos culturais de cunho internacional. Na edição de 1983,
também sob a responsabilidade da dupla Villares/Zanini,
50% do orçamento do evento derivara da contribuição da
iniciativa privada (Villares, 1983:3). Roberto Muylaert,
Jorge Wilheim e Alex Periscinoto, presidentes da Fundação Bienal entre a XVIII e XX bienais, buscaram aprofundar essa participação da iniciativa privada e o desvinculamento dos trâmites oficiais.
A XXI Bienal de São Paulo, realizada em 1991 sob a
presidência de Jorge Stocker, foi bastante polêmica. O
regulamento fez retornar a seleção das obras a partir de
um júri e foi reinstituída a premiação. Após esse breve
retorno a alguns princípios tradicionais na organização do
evento, a XXII e a XXIII bienais (1994 e 1996), lideradas
pelo banqueiro Edemar Cid Ferreira e pelo curador Nelson Aguilar, fizeram intensificar pesadamente os investimentos da iniciativa privada e o trabalho curatorial na
organização do evento. Com o segmento Universalis, evidenciava-se a “abolição da inércia de tentativas anteriores, nas quais a instituição era mera hospedeira de representações nacionais” (Ferreira, 1996:17). Era a retomada
da proposta de Walter Zanini e a confirmação de que a
atuação do curador tornava-se cada vez mais importante.
Em 1998, o industrial Júlio Landmann e o curador Paulo
Herkenhoff organizaram a XXIV Bienal de São Paulo,
considerada pela revista Artforum (2000) como uma das
dez exposições mais importantes da década de 90 em todo
o mundo. Com essa edição, a Bienal de São Paulo chegou
24
BIENAL DE SÃO PAULO : IMPACTO NA CULTURA
ao final do século como uma mostra renovada e bastante
reconhecida no circuito internacional de arte, com um
público de quase 500 mil pessoas e orçamento de 12 milhões de dólares.
Os pesados investimentos da iniciativa privada colaboraram para que o maior evento das artes plásticas no
Brasil chegasse à beira de completar cinco décadas de
existência cumprindo um dos objetivos propostos desde
o seu início, em 1951: apresentar-se como uma exposição
de massa. Apesar do que se pode pensar num primeiro
momento, a Bienal de São Paulo não é um evento restrito
à esfera da cultura erudita ou letrada, mas sim um produto cultural que mescla cuidadosamente elementos populares e massivos da cultura àqueles típicos de uma cultura
dita elevada. Assim como as Exposições Universais do
século XIX europeu, a Bienal de São Paulo, seguindo o
exemplo de Veneza, sempre pretendeu portar-se como um
canal para os ideais civilizatórios, ligado ao poder das
nações hegemônicas.
Nesse processo, novas instâncias de decisão foram surgindo e novos atores foram ganhando destaque, na medida em que a divisão do trabalho foi incorporando a especialização das funções na sua produção. No final dos anos
90, a produção da Bienal de São Paulo envolveu um complexo processo coletivo de criação compreendendo o presidente, os curadores, arquitetos, diretores e montadores.
As articulações institucionais e financeiras transformaramse numa verdadeira ‘força-tarefa’ para erguer um evento
desse porte. A investigação dos propósitos e dos caminhos tomados nessa produção revela um determinado formato pretendido por esses agentes espalhados por diversos níveis de decisão dentro da instituição.
BRASILEIRA
cional, envolvendo profissionais das mais diversas áreas
encabeçados, costumeiramente, pela figura do curador”
(Chiarelli, 1998:32). Até os anos 70, os curadores estavam basicamente ligados à atividade museológica de lida
com o acervo e sua função não era muito bem definida,
confundindo-se com a figura do diretor do museu, responsável também pela gestão administrativa e articulações
políticas. Entretanto, as grandes exposições comemorativas ou os grandes eventos artísticos, como a bienal, por
exemplo, já possuíam seus curadores que, com pouca notoriedade, eram conhecidos como operadores culturais.
No caso da bienal isso passou a acontecer especialmente
a partir de 1977, quando o Conselho de Arte e Cultura foi
criado, mesmo ano em que Ciccilo faleceu. Tadeu Chiarelli
(1998:14), ex-curador do MAM-SP, aponta: “Com o processo de espetacularização destes eventos – que a cada
edição tornavam-se mais e mais impressionantes pela quantidade de obras, pelo caráter cenográfico e espetacular –
a figura do curador convidado a concebê-la e organizá-la
foi aos poucos ganhando um destaque cada vez maior, em
alguns casos chegando a ofuscar as obras e os artistas
participantes da mostra”.
A transformação do papel do curador acompanhou as
mudanças ocorridas na atividade museológica principalmente a partir dos anos 80, quando a explosão de público
na Europa e nos EUA apontou a mudança dessas instituições e suas atividades. A museumania, segundo Andreas
Huyssen (1997:223), incorpora definitivamente os museus
à cultura de massa:
“O papel do museu como um local conservador elitista
ou como um bastião da tradição da ata cultura dá lugar ao
museu como cultura de massa, como um lugar de um miseen-scène espetacular e de exuberância operística”.
Para Huyssen (1997:232), “‘curar’ hoje não significa desempenhar a função de ‘guardião’ de coleções (...)
mas significa mobilizar coleções, colocá-las em ação
nas paredes dos museus particulares”. Nessa mobilização das obras, o trabalho do curador envolve sempre
uma atividade reflexiva e interpretativa. No seu trabalho, o curador opta sempre por uma narrativa que alinhave a exposição.
Na XXIV Bienal de São Paulo (1998) um dos principais nomes, sem dúvida, foi Paulo Herkenhoff, curadorgeral da mostra. Sob o tema Antropofagia, Herkenhoff
buscou organizar a mostra a partir do público que a visitaria, tentando, nas suas palavras, torná-la mais legível e
assimilável (apud Fioravante, 1998) para cada um dos
milhares de visitantes da exposição.
A VEZ DOS CURADORES
Se nas primeiras bienais os diretores artísticos e os
montadores responsabilizavam-se pelo conjunto da exposição, nas últimas edições vimos surgir cada vez mais evidente a figura do curador. Hoje em dia, os curadores são,
muitas vezes, os principais produtores dessas grandes
mostras. Para Teixeira Coelho (2000:251) “quando vamos
a uma exposição hoje, uma exposição dessas que têm linha, tema, vamos ver antes o trabalho de um supra-artista, o curador, do que o trabalho de vários artistas que fazem cada um sua obra. Os artistas, estes, são instrumentos
para o curador. O curador é o grande artista”. Embora nem
sempre o grande público se dê conta, por trás das exposições de arte “existe todo um trabalho conceitual e opera-
25
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 15(3) 2001
UMA FEIRA MODERNA
PARA UM PÚBLICO DE MASSA
A estrutura formal de organização do evento não sofreu muitas alterações com relação à mostra de 1996 e foi
dividida em quatro segmentos: o tradicional Representações nacionais, que, à exemplo da Bienal de Veneza, recebe os trabalhos enviados a partir de relações diplomáticas entre o Brasil e dezenas de países participantes; o
Núcleo histórico, dedicado a discutir o tema Antropofagia e histórias de canibalismos e tem sido de extrema importância para a captação de recursos da iniciativa privada pela atração que exerce perante o grande público; o
segmento Roteiros, roteiros, roteiros, roteiros, roteiros,
roteiros, roteiros, uma mostra internacional de arte contemporânea realizada nos moldes do segmento Universalis
da Bienal de 1996, fundamentalmente baseada no forte
trabalho curatorial; e, por fim, o segmento Arte contemporânea brasileira, uma novidade na história do certame
brasileiro que foi proposta por Júlio Landmann, presidente
da Fundação Bienal.
As bienais paulistanas, pode-se dizer, não são apenas
eventos dirigidos às massas, mas também um novo modo
de comunicação entre as classes, e por isso recebe em seu
formato as marcas dessa negociação conflituosa que se dá
no campo das lutas hegemônicas. A Bienal de São Paulo
teve seu formato transformado ao longo dos seus quase 50
anos devido às diversas estratégias utilizadas para a viabilização da sua produção. Até um determinado momento,
essas estratégias exigiram a força das representações nacionais, organizadas a partir de relações diplomáticas; mas,
para continuar existindo como uma mostra importante para
sua época, a Fundação Bienal teve de mudar as regras do
jogo, transformando o formato da mostra. No final dos anos
90, o necessário apoio governamental e diplomático
inviabilizou a extinção total das delegações nacionais; a
busca do público massivo impediu que os curadores apostassem apenas na arte contemporânea e prescindissem do
Núcleo histórico; a necessidade de um forte apoio financeiro da iniciativa privada exigiu que a visitação fosse
record, colaborando para fortalecer a oferta de obras históricas e consagradas. Ao mesmo tempo, a Fundação Bienal
procurou investir também na arte contemporânea – especialmente a brasileira e a latino-americana – com uma
montagem realizada a partir de contaminações e do diálogo entre curadores, obras e artistas. Com a aceleração do
processo de globalização, a Bienal preocupou-se em abolir as fronteiras entre as delegações nacionais e entre os
segmentos históricos e contemporâneos, apostando no diálogo entre diferentes temporalidades e espacialidades na
montagem da sua última exposição do século XX.
A Bienal de São Paulo atravessou a segunda metade
do século XX como uma produção cultural que foi adquirindo uma determinada forma bastante parecida com as
grandes feiras. Além da exposição, esse formato engloba
várias atividades que ocupam espacialmente o evento,
como os diversos stands de serviços e publicidade, lojas,
lanchonetes, etc. Essas atividades e serviços paralelos ocupam, sem dúvida, um espaço cada vez maior e mais importante para o evento, tanto do ponto de vista financeiro da
mostra, quanto das atrações oferecidas ao público.
Desde o seu início, em 1951, a Bienal já oferecia esses
serviços e atividades paralelos à exposição, como intérpretes, informações e turismo, telégrafo, café, restaurante, livraria e papelaria, que visavam proporcionar facilidades aos visitantes (Tribuna da Imprensa, 13/10/1953).
Além desses, a Bienal trazia uma seção de vendas, por
meio da qual os artistas comercializavam suas obras expostas. Por esse serviço, a Bienal estabelecia uma comissão de 10% sobre o líquido das aquisições.
Parece estranho, a partir da Bienal que se conhece hoje,
pensarmos num stand de vendas das obras expostas. Atualmente o aspecto comercial presente na Bienal não está mais
ligado diretamente às obras originais, mas se pulveriza por
uma série de atividades e facilidades à disposição do público. A XXIV Bienal trouxe, como uma de suas características básicas, o grande número de stands que ofereciam
inúmeros serviços e produtos aos milhares de visitantes
da mostra. Logo à entrada o visitante percorria a Alameda de serviços, um corredor repleto de lojas que buscavam divulgar, especialmente, algumas publicações da
mídia impressa ou os serviços oferecidos por instituições
financeiras, principalmente aquelas patrocinadoras do
evento.
A loja de souvenirs é sempre um dos stands mais concorridos em qualquer grande museu do mundo e na bienal
isso não é diferente. Andreas Huyssen comenta que dentro das novas características do museu contemporâneo está
o sucesso dessas lojas, muitas delas responsáveis por
maiores receitas do que a bilheteria das instituições. Ele
aponta ainda, dentro do que denominou museumania, a
expansão de veneráveis artigos de museus e do marketing
da mostra estampado nas camisetas e pôsteres em que a
obra de arte original surge como um meio para vender seus
múltiplos derivados, e a reprodutibilidade como uma estratégia para aureolar o original (Huyssen, 1997:236). Com
26
BIENAL DE SÃO PAULO : IMPACTO NA CULTURA
a venda de cartazes, canecas, chaveiros e camisetas, a obra
de arte parece ganhar uma nova vida, uma nova aura. Para
Walter Benjamin, a reprodução técnica significou a atrofia
da aura, mas ao mesmo tempo libertou a obra de arte do
domínio da tradição (Benjamin, 1993:168-69). Ele já sabia que essa reprodução técnica significava maior autonomia para o original, aproximando o indivíduo da obra e
fazendo as coisas ficarem mais próximas, mas não imaginou que nas lojas de souvenirs dos museus e das exposições no final do século XX as obras originais pudessem
ter sua aura reforçada pela venda de suas reproduções em
objetos do cotidiano. No caso da Bienal de São Paulo,
nas suas primeiras edições, a Seção de Vendas era a encarregada de comercializar os originais. Em suas últimas
edições, as obras expostas foram comercializadas na forma de souvenirs. Esse processo relaciona-se a todo modo
de vida condicionado pela dimensão estética que penetra
o cotidiano das pessoas e define um consumo cultural
voltado para a busca de distinção (Featherstone, 1995:97).
Mas as principais atividades da Alameda de serviços
diziam respeito aos projetos pedagógicos concentrados na
monitoria digital e no núcleo de educação. A monitoria
digital era feita por um CD com 70 minutos de duração
dividido em 46 faixas que podiam ser escolhidas conforme a preferência do visitante que alugasse o equipamento. O nome dos artistas eram associados a uma faixa onde
o visitante ficava conhecendo dados sobre sua vida e obra.
Uma discreta sinalização no chão indicava se o artista
estava incluído no CD. Essa monitoria digital, que há muitos
anos não é novidade nos museus estrangeiros, faz parte
também do contexto de espetacularização das grandes exposições de arte e reflete o importante papel que a tecnologia desempenha como atrativo para o grande público.
A XXIV edição da Bienal de São Paulo foi concebida
sobre três ‘es’: Exibição, Educação e Edição, três bases
que refletiam as linhas de atuação propostas pelo presidente Júlio Landmann: a ênfase no arranjo curatorial da
mostra, a aposta no projeto educacional e o investimento
na produção de quatro catálogos cuidadosamente pensados e produzidos. Essas eram também as bases para a captação de recursos com a iniciativa privada, que poderia
patrocinar as salas especiais, os catálogos ou os projetos
pedagógicos. Assim, a Diretoria de Educação recebeu o
apoio de US$1 milhão do banco HSBC, uma quantia que
foi uma novidade até para os organizadores do evento. O
resultado foi um megaprojeto de educação envolvendo um
intenso programa de cursos e seminários que atingiu mais
de mil profissionais do ensino público e quase 120 mil alu-
BRASILEIRA
nos da rede pública que tiveram ingressos gratuitos.
Monitores volantes passeavam pela mostra com seus grupos, enquanto dezenas de monitores fixos encarregavamse de tirar as dúvidas do visitante independente. Grupos
especiais com portadores de limitações físicas ou mentais
eram atendidos pelo Projeto Diversidade, que oferecia roteiros especiais em duas horas de atividades pela mostra.
Para um público de massa, a bienal necessitou de projetos pedagógicos também de massa. Isso foi necessário
para que o evento cumprisse os objetivos civilizatórios
que estavam na base de sua constituição desde os primeiros momentos. Pelo menos desde a segunda edição, em
1953, a atividade educativa foi considerada essencial para
que o público pouco habituado à arte moderna pudesse ir
incorporando a nova linguagem especialmente vinda com
o cubismo e o abstracionismo. Desde então, a atividade
pedagógica vem fazendo parte da missão que a bienal sempre carregou consigo: levar ao longínquo país latino-americano um pouco da arte e da cultura produzidas nos grandes centros cosmopolitas da Europa e dos Estados Unidos.
Isso faz parte, de uma certa maneira, do longo processo
de enculturação descrito por Jesús Martín-Barbero (1997),
no qual um trabalho hegemônico realizado por um saber
dominante atua na transformação de uma cultura popular
atrelada a modos tradicionais de saber e de transmissão
deste saber. Nesse contexto, a Bienal de São Paulo não
apenas possui projetos pedagógicos, como ela própria é
um longo e bem-articulado projeto pedagógico com cinco décadas de existência.
NOTAS
E-mail da autora: [email protected]
1. A doação total foi de 13 obras, entre guaches, óleos, têmperas e um móbile,
que foram divididos entre Rio de Janeiro e São Paulo (Arruda, 2000:291).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ADORNO, T. “A indústria cultural”. In: COHN, G. (org.). Comunicação e indústria cultural. São Paulo, Cia. Ed. Nacional, 1972.
ALMEIDA, F.A. de. O franciscano Ciccilo. São Paulo, Pioneira, 1976.
AMARAL, A. Arte para quê? A preocupação social na arte brasileira (19301970). São Paulo, Nobel, 1987.
AMARANTE, L. As bienais de São Paulo, 1951 a 1987. São Paulo, Projeto,
1989.
ARRUDA, M.A. do N. Metrópole e cultura: São Paulo meio de século. Tese de
Livre-Docência. São Paulo, Departamento de Sociologia, FFLCH-USP, 2000.
BAKHTIN, M. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. São Paulo/Brasília, Hucitec/Ed. da Univ. de Brasília,
1993.
27
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 15(3) 2001
_________ . Charles Baudelaire um lírico no auge do capitalismo. São Paulo,
Brasiliense, 1989 (Obras escolhidas, v.III).
MACHADO, L.G. “Introdução”. In: MUSEU DE ARTE DE SÃO PAULO. I Bienal
do Museu de Arte Moderna de São Paulo. São Paulo, MAM, 1951, p.14.
BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política. São Paulo, Brasiliense, 1993
(Obras escolhidas).
MARTÍN-BARBERO, J. Dos meios às mediações: comunicação, cultura e hegemonia. Rio de Janeiro, UFRJ, 1997.
BORELLI, S.H.S. Ação, suspense, emoção: literatura e cultura de massa no Brasil. São Paulo, Educ/Estação Liberdade, 1996.
MATTELART, A. Comunicação-mundo: história das idéias e das estratégias. Rio
de Janeiro, Vozes, 1994.
_________ . A globalização da comunicação. Bauru, Edusc, 2000.
_________ . As regras da arte. São Paulo, Companhia das Letras, 1996.
BOURDIEU, P. A economia das trocas simbólicas. São Paulo, Perspectiva, 1999.
MILLIET, S. Diário crítico. São Paulo, Martins/Edusp, v.VII a X, 1981.
BUENO, M.L. Artes plásticas no século XX: modernidade e globalização. Campinas, Unicamp, 1999.
MORAIS, F. Chatô, o rei do Brasil. São Paulo, Companhia das Letras, 1994.
MORIN, E. Cultura de massas no século XX: o espírito do tempo – 1: neurose. Rio
de Janeiro, Forense-Universitária, 1987.
CERTEAU, M. de. A cultura no plural. São Paulo, Papirus, 1995.
OLIVEIRA, L.H.T.M. de. A bienal pop: a pop art analisada através das representações dos Estados Unidos e do Brasil na IX Bienal Internacional de São
Paulo. Tese de Mestrado. Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Unicamp, 1993.
_________ . A invenção do cotidiano: arte de fazer. Petrópolis, Ed. Vozes, 1996.
CHIARELLI, T. “As funções do curador, o Museu de Arte Moderna de São Paulo
e o Grupo de Estudos em curadoria do MAM”. In: MUSEU DE ARTE MODERNA DE SÃO PAULO. Grupo de Estudos em curadoria. São Paulo, MAM,
1998.
OLIVEIRA, R. de C.A. A Bienal de São Paulo: forma histórica e produção cultural. Tese de Doutorado. São Paulo, Programa de Ciências Sociais, PUC-SP,
2001.
COELHO, T. Guerras culturais. São Paulo, Iluminuras, 2000.
FEATHERSTONE, M. Cultura de consumo e pós-modernismo. São Paulo, Studio
Nobel, 1995.
ORTIZ, R. A moderna tradição brasileira: cultura brasileira e indústria cultural.
São Paulo, Brasiliense, 1991.
FERNANDES, F. A revolução burguesa no Brasil: ensaio de interpretação sociológica. Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1975.
PEDROSA, M. Dos murais de Portinari aos espaços de Brasília. São Paulo, Perspectiva, 1981.
FERREIRA, E.C. “Refletindo e inovando a maneira de expor arte”. In: FUNDAÇÃO BIENAL DE SÃO PAULO. XXIII Bienal Internacional de São Paulo –
Catálogo Universalis. São Paulo, FBSP, 1996, p.17.
_________ . Política das artes. São Paulo, Edusp, 1995.
PENTEADO, Y. Tudo em cor-de-rosa. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1976.
FIORAVANTE, C. “A Bienal e o rigor”. Folha de S.Paulo, 22/11/1998.
PONTES, H. Destinos mistos: os críticos do Grupo Clima em São Paulo (19401968). São Paulo, Companhia das Letras, 1998.
FREIRE, M.C.M. Olhar passageiro – percepção e arte contemporânea na Bienal
de São Paulo. Tese de Mestrado. São Paulo, Instituto de Psicologia – USP,
1990.
REVISTA ARTFORUM. Nova York, v.XXXVIII, december 2000.
SIMÕES FILHO, P. “A Bienal de São Paulo”. In: MUSEU DE ARTE MODERNA
DE SÃO PAULO. I Bienal do Museu de Arte Moderna de São Paulo. São
Paulo, MAM, 1951, p.10.
GRAMSCI, A. Literatura e vida nacional. São Paulo, Civilização Brasileira, 1986.
GONÇALVES, L.R. Sérgio Milliet, crítico de arte. São Paulo, Perspectiva/Edusp,
1992.
TRIBUNA DA IMPRENSA. “Em fase final os preparativos para a II Bienal de São
Paulo”. 13/10/1953.
HUYSSEN, A. Memórias do Modernismo. Rio de Janeiro, UFRJ, 1997.
VILLARES, L. “Apresentação”. In: FUNDAÇÃO BIENAL DE SÃO PAULO. XVII
Bienal de São Paulo. São Paulo, FBSP, 1983, p.3.
_________ . Dos meios às mediações: comunicação, cultura, hegemonia. Rio
de Janeiro, UFRJ, 1997.
WILLIAMS, R. Cultura e sociedade (1780-1950). São Paulo, Cia. Ed. Nacional,
1969.
JORNAL HOJE. “A Bienal da Ibec”. São Paulo, 15/08/1951.
_________ . “A Bienal – Manobra imperialista”. São Paulo, 02/09/1951.
_________ . Marxismo e literatura. Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1979.
_________ . “Verdadeira farra de tubarões na inauguração da Bienal de
Rockefeller”. São Paulo, 21/10/1951.
_________ . Cultura. São Paulo, Paz e Terra, 1992.
_________ . La política del modernismo: contra los nuevos conformistas. Buenos
Aires, Ediciones Manantial, 1997.
JORNAL VOZ OPERÁRIA. “Bailam parceiros da Bienal”. Rio de Janeiro, 13/10/
1951.
28
TELENOVELAS BRASILEIRAS:
BALANÇOS E PERSPECTIVAS
TELENOVELAS BRASILEIRAS
balanços e perspectivas
SILVIA HELENA SIMÕES BORELLI
Professora do Departamento de Antropologia e do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP,
Pesquisadora do Núcleo de Telenovelas da ECA-USP
Resumo: O objetivo é refletir – elaborar um balanço, projetar perspectivas – sobre o lugar da telenovela na
produção cultural contemporânea e no campo da reflexão acadêmica. A telenovela apresenta-se como um dos
principais produtos da televisão brasileira e esta, por sua vez, como um dos mais significativos meios de comunicação, fundamental na consolidação do projeto de modernização no Brasil. Além de produto da indústria
cultural, a telenovela – forma seriada, território de ficcionalidade – constitui-se em elemento de mediação
entre produtores e cotidiano dos receptores.
Palavras-chave: telenovela; produção televisual; territórios de ficcionalidade; recepção.
epois de mais de uma década no envolvimento com
pesquisas sobre ficção seriada na TV,1 é possível
afirmar que a telenovela conquistou seu espaço no
campo cultural e ganhou visibilidade no debate em torno da
cultura brasileira. Em 1986, quando foi iniciado o projeto de
mapeamento da história e produção da telenovela no Brasil
(Ortiz, Borelli e Ramos, 1989), ainda não existiam muitas
pesquisas acadêmicas sobre o tema.2 Porém, naquele momento, já se considerava a importância da ficção televisiva seriada – mais especialmente a telenovela, no caso brasileiro e
latino-americano – como um objeto privilegiado para a compreensão da cultura contemporânea.
Ainda assim, a maior parte dos dados coletados em 1986
constava de fontes primárias – evidenciam-se, entre elas,
depoimentos e entrevistas3 com autores, diretores, atores
e demais produtores culturais envolvidos no processo de
construção da narrativa da telenovela – e de informações
compiladas por agências de publicidade e propaganda,
institutos de pesquisa de mercado e mídia impressa. Devese ressaltar, ainda, que um dos elementos mais significativos na composição do protocolo metodológico desta
pesquisa centrou-se na realização de uma etnografia de
produção no interior das principais redes de televisão
voltadas para a produção de telenovelas neste período:
Globo e Manchete.
O que se pode constatar, a partir dessas considerações
preliminares, é que, apesar de a televisão já ter comemo-
rado 51 anos de história (1950-2001) e de a telenovela
constar de sua grade de programação, desde a origem – a
primeira delas, Sua vida me pertence, de Walter Foster,
foi ao ar na extinta TV Tupi, em 1951 –, e permanecer,
até hoje, como uma de suas principais atrações, a academia levou cerca de três décadas para começar a refletir
sobre o lugar ocupado pela telenovela no campo cultural
brasileiro e na vida cotidiana dos receptores.
D
TELENOVELA E CAMPO ACADÊMICO
Muito se debateu 4 estes anos todos sobre os perigos de
manipulação, evasão e alienação que emanariam dos enredos melodramáticos e alcançariam o público-alvo – primeiro só as mulheres, depois toda a família –, de forma a
transformá-lo num mero reduto de sonhos e lágrimas, vazio de vontades, pleno de ilusões.
Esta tendência, sem dúvida hegemônica no campo da
sociologia da cultura e mesmo no de uma certa teoria da
comunicação com tendência mais crítica, atravessou os anos
70 e parte dos 80 sem que se tivesse alterado, neste período e de forma significativa, um certo preconceito acadêmico em relação à telenovela. Mesmo o aumento gradativo
de pesquisas e pesquisadores preocupados com a temática
(Fadul, 1993) não conseguiu reverter tal estado da arte.
Um dos maiores desafios das pesquisas sobre telenovela corresponde ao confronto com os critérios que legi-
29
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 15(3) 2001
timam e consagram os objetos dentro do campo cultural e
do debate acadêmico. Tais critérios concebiam – e ainda
concebem – as narrativas ficcionais televisivas apenas
como produtos industriais, simples entretenimento, exteriores à produção artística e às tradições e distantes da
esfera dos bens culturais. As críticas negativas foram veementes, até que a telenovela se incorporasse ao rol dos
objetos de reflexão ou fosse considerada parte constitutiva
do campo cultural brasileiro e latino-americano.
Com o passar dos anos, algumas pesquisas se dispuseram a enfrentar o paradoxo que resulta de análises e interpretações sobre os variados e complexos produtos da indústria cultural: se, por um lado, deve-se afirmar sua
condição de “mercadorias” – mesmo que “impalpáveis”,
como diria Morin (1984:14) – por outro, podem ser considerados “formas culturais” (Williams, 1977; 1992) ou
“territórios” de ficcionalidade (Calvino, 1984:49-56) capazes de estabelecer profundas relações de mediação e
empatia com os receptores.
As razões que justificam a afirmação anteriormente
mencionada, sobre a existência de um certo preconceito
acadêmico diante do fenômeno das telenovelas, residem
no fato de que, neste debate, cultura sempre foi considerada sinônimo de culto, erudito. Ainda que se tenha preservado, no contexto acadêmico, um espaço para a análise de manifestações da cultura popular – compreendida
como tradições, raízes –, o popular e o erudito ocuparam lugares distintos e excludentes no cenário da cultura brasileira: o culto restou consagrado aos museus, academias, institutos de arte, grupos literários, enquanto o
popular – tratado, muitas vezes, pelo universo culto, como
algo necessário a “que se deva conceder” (Matos, 1993)
– ficou reservado às etnias, comunidades, “classes subalternas” (Gramsci, 1986) ou ao cotidiano vivido pelos
trabalhadores.
Os contornos desta reflexão emaranharam-se, e muito,
com a consolidação histórica da cultura de massa e a ampliação dos espaços das mídias em todo o mundo. No
Brasil, isso ocorre a partir de meados dos anos 60, quando se observa uma cisão que segmentou o campo cultural
em três fragmentos polarizados e excludentes: o culto, o
de massa e o popular. Por questões que hoje parecem óbvias, o massivo foi responsabilizado, ao mesmo tempo,
pela vulgarização do erudito e pela degradação do popular. Para os críticos deste projeto de modernidade, a “cultura de massa” (Morin, 1984) – que não deve ser confundida com a noção de “indústria cultural” (Adorno, 1986)
– tornou-se a razão mesma do processo de modernização
e os meios de comunicação passaram a ser seus principais
instrumentos de realização.
A televisão e as telenovelas, fundamentos de uma nova
ordem, aparecem como elementos capazes de ocasionar
desordens até então inconcebíveis: invadem lares; alteram
cotidianos; desenham novas imagens – seria possível uma
estética televisual? –; propõem comportamentos e consolidam um padrão de narrativa considerado dissonante, tanto
para os modelos clássicos e cultos quanto para as tradições populares.
Do ponto de vista teórico, o que se pode observar neste debate, hoje em dia, é a presença hegemônica da tradição frankfurtiana para se pensar a cultura contemporânea.
Os parâmetros da Escola de Frankfurt começaram a ser
apropriados, no Brasil, no final dos anos 60, tanto por
intelectuais marxistas quanto por críticos radicais ao marxismo. Um dos trabalhos pioneiros sobre Benjamin e
Marcuse é de autoria de Merquior (1969), um “liberal” e
“impenitente adversário dos frankfurtianos” (Cohn,
1986:29). No mesmo ano, entretanto, a editora Civilização Brasileira publicou, numa tradução pioneira de José
Lino Grünnewald, a hoje famosa reflexão de Benjamin
(1969) sobre obra de arte e reprodutibilidade técnica.
Em seguida, nos anos 70 e 80, o pensamento frankfurtiano
construiu uma trajetória bastante visível e se consolidou
no interior de um debate marxista, já significativo nas
décadas anteriores, mas apropriado e adaptado, nesta época, com o objetivo de interpretar, criticamente, o modelo
de modernização e os processos de industrialização da
cultura no Brasil. São vários os intelectuais que escreveram sobre Benjamin e Adorno, ou traduziram seus artigos, 5 passando a desenvolver uma reflexão baseada nos
princípios da teoria crítica (Cohn, 1986), abrindo brechas
para problematizar o lugar da cultura no interior do debate marxista – determinação/dominância, superestrutura/
infra-estrutura – e sedimentando uma tradição de pensar
as mídias – com uma melhor precisão do conceito
frankfurtiano: pensar a indústria cultural – sob a ótica do
que se denominou “crítica ideológica dos meios” entendidos, estes últimos, como representantes de uma fase
complexa de modernização do “capitalismo administrado”.
Esta abordagem atravessou as últimas décadas, mantendo-se ativa e hegemônica, até hoje. Todavia, o que se
pode observar nos últimos anos é a presença de um certo
deslocamento do eixo dessa hegemonia frankfurtiana – ou
melhor esclarecendo, hegemonia do pensamento adorniano
– em direção a uma reflexão que, por um lado, retoma o
diálogo com a tradição inglesa do cultural studies –
30
TELENOVELAS BRASILEIRAS:
Hoggart (1973), Thompson (1963) e, principalmente,
Williams (1958, 1961 e 1977) e Hall (1975) – e, por outro, recoloca no cenário das tendências o pensamento de
Gramsci (1986 e 1999), também presente entre os marxistas brasileiros, desde o final dos anos 60. Entretanto, a
perspectiva gramsciana é agora apropriada não como prioridade da reflexão no campo da ciência política, mas também como instrumento privilegiado na análise da cultura
e dos conflitos resultantes dos embates e simbioses processados entre as esferas culturais populares, massivas e
eruditas. Além disso, mantém-se o diálogo com a Escola
de Frankfurt privilegiando, entretanto, menos as tendências preconizadas por Adorno – que, para vários autores,
estariam centradas numa radical perspectiva da “dialética
da negatividade” – e mais um certo “tom” benjaminiano
de crítica à modernidade. 6
O ponto central, capaz de esclarecer este deslocamento, situa-se na possibilidade de incorporar, para além da
análise dos meios – produção, ideologia e materialidades
econômicas – , outros elementos aptos a dar conta, no caso
da telenovela por exemplo, das especificidades do produto – linguagens, “formas” narrativas, “territórios” de
ficcionalidade, dimensões da videotécnica – e dos receptores, compreendidos como sujeitos que se apropriam de
enredos e tramas e os transformam em novas histórias,
mediadas por suas experiências cotidianas, “lógicas dos
usos” (Certeau, 1994) e formas de subjetivação.
Esta tendência mencionada tem sido assumida e veiculada por vários pesquisadores em todo mundo7 e, em particular, por alguns latino-americanos, entre eles, MartínBarbero (1987 e 1999) e Canclini (1982 e 1990).
Conectados ao debate mais geral sobre cultura contemporânea dentro do campo marxista, estes autores situam a
cultura dentro de um contexto latino-americano de “modernidade tardia” e problematizam, de forma articulada,
as relações entre cultura popular e cultura de massa.
Canclini defende, nesse sentido, que a cultura deve ser
concebida dentro de contextos históricos “híbridos”.
Martín-Barbero caminha em direção semelhante, propondo que, por meio do conceito de “cultura popular de massa”, se possa construir uma totalidade cultural conflitiva
e complexa, a partir da qual popular e massivo se entrelaçam, configurando novas formas resultantes da tessitura
de diferentes matrizes culturais: não apenas massivo, nem
só popular, mas espaço de entrecruzamento, mestiçagem,
embate entre elementos da tradição, com outros, que resultam de invenções, variações e rupturas engendradas pelo
próprio processo de modernização.
BALANÇOS E PERSPECTIVAS
É fundamental esclarecer que as abordagens, perspectivas teóricas e autores até então referidos não devem ser
encarados de maneira excludente, mas sim de forma a
permitir a composição de uma rica teia de conhecimentos, complexamente relacionados.
Elucidando melhor: desse princípio – conhecimentos
complexamente relacionados – resulta a hipótese de remontar variadas trocas e restituir a origem de muitos dos
conceitos que são utilizados, hoje, nesse contexto de reflexão sobre cultura contemporânea. Entre os diálogos possíveis, destacam-se, por exemplo:
- as presenças inequívocas de Gramsci – principalmente
em relação aos conceitos de “hegemonia” e “cultura popular” – e da perspectiva do cultural studies – sólida na
Inglaterra desde os anos 60 –, que permitiram aos latinoamericanos não só reavaliarem o sentido atribuído ao popular, à cultura “comum”, diante da presença cada vez mais
forte da cultura de massa, mas também assumirem o objetivo da construção de um conhecimento capaz de superar
as barreiras e invadir as fronteiras segmentadas dos saberes “disciplinarmente” constituídos (Barker e Beezer,
1992);
- os nexos possíveis entre Gramsci e Bakhtin (Brandist,
1995) e as conexões que Williams (1977 e 1992) estabelece entre os conceitos gramsciano e bakhtiniano de
“hegemonia” e “forma”;
- o quanto este resgate foi fundamental na delimitação de
algumas das noções básicas do pensamento de Williams
(1961 e 1977) como as de “estruturas de sentimento”, “tradição seletiva”, “dominante, residual e emergente”;
- as tantas heranças que ficaram de Simmel e Benjamin –
a brecha possível para a presença dos “narradores” na
modernidade, uma particular visão de história e do papel
do historiador materialista, a obsessão pela salvação das
“origens”, a indagação sobre a possibilidade da “experiência” no mundo moderno, a incorporação das dimensões
relativas às “subjetividades do homem contemporâneo”
e, ainda, o conceito de “mediação”, que Martín-Barbero
(1999) afirma ter herdado de Benjamin;
- a hipótese de levar adiante a perspectiva assumida por
Morin (1984) da busca de um conhecimento complexo
capaz de dialogar com tantas referências e problematizar
as também complexas relações colocadas pela cultura de
massa na contemporaneidade.
O resultado deste mapeamento permite que se qualifique
um pouco mais aquilo que anteriormente se denominou “deslocamento do eixo analítico”, retomando-se, agora em outro
31
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 15(3) 2001
patamar, os seguintes pressupostos: no lugar da reflexão que
privilegia a análise dos meios, das indústrias culturais e das
mídias, uma outra, que busca as demais complexidades envolvidas nas relações; não apenas TV, enquanto meio de comunicação, mas todo o processo que envolve tanto o pólo de
produção das materialidades econômicas – e aqui a contribuição de Frankfurt é imprescindível e deve ser incorporada
ao protocolo teórico-metodológico – quanto os demais elementos – linguagens, “territórios” de ficcionalidade, apropriações, usos – entendidos como componentes de uma cadeia de mediações que relacionam indústrias culturais,
produtores, produtos e receptores.
É a partir deste cenário, em que conhecimentos objetos e saberes batalham por sua legitimidade e consolidação, que podem ser propostas alternativas para os estudos
de ficção seriada ou, mais especificamente, para se pensar a importância da telenovela como objeto privilegiado
neste contexto de reflexão.
Adotando-se como parâmetro a relação entre autores,
abordagens e perspectivas anteriormente referidos, tornase possível afirmar que o objetivo mais geral deste trabalho tem sido o de construir uma reflexão que seja capaz
de dialogar com conhecimentos que resultam de diferentes origens e inserções e pensar a telenovela a partir de
quatro momentos articulados e não dissociados.
Nos anos 50 e 60, a “forma” da telenovela encontrase, no Brasil, bastante próxima e indiferenciada dos padrões que lhe dão origem. Pode-se arrolar, aqui, algumas
das principais características que compõem o cenário de
constituição e consolidação do campo televisivo e, em
especial, da esfera de produção das telenovelas, neste
período:
- fronteiras ainda difusas, em busca de uma linguagem
televisual própria, que possa se diferenciar da “forma”
literária, radiofônica, teatral ou cinematográfica – notamse, neste contexto, os conflitos e simbioses processados
entre os campos da literatura, imprensa, rádio, teatro e cinema, articulados, na TV, ao redor de um importante
mecanismo de reprodução das indústrias culturais, a
serialização;
- narrativa melodramática, com tendência ao dramalhão,
ambos “territórios” de ficcionalidade característicos das
radionovelas, novelas semanais e dos filmes do cinema
de lágrimas;
- fabricação em bases mais artesanais que industriais,
marcada pela improvisação técnica e pela ausência de critérios de divisão do trabalho capazes de definir, com clareza, as diferentes etapas da produção – roteiros, direção,
figurinos, cenários, iluminação, sonoplastia, etc.;
- migração de produtores culturais – autores, diretores,
atores e demais componentes do processo – que vieram
de outros campos como o rádio, o teatro e o cinema; disto
resulta um corpo de profissionais não-especializado – afinal, a televisão estava apenas começando, sem qualquer
acúmulo de capital cultural que pudesse permitir que os
agentes dessem conta dos novos desafios;
HISTÓRIA, PRODUÇÃO, TERRITÓRIOS DE
FICCIONALIDADE, RECEPÇÃO
A telenovela emerge como um objeto de padrão
massivo, constituído em constante diálogo com matrizes
populares: para considerar o quadro conceitual anteriormente referido, uma manifestação da “cultura popular de
massa” (Martín-Barbero, 1987). Originária de tradições,
ao mesmo tempo populares e massivas, das narrativas
orais, do romance-folhetim ou das novelas semanais
(Meyer, 1996 e Sarlo, 1985), das radionovelas (Belli,
1980), do cinema de lágrimas (Oroz, 1992) e da soap
opera norte-americana (Allen, 1995), a telenovela brasileira distingue-se, na atualidade, por ser um produto cultural diferenciado, fruto de especificidades das histórias
da televisão e da cultura no Brasil. Mesmo que se possa
falar genericamente de telenovelas, supondo um formato
universalizante de produção e narrativa – e ainda que haja
uma proximidade entre as telenovelas latino-americanas
e as brasileiras – é importante delimitar as particularidades da história dos campos culturais em que são produzidas, veiculadas e recebidas.
- grande número de telenovelas adaptadas de textos literários e, em curso, um processo experimental de formação de autores, em busca de “textos” adequados à linguagem da TV (sinopses, scripts, roteiros), de diretores
“aprendendo” a lidar com os recursos técnicos e imagéticos, de atores ultrapassando os limites da “voz” e da
experiência radiofônica, para encarar a necessária simbiose
entre “fala” e “imagem que fala”, e dos demais agentes
envolvidos no processo.
Esse panorama alterou-se somente ao final dos 60 e início dos 70, quando começaram a surgir inovações que racionalizaram e sofisticaram o processo produtivo. Destacamse, a partir daí, algumas transformações relacionadas à
tecnologia, ao gerenciamento administrado, à qualificação
dos profissionais, ao fortalecimento do setor das telecomunicações no Brasil e, também, ao próprio modelo narrativo:
32
TELENOVELAS BRASILEIRAS:
- aparecimento do videoteipe, que revoluciona o fazer
televisivo e introduz um certo grau de organização, planejamento, “antecipação”, além da possibilidade de repetir, corrigir, restaurar e, mais do que isto, guardar, arquivar, compor um acervo, uma história, uma memória;
BALANÇOS E PERSPECTIVAS
O principal deslocamento de eixo temático pode ser
detectado na ênfase que se coloca, a partir daí, nos enredos voltados à veiculação de imagens da realidade brasileira; incorpora-se à trama um tom de debate crítico sobre as condições históricas e sociais vividas pelos
personagens; articulam-se, no contexto narrativo, os tradicionais dramas familiares e universais da condição humana, os fatos políticos, culturais e sociais, significativos
da conjuntura no período; esta nova forma inscreve-se na
história das telenovelas como uma característica particular da produção brasileira; e estas narrativas passam a ser
denominadas “novelas verdade”, que veiculam um cotidiano que se propõe crítico, por estar mais próximo da
vida “real” e por pretender desvendar o que estaria ideologicamente camuflado na percepção dos receptores.
Destacam-se como exemplos, no interior dessa tendência dos anos 70, autores e telenovelas9 como Bandeira 2 e
Saramandaia (Dias Gomes, 1971-72; 1976), Irmãos coragem (Janete Clair, 1970-71), Os deuses estão mortos,
Escalada e Casarão (Lauro César Muniz, 1971; 1975;
1976), Gabriela (Walter George Durst, adaptação de Jorge Amado, 1975), entre outros. Com eles, a produção da
telenovela no Brasil busca legitimidade por meio do diálogo estabelecido com os campos do cinema, literatura e
teatro, todos voltados, desde a década anterior, para a construção de uma crítica articulada ao projeto já anteriormente
mencionado: grupos de intelectuais marxistas que se propuseram a enfrentar o debate sobre as relações entre cultura e arte, sobre as exclusões entre popular, massivo e
erudito, com o objetivo consonante – ainda que com leituras e interpretações diversas, dependendo da ótica ou
da inserção político partidária de seus membros – de conceber uma teoria crítica capaz de projetar novos rumos
para a sociedade brasileira, diferentes daqueles propostos pelo padrão de modernização até então vigente.
Entretanto, esses intelectuais – antes reconhecidos em
seus campos de origem como escritores, cineastas e diretores, mas agora como produtores de TV – tiveram e continuam tendo enorme dificuldade em legitimar seu trabalho, mesmo entre seus próprios pares, pois escrevem,
dirigem e atuam numa indústria cultural; estão longe, portanto, de colaborar para a preservação dos padrões artísticos, culturais e cultos, imprescindíveis na construção
desta crítica ao modelo de modernidade administrada.
Ainda assim, estes autores e suas telenovelas deixaram
marcas de distinção e legaram uma herança que se reitera
durante a década de 80 e persiste em anos mais recentes;
continuam a produzir telenovelas com o objetivo de man-
- câmaras cada vez mais leves, que podem ser carregadas
ao ombro e que passam a filmar o “mundo lá fora”; estas
imagens criam novas atmosferas e propiciam que as tramas não fiquem circunscritas apenas aos cenários “artificiais” dos estúdios, incorporando um tom mais “realista”
e “natural” favorecido pelas “cenas externas” – as grandes metrópoles e outras capitais do país, com suas ruas e
ladeiras já inscritas no imaginário dos receptores, como
cartões postais que divulgam uma cara, uma identidade
brasileira, as personagens de ficção que se misturam às
pessoas comuns e circulam com elas pela cidade;
- introdução da cor, que altera significativamente o modelo produtivo – cenários, figurinos, iluminação, que necessitam não só conceber a imagem nas fronteiras entre o
preto, o cinza e as demais gradações até que se atinja a
luminosidade do branco, mas também incorporar os múltiplos tons e as diversas transições de uma cor para outra
e das variações de tonalidades dentro de um mesmo campo de cores;
- maior investimento no treinamento e formação de pessoal para atuar “com qualidade” e com as especificidades
do meio, de forma a permitir, mesmo que embrionariamente, a constituição de um corpo de profissionais aptos a responder sobre “o que é fazer TV” e não mais continuar produzindo teatro, cinema, rádio e literatura “na”
televisão;
- processo de divisão do trabalho que cria departamentos
próprios responsáveis pelos figurinos – as atrizes, por
exemplo, não necessitam mais trazer de casa seus próprios
vestidos de noiva para que a personagem possa se casar –
, cenografia, iluminação, música, sons que administram e
“industrializam” o processo produtivo, rompendo, em
parte, com a improvisação e a artesanalidade;
- e, finalmente, para alguns canais de televisão, a transmissão da programação em rede nacional, que resulta da
ação concatenada entre o avanço do setor das telecomunicações e a potencialidade de novas tecnologias, em rápida ascensão nos anos 70. 8
O modelo narrativo passa, também, por significativas
transformações com a introdução de novas temáticas e do
diálogo do melodrama com outros “territórios” de
ficcionalidade.
33
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 15(3) 2001
ter a perspectiva crítica, por meio do diálogo com a realidade brasileira.
É interessante observar que muitos receptores referendam estes mesmos critérios de distinção e afirmam que estas são as telenovelas que permanecem na memória: estão
catalogadas no rol “das grandes histórias”, “daquelas que
ficam”.10 Entre as freqüentemente citadas, destacam-se:
Terras do sem fim (Walter George Durst, adaptação de Jorge
Amado, 1981-82), Roque Santeiro (Dias Gomes, 1985-86),
Roda de fogo (Lauro Cesar Muniz, 1986-87), Tieta e A
indomada (Aguinaldo Silva, adaptação de Jorge Amado,
1989-90; 1997), Renascer, Rei do gado e Terra nostra
(Benedito Ruy Barbosa, 1993; 1996-97; 1999-00).
Além do deslocamento de eixo temático, pode-se também observar, a partir dos anos 70, um descentramento da
hegemonia do melodrama provocado pela invasão de outros “territórios” de ficcionalidade,11 como a comicidade, a
aventura, a narrativa policial, o fantástico e o erotismo. São
tramas que, paralelamente ao fio condutor melodramático,
inserem-se no contexto do enredo e passam a dialogar com
matrizes constitutivas destes outros “territórios”. Alguns
exemplos concretos podem colaborar no esclarecimento
desta “mélange” de formas e matrizes:
- telenovelas como as de Bráulio Pedroso – Super plá
(1969-70), O cafona (1971), O bofe (1972), O rebu (197475), O pulo do gato (1978), Feijão maravilha (1979) –,
de Silvio de Abreu – Guerra dos sexos (1983-84), Cambalacho (1986), Sassaricando (1987-88), Deus nos acuda (1992-93), além de outros autores como Carlos
Lombardi (Uga-Uga, 2000), apostam num padrão narrativo que mistura traços constitutivos do melodrama com
outros da comicidade: a morte e o riso, a maldade e o riso,
a tensão e o riso. São estas as matrizes clássicas do melodrama cômico que relacionam, ao mesmo tempo, o riso à
gargalhada trágica (Prado, 1972:89-90). Reiterando, há
um processo de incorporação de traços da comicidade ao
padrão tradicional do melodrama e dele emergem o humor, a sátira e a farsa, em enredos que continuam a falar
de amores e ódios, pobres e ricos, justiças e injustiças.
Nesse sentido, a comicidade é constitutiva e não exterior
ao universo melodramático e estas narrativas podem ser
historicamente localizadas nos variados contextos da cultura popular (Bakhtin, 1987);
O fantástico desenvolve-se ao redor de um padrão marcado por surpresas não decifráveis pelos mecanismos da
lógica racional. A pergunta que o receptor normalmente
formula é: aquilo realmente aconteceu? Oscilando e hesitando entre a crença e a dúvida, ele passa a buscar eventuais falhas no sentido narrativo ou mesmo apela para uma
explicação sobre a irracionalidade ali contida.12
Estas “novidades” invadem gradativamente o espaço
constituído do melodrama e, mesmo sem romper com sua
hegemonia, flexibilizam o modelo narrativo gerando alterações significativas no padrão tradicional. Recompor,
portanto, a história das telenovelas no Brasil, sob a ótica
dos territórios de ficcionalidade, supõe considerar este
processo de elaboração e entrecruzamento de traços das
matrizes culturais originárias. Isto tudo, aliado aos aspectos já citados de alterações no processo produtivo nos anos
70, 80 e 90, diferencia, e muito, as telenovelas brasileiras
das latino-americanas, que permanecem fiéis não só às
matrizes clássicas do melodrama, mas também a padrões
de produção menos complexos e sofisticados que os de
algumas TVs no Brasil. 13
Os territórios de ficcionalidade são fundamentais no
processo de construção das mediações e ampliam o leque
de conexões e alternativas de constituição do diálogo entre produção, produtos e receptores. Nesse sentido, e com
o objetivo de atribuir coerência aos pressupostos teóricos
anteriormente analisados, ou seja, o de realizar uma reflexão que possa dar conta tanto da especificidade dos
meios – produção de TV, produção de telenovelas –, quanto das particularidades do produto – linguagens, “formas”
narrativas, “territórios” de ficcionalidade –, faltam algumas considerações finais sobre a importância de incorporar os receptores ao quadro analítico e concebê-los como
um pólo ativo nessa cadeia de mediações; receptores capazes de se apropriar de enredos e tramas e transformálos em novas histórias, mediadas por suas experiências
cotidianas, repertórios e formas de subjetivação.
Algumas pesquisas de recepção recentemente realizadas (Lopes, Borelli e Resende, 2001) têm confirmado o
pressuposto teórico da existência de um contrato de leitura, ou melhor, de um pacto de recepção que prevê que os
leitores/espectadores possam se situar como sujeitos ativos,
constitutivos e constituintes, dos processos de comunicação. Mediados por suas experiências cotidianas, e por repertórios que resultam de suas posições de classe, gênero,
geração, etnia e formas de subjetivação, os receptores mergulham no fascínio das narrativas, histórias, enredos e personagens, reconhecendo os territórios de ficcionalidade,
- telenovelas de autores como Aguinaldo Silva, por exemplo – A indomada (1997), Porto dos milagres (2001), entre
outras –, dialogam com a narrativa fantástica (Todorov,
1975), sustentada no pressuposto da existência de uma
outra lógica, que não a da experiência “real” e cotidiana.
34
TELENOVELAS BRASILEIRAS:
BALANÇOS E PERSPECTIVAS
dialogando com as dimensões da videotécnica, estabelecendo conexões de projeção e identificação e construindo uma
competência textual narrativa.
Afirma-se, dentro desta tendência, o pressuposto da
existência de um repertório compartilhado, em que produtores, narrativas e receptores – situados em diferentes
posições de classe social, gênero, geração, etnia e formas
de subjetivação – encontram-se articulados, conflituosamente, numa cadeia de mediações que não diluem em hierarquias, mas também não excluem nenhum de seus elementos da composição dessa totalidade.
tores, produtos e receptores Os territórios de ficcionalidade são compreendidos
não apenas como modelos literários, mas como matrizes, fatos culturais presentes em inúmeras manifestações da cultura popular de massa; são fluidos, dinâmicos, entrelaçam-se e encontram-se em permanente processo de redefinição e
hibridização; ou seja, uma mesma narrativa pode conter traços de variadas matrizes: o melodrama, que se mistura à comicidade e esta, por sua vez, que dialoga
com a narrativa fantástica, e assim sucessivamente.
NOTAS
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
E-mail da autora: [email protected]
ADORNO, T.W. “A indústria cultural”. In: COHN, G. (org.). Theodor W. Adorno. São Paulo, Ática, 1986, p.92-99.
12. Há, também, outros exemplos de telenovelas em que o melodrama dialoga
com matrizes como as da aventura e do erotismo, sendo que esta última apresenta-se como um dos mais significativos elementos de distinção entre as telenovelas brasileiras e outras produções similares.
13. É importante esclarecer que não se pode afirmar a existência de “um” modelo
de produção televisiva no Brasil. Uma avaliação mais acurada sobre a produção
de telenovelas nas últimas décadas permite perceber que apenas a Rede Globo
conseguiu manter um padrão reconhecido de qualidade, com televonelas que são
bem-sucedidas em termos de público e exportadas para diversos países.
1. O resultado desse percurso – que envolve várias pessoas, em diferentes momentos – pode ser acompanhado em: Borelli (1996, 1997, 2000a, b e c, 2001);
Borelli e Mira (1996); Borelli e Priolli (2000); Lopes, Borelli e Resende (2001);
Ortiz, Borelli e Ramos (1989).
ALLEN, R. (ed.). To be continued... soap operas around the world. Londres,
Routledge, 1995.
BAKHTIN, M. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento . São Paulo, Hucitec/UnB, 1987.
2. Destacam-se, nesse período, alguns trabalhos pioneiros, como os de Miceli
(1973), Khel (1980 e 1986), Campadelli (1980 e 1985), Leal (1985) e Marcondes
Filho (1986).
BARKER, M. e BEEZER, A. (ed.). Reading into cultural studies. London,
Routledge, 1992.
3. Tanto aqueles que fazem parte dos acervos de Idart e Funart, quanto os inúmeros depoimentos coletados durante a realização do trabalho de campo.
BELLI, Z.P.B. Radionovela: análise comparativa na radiodifusão na década de
40. Dissertação de Mestrado. São Paulo, ECA-USP, 1980.
4. Cabe esclarecer que o “debate” a que se fará referência, algumas vezes, neste
artigo, diz respeito a uma reflexão assumida por intelectuais marxistas, preocupados em responder pelos rumos da cultura diante de um modelo de modernização que tem priorizado a consolidação das indústrias culturais e a expansão do
mercado de bens simbólicos. É evidente que há, fora do campo marxista, outras
abordagens, como aquelas vinculadas às teorias funcionalista, dos efeitos, da
persuasão, entre outras que não fazem parte das prioridades analíticas desta reflexão.
BENJAMIN, W. “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”. In:
s.ed. (org.). A idéia do cinema. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1969.
_________ . Correspondance (1910-1928/1929-1940). Paris, Aubier Montaigne,
1979.
BORELLI, S.H.S. Ação, suspense, emoção: literatura e cultura de massa no
Brasil. São Paulo, Educ/Estação Liberdade/Fapesp, 1996.
_________ . “Los géneros ficcionales en las telenovelas brasileñas”. In: VERÓN,
E. e CHAUVEL, L.E. (orgs.). Telenovela: ficción popular y mutaciones
culturales. Barcelona, Gedisa, 1997, p.169-178.
5. Ver o levantamento das publicações e traduções dos frankfurtianos no Brasil
em: Kothe (1985), Cohn (1986) e Freitag (1986).
6. Alguns autores vêm trabalhando, nos últimos anos, com o objetivo de avaliar
as diferenças entre Benjamin e Adorno – análises que priorizam mais as variações/conflitos e menos as recorrências/concordâncias capazes de configurar uma
perspectiva frankfurtiana – e de buscar uma certa autonomia de Benjamin em
relação aos princípios norteadores da Escola de Frankfurt: ver a instigante reflexão de Buck-Morse (1989) sobre as passagens benjaminianas que utilizou, entre
outras fontes de pesquisa, a correspondência de Benjamin (1979) e as trocas entre ele e Adorno. Ver, também, Kothe (1978) e Martín-Barbero (1987).
_________ . “Telenovelas brésiliennes, matrices populaires et langages
audiovisuels”. In: MIGOZZI, J. (org.). De l’écrit à l’écran. France, Limoges,
Presse Universitaire de Limoges (Pulim), 2000a, p.817-830.
_________ . “Jovens em São Paulo: lazer, consumo cultural e hábitos de ver
TV”. Revista Nómadas. La singularidad de lo juvenil. Bogotá, Departamento
de Investigaciones Universidad Central (Diuc), n.13, out. 2000b, p.92-97.
_________ . “Ficção televisiva e multiculturalidade”. Apresentado no XXIII
Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação (Intercom). Manaus, set.
2000c (no prelo).
7. Ver, como exemplo, as pesquisas desenvolvidas na Austrália (Frow e Morris,
1993), França (Forbes e Kelly, 1995) e Itália (Forgacs e Lumley, 1996), para além
do que já vinha sendo produzido na Inglaterra e nos EUA, em anos anteriores
(Grossberg, Nelson e Treichler, 1992).
_________ . “Telenovelas brasileiras: territórios de ficcionalidade, universalidades, segmentação”. In: DOWBOR, L.; IANNI, O.; RESENDE, P. e SILVA, H. (orgs.). Desafios da comunicação. Petrópolis, Vozes, 2001, p.127141.
8. É importante salientar que muitas das alterações que definem novos rumos e
um patamar diferenciado de produção televisiva no Brasil resultam da entrada da
Rede Globo, a partir de 1965 – e de sua consolidação nos anos 70 –, no campo
televisual brasileiro (ver Borelli e Priolli, 2000).
BORELLI, S.H.S e MIRA, M.C. “Localidades, universalidade: radionovelas e
telenovelas no Brasil”. Dinâmicas multiculturais, novas faces, outros olhares. Lisboa, Edições do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de
Lisboa, v.II, n.7, nov. 1996, p.755-778.
9. As telenovelas aqui citadas fazem parte do acervo de produção da Rede Globo
e sua escolha justifica-se pelo fato de ser esta a única emissora de TV a manter,
desde sua fundação, em 1965, um projeto regular de produção de teledramaturgia,
com vários horários reservados à ficção seriada em sua grade de programação.
BORELLI, S.H.S.; OLIVEIRA, R. de C. e SILVA, E.F. da. Entrevista com Jesús
Martín-Barbero. São Paulo, 2000 (no prelo).
BORELLI, S.H.S. e PRIOLLI, G. (coords.). A deusa ferida. Por que a rede Globo não é mais a campeã absoluta de audiência . São Paulo, Summus, 2000.
10. Informações obtidas tanto através de realização de Pesquisa Quali, com oito
grupos de receptores, nas cidades de São Paulo e Rio de Janeiro (Borelli e Priolli,
2000:211-253), quanto da pesquisa de recepção de telenovelas com famílias na
cidade de São Paulo (Lopes, Borelli e Resende, 2001).
BRANDIST, C. “Bakhtin, Gramsci and the semiotics of hegemony”. Max Hayward
Fellow in Russian Literature. St Anthony’s College, Oxford (HRB Research
Fellow, Bakhtin Centre Copyright), 1995.
11. Os conceitos de “gêneros ficcionais” (Borelli, 1996 e 1997) e “territórios de
ficcionalidade” (Borelli, 2001 e Lopes, Borelli e Resende, 2001) têm sido concebidos como elementos de mediação nas relações que se estabelecem entre produ-
BUCK-MORSE, S. The dialectics of seeing. Walter Benjamin and the Arcades
project. Londres, The MIT Press, 1989.
35
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 15(3) 2001
CALVINO, I. La machine littérature. Paris, Seuil, 1984.
_________ . (org.). Walter Benjamin. São Paulo, Ática, 1985.
CANCLINI, N.G. Las culturas populares en el capitalismo. México, Nueva
Imagem, 1982.
LEAL, O.F. A novela das oito. Petrópolis, Vozes, 1985.
LOPES, M.I.V.; BORELLI, S.H.S. e RESENDE, V. da R. (coords.). Vivendo
com a telenovela: mediações, recepção, teleficcionalidade. São Paulo, 2001
(no prelo).
_________ . Culturas híbridas. México, Grijalbo, 1990.
CAMPADELLI, S.Y. A telenovela, instrumento de educação permanente.
Petrópolis, Vozes, 1980.
MARCONDES FILHO, C. “Telenovela e a lógica do capital”. Quem manipula
quem? Petrópolis, Vozes, 1986.
_________ . A telenovela. São Paulo, Ática, 1985.
CERTEAU, M. de. A invenção do cotidiano. Artes de fazer. Petrópolis, Vozes,
1994.
MARTÍN-BARBERO, J. De los medios a las mediaciones. Mexico, Gustavo Gili,
1987.
COHN, G. “Adorno e a teoria crítica da sociedade”. In: COHN, G. (org.). Theodor
W. Adorno. São Paulo, Ática, 1986, p.7-30.
MARTÍN-BARBERO, J. e REY, G. Los ejercicios del ver: hegemonía audiovisual
y ficción televisiva. Barcelona, Gedisa, 1999.
FADUL, A. Ficção seriada na TV: as telenovelas latino-americanas (Bibliografia anotada da telenovela brasileira). São Paulo, ECA-USP, 1993.
MATOS, C.N. A poesia popular na República das Letras: Sílvio Romero
folclorista. Tese de Doutorado. Rio de Janeiro, PUC-RJ, 1993.
FORBES, J. e KELLY, M. French cultural studies: an introduction. Nova York,
Oxford University Press, 1995.
MERQUIOR, J.G. Arte e sociedade em Marcuse, Adorno e Benjamin. Rio de
Janeiro, Tempo Brasileiro, 1969.
MEYER, M. Folhetim: uma história. São Paulo, Companhia das Letras, 1996.
FORGACS, D. e LUMLEY, R. Italian cultural studies: an introduction. New
York, Oxford University Press, 1996.
MICELI, S. Imitação da vida: pesquisa exploratória sobre a telenovela no Brasil. Dissertação de Mestrado. São Paulo, Faculdade de Filosofia Ciências e
Letras da USP, 1973.
FREITAG, B. A teoria crítica ontem e hoje. São Paulo, Brasiliense, 1986.
FROW, J. e MORRIS, M. (orgs.). Australian cultural studies: a reader. Chicago, University of Illinois Press, 1993.
MORIN, E. Cultura de massa no século XX: neurose. Rio de Janeiro, Forense
Universitária, 1984.
GRAMSCI, A. Literatura e vida nacional. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1986.
OROZ, S. Melodrama. O cinema de lágrimas da Amércia Latina. Rio de Janeiro, Rio Fundo, 1992.
_________ . Cadernos do Cárcere. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, vol.1,
1999.
ORTIZ, R.; BORELLI, S.H.S. e RAMOS, J.M.O. Telenovela: história e produção. São Paulo, Brasiliense, 1989.
GROSSBERG, L.; NELSON, C. e TREICHLER, P. (ed.). Cultural studies. Londres, Routledge, 1992.
PRADO, D. de A. João Caetano. São Paulo, Perspectiva/Edusp, 1972.
SARLO, B. El imperio de los sentimientos. Buenos Aires, Catálogos, 1985.
HALL, S. Television as a medium and its relation to culture. Birmingham, Center
for Contemporary Cultural Studies (CCCS), 1975.
THOMPSON, E.P. The making of the english working class. London, Gollanz,
1963.
HOGGART, R. As utilizações da cultura: aspectos da vida cultural da classe
trabalhadora. Lisboa, Presença, 1973.
TODOROV, T. Introdução à narrativa fantástica. São Paulo, Perspectiva, 1975.
KHEL, M.R. “As novelas, novelinhas, novelões”. In: CARVALHO, E.; KHEL,
M.R. e RIBEIRO, S.N. Anos 70: televisão. Rio de Janeiro, Europa, 1980.
WILLIAMS, R. Culture and Society. London, Chatto and Windus, 1958.
_________ . The long revolution. London, Chatto and Windus, 1961.
_________ . “Três ensaios sobre a telenovela”. In: COSTA, A.H.; SIMÕES,
I.F. e KHEL, M.R. Um país no ar: história da televisão brasileira em três
canais. São Paulo, Brasiliense, 1986.
_________ . Marxism and literature. London, Oxford University Press, 1977.
_________ . Cultura. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1992.
KOTHE, F. Benjamin & Adorno: confrontos. São Paulo, Ática, 1978.
_________ . La política del modernismo. Buenos Aires, Manantial, 1997.
36
CIDADES COMPLEXAS NO SÉCULO XXI: CIÊNCIA, TÉCNICA E ARTE
CIDADES COMPLEXAS NO SÉCULO XXI
ciência, técnica e arte
MARIA MARGARIDA CAVALCANTI LIMENA
Professora do Departamento de Sociologia e Membro do Núcleo de Estudos da Complexidade da PUC-SP
Resumo: A discussão sobre o futuro das metrópoles contemporâneas realizada neste artigo parte do pressuposto de que as crises urbanas não podem ser pensadas como resultado de um processo linear ou determinado,
mas como processo complexo, que requer uma visão macroscópica, visando à identificação de seus atributos,
suas tendências, contratendências, determinações e indeterminações. Propõe formas de compreensão pautadas por uma ampliação dos operadores cognitivos, estabelecendo o diálogo interdisciplinar que busca superar
os limites entre ciência, técnica e arte.
Palavras-chave: urbanismo; imaginário urbano; complexidade; interdisciplinaridade.
Fornecer respostas a estas questões implica a construção de outras formas de compreensão da cidade e do fenômeno urbano, como parte integrante de um projeto de
sociedade planetária, estabelecendo um diálogo interdisciplinar que busque interconexões e possa constituir as bases para um saber menos restritivo e redutor. Nessa perspectiva, as crises urbanas não podem ser pensadas como
resultado de um processo linear ou determinado, mas como
um processo complexo, que requer uma visão macroscópica,
capaz de identificar seus atributos, suas tendências,
contratendências, determinações e indeterminações.
É certo que a escolha de futuros possíveis é extremamente ampla e variada. Cada opção pode nos parecer
como um espelho de nossas esperanças e desejos de
ambientes mais humanizados. Marshall McLuhan sugeriu, em 1960, que o mundo inteiro iria se tornar, um dia,
uma “aldeia global”, na qual todos os membros da humanidade poderiam interagir num simulacro em tempo
real de uma comunidade neolítica. Passados 40 anos, a
presença das assim chamadas comunidades virtuais expressa, de certo modo, a realização dessa profecia. Movimentos ambientalistas preconizam o “retorno à natureza”, por meio do estabelecimento de comunidades
rurais às margens da civilização urbanizada, enquanto
outros movimentos também têm pregado os kibbutzen
urbanos, localizados no coração de grandes cidades como
Londres, Paris e Nova York.
A condição urbana baseia-se na coexistência de
oposições e uma só imaginação não basta para integrar as
verdadeiras contradições.
Rem Koolhaas
Desenhar a cidade dos sonhos é fácil; reconstruir
a vida requer imaginação.
Jane Jacobs
valiando-se o quadro geral das cidades atuais –
em que os problemas se acumulam em velocidade sempre superior às possibilidades de solução –, algumas questões impõem-se à reflexão: o modelo de cidade moderna, ou pós-moderna, responde às
exigências impostas pelo mundo nesta entrada de milênio? O pensamento sobre as cidades, que repousa nos
princípios herdados do racionalismo, ainda consegue responder à necessidade de garantir o planejamento e os
projetos de sistemas complexos como a cidade e o território? Será que os valores implícitos nesse paradigma
ainda são compatíveis com as grandes transformações em
curso, como o movimento de desterritorialização, novos
princípios de organização do espaço baseados na idéia
de fluxos – de matéria, de mercadorias, de capitais, de
pessoas, de bens, de informações? Como pensar e projetar o futuro, de forma a garantir que a realidade urbana
possa ser vivida como experiência humana, individual e
coletiva?
A
37
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 15(3) 2001
As imagens do futuro tecnológico apresentadas pela
literatura e pelos filmes têm como motor uma visão pósapocalíptica da sociedade industrial e das grandes cidades, sugerindo perspectivas pouco promissoras para as
cidades contemporâneas. De fato, artistas, poetas, romancistas e filósofos, contrapondo-se ao entusiasmo que
permeia propostas e intervenções deliberadamente produzidas a partir de princípios de organização técnico-racional, expressam sua preocupação com um futuro utópico
baseado não em experiências compartilhadas, mas no conhecimento técnico e seus efeitos em relação às diferentes formas de poder – administrativo, legal e físico –, que
se desdobram em imagens de governos repressivos, sociedades violentas, lugares desagradáveis, perda de referências para a identidade pessoal, indivíduos que cumprem
rotinas, mas que se saciam nos prazeres materiais.
Essa mesma visão também constitui a base para diagnósticos pessimistas sobre o devir das cidades, que se
expressam na falta de esperanças quanto a um futuro que
possa tornar viáveis espaços urbanos para cidadãos e que
possa reverter na melhoria da qualidade de vida, entendida na plenitude dos enraizamentos biopsicoantropossociais
do homem.
Lewis Mumford construiu a metáfora da cidade como
“megamáquina moderna” para expressar suas preocupações sobre as tendências observadas em cidades baseadas
no desenvolvimento de um sistema de gestão e administração “maquinal”: “é uma máquina enorme e irracional
que ordena, organiza e controla tudo o que pode […] como
o Pentágono, a megamáquina é insensível à informação,
especialmente a informação da qualidade, que não é compatível com o seu sistema e atrai especialistas, poder e
dinheiro para fins que ultrapassam os limites da razão
humana. Só tem uma velocidade de funcionamento – mais
rápido; só um destino atrativo – mais longe; só um tamanho desejável – maior; só um objetivo racional – mais”
(Mumford apud Relph, 1990:120-21).
A escala e complexidade da paisagem propiciada por
essa megamáquina moderna podem ser percebidas em seus
produtos, que incluem arranha-céus, reatores atômicos,
terrenos suburbanos sendo ocupados crescentemente, centros comerciais, aeroportos internacionais, parques,
shopping centers e tudo o mais que compõe a paisagem
contemporânea. Aquilo que deveria ser evidente não é,
ou seja, em tal escala e complexidade, tudo o que a compõe depende e resulta de conhecimentos técnicos e de níveis de organização sofisticados. De fato, essa percepção
parece não ser imediata, quer porque a preocupação maior
esteja voltada à paisagem em si e não às suas origens, quer
porque estejamos alienados com as ilusões “imaginhadas”,
conforme observa Edward Relph.1
Outras visões, denominadas tecno-otimistas, compartilhadas por autores como Mike Davis (1993), Alan Jacobs
e Donald Appleyard (1996), dentre outros, para os quais
a tecnologia é pressuposto básico para a melhoria das
condições de vida urbana, fornecem recursos para pensar
os problemas, a integridade e a viabilidade do futuro dos
grandes centros urbanos. Encaminham propostas que remetem a paisagens nas quais à tecnologia agregam-se arquitetura, design, preservação do patrimônio histórico,
nobilitação comercial, residencial e planejamento comunitário. Ambas as perspectivas têm fornecido propostas e
alternativas para as cidades do amanhã, que oscilam entre
o combate e a necessidade de tomar partido das tendências apontadas pelo presente, marcadas pela proliferação
de parques temáticos, de experiências urbanas que tendem ao isolamento de grupos, como os condomínios fechados, dos hotéis, aeroportos e shopping centers.
Freqüentemente, ao tecno-otimismo opõe-se o tecnopessimismo, lançando prognósticos sombrios baseados na
paisagem inóspita e na falta de identidade com os lugares, na perda de autonomia dos indivíduos, presentes em
filmes de ficção científica e histórias em quadrinhos. Podese pensar, entretanto, que utilizados em relação de
complementaridade, esses termos, relacionados a princípios que operam em níveis distintos, possam contribuir
para a construção de um olhar sobre a cidade capaz de
captar não apenas suas dimensões objetivas – estrutural,
funcional, histórica – mas também subjetivas, referentes
a aspectos do inconsciente coletivo que muitas vezes analistas e pesquisadores não conseguem perceber, fornecendo
condições para interrogarmos o presente e projetarmos o
futuro.
Edificadas a partir de princípios universais, presentes
num mundo unificado sob o signo da ciência, nossas cidades, e especialmente as grandes metrópoles, ostentam
as marcas daquilo que Ramonet denominou “pensamento
único” (1995), definindo-o como “a transposição, em termos ideológicos – que se pretendem universais –, de interesses de um conjunto de forças econômicas e, especificamente, daquelas ligadas ao capital internacional”, cujo
caráter é restritivo: o econômico prevalece sobre o político, vivencial e simbólico. Sob esse princípio, a par da crise
em que se encontram as diversas áreas do conhecimento,
em que prevalecem as idéias de ordem, regularidade, previsão, controle, otimização, também se encontram exau-
38
CIDADES COMPLEXAS NO SÉCULO XXI: CIÊNCIA, TÉCNICA E ARTE
ridos muitos dos conceitos e operadores por meio dos quais
as cidades têm sido pensadas, como o planejamento,
standardização, técnicas de previsão, tendendo a uma visão reducionista e mecanicista. Torna-se cada vez mais
difícil sustentar, nos dias que correm, a idéia de que é
possível prever a evolução da cidade a partir de leis simples e regulares.
Dada a complexidade das cidades contemporâneas, não
é mais possível imaginar, também, que a intervenção em
uma parte da cidade não afete o todo ou que os efeitos
produzidos por causas diversas possam ser somados segundo procedimentos lineares. Nessa mesma perspectiva,
a perda de eficácia desses conceitos e procedimentos pode
ser melhor observada quando as cidades são referidas a
partir de seus habitantes, em termos de atendimento de
suas necessidades materiais e imateriais.
Não obstante, a preocupação maior dos urbanistas,
planejadores e administradores tem se voltado à cidade e
ao território físico, quase como um “indistinto geométrico” (Scandurra, 1998:92-103), a ser ocupado e otimizado;
trabalhando, na maior parte dos casos, com evidências
empíricas, suas propostas de ocupação, ordenamento, revitalização ou reorganização dos espaços urbanos não alcançam aspectos essenciais que dizem respeito à forma pela
qual os habitantes de uma cidade vivem, percebem e imaginam o espaço em que constroem suas vidas. Do mesmo
modo, planejadores e administradores ainda orientam suas
políticas de intervenção por princípios enunciados há quase um século, pautados por um pensamento contaminado
pela ênfase nos negócios e pela ausência de objetivos sociais e políticos que possam reverter na melhoria das condições de vida para a totalidade dos cidadãos.
A despeito de haver uma infinidade de estudos da desordem e da decadência das cidades, lançando prognósticos para seu devir, os poucos que apontam na direção de
melhorar as condições urbanas e fixar normas para seu
crescimento e desenvolvimento prendem-se a visões inocentemente utópicas: de um lado, porque suas bases repousam na crença sem reservas dos dúbios imperativos
de uma economia sempre em expansão; de outro, por atribuírem à técnica e à ciência importância máxima e suficiência em relação ao futuro da cidade, como se ambas
pudessem, por si, fornecer os instrumentos necessários ao
entendimento e à intervenção na cidade, em conjunto com
os demais subsistemas que a compõem: tecnológicos, culturais, científicos, sociais e políticos.
Com freqüência, quando não secundários, são deixados de lado os aspectos relacionados a seus ritmos, signi-
ficados e elementos estruturadores de uma identidade
cosmopolita, que poderiam contribuir para alargar o conhecimento sobre a cidade. Prestar mais atenção à sensibilidade dos filósofos, artistas e literatos e de urbanistas
que incorporam essa mesma sensibilidade talvez seja um
bom caminho para a edificação de projetos urbanos capazes de articular ética e estética, não apenas em termos de
um planejamento normativo, mas instaurativo, capaz de
conduzir a outras formas de sociabilidade e remetendo-se
ao “direito à cidade”, tal como Henri Lefebvre (1991)
definiu, em sua utopia urbana.
Tais questões estabelecem a necessidade de introdução de alguns elementos essenciais à compreensão das
cidades, que têm sido tratados, freqüentemente, de modo
fragmentário. Uma questão primordial diz respeito à forma de olhar a cidade que, longe de traduzir apenas imagens parciais, revela “qualificações” do espaço urbano.
Além de desvelar o imaginário urbano presente em cada
momento, um “olhar consciente” sobre a cidade permite
a identificação da relação entre esta e o próprio pensamento, entre o público e o privado, entre os espaços da
intimidade e os grandes espaços coletivos urbanos, entre
a emergência de distintas formas de sociabilidade e os
signos que as sustentam, recuperando algumas das prom essasde nossa cultura.“Se a cidade tem sido um locus
de poder, cujos espaços tornaram-se coerentes e completos à imagem do próprio homem, também tem sido nela
que essas imagens se estilhaçaram, no contexto de agrupamentos de pessoas diferentes – fator de intensificação
da complexidade social – e que se apresentam umas às
outras como estranhas”, conforme aponta Richard Sennett
(1997:24), ao procurar entender como os diversos aspectos da experiência urbana – em sua diferença, complexidade, estranheza – sustentam a sociabilidade humana em
sua resistência à dominação. Considerando a cidade como
“obra de arte” e não como mero artefato, Sennett
(1990:170) acredita que impulsos para o desenvolvimento de um olhar consciente possam ser, igualmente, as fontes necessárias para a emergência e mobilização de energias criativas, tornando as pessoas visíveis e recuperando
a plenitude dos sentidos.
Outro aspecto importante volta-se à necessidade de se
reinserir nas análises da cidade a relação entre tempo e
espaço, muitas vezes elidida. Na cidade moderna, a relação do caráter estético da unidade entre espaço e tempo e
do caráter da sociedade tem sido marcadas pelo divórcio
entre ambos, de acordo com a interpretação de Sennett
(1990:170). Exemplificando, esse contraste foi a marca,
39
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 15(3) 2001
no século XX, de projetos como aqueles de Mies Van der
Rohe ou de Le Corbusier. Este último queria demonstrar
a necessidade de liberdade de movimento em formas perfeitamente coordenadas, expressas no desenho racional das
ruas e na fachada de seus edifícios, rejeitando a idéia de
que nossas vidas não seriam, nem mais nem menos, uma
continuidade ou adição ao passado.
Deve-se ressaltar que a revalorização das referências
históricas locais, por meio da preservação do patrimônio
e do retorno às raízes, tem fornecido paisagens urbanas
que aparecem como unidade na diversidade, rompendo
com as dualidades que situam a cidade entre a tradição e
a modernidade ou, dito de outro modo, entre um passado
bárbaro e um futuro prometedor, como na visão iluminista,
ou ainda como a traição de um passado perfeito, de acordo
com a visão antiindustrial. Vários projetos exemplificam
a possibilidade de superação dessas dualidades, conciliando passado e presente, como o fenômeno da crescente
ocupação de antigas cidadezinhas medievais que haviam
sido abandonadas, especialmente na Itália e na França.
Visando estabelecer condições para padrões mais elevados de qualidade de vida, profissionais liberais e artistas
recuperaram essas formações, dotando as edificações de
todos os requisitos necessários à vida moderna, dentre eles
os meios de comunicação e conexão com os grandes centros urbanos, compatibilizando suas necessidades de trabalho com a simplicidade da vida no campo.
A revitalização de áreas históricas de Barcelona, Bolonha e Rio de Janeiro, bem como de quadriláteros em
Manhattan como Grammercy Park e de ruas como Oxford
Street em Londres ou, ainda, de quarteirões em Paris, recuperando exatamente atributos ligados à historicidade,
também exemplifica a construção de propostas que tendem a chamar a atenção para a paisagem urbana como
conjunto, como contexto formado por elementos múltiplos, fornecendo a possibilidade de leituras menos fragmentárias.
É importante, sem dúvida, recuperar a dimensão “antropológica” do espaço, relegada a um plano secundário,
com o abuso da geometria euclidiana, segundo a qual as
cidades passam a ser pensadas como espaço geometrizado,
em que proliferam genealogias do território. Pierre Lévy
(1995:22) chama a atenção para o fato de que, como espaço geometrizado, cada ponto é definido por um sistema
de coordenadas, “um endereço, ainda que ninguém tenha
lhe dado um nome. A história e o algoritmo têm lugar no
sistema (do qual a Geografia científica representa evidentemente apenas um caso particular)”. Com isso, a dimen-
são “antropológica” coloca-se em plano secundário, como
se os seres humanos habitassem, somente, um espaço físico ou geométrico e não afetivo, estético, social, histórico, em síntese, espaço de significações em geral.
Torna-se imperativo rever, também, a definição clássica de cidade com um centro, limites e periferia, a fim de
se poder traçar as perspectivas para as cidades do futuro,
a partir de dois argumentos centrais: o primeiro prendese a características presentes principalmente em grandes
cidades e agrupamentos na Ásia e na África, mas também
em algumas partes da Europa (mesmo prevalecendo a
definição clássica de cidade), que se apresentam como um
tecido urbano ininterrupto, no qual coexistem elementos
rurais e urbanos, isto é, ausência de limites claros, o que
impõe uma outra problemática. O segundo argumento prende-se à necessidade de se dar conta das novas formas de
sociabilidade que nascem da sociedade em rede e já estimulam uma série de estudos acerca das comunidades e
cidades virtuais.
A exposição Mutations, atualmente sendo realizada em
Bordeaux, exemplifica a necessidade de introdução de
novos elementos nos diagnósticos e prognósticos sobre a
condição urbana da época. O discurso de Rem Kolhaas, 2
uma das mais influentes expressões da arquitetura contemporânea, oscilando entre a retórica e o jogo da provocação, coloca os impasses do urbanismo diante de cidades contemporâneas instáveis e da presença de tecidos
urbanos ininterruptos, nos quais não se percebem mais com
clareza os limites entre rural e urbano. Quando projetou e
construiu Euralille, o bairro francês concebido como um
emaranhado de autopistas em torno de grandes edificações dedicadas ao comércio e ao transporte, ele chegou a
identificar uma nova forma de urbanismo, cuja missão “já
não seria dispor ordenadamente sobre o território objetos
mais ou menos permanentes, senão colocar em cena a incerteza e o caos do momento”.
Desse modo, o sentido da arquitetura não seria mais
projetar e prever, mas tomar decisões estratégicas. É preciso entender bairros e áreas centrais, por exemplo, como
um sistema dinâmico, com vários elementos em processo
de interação e retroação. Assumindo a consciência dos
efeitos e do grau de fiabilidade do sistema, os arquitetos
deixariam de se levar pela evolução das cidades que ocorre
independentemente deles, passando a fornecer instrumentos de reflexão sobre um novo fenômeno da paisagem urbana: a combinação de cityscape e landscape que deve se
traduzir por um vocabulário capaz de descrever os fenômenos que circunscrevem novas situações híbridas.
40
CIDADES COMPLEXAS NO SÉCULO XXI: CIÊNCIA, TÉCNICA E ARTE
De sua experiência em cidades asiáticas veio o convencimento de que aquelas existentes no delta do Rio das
Pérolas, na China, nas quais a diferença com o passado e
a história da Europa não conta, representam a urbe do
futuro. Se Paris foi a capital do século XIX e Nova York
a do século XX, a capital do século XXI deverá se parecer com essa formação urbana, uma constelação formada
por cerca de uma dúzia de cidades em que a principal é
Shegzen, ao norte de Hong Kong. Contando hoje com cerca
de 12 milhões de habitantes, prevê-se uma população, para
2020, de 36 milhões. É esse tipo de agrupamento que anuncia a cidade do século XXI, o que coloca em xeque a definição clássica de cidade com um centro, limites e periferia. Ao contrário, nesta nova forma de cidade terá
desaparecido toda a idéia de centro e a densidade será
completamente disseminada. Ele cita alguns exemplos: “já
não haverá a necessidade de ter um metrô ao lado de arranha-céus, ou um arranha-céu ao lado de outro: a Internet
e todas as formas de comunicação vão explodir e acabar
com esse tipo de lógica. Poderemos ter uma povoação que
tenha um arranha-céu de um lado e um campo de arroz do
outro, sem que haja qualquer contradição entre estes elementos. São fenômenos que já se observam em certas cidades africanas, como Lagos, na Nigéria”.
O tipo de identidade que esses agrupamentos poderão
permitir constitui aspecto relevante nas projeções de
Kolhaas. Para ele, as referências locais clássicas desaparecerão, entrando em cena a cidade “genérica”, que “será
uma libertação, em comparação com identidades demasiado fortes e demasiado confinadas, em benefício de situações bastante mais vagas e portanto mais fáceis de controlar por aqueles que nelas habitam”.
A instabilidade e a complexidade das novas formações
urbanas não permitem mais que se possa conceber um plano urbano com configurações definitivas a serem mantidas
durante 20 ou 30 anos, exigindo novas chaves para interpretação da arquitetura. Por outro lado, deve-se levar em
consideração o fato de que nem os conhecimentos teóricos, nem os valores éticos transmitidos de uma geração a
outra são adequados à interpretação e ao tratamento das
grandes mutações urbanas ocasionadas por fenômenos de
dimensões planetárias, como a economia de mercado, a
informação, os conflitos bélicos, o que coloca a relação
entre ética, estética e planejamento numa outra perspectiva de abordagem.
Não obstante, os planos para o futuro da cidade representam, na maior parte das vezes, não um programa de
ação ou aquilo que a cidade gostaria de se tornar amanhã,
mas um poderoso discurso para nos brindar com um futuro perfeito. Nesse sentido, o pensamento urbanístico e as
análises sociológicas tendem a operar diretamente com
uma visão ingênua do tempo. O recurso ao passado da
cidade oferece elementos para a definição de problemas a
serem solucionados, como uma espécie de catálogo, cujos elementos podem indicar uma rota de salvação. Isso
posto, parece claro não existir concordância quanto ao passado da memória, ao presente descrito e narrado e ao futuro da imaginação e do planejamento. O passado existe
como projeção daquilo que concerne ao presente e o desejo da boa cidade do futuro também existe na imaginação do passado. O futuro perfeito do discurso urbanístico
volta-se a predições por meio de escolhas, por meio da
representação do presente, expressa no desenho e na arquitetura da cidade. Dessa maneira, o reformismo urbanista não reconhece a densa complexidade do presente
senão por meio da representação de desejos que já tenham
sido realizados, projetando acontecimentos futuros não
como algo desconhecido, mas como representação de um
passado a ser recriado, ainda que se assentando em outras
bases.
Politicamente, trabalhar desse modo com o desconhecido, isto é, buscando correlações de identidade ou uma
substância que o articule às pessoas, aos cidadãos, à comunidade, é incompatível com uma imaginação radical democrática, que necessita da historicidade e da contingência para se exercitar na criação de significados. Assim, “o
passado é uma projeção bem como uma determinação do
presente; o futuro é menos um playground para especulações naturais que uma intimação à inventividade dentro
de uma inextricável moldura repressiva” (Schorske,
2000:194). Nesse sentido, ainda que a imaginação necessária à construção e reconstrução de cidades seja produto
de nossa tradição iluminista, temos de considerar que operamos numa temporalidade distinta. A definição do “agora” é fundamental para que estejamos inseridos na
temporalidade presente, como forma de escapar às políticas que derivam de projeções autoritárias de princípios
universais das cidades dos sonhos. Essa é, também, uma
questão de liberdade, que consiste, tal como aponta
Foucault, numa reflexão crítica sobre o presente.
Isso implica a necessidade de se enfatizar a multiplicidade de sentidos e significações que o mundo urbano oferece. A resposta possível ao futuro das grandes cidades
dirige-se a uma questão fundamental em nossos dias:
revitalizar o sentido das utopias, buscando as energias criativas das manifestações artísticas e retomando o caráter
41
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 15(3) 2001
instaurativo das imagens urbanas como elemento fundamental. Em outros termos, pensar a cidade do futuro não
a partir de perspectivas dualistas, mas colocando em relação dialógica a sensibilidade artística e a racionalidade
técnica.
É certo que o pensamento urbanístico realizou distinções significativas quanto ao lugar ocupado pela cidade
no tempo, a partir de atitudes modelares. A cidade como
virtude (medieval) e como vício (moderna), situada entre
um passado de trevas (a visão do Iluminismo) ou como
traição de um passado áureo (a visão antiindustrial), são
idéias que povoaram o imaginário da passagem do século
XIX ao XX. O lugar da cidade nesse imaginário só poderia ser salvo por utopia ou projeto radical de volta ao passado ou de salto para o futuro, na reação à falta de nacionalismo da elite liberal cosmopolita e culta, conforme
apontavam tanto as propostas de urbanistas, como a produção literária e artística. Não obstante, ainda nesta passagem de século, o pensamento sobre a cidade ainda se
nutre de significados que reforçam as tensões, associando-as, tanto aos demônios da natureza humana, com todas as suas perversidades e contradições reais, como à idéia
de cidades ideais, que seguem o modelo da “revelação”
ou da “purificação”.
Nas utopias urbanas contemporâneas, a cidade se transforma em um atributo atemporal, refutando as bases de
cem anos atrás, em que se assentavam as experiências urbanas sem, no entanto, desvencilhar-se das ambigüidades
então presentes naquele período. Recorrendo a Carl
Schorske (2000:67), pode-se afirmar que se “a cidade
moderna oferecia um hic et nunc eterno, cujo conteúdo
era a transitoriedade, mas cuja transitoriedade era permanente”, apresentando-se “como uma sucessão de momentos variegados, fugazes, e cada um deles deveria ser saboreado em sua passagem da inexistência ao esquecimento”, nas tecnotopias pós-modernas essa transitoriedade é retomada como algo não apenas presente, mas desejável e algo inescapável.
É salutar que se tornem correntes, nesse início do século XXI, propostas pautadas por uma não-distinção entre cidade e natureza, que passam a ser interpretadas a partir
de outros registros cognitivos, de outro vocabulário, em
que comparecem os conceitos de entropia, co-evolução,
bifurcação, instabilidade. Isso vem possibilitando a emergência de uma consciência que supera a contraposição
entre aquilo que é natural, o que é humano e o que é
tecnológico, respondendo à crescente demanda de complexidade, diante da qual não podemos mais reagir com
respostas simplificadoras ou reducionismos incapazes de
fornecer uma síntese unitária da realidade, concebida como
equilíbrio instável. Assim, desenvolvimento da tecnologia, da natureza e da sociedade constituem elementos
fundantes de um projeto de cidade de cidadãos, que necessita um olhar macroscópico, capaz de superar as
disjunções entre lugar e não-lugar, territorialização e
desterritorialização, natureza e cultura.
Por outro lado, escapando às formas tradicionais do
pensamento, as fontes artísticas e literárias permitem não
apenas captar a “imaginação poética”, mas contribuem
especialmente para a percepção do imaginário urbano em
sentido amplo, isto é, os complexos processos e as múltiplas sociabilidades que a vida citadina apresenta. Em outros termos, se a imaginação poética difere da imaginação racionalista, isto ocorre, antes de tudo, porque a própria
noção de espaço obedece a outras regras, distintas daquelas presentes no campo da instrumentalidade política. Ela
é sensível à história dos diversos modos de mapear e representar o espaço de visão, perspectiva, plano e representação, convenções cartográficas, da simultaneidade do
cubismo, das montagens cinemáticas, mas também dos
diferentes modos da experiência subjetiva, em seus aspectos psíquicos, de projeção e introjeção.
O olhar do artista, longe de traduzir apenas imagens
fragmentárias, revela “qualificações” do espaço urbano.
Contrapondo-se, em alguns momentos, convergindo, em
outros, com a interpretação de urbanistas e arquitetos, 3 a
cidade surge, para os artistas, como espaço de experiência polissensorial e dinâmica, a partir de estruturas
denotativas de sua estrutura mental, cultural e física. Quem
não reconhece a Paris moderna nas telas de pintores
impressionistas como Manet, Monet, Renoir e outros? Ou
São Petersburgo retratado nos textos de Dostoievski? Ou,
ainda, a Paris de Baudelaire, Londres de Dickens? A Nova
York de Woody Allen? Ou a São Paulo de Mário de
Andrade e de Caio de Alcântara Machado?
A metrópole representada, evocada ou reinventada
pelos artistas, literatos e cineastas desde o final do século
XIX até nossos dias, suscita interpretações múltiplas e
contraditórias, revelando as metamorfoses profundas, as
ameaças da civilização urbana, os modos de apropriação
material e simbólica, os elementos vitais do imaginário
urbano, resultando em imagens paradigmáticas. Assim, o
recurso à literatura, às artes plásticas e ao cinema permite
um processo de compreensão que evidencia uma forte correspondência entre a produção cultural e as experiências
e modos de subjetividade especificamente urbanos: a frag-
42
CIDADES COMPLEXAS NO SÉCULO XXI: CIÊNCIA, TÉCNICA E ARTE
mentação, a falta de profundidade, o caráter de dispersão, a instabilidade, a descontinuidade, a experiência do
tempo como um presente perpétuo, de caráter espacial.
Artistas, escritores e cineastas aparecem como portadores de um pensamento e um conhecimento que sintetizam,
simultaneamente, uma realidade material e ideal. Sua atividade não pode ser reduzida à interpretação do espaço
urbano a partir de elementos visuais ou traços mnemônicos
e imaginários, mas deve ser inserida na complexidade da
vida urbana como experiência produzida por uma necessidade: “o que a produz é a necessidade, para quem vive e
opera no espaço, de representar para si de uma forma autêntica ou distorcida a situação espacial em que opera”
(Argan, 1969:21). Em síntese, as artes realizam o que
Jameson denomina “mapeamento cognitivo”,4 expressando um desejo de totalidade, constituindo imagens capazes de fornecer um sentido de tempo e de lugar a partir do
qual pode-se construir não apenas um sentido de orientação para movimentação no espaço da cidade, mas também formas de compreensão da realidade cultural e
sociopolítica que esta representa.
Ao olhar as grandes cidades, chamam a nossa atenção
o tráfego, as edificações, o movimento das pessoas, as
diferentes combinações de informações e signos que permitem ao pensamento sociológico, político, econômico e
cultural uma série de associações. Em nível mais profundo, temos de reconhecer que tais associações condensam
um rigoroso espaço simbólico. Falamos em estar na cidade, em percebê-la e vivê-la não apenas porque vemos,
ouvimos e sentimos, atribuindo significados a seus espaços, mas porque ela própria se converte em categoria do
pensamento e da experiência.
Penso que arquitetos e planejadores tenham de se voltar às formas pelas quais os ambientes são criados e recriados, tanto em sua dimensão lógica quanto estética, inserindo suas preocupações na perspectiva da ética. Mas a
cidade não pode ser pensada apenas como projeto, espaço produzido, conjunto finito de bens e funções visíveis,
mas como um sistema aberto. Na visibilidade de seus processos de desenvolvimento devem ser percebidos os elementos intangíveis, os aspectos e lugares simbólicos da
cultura que permitem a construção de cidades imagináveis.
Quando nos debruçamos sobre a reserva de memória coletiva, povoada por descontinuidades, desejos, sonhos,
abrimos caminho para alimentá-la quanto às prospectivas
para o tempo que está por vir.
Torna-se urgente, nessa perspectiva, um enfrentamento
dos desafios postos que também possibilite reencantar a
consciência sociopolítica-cultural: há de se reconhecer as
utopias, de modo a fazer frente ao criticismo doentio e ao
ceticismo desabusado; sem resvalar no relativismo, buscar responder aos clichês dos discursos ético e político da
mundialização, que asseguram uma imagem de mundo e
das grandes metrópoles sob a aparência moral da homogeneização das culturas. Ética, estética e política devem e
podem andar juntas para pensar o habitar ou o viver na
cidade, desde que se desvencilhando das alternativas de
modelização. Para isso torna-se condição necessária o
reconhecimento da diferença, da singularidade e da universalidade, fazendo emergir o jogo das temporalidades e
das incertezas presentes no contexto das metrópoles contemporâneas.
A metáfora do hipertexto, 5 construída por Pierre Lévy
para a compreensão da lógica que articula os elementos
da comunicação, é válida, também, para todas as esferas
da realidade em que as significações estejam em jogo e,
portanto, para enriquecer nossa interpretação da cidade.
Serve, principalmente, para sinalizar a possibilidade de
saberes menos restritivos que, baseados em seus princípios, possam apontar um futuro promissor para as metrópoles contemporâneas.
Podemos ter esperanças para nossas cidades? O que,
em particular, podemos delas esperar? Todos nós almejamos viver em lugar seguro, sem transtornos e felizes; entretanto, que essas esperanças possam vir a ser fundadas
numa outra forma de pensar a cidade, não mais a partir de
padrões normativos ideais, mas no alargamento da imaginação, que deve contribuir para a apropriação do tempo,
do espaço, da vida e do desejo, de modo a introduzir o
rigor na invenção e o conhecimento na utopia.
A arte, a técnica e a ciência, em perspectiva dialógica,
podem contribuir para a constituição de procedimentos
mentais capazes de apontar a emergência de modelos da
realidade urbana, visando a restituir formas de sociabilidade pautadas pela apropriação e fruição de espaços e
temporalidades múltiplas e reafirmando o direito à cidade como apelo, como exigência: “o direito à cidade não
pode ser concebido como um direito de visita ou de retorno às cidades tradicionais. Só pode ser formulado como
direito à vida urbana, transformada, renovada” (Lefebvre,
1991:116-17).
Se a cidade é um espaço simbólico no qual exercitamos nossa imaginação, penso ser possível que ela própria
contribua com respostas criativas para a definição de nosso
ethos: de “como estar ‘em casa’, num mundo no qual nossa identidade não é dada, nosso estar junto está em ques-
43
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 15(3) 2001
em produções televisivas e cenários de filmes, a imaginharia ultrapassa esses limites, constituindo a base para a construção de aldeias-museu cuidadosamente
recriadas em seus pormenores, mas que omitem seus aspectos negativos. Exemplos disso são as réplicas de colônias americanas como Pilgrim Fathers, em
Massachusetts, as Habitações Históricas para o Futuro, em Toronto e Kimberley,
réplica de uma cidade de mineradores construída na Columbia Britânica. Confome
Relph (1990).
tão, nosso destino é contingente e incerto: o mundo da
violência de nossa própria auto-instituição” (Rajchmann,
1991).
A alma de São Paulo, com seus encantos entrópicos,
que se expressam no desejo de seus habitantes, 6 pode alimentar e conduzir a prospectivas para seu futuro:
2. Todas as referências a citações de Kolhaas foram extraídas de entrevistas concedidas aos jornais Público, Portugal, 02/04/1999 e El País, Espanha, 17/02/2001.
Rem Kolhaas é, também, um dos organizadores do catálogo da Exposição
Mutations e autor da obra Delirious New York, publicada pela Routledge, Nova
York, 1991.
São Paulo, 25 de janeiro de 2034, 17h:15m.
A conclusão do megaprojeto 2001 marca os 480
anos da cidade.
3. Este foi o tema de uma exposição realizada em Barcelona, entre junho e outubro de 1994, intitulada “Europa 1870-1993. Visiones urbanas. La ciudad del artista. La ciudad del arquitecto”.
A comemoração dos 480 anos de São Paulo tem,
hoje, um sabor especial. Multidões celebram em
praças, ruas e avenidas a concretização do megaprojeto, iniciado no ano 2001, visando a melhoria
das condições de vida e de renovação da cidade.
Os conselhos comunitários das subprefeituras prepararam os festejos que acontecem em vários lugares: às margens dos Rios Tietê, Tamanduateí e
Pinheiros, com águas limpas nas quais se pode novamente nadar, como há 100 anos, cujo projeto de
urbanização se completou com a entrega dos parques que os ladeiam, abrigando uma série de atividades desportivas e culturais; no centro da cidade
que, após a reabilitação de edifícios, trouxe de volta
muitas pessoas que ali moram, trabalham e podem
desfrutar dos prazeres de andar a pé para fazer compras, apreciar as artes plásticas, a música e as manifestações de grupos artísticos em completa segurança. Estes festejos acontecem, também, em todos
os bairros, comemorando a implantação do sistema integrado de transportes que funciona por transmissão mista – térmica e elétrica – que, mesmo antes
de ser completada, já vinha trazendo benefícios às
populações locais, sendo mais baratas, reduzindo
os níveis de poluição do ar e os ruídos. Finalmente, a metrópole saudável, equilibrada, responsável
e cidadã, desejada por seus habitantes em 1999, está
se tornando realidade…
4. Conforme Jameson (1995:14). O autor constrói o conceito de mapeamento
cognitivo reportando-se ao pós-modernismo, atribuindo-lhe uma função política,
na medida em que considera a efetividade do aparato cultural do pós-modernismo como veículo de um novo tipo de hegemonia ideológica, por meio da exportação da lógica consumista norte-americana, bem como de seus produtos e valores
culturais, pelos instrumentos da globalização. Tomo emprestado o conceito
não como instrumento de despolitização, conforme o sentido atribuído pelo autor, mas como instrumento de politização, isto é, como elemento instaurativo de
estratégias de representação e mapeamento da cidade, presentes nas formas e
práticas urbanas.
5. Seis são os princípios que articulam a lógica hipertextual, segundo Lévy: os
princípios da metamorfose, heterogeneidade, multiplicidade e escala, exterioridade,
topologia e mobilidade dos centros, que levam à interpretação das imagens e paisagens de sentido. Conforme desenvolvido por Lévy (1990).
6. As fontes dessas “predições” são entrevistas com arquitetos, urbanistas, artistas e moradores de São Paulo publicadas em jornais e revistas, na passagem dos
anos 2000 e 2001. Conforme O Estado de S. Paulo, (30/12/1999 e 31/12/2000) e
Revista Veja São Paulo, (22/01/2001).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ARGAN, G.C. La storia dell’arte. Milão, Einaudi, n.1-2, 1969, p.21.
DAVIS, M. Cidade de quartzo: escavando o futuro em Los Angeles. São Paulo,
Ed. Página Aberta, 1993.
JACOBS, A. e APPLEYARD, D. “Touvard na urban design manifesto”. In:
LEGATES, R. e STOUT, R. The city reader. Nova York, Routledge, 1996.
JAMESON, F. Espaço e imagem. Teoria do pós-modernismo e outros ensaios.
Rio de Janeiro, Ed. UFRJ, 1995, p.14.
LEFEBVRE, H. O direito à cidade. São Paulo, Ed. Moraes, 1991.
LÉVY, P. L’intelligence collective. Paris, Éditions La Découvert, 1995, p.22.
_________ . Les technologies d’intelligence. L’avenir de la pensée à l’ère
informatique. Paris, Éditions La Découverte, 1990.
O ESTADO DE S. PAULO. “Como será a São Paulo de 2020”. 31/12/1999.
_________ . “A São Paulo que gostaríamos de ver” 31/12/2000.
RAJCHMANN, J. Truth and Eros. Foucault, Lacan and question of Ethics. Londres, Routledge, 1991.
RAMONET, I. Le monde sans route. Le monde diplomatique. Paris, out.1995
(suplemento).
RELPH, E. A paisagem urbana moderna. Lisboa, Edições 70, 1990.
NOTAS
E-mail da autora:
SCANDURRA, E. “L’urbanistica: la disciplina ‘moderna’ a cultura contemporânea” Revista Pluriverso. Milão, n.2, 1998, p.92-103.
SCHORSKE, C. Pensando com a história. Indagações na passagem para o modernismo. São Paulo, Companhia das Letras, 2000.
[email protected]
1. Edward Relph desenvolveu o conceito de “imaginharia” como engenharia imaginativa da ilusão. É o mundo de Walt Disney, que capta o verdadeiro caráter da
criatividade apoiada técnica e cientificamente, que subjaz às ilusões da Segunda
Idade da Máquina. Embora mais concentrada em lugares como a Disneylândia,
SENNETT, R. Carne e Pedra. Rio de Janeiro, Ed. Record, 1997.
_________ . The conscience of the eye. The design and social life of cities.
Nova York, Norton, 1990.
44
CULTURA, POLÍTICA E MODERNIDADE EM NOEL ROSA
CULTURA, POLÍTICA E MODERNIDADE
EM NOEL ROSA
ANTONIO PEDRO TOTA
Professor de História Contemporânea do Departamento de História da PUC-SP
Resumo: A produção musical de Noel Rosa, embora importante, é pouco notada pelo meio acadêmico. A obra
deste artista demonstra (evidencia ou participa das) as mudanças na estrutura estética da música popular e,
principalmente, consegue captar as transformações da sociedade em época de transição.
Palavras-chave: modernidade; urbanização; samba.
o plano estético, Noel de Medeiros Rosa, ou simplesmente Noel, foi um dos que livrou o samba
do ritmo amaxixado, dando uma pontuação mais
elaborada e em sintonia com o processo de urbanização.
No plano das representações, sua obra pode ser um adequado instrumento para se pensar o paradoxo tradicional/
moderno em nosso país. Por exemplo, quando o cinema
falado tomava o lugar do mudo, Noel compôs, em 1932,
São coisas nossas, uma clara referência ao primeiro filme
falado brasileiro – Coisas nossas (Catani e Souza, 1983).
A letra do samba revela a tensão entre o moderno e o tradicional, num quase lamento pelo processo de urbanização da sociedade brasileira:
Queria ser pandeiro/ prá sentir o dia inteiro/ a tua mão
na minha pele a batucar/ Saudade do violão e da palhoça/ Coisa nossa... coisa nossa (...).
A sensualidade e a musicalidade da mão tocando na
pele do pandeiro/corpo brasileiro despontam a saudade
daquilo que está distante e impossível de ser revertido,
isto é, o Brasil do sertão, da vida simples e do bucólico da
palhoça. A repetição enfatiza a nossa peculiar modernização. Os versos seguintes desnudam a razão básica de
nossas contradições:
O samba, a prontidão e outras bossas,/ São nossas
coisas... São coisas nossas!
Além da bossa e do samba, a prontidão também é coisa nossa. No jargão popular, a palavra pronto significa
sem dinheiro e, na música de Noel, o termo prontidão é
usado com um claro sentido indicador da miséria, condição da maioria da população brasileira.
Baleiro, jornaleiro/ Motorneiro, condutor e passageiro/ Prestamista e vigarista/ E o bonde que parece uma
carroça/ Coisa nossa, coisa nossa (...).
Personagens urbanos, vivendo no limite do miserê (miséria), corporificados nas “profissões”, no cotidiano. Profissões de deserdados, de um lumpenproletariado
subproduto da modernidade. Baleiro e jornaleiro – “profissões” de homens sem profissão.
A idéia de que o Rio de Janeiro é a cidade do ócio (sempre tendo como contraponto São Paulo, a cidade do trabalho) (Fausto, 1976) parece se confirmar naquele começo da década de 30: Noel coloca sentados, lado a lado, no
bonde da modernidade, o prestamista e o vigarista. O primeiro pode ser identificado tanto com aquele que compra
a prestação como com o agiota que empresta a juros
extorsivos, explorando os já explorados, enquanto o vigarista, com sutis diferenças, tem aqui quase que o mesmo sentido do agiota: tanto um como outro evitam o caminho mais árduo do batente, para a sobrevivência. Nada
de labuta. Nada da inserção no conflito capital-trabalho.
O bonde e a carroça. O primeiro é o próprio ícone da
modernidade coletivizadora lembrado por um João do Rio,
na realidade carioca, ou cantado por um Mário de Andrade,
na sua paulicéia desvairada. Eletricidade, apitos de fábricas, chaminés madrugadoras, gramofones e rádios são, afinados ao bonde, os elementos da modernidade. Já o se-
N
45
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 15(3) 2001
gundo ícone – a carroça – simboliza o Brasil-sertão-colonial e essencialmente agrário.
Menina que namora/ Na esquina e no portão/ Rapaz
casado com dez filhos, sem tostão/ Se o pai descobre
o truque dá uma coça/ Coisa nossa, muito nossa!
Tensão no mundo material, tensão no mundo afetivo.
Menina que namora no portão guarda restos do namorico
inocente, em que o toque de mão seria o gesto mais lúbrico
e sacana (tua mão na minha pele a batucar). Esse namorico inocente de portão é posto em cheque com a revelação do namorado rapaz casado com dez filhos (e o que é
pior, sem tostão).
Noel é o crítico da sociedade burguesa e de suas contradições em meio ao impacto da modernidade. Burguesia que
carecia de uma verdadeira identidade burguesa, isto é, sem a
tradição das burguesias forjadas nas lutas liberais de moldes
europeus. Daí sua tendência ao mimetismo. Pode-se dizer
que essa classe média só vai adquirir identidade com a futilidade proporcionada pela mídia impressa, radiofonisada e
depois televisiva das décadas de 50 e 60.
Noel, como extraordinário crítico da sociedade, é também o flaneur moderno que atribui à multidão uma alma.
O artista valia-se de métodos modernos para denunciar o
impacto da modernidade. O moderno, em certos momentos, como limitador das manifestações lúdicas do amor,
pode ser combatido com a própria modernidade. É o caso
de Três apitos, composição de 1933:
Quando o apito/ Da fábrica de tecidos/ Vem ferir os
meus ouvidos/ Eu me lembro de você
Pois você anda/ Sem dúvida bem zangada/ E está interessada/ Em fingir que não me vê
Você que atende ao apito/ De uma chaminé de barro/
Por que não atende ao grito tão aflito/ Da buzina do
meu carro?
Sou do sereno/ Poeta muito soturno (...).
O flaneur luta contra o apito da fábrica de tecidos, utilizando outro instrumento da modernidade: a klaxon, isto
é, a buzina.
Os duelos baudelerianos davam-se entre o proletariado-esgrimista e a modernidade burguesa que o gestava e
o aniquilava de um só golpe (Berman, 1989). No Brasil,
Noel se aproxima mais da proposta oswaldiana, que apresenta o boêmio (sou do sereno) como o contrário do burguês e não o proletário clássico, expropriado da mais valia marxista. Daí o automóvel, outro ícone da modernidade
individualizadora, símbolo da velocidade amorosa dos
modernistas/futuristas, usado contra os apitos das chaminés que ferem os ouvidos do homem sensível às transformações antilúdicas amorosas.
Diz-se que Noel tinha ciúme de um guarda-noturno que
namorava Josefina, a musa inspiradora de Três apitos. Noel
dividia a tecelã com o guarda-noturno, mas tinha outros
amores também numa confusão de paixões e desilusões
que, sem dúvida, o inspiraram na composição de várias
canções:
Mas você sabe/ que enquanto você faz pano/ Faço
junto ao piano/ Esses versos prá você.
Relações afetivas pessoais cruzando com a crítica social.
Em 1931, Noel entrou em contato com Erastótenes
Frazão, importante homem de teatro do Rio de Janeiro e
freqüentador da Praça Tiradentes, onde estavam localizados o teatro Recreio, vários bares e cafés, ponto de encontro de compositores, jornalistas, artistas, malandros e
trabalhadores do teatro. Frazão foi apresentado a Noel por
Nássara,1 chargista e conhecido compositor-boêmio carioca, campeão de concursos de músicas carnavalescas.
Frazão convidou Noel para trabalhar em Café com música, peça inspirada nos bares que serviam café e incluíam,
no cardápio, apresentações de sambas de novos compositores. Para a peça de Frazão, Noel compôs Quem dá mais
(ou Leilão do Brasil):
Quem dá mais?/ Por uma mulata que é diplomada/
Em matéria de samba e de batucada/ Com as qualidades de moça formosa/ Fiteira e vaidosa, e muito
mentirosa
Cinco mil réis, duzentos mil réis, um conto de réis!/
Ninguém dá mais de um conto de réis?/ O Vasco paga
o lote na batata/ em vez de barata/ Oferece ao
Russinho uma mulata (...).
O primeiro “artigo” brasileiro a ser oferecido é a mulata, logo na primeira estrofe. Noel dá um tratamento à
temática que faria arrepiar os estudiosos de gênero e, principalmente, os de etnias, num momento em que o chamado multiculturalismo está em voga. Será fácil fazer uma
crítica ao compositor de Vila Isabel sem levar em conta
sua época. Mas o tom absolutamente melancólico do leiloeiro que apregoa o “artigo” (tento relativizar o Noel
politicamente incorreto com as aspas) sugere ao ouvinte
que ele não quer se “desfazer” do “produto”. A mulata
metamorfoseada em Brasil insere-se na economia de mercado numa antecipação às privatizações feitas, sintomaticamente, em leilões multinacionais: as qualidades são
anunciadas e os lances são repetidos monotonamente.
Diplomada em matéria de samba e de batucada. A sensualidade da mulher brasileira é, mesmo num samba mais
“político”, tema recorrente: feiticeira, vaidosa... Foram
essas qualidades das brasileiras que fizeram Waldo Frank,
o intelectual socialista americano da Política da Boa Vi-
46
CULTURA, POLÍTICA E MODERNIDADE EM NOEL ROSA
zinhança (Frank, 1943), repensar, 11 anos depois, as relações de gênero que trazia de seu país. Claro que às qualidades referidas somava-se a mentira que, para Noel, era
positivo (A mulher que não mente não tem valor, do samba Mentir [Mentira necessária] de 1932 gravado por Mário Reis). Quem levou a mulata foi o português do Vasco.
Segundo Omar Jubran (2000), no irrepreensível trabalho
de recuperação da obra do Poeta da Vila, Russinho, “jogador de futebol mais popular do Brasil”, havia sido premiado com uma barata da Chrysler, como eram chamados
os automóveis esportivos na época. Mas Noel troca semanticamente a barata por uma mulata, e passa na segunda estrofe a oferecer outro produto, marca da brasilidade:
(...) Quem dá mais.../ Por um violão que toca em
falsete,/ Que só não tem braço, fundo e cavalete/
Pertenceu a dom Pedro, morou no palácio/ Foi posto
no prego por José Bonifácio
Vinte mil réis, vinte e um e quinhentos, cinqüenta mil
réis!/ Quem arremata o lote é um judeu/ quem garante
sou eu/ Pra vendê-lo pelo dobro no museu (...).
Noel sugere nossa desestruturação cultural: o violão
tocando em falsete, um violão que só existe na metáfora.
O artigo foi posto no prego pelo patriarca da independência, como forma de levantar fundos para tapar os buracos
da nossa dívida externa feita por D. Pedro. O lote, talvez
de violões que pertenceram ao imperador, foi arrematado
por um judeu. Só mesmo ignorando a História e a
historicidade de Noel para acusá-lo de anti-semita, como
fez “Jorge Mautner, romancista de Kaos e músico de uma
indefinida vanguarda pop [que] preferiu esquecer o Noel
compositor e letrista” (Máximo e Didier, 1990:491). Isto
porque, em Cordiais saudações, Noel já havia se empenhado nas mãos de um judeu: “Estimo que este mal traçado samba/ Em estilo rude na intimidade/ (...) A vida lá em
casa está horrível/ Ando empenhado nas mãos de um judeu”. E o leilão do Brasil continua:
Quem dá mais.... quem dá mais?/ Quem dá mais de
um conto de réis?/ Dou-lhe uma, dou-lhe duas, doulhe três/ Quanto é que vai ganhar o leiloeiro/ Que também é brasileiro/ Que em três lotes vendeu o Brasil
inteiro/ Quem dá mais?????
À venda estava o Brasil lúdico, do samba que exprime
dois terços do Rio de Janeiro, expressão da singularidade
cultural brasileira. Assim, Noel aponta, seguindo uma tradição de pensadores do porte de Dunshee de Abraches, Manoel
Bomfim, Silva Jardim e Lima Barreto, a submissão de uma
classe dominante em relação ao capital estrangeiro.
A dívida externa, a nossa dependência e o sentido do
progresso foram objetos de várias outras composições do
autor em vôo solo ou em parceria. Em 1933, Noel compôs com Orestes Barbosa Positivismo que, como pode ser
depreendido pelo título, não tinha como fonte de inspiração nenhum objeto mais prosaico:
A verdade meu amor mora num poço/ É Pilatos lá na
bíblia quem nos diz/ e também faleceu por ter pescoço/ O inventor da guilhotina em Paris
Vai orgulhosa querida/ Mas aceita esta lição:/ No
câmbio incerto da vida/ A libra sempre é o coração/
O amor vem por princípio/ A ordem por base/ O progresso é que dever vir por fim/ Desprezaste esta lei
de Augusto Comte/ E foste viver feliz longe de mim/
Vai coração que não vibra/ Com teu juro exorbitante/
Transformar mais esta libra/ Em dívida flutuante.
O progresso enaltecido pelo positivismo liga-se à guilhotina jacobina. O nosso jacobinismo, o da República da
Espada, não conseguiu livrar-nos da dívida externa em libra
acumulada pelos vários empréstimos. Os juros eram exorbitantes. A Revolução de 1930 retomou a política de valorização do café, produto em queda no mercado consumidor internacional arrasado pela profunda crise do
capitalismo. A política de valorização do café, pela queima ou destruição da safra, alterou, ainda que não profundamente, o quadro. A dívida foi postergada: o governo
Vargas tomou algumas medidas que contrariavam os interesses dos credores internacionais.
A destruição do café e a crise geral brasileira foram
mote para outra canção de Noel. Em Samba da boa vontade, composto em parceria com João de Barro, em 1931,
são apontadas, por meio de uma fina ironia, as mazelas de
país dependente em época de crise internacional. A música composta por Braguinha e Noel era contemporânea dos
acontecimentos decorrentes da Revolução de 1930:
(...) Viver alegre hoje é preciso/ conserva sempre o
teu sorriso/ Mesmo que a vida esteja feia/ e que vives na pinimba/ Passando a pirão de areia
(...) Comparo meu Brasil/ A uma criança perdulária/
que anda sem vintém/ Mas tem a mãe que é milionária/ E que jurou, batendo o pé/ Que iremos à Europa/
Num aterro de café.
Clara referencia à malversação de nossas riquezas. Riqueza e pobreza eram temas presentes em praticamente
toda obra de Noel. Filosofia, samba de 1933, é um dos
muitos exemplos: “Mas a filosofia/ Hoje me auxilia/ A
viver indiferente assim/ Nesta prontidão sem fim/ vou fingindo que sou rico/ Pra ninguém zombar de mim.” Porém, a riqueza e a pobreza, em Samba da boa vontade,
referiam-se ao país e não ao indivíduo. A riqueza jogada
no mar, ou seja, o café faria um aterro que daria para che-
47
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 15(3) 2001
gar na Europa (Jubran, 2000:24). Riqueza de país monocultor-colonial em meio à pobreza generalizada.
Para além da crítica social, a obra de Noel está cheia de
signos pessimistas. Mesmos nas canções compostas com certo
humor, percebe-se o crescente uso de temas como tristeza,
pobreza, felicidade, infelicidade, saúde, paixão, etc. Já em
Cordiais saudações, samba de 1931, cantado por Noel acompanhado pelo Bando de Tangarás, o tratamento melancólico
da melodia é acentuado pela interpretação do autor:
Estimo que este mal traçado samba/ Em estilo rude,
na intimidade/ Vá te encontrar gozando saúde/ Na
mais completa felicidade.
O defeito físico de Noel – o queixo afundado – ficava
mais notável com a fase adulta e, por isso, evitava grandes reuniões sociais. Entretanto, ele tornava-se cada vez
mais conhecido pelas suas músicas. Aos 22 anos já era
uma figura pública. Como flaneur buscava nos bares, botequins e cabarés, cada vez mais, seu refúgio. Nestes lugares há uma certa identidade de objetivos dos freqüentadores: a busca da felicidade mesmo que efêmera, como
pode ser visto em Quem ri melhor, samba de 1936:
Pobre de quem já sofreu nesse mundo/ a dor de um
amor profundo/ Eu vivo bem sem amar a ninguém/
Ser feliz é sofrer por alguém/ Zombo de quem sofre
assim/ Quem me fez chorar hoje chora por mim/ Quem
ri melhor é quem ri no fim.
Numa festa, a anfitriã não conseguiu esconder o espanto
diante do defeito físico do compositor. Noel sentiu, e compôs a canção, já mencionada, Mentir (Mentira necessária):
Mentir, mentir somente para esconder/ A mágoa que
ninguém deve saber/ Mentir, mentir, em vez de demonstrar/ a nossa dor num gesto ou num olhar/ Saber mentir é prova de nobreza
Para não ferir alguém com a franqueza/ Mentira não
é crime/ É bem sublime o que se diz/ Mentindo pra
fazer alguém feliz.
A máscara e a face. Uma saída afetiva para serem contornadas as mazelas de uma alma ferida. Em Fita amarela, o
conflito entre os opostos inseparáveis, isto é, a vida e a morte:
Quando eu morrer/ não quero choro nem vela
(...) Se existisse alma/ si há outra encarnação/ eu queria que uma mulata/ Sapateasse no meu caixão.
Morte anunciada atenuada pela sensualidade. A mulata dançando sobre o caixão representa a vida erotizada. A
música de Fita amarela não chega a sugerir algo melancólico, imprimindo vida à letra que fala da morte.
Depois que Noel encontrou Oswaldo Gogliano, o
Vadico, as composições ficaram ainda mais melancólicas
e pessimistas. É o que acontece com Feitio de oração, a
primeira canção que fizeram juntos, música de Vadico e
letra de Noel:
Quem acha vive se perdendo/ Por isso agora eu vou
me defendendo/ Da dor tão cruel desta saudade/ Que
por infelicidade/ O meu peito invade.
A cada dia Noel consumia mais álcool. Cervejas e
biritas, na expressão de Aracy de Almeida, eram lenitivos
e anestésicos para a alma perturbada do poeta. Boêmio,
ia dormir muito tarde. Chegava em casa com o sol nascendo. Alimentava-se mal. Começava a trabalhar por volta
das 5 horas da tarde. Ia para um bar encontrar outros compositores, ou a uma estação de rádio ou gravadora. A vida
amorosa do boêmio Noel era coerente com a busca angustiante de si mesmo: de namoricos no portão às paixões
arrrebatodoras pelas damas de cabarés. Uma tocou fundo
seu coração, tratava-se de Ceci. Porém, o namoro “sério”
foi com Lindaura, mulher de 17 anos, cuja mãe acusou Noel
de sedução de menor de idade: ou casa ou vai para a cadeia. Noel preferiu cadeia (Máximo e Didier, 1990:280).
O artista parecia responder, aos que exigiam dele uma satisfação, com sambas como Capricho de rapaz solteiro:
Nunca mais essa mulher/ me vê trabalhando/ Quem
vive sambando/ Leva a vida para o lado que quer/ De
fome não se morre/ Nesse Rio de Janeiro/ Ser malandro é capricho de rapaz solteiro/ A mulher é um achado/ Que nos perde e nos atrasa/ Não há malandro
casado/ Pois malandro não se casa.
A pressão familiar, de ambos os lados, não deixou outra saída senão o casamento. Aos 23 anos, sem festas,
Noel parecia entrar em contradição, pois malandro não se
casa. Talvez Noel fosse um malandro às avessas, como as
letras de suas canções Malandro medroso e João Ninguém. Mesmo assim, encarava o casamento como simples acidente.
Na luta interna que se travava no interior de sua alma,
Tanatos parecia levar a melhor sobre Eros. Noel tinha seus
pulmões tomados pela tuberculose, doença que atingia
parcela considerável dos boêmios. Na mesma proporção
que a doença avançava, a situação na casa parecia cada
dia mais insuportável. Dinheiro cada vez mais escasso e
Lindaura, a esposa, queria trabalhar. Noel respondeu:
Você vai se quiser/ Pois a mulher/ Não se deve obrigar a trabalhar/ mas não vá dizer depois/ que você não
tem vestido/ E o jantar não dá pra dois (...).
O médico de Noel, Dr. Graça Melo, sabia que a única
saída era a mudança radical de estilo de vida. Isto era impossível para o poeta/moderno/esgrimista que se entregava à boemia, em especial onde trabalhava Ceci, sua amada
do cabaré. Eram atitudes suicidas afinadas com a posição
48
CULTURA, POLÍTICA E MODERNIDADE EM NOEL ROSA
fim a mão de Noel se quedou imóvel” (Almirante,
1977:213).
Aracy de Almeida e Benedito Lacerda tinham acabado
de gravar, naquela mesma noite, Eu sei sofrer, uma das
últimas composições de Noel:
Quem é que já sofreu mais do que eu/ quem é que já
me viu chorar?/ Sofrer foi um prazer que Deus me
deu/ Eu sei sofrer sem reclamar/ Quem sofreu mais
do que eu não nasceu/ Com certeza Deus já me esqueceu
Mesmo assim não cansei de viver/ E na dor eu encontro prazer/ Saber sofrer é uma arte/ E pondo a
modéstia de parte,/ Eu posso dizer que sei sofrer (...)
Conflito, crítica e pessimismo estiveram sempre presentes em grande parte da obra de Noel Rosa. Mesmo nas
canções mais hilariantes e humoradas, denota-se um certo pessimismo. Conflito entre a vida e a morte. Os limites
entre Eros e Tanatos. A poesia conflituosa do poeta urbanista. Noel fraquejava diante das forças superiores da
modernidade que pesavam sobre seus ombros. Forças
desproporcionais. Baudelaire, Balzac, Nietzche sentiram
o mesmo. Suicídio e modernidade. Suicídio não como fuga
covarde. Benjamin suicidou-se... Não fazer concessões ao
ambiente que é hostil ao artista. Tal suicídio não é desistência, mas heróica paixão (Benjamin, 1985; Berman,
1989).
do “herói moderno”. Mesmo assim, fez a tentativa: seguiu
o conselho do médico e mudou de ares. Foi para Belo Horizonte e, da capital mineira, escreveu ao Dr. Graça Melo:
Já apresento melhoras,/ Pois levanto muito cedo/ E
...deitar as nove horas/ Para mim é brinquedo
A injeção me tortura/ E muito medo me mete/ Mas
minha temperatura/ Não passa de trinta e sete! (...)
Creio que fiz muito mal/ Em desprezar o cigarro/ Pois
não há material/ Para o exame de escarro! (...).
Em Belo Horizonte começou a trabalhar na Rádio Mineira e entrou em contato com compositores, voltando
novamente para a noite boêmia. Belo Horizonte tornouse pequena para o herói suicida. Voltou para o Rio de Janeiro dizendo-se curado. Tuberculose curava-se com tratamento prolongado e o de Noel foi rapidíssimo, ou seja,
não estava curado. Voltou a freqüentar os bares e a trabalhar na composição de novas canções. No Bar do Ponto,
o Dr. Graça Mello encontrou o compositor e o alertou,
mas Noel continuou sua saga. Encontrava-se com mais
freqüência com Ceci, a dama do cabaré. Ela tentava evitálo, pois tuberculose era facilmente transmissível. Noel,
sentindo-se rejeitado, compôs:
Provei do amor todo o amargor/ Que ele tem/ Então
jurei/ Nunca mais amar ninguém (...)
O pai, que estava internado num sanatório, havia se
enforcado. Aliás, o suicídio fazia parte da história da família. Durante a juventude do compositor, a avó havia se
enforcado em uma árvore no quintal do “chalé modesto”.
Profundamente deprimido, Noel bebia, fumava e emagrecia rapidamente.
Tentou, ainda por duas vezes, mudar de ares, mas a
proximidade da morte de um poeta angustiado deixava
claro que era inútil. No Rio de Janeiro, no chalé com a
família, sentado na cadeira, pouco se movimentava.
Almirante (1977) registrou em No tempo de Noel Rosa
– livro clássico para os estudiosos da música brasileira –
os últimos momentos do poeta da Vila:
“No dia 4 de maio [1937] na rua Teodoro da Silva no
385 festejava-se o aniversário de Dona Emília, esposa do
violonista Vicente Gagliano (...) Pela noite adentro ouviase o conjunto de Heitor que, entre diversos números populares, não deixava de executar as músicas de Noel (...)
Por volta das 21:30hs, enquanto D. Marta [mãe de Noel]
e Lindaura no portão se despediam de amigos da família,
seu irmão Hélio, vigilante à cabeceira notou que o doente
abria os olhos esgazeadamente (...)
Ao fazer um movimento, a mão de Noel se estendeu
para a mesinha da cabeceira, em cujo tampo (...) ficou
batendo pancadas surdas, ritmadas, esmorecendo (...) Por
NOTAS
E-mail do autor: [email protected]
1. Em entrevista concedida ao autor, em maio de 1978, Nássara confirmou a versão entremeada de vários episódios pitorescos.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALMIRANTE. No tempo de Noel Rosa. 2ª ed. Rio de Janeiro, Livraria Francisco
Alves, 1977.
BENJAMIN, W. “A modernidade”. In: KOTHE, F.R. (org.). Paris do Segundo
Império em Baudelaire. São Paulo, Ática, 1985 (Coleção Grandes Cientistas Sociais).
BERMAN, M. Tudo que é sólido desmancha no ar – a aventura da modernidade. São Paulo, Cia. das Letras, 1989.
CATANI A.M. e SOUZA, J.I. de M. A chanchada no cinema brasileiro. São
Paulo, Brasiliense, 1983.
FAUSTO, B. Trabalho urbano e conflito social. São Paulo/Rio de Janeiro, Difel,
1976.
FRANK, W. South American Journey. Nova York, Duell, Sloan and Pearce, 1943.
JUBRAN, O.A.J. Noel pela primeira vez. Brasília, Funarte – Ministério da Cultura, 2000 (livreto).
MÁXIMO, J e DIDIER, C. Noel Rosa, uma biografia. Brasília, Ed. Universidade de Brasília, 1990.
49
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 15(3) 2001
A CIDADE QUE MAIS CRESCE NO MUNDO
São Paulo território de Adoniran Barbosa
MARIA IZILDA SANTOS DE MATOS
Professora do Departamento de História da PUC-SP. Entre suas obras destacam-se: Melodia e sintonia em Lupicínio Rodrigues;
Dolores Duran: Experiências boêmias em Copacabana; Meu lar é o botequim.
Resumo: Estas reflexões focalizam a produção musical e a trajetória artística de Adoniran Barbosa, privilegiando
os anos 40, 50 e 60. Suas composições são identificadas como uma forma de estar e se apropriar da cidade, e
nelas emergem experiências urbanas intensas e emocionais, rastros de memória afetiva da São Paulo de outros
tempos.
Palavras-chave: São Paulo; música; Adoniran Barbosa.
le é a voz da cidade”, dizia Antonio Cândido sobre Adoniran. Em suas músicas captura-se uma memória afetiva da cidade de ou1
tros tempos e sua produção é uma construção de memória possível para a cidade, portanto seletiva na escolha dos
territórios urbanos e de seus personagens, permitindo perceber as múltiplas experiências urbanas na São Paulo que,
cada vez mais, nos anos 40, 50 e 60, assumia as relações
de cidade-progresso.
A urbanização acelerada caracteriza São Paulo nesse
período; o intenso crescimento transformaria a cidade em
uma metrópole moderna. Nesse processo coexistiam permanências, demolições e construções, ampliavam-se obras
públicas e novos territórios passavam a ser definidos, novas
áreas comerciais e financeiras, além da reterritorialização
da zona do meretrício e da boêmia.
Os planos de intervenção urbana, orquestrados nas gestões de Fábio Prado (1935-38) e Prestes Maia (1938-45),
procuraram remodelar a cidade e tornaram viáveis novas
áreas em expansão, como os projetos da Companhia City,
os jardins (Europa, Paulista, América), que traziam a
moderna maneira de viver. Convivia-se com muita novidade, o Mercado Novo, o estádio Municipal do Pacaembu,
os novos viadutos do Chá, Major Quedinho e Martinho
Prado, a Avenida 9 de Julho e a Biblioteca. Também se
formaram novas periferias e a cidade crescia sem parar,
reconstruindo intensamente a relação centro-periferia.
Na administração de Prestes Maia foi estabelecido um
novo desenho urbano – o Plano Avenidas – que procurava ampliar o centro comercial, como também era claro o
incentivo ao mercado imobiliário e o estímulo ao crescimento da cidade e sua verticalização. 2
As construções cresciam, migrantes do Nordeste e do
interior do Estado de São Paulo chegavam em número significativo e ajudavam a erguer a cidade, contribuindo para
a mistura que se caracterizava pelos contrastes, ambigüidades, incorporações desiguais e combinações inquietantes. Formava-se um mosaico de grupos étnicos e seus descendentes, que simultaneamente desejavam se incorporar
e diferenciar, e davam novas sonoridades à cidade, impregnando-a de múltiplos sotaques e várias tradições. 3
Com a intensificação industrial e comercial, quarteirões e bairros diferenciavam-se segundo a predominância das atividades ali estabelecidas; ruas, vilas e
cortiços/malocas povoados por migrantes mostravam a
latência de um espaço entre a casa e a rua em que ocorriam trocas permanentes, estabelecendo relações dinâmicas, criando laços de solidariedade e estratégias de
sobrevivência.
No ano de 1954, São Paulo comemorou seu IV Centenário de forma emblemática e, dando tom às festividades,
escolheu-se como slogan a frase “São Paulo – a cidade
que mais cresce no mundo”, síntese da exaltação ao progresso, marca de ufanismo num quadro de apologia das
“E
50
A CIDADE QUE MAIS CRESCE NO MUNDO: SÃO PAULO
conquistas, triunfos e glórias dos paulistas. A “invenção”
da paulistaneidade forjou-se na perspectiva do progresso, do trabalho, nos signos da metrópole industrial e das
chaminés, pressupondo certas construções do passado: a
fundação da vila pelo jesuíta José de Anchieta, o palco da
independência, elegem-se como mito os bandeirantes,
identificando-os como “heróicos paulistas que desbravaram os sertões e construíram a grandiosidade do território
nacional”.
O ritmo da modernidade contaminava São Paulo, transformando-a em um novo território repleto de automóveis,
ônibus, caminhões, buzinas, sons e odores, o ritmo acelerado dos transeuntes, o café no balcão, a pressa, a falta de
tempo, os novos magazines, os modernos edifícios do
centro novo cada vez mais altos. São Paulo assumia o emblema da modernidade, os arranha-céus e as chaminés, “a
cidade que não podia parar”, mas mantinha a sua garoa
como símbolo.
O viver moderno de São Paulo trouxe transformações
culturais e nos significados das experiências, mas sem que
outras formas de vivência tenham desaparecido: mantiveram-se residuais, convivendo com experiências emergentes (Williams, 1992), sendo possível reconhecer um campo
em comum entre os sujeitos históricos que as vivenciavam.
Estabelecia-se uma tendência, uma espécie de vetor comum homogeneizador que criava a impressão de que os
elementos da modernidade predominavam de modo absoluto, contudo fatores tradicionais exerciam ações reguladoras, podendo-se dizer que não ocorria uma simples
substituição de padrões, mas a redefinição dos elementos
tradicionais, um ajustamento que comportava, ao mesmo
tempo, resistência e/ou inconformismo (Cândido, 1982).
Essas modificações pautaram-se por novas vivências
cotidianas, nas quais se constituíram novas organizações
do tempo-espaço, e originaram-se outras formas de homens e mulheres apreenderem os fenômenos que vivenciavam. Não que todos compulsoriamente tenham passado a viver de acordo com esses padrões e absorvido as
perspectivas de vida que se formaram, mas as imagens
desse novo ideal de vida não deixaram de ser sonhadas,
desejadas e incorporadas por uns e refutadas por outros.
O crescimento urbano era tenso de nostalgia,4 de uma
cidade que não podia mais se recuperar, cujas memórias
se alimentavam de lembranças vagas e telescópicas: quebra de valores tradicionais, destruição de vínculos
afetivos, amizades, vizinhanças, cadeiras na calçada,
serestas na garoa, feiras e festas, destruição de espaços
e territórios. Uma cidade que tentava escapar, por mais
TERRITÓRIO...
que seu crescimento procurasse estabelecer novas formas de controle.
A cidade de São Paulo transformava-se incessantemente. Adoniran, um observador atento, captava, com um sotaque próprio (ítalo-paulistano-caipira), os flashes do cotidiano, as experiências de muitos que viveram esse
processo, nos cortiços, malocas e bairros como Brás, Bexiga, Barra Funda, Casa Verde. Esse observar a cidade
implicava o exercício de caminhar a pé (de dia e de noite), aproximar-se, conversar, ouvir, atentar para as
entonações, sintaxes, sonoridades e também se distanciar,
buscando a inspiração-reprodução concretizada nas composições. As canções podiam surgir de um caminhar pela
cidade, como flaneur (é o caso de Saudosa maloca, 1951);
a matéria modelar de suas músicas subentendia integrarse com essas experiências pelo seu falar, não só presente
no sotaque ítalo-paulistano-caipira, mas também na melodia e no modo de cantar, específicos da cultura urbana
paulista.
Os anos 50 são caracterizados por uma certa euforia,
particularmente vivenciada em São Paulo. Durante o governo JK (1955-60), a cidade conviveu com a aceleração
da industrialização, entrada do capital estrangeiro, modernização da produção, ampliação de certos bens de consumo, em particular os automóveis, tornando a sociedade
mais veloz, também mais conectada pelo rádio e particularmente mais visual com a penetração lenta da TV e marcada por um número crescente de cinemas e teatros. 5
NA SONORIDADE DA ERA DE OURO DO RÁDIO
Os anos 40 e 50 são conhecidos como a “era de ouro do
rádio” no país. Nesse período, as rádios expandiram-se por
todo o país e passaram a ocupar um espaço cada vez maior
na vida das pessoas, informando, divertindo e emocionando, somadas à circulação nacional do disco, às publicações
especializadas, ao cinema americano e nacional.6
Nesses anos, o rádio divulgava um samba que se diversificava rítmica e poeticamente,7 sua cadência mais tradicional começou a ser substituída segundo os novos gostos. 8 O samba de meio-de-ano dominava a noite. Assim,
um mercado musical (fonográfico e radiofônico) se estabelecia e generalizava, no qual o popular, em transformação, convivia com a música internacional na dinâmica da
oralidade no cotidiano citadino em ebulição (Wisnik,
1983).
Em São Paulo, a rádio surge fundada por Assis
Chateaubriand (Tupi), unindo-a aos jornais. Em 1940 ha-
51
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 15(3) 2001
via um total de 12 emissoras, nos anos 50 já eram 17, com
destaque para a líder de audiência, a Record, que teve
participação ativa no Movimento Constitucionalista de
1932.
No seu apogeu, além da rádio-novela e do rádio-jornal, havia programas de auditório, tanto musicais como
humorísticos, todos com boa audiência. O trabalho nas
rádios contava com artistas de circo, teatro, e também
anônimos, cantores e aventureiros.
A rádio em São Paulo mantinha conexões com as emissoras do Rio de Janeiro, particularmente com a Rádio
Nacional, e os sucessos circulavam nacionalmente, mas
também se veiculava toda uma produção de caráter regional, atingindo mais diretamente a informação, o humor e
o gosto musical local.
No humor, além dos grandes sucessos do Rio de Janeiro (Balança mas não cai, Tancredo e Trancado), em São
Paulo destacavam-se a Marmelândia (Max Nunes e
Haroldo Barbosa), a Rua do Sossego e Histórias das
malocas (Record, 1955) que mantêm boa audiência até
1966, entrando em declínio a partir de 1967.
Através do humor, o residual podia ser recuperado, o
estranhamento perante o emergente e/ou moderno era colocado, o antigo tornava-se arcaico, a inversão possibilitava dizer o não-dito, ou o repetido que circulava no cotidiano, fazendo surgir anti-heróis, trocadilhos, paródias,
personagens tragicômicos e outros elementos, levando os
criadores a construir conexões com os ouvintes. Nesse
contexto Adoniran atuou com maestria, como humorista
e sambista.
de urbana. Freqüentava as lojas de música do centro, ponto
de encontro de interessados, pois começava a fazer músicas. Também tentou o teatro e, sem muito sucesso, arriscou-se em programas de calouros.
Por sugestão de Antonio Rago, tentou a Rádio Fontoura,
ainda nos seus primórdios, na qual passou a cantar com
Laurindo de Almeida, João do Banjo e Aragão do Pandeiro. Em 1933, fruto de muita insistência, consegue seu
primeiro contrato como cantor e depois como locutor.
Dessa época, datam seus primeiros sambas: Minha vida
se consome e Teu orgulho acabou. Mas em 1934 se destacou quando obteve o 1º lugar no concurso carnavalesco
da Prefeitura de São Paulo, com a marchinha carnavalesca Dona boa.10
Começaria uma trajetória pelas rádios. Por volta de
1935 foi contratado pela Rádio São Paulo e depois pela
Difusora. Como o trabalho com a música era eventual e
não possibilitava um ganho fixo, outras estratégias apareceriam, como trabalhar num escritório de contabilidade
ou morar com a sogra no Tatuapé. O retorno ao rádio ocorreria na Rádio Cruzeiro do Sul, aí permanecendo até 1941,
quando passou a trabalhar na Record, em rádio-teatro e
musicais, como discotecário, locutor e rádio-ator.
Nos anos 40 o destaque na trajetória de Adoniran é sua
atividade como rádio-ator. Seus tipos eram inspirados em
pessoas comuns, falas e entonações desenvolvidas nos
diferentes territórios da cidade, e o ser ator acabou imprimindo elementos que se tornariam fundamentais para o
compositor.
A atuação de Adoniran era cotidiana, segundo a revista
Rádio-teatro (Krausche, 1985). Nas segundas-feiras assumia o humilde marido Confúcio das Dores, às 21 horas, em
Solteiro é melhor; já nas terças estava no Convite ao samba; às quartas, em Show castelo e em Vale quanto pesa; às
quintas, em A presença do trio; às sextas, em O crime não
compensa; aos sábados, em Sítio do bicho-de-pé; e aos
domingos, em A grande filmagem, compondo o cast com
Anselmo Duarte, Ilka Soares, duas orquestras, regionais e
cantores, sob a direção de Blota Jr. Além de se apresentar
diariamente em Charuto e fumaça, sátira do esporte, e no
Sítio dos tangarás, aos sábados, no qual assumia vários
personagens: caipira, cantor, vilão, viajante, etc.
Entre seus sucessos, destacam-se Barbosinha mal-educado da Silva, aluno da Escolinha Risonha e Franca;
Guiseppe Pernafina, motorista de táxi do Largo do
Paissandu; dr. Sinésio Trombone, o gostosão da Vila
Matilde; Moisés Rabinovitch e o Zé Cunversa, do programa Casa da sogra.
A VOZ DE SÃO PAULO: ADONIRAN BARBOSA
Adoniran Barbosa9 nasceu João Rubinato, em 6 de agosto de 1910, em Valinhos, São Paulo. Era filho de imigrantes
italianos, e ainda menino, já residente em Jundiaí, começou a trabalhar com o pai no serviço de cargas da São Paulo
Railway.
Não terminou o curso primário, exerceu várias atividades como entregador de marmitas, varredor de fábrica,
tecelão, pintor, encanador, serralheiro e garçom. Aprendeu o ofício de metalúrgico-ajustador no Liceu de Artes e
Ofícios, mas por problemas pulmonares passou a ter outras ocupações.
Em 1932, em São Paulo, ao mesmo tempo que exercia
as funções de entregador de uma loja de tecidos da 25 de
março, tornou-se cantor-ambulante batucando na caixinha
de fósforo, marcando, como outros cantantes, a sonorida-
52
A CIDADE QUE MAIS CRESCE NO MUNDO: SÃO PAULO
O sucesso maior foi obtido no programa Histórias das
malocas (1955), com destaque para Charutinho, o malandro malsucedido e desocupado do Morro do Piolho,
tangenciando para a crítica social. Trazia o caráter nostálgico da denúncia de uma cidade em construção-destruição, com movimento e ritmo assustadores num presente
degradado, que só uma sintonia com esses tempos de transformação poderia captar: algo que muitos sentiam mas não
sabiam transmitir. Como artista intimamente ligado ao
rádio, o sucesso neste veículo mostrou sua afinação com
a sensibilidade do seu público, as camadas populares da
metrópole paulista que lhe possibilitavam audiência garantida.
Os textos do programa eram de Oswaldo Moles, mas
os elementos de oralidade, as entonações e o timbre, eram
uma criação-recriação de Adoniran. A parceria com
Oswaldo Moles na criação dos textos humorísticos e musicais marcou o caráter da crítica social, o humor do programa centrava-se numa construção caricatural do cotidiano dos habitantes da favela do Morro do Piolho, onde
não só se tornava viável a comicidade, como era possível
apontar as tensões-contradições sociais:
“Terezoca – Pois é Deus fez o mundo... Os anjo
fizero os passarinho... Os muleque fizero as
arapuca.
Charutinho – Os engenheiro fizero as casa e as
ponte.
Terezoca – Despois veio os trabaiadô e fizero as
rua.
Charutinho – Vieram os chanfé e fizero osa lotação.
Terezoca – Depois viero os sabido e fizero os
barcão.
Charutinho – Depois vieram os vagabundo... E eles
falaram, ansin. Sabe o que nóis faiz? Nóis num faiz
nada...” (Bento, 1990).
Nesse sentido, temos a atuação de Adoniran como
humorista, seus personagens, seus sotaques e suas falas
representam os burburinhos de uma cidade em mudança,
que ele mesmo definia como “osservatore dos tipos de rua”,
característica presente nas suas composições, também
marcadas por suas experiências boêmias.
As composições se ampliam a partir de 1935: Agora
podes chorar; A canoa virou; Chega; Mamão; Pra esquecer; Um amor que já passou; canções diversificadas,
diferenciando-se do estilo que posteriormente iria lhe trazer o sucesso. A fusão do humor e da música atingia a
maturidade nos anos 50, e vieram os sucessos nas vozes
TERRITÓRIO...
dos Demônios da Garoa, com Malvina, que em 1951 ganhou o 1 o lugar num concurso carnavalesco, Joga a chave, em 1953, Saudosa maloca, composta em 1951,11 Samba
do Arnesto e as Mariposas de 1955, que serviram de inspiração para o programa Histórias das malocas. Dessa experiência surgem outras composições: Segura o apito e
Aqui Gerarda, mas foi em 1964 que ocorreu o estouro com
o Trem das onze, seguido de outros sucessos.
Esse momento de maior sucesso do compositor coincidiu com a efervescência do desenvolvimento urbanoindustrial da cidade. Nos programas Histórias das malocas
e nas composições desse período, Adoniran passou a
mostrar uma sintonia cada vez maior com o cotidiano da
cidade, seus personagens, a linguagem, a maneira de falar, os dramas que envolviam a população pobre dos cortiços e favelas. Suas composições se caracterizaram pela
síntese de sotaques, entonações peculiares das múltiplas
migrações que povoaram e repovoaram a cidade de São
Paulo.
Seus papéis no cinema e na TV foram mais discretos;
seu grande veículo foi o rádio, no qual recebeu vários prêmios como humorista. Na procura de uma conexão mais
direta com o público levou seu programa humorístico para
os circos na periferia da cidade, mas o sucesso não lhe
possibilitou grandes ganhos financeiros.
Astro de rádio, circo, disco, cinema nacional e também
TV. No cinema, atuou em Caídos do céu (1946), ao lado
de Dercy Gonçalves, fez Pif-paf (1947) e O cangaceiro
(1953). Ao lado de Mazzaropi destacou-se em Candinho,
Nadando em dinheiro e A carrocinha. Também atuou em
Esquina de ilusão e Bruma seca.
Em 1968, na I Bienal do Samba, teve desclassificada a
composição Patrão, mulher e cachaça, em parceria com
Oswaldo Moles. Nesse mesmo ano, a audiência do programa Histórias das malocas caía e com o suicídio de
Oswaldo Moles foi tirado do ar. Adoniran não era mais
tão requisitado, de vez em quando uma ponta na TV
Record, pequenas atuações como em Ceará contra 007
(novela humorística) e Papai sabe nada, assim se mantendo até a aposentadoria (1972), com um mísero ordenado. Entre 1973/76 atuou em algumas novelas da Tupi:
Mulheres de areia, Os inocentes, Xeque-mate e Ovelha
negra.
Nos anos finais da vida não abandonou sua peregrinação
diária: o restaurante Parreirinha (reduto de sambistas), o La
Barca (um bar da General Jardim) e a passada no Estúdio
Eldorado, um pouco mais cedo, como boêmia vespertina.
53
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 15(3) 2001
Morreu em 23 de novembro de 1982, deixando a inesquecível imagem caracterizada pelo olhar inquieto, a gravata borboleta, o paletó e o chapéu.
mem incorpora de forma mais dinâmica as intensas transformações no espaço público. Situação próxima encontra-se em Iracema, que morre atropelada por não conhecer bem os códigos da cidade que cresce em ritmo
assustador:
“Iracema, eu nunca mais eu te vi/ Iracema, meu
grande amor, foi embora/ Chorei, eu chorei de dor
porque,/ Iracema, meu grande amô foi você/ Iracema, eu sempre dizia/ cuidado ao atravessá essas rua/
Eu falava, mas você não me escuitava não,/ Iracema, você travessô contramão/ E hoje ela vive lá no
céu/ E ela vive bem juntinho de Nosso Senhor/ De
lembrança, guardo somente suas meia e seus sapato/ Iracema, eu perdi o seu retrato./ (declama
chorosamente) Iracema, fartavam vinte dias/
Pra o nosso casamento/ Que nóis ia se casá/ Você
travessô a São João/ Vem um carro te pega/ E te
pincha no chão/ Você foi pra assistência, Iracema/
O chofer não teve curpa, Iracema/ Paciência, Iracema, paciência”.
(Iracema, Adoniran Barbosa, 1956)
TERRITÓRIOS SONOROS12 DE
ADONIRAN BARBOSA
“...as melodias de Adoniran Barbosa fluíam como
as próprias ruas da cidade: para cima e para
baixo, mudando de direção, largas e estreitas”
Zuza Homem de Mello
O ritmo acelerado da cidade-progresso atraía e chocava no cantar de Adoniran; em Conselho de mulher, mostra humoristicamente a resistência ao trabalho, tendo como
personagens o malandro e a mulher disciplinadora:
“Quando Deus fez o homem/ Quis fazer um
vagolinho que nunca tinha fome/ E que tinha no
destino/ Nunca pegar no batente/ E viver folgadamente/ O homem era feliz enquanto Deus ansim
quis/ Mas depois pegou Adão/ Tirou uma costela e
fez a mulher/ Desde então o homem trabalha pr’ela/
Vai daí, o homem reza todo dia uma oração: ‘Se
quiser tirar uma coisa de bão/ Que me tire o trabalho/ A mulher não’/ Progréssio, Progréssio/ Eu sempre escuitei falá/ Que o progréssio vem do trabaio/
Então amanhã cedo nóis vai trabaiá/ Progréssio/
Quanto tempo nóis perdeu na boemia sambando
noite e dia/ Cortando uma rama sem parar/ Agora
escuitando os conseio da mulhé/ amanhã vou trabalhar/ se Deus quiser/ (breque) Mas Deus não
qué”.
(Conselho de mulher – Adoniran Barbosa, Oswaldo
Moles e João B. Santos, 1953)
A canção retrata um fato cotidiano da metrópole – atropelamento. Rememora Adoniran: “Iracema foi que eu vi
no jornal, cuitada, eu vi. E não foi na São João, foi na
Consolação, foi no dia em que eu li a notícia... falei, aqui
vai dar um sambinha. Foi o primeiro samba errado que eu
fiz. Iracema...”.
A cidade mostrava-se violenta em seu crescimento, as
transformações urbanas são irreversíveis, criando uma
visão idílica de um tempo-espaço perdido diante do progresso, um tipo de inconformismo que se aproxima da
resistência e aponta a denúncia, apregoa a paciência e deixa
claras a dor e as tensões da violência urbana. 13
A cidade de Adoniran encontra-se atravessada pelos
pressupostos da disciplina e da cidadania, passando a ser
reconhecida como espaço de tensões. Em Saudosa maloca,
Abrigo de vagabundos e O despejo da favela têm-se as
resistências ao dito processo civilizatório, da luta contra
o “arcaico pela ordem e progresso”; de um desejo latente
e generalizado de “ser moderno” que impregna a cidade,
agindo de forma seletiva, construindo a questão social e a
identificação do outro – o pobre, o migrante –, e tornando
a questão da moradia uma tensão do momento:
“Se o sinhô não tá lembrado/ dá licença de contá/
que aqui onde agora está/ esse edifiço arto,
era uma casa véia/ um palacete assobradado.
Foi aqui seu moço,/ que eu Mato Grosso e Joca
A crítica não é ao trabalho em si, mas ao caráter que o
trabalho assume como sombrio e pesado, manipulado e
explorado na sociedade industrial. A canção apresenta todo
um movimento, inicialmente enaltecendo o progresso e o
trabalho possibilitados pela sociedade industrial e urbana, personificados pelos conselhos da mulher; em oposição aparece a boêmia “sambando noite e dia/cortando uma
rama sem pará”, mas a inversão, a ironia e/ou o humor
emergem com o breque, que possibilita a inversão do sentido contido na poética, ao romper a melodia que permite
a entrada da frase “mas Deus não qué...”.
Da mesma forma, o progresso faz-se presente em Viaduto Santa Efigênia, na qual Eugênia se deslumbra diante
do novo viaduto mostrado pelo namorado, já que o ho-
54
A CIDADE QUE MAIS CRESCE NO MUNDO: SÃO PAULO
construímos nossa maloca,/ mas um dia nós nem
pode se alembrá
veio os home co’ás ferramenta/ o dono mandô
derrubá...
Saudosa maloca, maloca querida/ donde nós passemos
os dias feliz de nossas vida”.
(Saudosa maloca, Adoniran Barbosa, 1955)
TERRITÓRIO...
rava no Brás; aparecem referências ao Morro do Piolho, a Casa Verde e a Vila Esperança; um samba tinha
como território o Bexiga, outro focalizava o viaduto
Santa Efigênia; e o trem partia para o Jaçanã. Sempre
mostrando uma cidade em crescimento e transformação,
que demolia e construía, enfim, que avançava. Em 1959,
em Abrigo de vagabundos, ainda se conseguiria uma
maloca perto da Mooca, mas em despejo da favela
(1969) era-se expulso “pelo oficial de justiça” para uma
outra periferia.
Nesse momento, a cidade reorganiza seus territórios, a
zona da boêmia encontra-se em processo de modernização o que exclui alguns, expulsando a malandragem e a
prostituição; procura-se um saneamento social na região
central, aliado a uma intensa especulação imobiliária e à
expropriação. O tema da violência, da solidão urbana,
articula-se com a nostalgia de tempos, espaços e sons perdidos, em que a tristeza emerge, como em Bom dia tristeza, em parceria com Vinicius de Morais: 14
“Bom-dia tristeza/ que tarde tristeza/ você veio hoje
me ver/
Já estava ficando/ até meio triste/ de estar tanto
tempo/
longe de você/ Se chegue tristeza/ e sente comigo/
aqui nessa mesa de bar/ Beba do meu copo,/ me dê
o seu ombro
que é pra eu chorar,/ chorar de tristeza,/ tristeza de
amar”.
Expressando o inconformismo (Chauí, 1989), a acomodação e a resistência, envolvido num discurso da denúncia, até certo ponto ingênua e plena de sensibilidade,
Adoniram chama a atenção, traz à memória para que se
lembre e observe o edifício “arto”, e em torno desse foco
que relembra o acontecimento: a expulsão do cantor, juntamente com os companheiros Matogrosso e Joca.
A expulsão segue-se à demolição, que permitia a emergência do novo empreendida pelos “home co’as ferramenta”. Matogrosso “quis gritá”, mas foi acomodado – “nóis
arranja otro lugá”. O inconformismo ainda se mantém e
“só se conformemo/ quando o Joca falou/Deus dá o frio
conforme o cobertô”, o que poderia parecer conformismo
encontra-se pleno de denúncia que surge no ato de
rememorar os dias felizes passados na maloca querida,
sendo que o engraçado não se reduz ao imediatamente
alegre.
No programa Histórias das malocas e nas canções destacava o caráter comunitário do viver-em-maloca, um lugar provisório, improvisado, vulnerável às adversidades
e à escassez. Utilizando os comportamentos dominantes
e criticando de forma contundente a sociedade e seus valores, polariza o rural e o urbano, o tradicional versus o
moderno. Pode-se identificar todo um intenso e rico processo de circularidade entre esses valores, o qual permite
questionar a tese do popular que se incorpora à modernidade, destacando as múltiplas tensões, apropriações,
reapropriações, desvios e recriações da cultura popular
urbana (Certeau, 1998).
Assim a maloca é representada como espaço de refúgio e solidariedade: “Minha maloca/ A mais linda desse
mundo/ Ofereço aos vagabundos/ Que não têm onde dormir” (Abrigo de vagabundos, Adoniran Barbosa).
Adoniran consegue captar as transformações da cidade, a situação de degradação de certos habitantes contrastando com o crescimento propalado. As referências
à cidade são constantes, aparecem não só em Saudosa
maloca. O antigo cortiço poderia estar localizado na
Rua Aurora, Guaianazes e imediações; o Arnesto mo-
Apesar do lirismo desses versos em parceria com
Vinicius de Moraes, as estratégias mais freqüentes de
Adoniran se faziam através do humor, assim sua experiência como humorista impregnou a vivência como compositor, nesse sentido destacam-se Luz da Light, As mariposas, Samba do Arnesto, Casamento do Moacir e Trem das
onze. Suas habilidades como compositor se aprimoravam,
especializando-se em contar casos trágicos de despejos,
abandono, atropelamento, demolição, desamor, desemprego, através de uma paródia bem elaborada de estrutura
verbo-musical na tristeza das letras contrastando com a
dimensão alegre e contagiante da melodia.15 A fala errada
era intencional, a linguagem acaipirada e italianada, explícita, a trajetória do compositor como humorista e a dinâmica da circularidade cultural na cidade, marcada pela
forte presença dos italianos, migrantes, além das origens
rurais do samba paulista.
O sucesso de Trem das onze definitivamente o consagrou como compositor:
55
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 15(3) 2001
“Não posso ficar/ Nem mais um minuto com você/
Sinto muito amor/ Mas não pode ser/ Moro em
Jaçanã/
Se eu perder esse trem/ Que sai agora às onze horas/
Só amanhã de manhã/ Além disso, mulher/ Tem
outra coisa/
Minha mãe não dorme enquanto eu não chegar/
Sou filho único/ Tenho minha casa pra olhar/ Não
posso ficar”.
(Trem das onze, Adoniran Barbosa, 1964)
Encontrei um papel escrito assim/ Pode apaga o
fogo Mané/
Que eu não volto mais”.
(Apaga o fogo Mané, Adoniran Barbosa, 1956)
As canções explicitam as emoções do homem abandonado pela mulher amada; a resistência a assumir o abandono junta-se com o desespero do desaparecimento na
cidade grande (tema constante na obra do autor), a cidade
que oculta e onde tudo se perde, até o amor; a cidade tão
populosa mas marcada pela solidão e pelo abandono.
Cabe destacar que a produção artística não é portadora
de apenas uma significação – a que o artista quis lhe imprimir –, mas de múltiplas que foram acumuladas nos usos
e leituras que lhe foram impostas ao autor. Dessa forma,
neste artigo tratou-se de alguns poucos aspectos a serem
explorados, sob o foco da história e da música na rica produção de Adoniran Barbosa. Talvez tais reflexões possam
inspirar outras pesquisas, em particular sobre a cidade, já
que a maior parte focaliza as transformações urbanas e
reproduz sem muita crítica o discurso das fontes oficiais,
mostrando modelos de relações íntimas que procuram corrigir, extirpar e estigmatizar os comportamentos.
Além de focalizar o momento tenso da separação do
casal e apresentar as justificativas masculinas, tem como
pano de fundo as intensas transformações urbanas. Na dita
“cidade que mais cresce no mundo”, uma nova noção de
tempo emerge, ela se encontra ancorada nas referências
de progresso, produtivismo industrial, na conexão tempo-dinheiro-capitalismo, no desejo de não perder tempo,
não perder a hora e na imposição de pontualidade. Essa
noção que se queria hegemônica convivia no cotidiano com
outras temporalidades marcadas pelo horário do último
trem ou pelo enxadão da obra que batia às onze horas,
marcando o almoço baseado no “ovo frito... arroz com
feijão e um torresmo à milanesa da minha Tereza...” (Torresmo à milanesa), também presente em outras referências musicais.
Nas tensões urbanas aparecem igualmente referências
às relações afetivas, encontros e desencontros entre homens e mulheres: “O que será que aconteceu/ Que Maria
não voltou?/ Será que se perdeu/ Ou arranjo um novo
amor?” (Por onde andará Maria, Adoniran Barbosa e
Rago, 1956).
Também em:
“Inês/ Inês saiu dizendo/ que ia comprá um pavio
pru lampião/
Pode me esperá, Mané/ Eu volto já/ Acendi o fogão/
Botei água pra esquentá/ E fui pro portão/ Só pra
ver Inês chegá/
Anoiteceu/ E ela não voltou/ Fui pra rua feito louco/
Só prá vê o que aconteceu/ Procurei na Central/
Procurei no Hospital/ E no xadrez/ Andei a cidade
inteira/
E não encontrei Inês/ Voltei pra casa triste demais/
Que Inês me fez/ Não se faz/ E no chão bem perto
do fogão/
NOTAS
1. A produção musical se apresenta para o pesquisador como um corpo documental particularmente instigante, já que por muito tempo constituiu um dos poucos
registros sobre certos setores relegados ao silêncio, permitindo recuperar a expressão de sentimentos abordando temáticas tão raras em outros documentos. Ao
mesmo tempo em que é uma manifestação artística também apresenta aspectos da
vivência cotidiana, urbana, particularmente das experiências afetivas de seus produtores e ouvintes.
Investigações nessa área enfrentam o desafio de recuperar como as percepções,
articulações, processos que chegam pela oralidade, pela mídia e pela música, influenciam os comportamentos, sensibilidades, percepções e memórias. Todavia,
não se consideram os elementos da oralidade, em destaque a música, uma produção isolada e individual, mas um elemento de aprendizagem cultural, logo comportam práticas criadas e recriadas, manifestações autônomas, vigorosas e criativas, que se mantêm menos pelo racional e mais pelo emocional, intuitivo, sentimental e afetivo, e contribuem de forma significativa para o processo de constituição de subjetividades em múltiplos territórios.
2. Richard Morse destaca a grande expansão do setor da construção civil: “...em
1920 houve 1.875 novas construções, em 1930, 3.922, em 1940, 12.490 e em
1950, 21.600” (Morse, 1970:365).
3. Os dados de população são expressivos, permitindo perceber a intensidade desse
processo. No início dos anos 20, momento de grande crescimento da cidade, São
Paulo tinha uma população em torno de 500 mil habitantes; em meados dos anos
30 atingia pouco mais de um milhão; no início da década de 40 era de um milhão
e 500 mil; mas foi no ano 1954 que, já como a maior cidade do país, aproximouse dos 2 milhões e 700 mil habitantes e atingiria os 3 milhões na década de 60.
No início da década de 50, a população de São Paulo somava 2,2 milhões de
habitantes. Desses, mais de 500 mil eram mineiros, 400 mil, nordestinos (cerca
de 190 mil baianos, 63 mil pernambucanos, 57 mil alagoanos, 30 mil cearenses).
4. “Nossas reminiscências podem ser temerárias e dolorosas se não corresponderem
às histórias ou mitos normalmente aceitos, e talvez por isso tentemos compô-las
de modo as ajustar ao que é normalmente aceito” (Thomson, 1997).
56
A CIDADE QUE MAIS CRESCE NO MUNDO: SÃO PAULO
TERRITÓRIO...
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
5. Se em 1940 a cidade contava com 16 bibliotecas públicas, 12 emissoras de
rádio, 42 cinemas e 4 teatros, já em 1954 registrava-se a existência de 114 bibliotecas, 17 emissoras de rádio, 166 cinemas e 15 teatros e “mesmo assim a população acaba se comprimindo na porta (dos cinemas), em filas quilométricas, obrigando a sessões que começam às 10 horas da manhã e terminam às 2 da madrugada” (Linguanotto, 1954).
BENTO, M.A. Um cantar paulistano: Adoniran Barbosa . Dissertação de
mestrado. São Paulo, USP, 1990.
BOSI, E. Memória e sociedade: lembrança de velho. São Paulo, T.A.Queiroz/
Edusp, 1987.
6. O rádio cresceu devido à sua agilidade e ao barateamento progressivo do aparelho. As rádios funcionaram como um veículo integrado ao contexto histórico,
utilizando e difundindo padrões de comportamento. O rádio-jornal, a novela, os
programas de auditório envolviam cotidianamente a todos. Em virtude dessa importância, as questões em torno do rádio, rádio-ouvintes e da oralidade precisam
ser refletidas com mais atenção pelos pesquisadores.
CÂNDIDO, A. Os parceiros do rio bonito. Estudo sobre o caipira paulista e a
transformação de seus modos de vida. São Paulo, Duas Cidades, 1982.
CHAUÍ, M. Conformismo e resistência. São Paulo, Brasiliense, 1989.
CERTEAU, M. de. A invenção do cotidiano: Artes de fazer. Petrópolis, Vozes,
1998.
7. A partir da década de 40, os circuitos internacionais da música interligavam
cada vez mais intensamente as diferentes partes do mundo. Todo um mercado se
abre especialmente à penetração da música internacional, em particular a norteamericana e com ela o jazz.
GUATTARI, F. e ROLNIK, S. Micropolítica – Cartografia do desejo . Petrópolis,
Vozes, 1986.
KRAUSCHE, V. Adoniran Barbosa. São Paulo, Brasiliense, 1985.
8. No final da década de 30, o Carnaval foi institucionalizado e passou a fazer
parte das manifestações culturais promovidas pelo Estado, descendo o morro para
a avenida. Paralelamente, ocorreu a expansão da radiofonia, que, juntamente com
a institucionalização do Carnaval, levou o samba à pauta de consumo. Antes exclusividade do Carnaval, o samba passou a ser produzido e difundido com sucesso no meio do ano, explicitando tendências claras: samba apologético nacionalista, como os de Lamartine Babo e Ari Barroso; samba da malandragem, de Wilson
Batista e Geraldo Pereira; samba-canção de conteúdo afetivo-apaixonado, líricoamoroso ou de dor-de-cotovelo (Matos, 1982).
LINGUANOTTO, D. Revista Manchete. Rio de Janeiro, n.92, 23/01/54, p.31.
9. João Rubinato assumia o pseudônimo Adoniran (nome de um amigo boêmio) e
Barbosa sob a inspiração do sambista carioca Luís Barbosa.
MORSE, R.M. Formação histórica de São Paulo. São Paulo, Difel, 1970.
MATOS, C.N. de. Acertei no milhar: malandragem e samba no tempo de Getúlio. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1982.
MATOS, M.I.S. de. Dolores Duran: experiências boêmias em Copacabana. Rio
de Janeiro, Bertrand Brasil, 1997.
_________ . Melodia e sintonia, o feminino, o masculino e suas relações em
Lupicínio Rodrigues. 2a ed. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 1999.
_________ . Meu lar é um botequim. São Paulo, Nacional, 2000.
PECHMAN, R.M. (org.). Olhares sobre a cidade. Rio de Janeiro, UERJ, 1994.
10. O Carnaval era um momento particular para a venda de discos e os contratos
para cantar nas rádios e nos clubes e assim adquirir visibilidade. Muitas vezes,
terminada a época de Carnaval, vinha o desemprego.
ROLNIK, R. “História urbana: história na cidade”. In: FERNANDES, A. e GOMES, M.A. Cidade e história: modernização das cidades brasileiras nos
séculos XIX e XX. Salvador, Faculdade de Arquitetura, 1992.
11. Saudosa maloca, no contrafluxo da linguagem apologética canta uma outra
São Paulo, fazendo um imenso sucesso juntamente com Quarto centenário de Mário
Zan e J.M. Alves, canção exaltação de São Paulo, e São Paulo quatrocentão
(Krausche, 1985).
SALVADORI, M.A.B. “Malandras canções brasileiras”. Cultura & Linguagem. Revista Brasileira de História. ANPUH/Marco Zero, v.7, n.17, 1986/87.
SQUEFF, E. e WISNIK, J.M. Música: o nacional e o popular na Cultura Brasileira. 2a ed. São Paulo, Brasiliense, 1983.
12. O espaço urbano, no seu processo de transformação, é simultaneamente registro e agente histórico. Nesse sentido, deve-se destacar a noção de territorialidade,
identificando o espaço como experiência individual e coletiva, em que a rua, a
praça, a praia, o bairro, os percursos estão plenos de lembranças, experiências e
memórias. Espaços que, além de sua existência material, são também codificados
num sistema de representação que deve ser focalizado pelo pesquisador, num trabalho de investigação sobre os múltiplos processos de territorialização,
desterritorialização e reterritorialização (Rolnik, 1992).
SAROLDI, L.C. e MOREIRA, S.V. Rádio Nacional: o Brasil em sintonia. 2 a ed.
Rio de Janeiro, Martins Fontes/Funarte, 1988.
SEVERIANO, J. e HOMEM DE MELLO, Z. A canção no tempo. São Paulo,
Editora 34, 1997.
THOMSON, A. “Recompondo a memória: questões sobre a relação entre história e memória”. Projeto história. São Paulo, Educ, v.15, 1997, p.51-83.
13. Também presente na referência em Tiro ao Álvaro “teu olhar mata mais/...que
atropelamento de automóveis...”.
TATIT, L. O cancionista: composições de canções no Brasil. São Paulo, Edusp,
1996.
14. Pode-se, também, encontrar na sua produção obras de caráter mais intimista
como Bom dia tristeza, com letra de Vinicius de Moraes, gravada inicialmente
por Aracy de Almeida, mas que adquire maior expressividade com a gravação de
Maysa Matarazzo.
VIANA, H. O mistério do samba. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed./Ed.UFRJ, 1995.
VINCENT-BUFFAULT, A. História das lágrimas. Rio de Janeiro, Paz e Terra,
1988.
WILLIAMS, R. Cultura e sociedade. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1992.
15. Destaque-se que muitas interpretações acabam por matizar este traço mais
humorístico e caricatural dos sambas de Adoniran, mesmo com os Demônios da
Garoa que tanto interpretaram Adoniran Barbosa, basta lembrar a gravação de
Clara Nunes de Iracema.
WISNIK, J.M. “Getúlio da paixão cearense (Villa-Lobos e o Estado Novo)”. In:
Música: o nacional e o popular na cultura brasileira. 2a ed. São Paulo,
Brasiliense, 1983.
57
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 15(3) 2001
FEMINIZAR É PRECISO
por uma cultura filógina
MARGARETH RAGO
Professora do Departamento de História da Unicamp.
Autora de Entre a história e a liberdade. Luce Fabbri e o anarquismo contemporâneo
Resumo: Este texto traz algumas reflexões sobre o lugar do feminino em nossa cultura, tomando como ponto
de partida a recorrente estigmatização da feminista como frustrada, assexuada e mal-amada. Pergunta pelas
reações misóginas que a luta pela emancipação das mulheres tem provocado ao longo de sua história e sugere
alternativamente a possibilidade da construção de uma cultura filógina.
Palavras-chaves: feminismo; poder; discurso médico; sexualidade; filoginia.
Ouso dizer que às vezes você se espanta com minha maneira
independente de andar pelo mundo como se a natureza me tivesse
feito de seu sexo, e não do da pobre Eva. Acredite em mim,
querido amigo, a mente não tem sexo, a não ser aquele
que o hábito e a educação lhe dão.
Lágrimas! Mas por ventura chora uma feminista? Quando muito faz rir, quando passa pelas ruas a passo dobrado, consultando as horas como um homem, sem sorrir,
porque já não tem sorriso sem faceirice, porque a fealdade das roupas lha veda, e sem o aprumo que devia dar-lhe
o sentimento da sua coragem e da sua dignidade, por que
sabe que estas coisas só merecem do vulgo o escárneo...”
(Dolores, 1934:123).1
Embora construída por uma escritora bastante engajada
nas questões da mulher, logo após a conquista do direito
de voto feminino, esta imagem reforça o estereótipo socialmente difundido da feminista como uma figura
dessexualizada, amargurada e sem perspectivas e, ao mesmo tempo, contrasta com as representações veiculadas
pelas revistas feministas do período, ou com as informações referentes à vida cotidiana das escritoras, articulistas e ativistas políticas dos meios ricos e pobres, que se
colocavam em luta pela independência de seu gênero,
desde meados do século XIX, no Brasil.
Foi esta, pois, a imagem da feminista que predominou
na memória social sobre outras possíveis e, ainda hoje, as
que lutam pela autonomia das mulheres continuam sendo
desqualificadas por um estereótipo que vem de longa data,
não apenas dos anos 70, definindo-as como machas, feias
e mal-amadas. Do modernista Oswald de Andrade que ridiculariza as sufragettes inglesas como figuras que o assustavam profundamente, nos anos 20, aos “rapazes” de
Frances Wright, feminista inglesa,
em 1822 (Gay, 1995:306)
m um conto intitulado “Jornal de uma feminista”,
publicado num livro bastante raro, intitulado Almas
complexas, a escritora gaúcha Carmen Dolores
(1934) delineia uma imagem triste e patética da feminista.
Refere-se a uma professora que vive no limite de suas possibilidades financeiras, ao lado da mãe viúva e dos irmãos
pequenos e que, certo dia, se vê absolutamente sem recursos
para enfrentar o cotidiano. Sentada diante do espelho, enquanto conversa consigo mesma, mal consegue suportar a
própria imagem refletida. Sente-se um absoluto fracasso: os
seus esforços de melhoria vão sempre por água abaixo; suas
lutas são sempre inglórias. Pensa desolada: “Fito os olhos
no vidro sarapintado pelas falhas do aço, fui-me sentindo
pouco a pouco penetrada de uma piedade intensa e dolorosa, que me provocava a figura refletida nesse velho cristal;
fiquei a olhá-la, como se não a conhecesse, assim, magra e
abatida, com esse chapéu usado, essa jaquette surrada, correndo tão cedo à caça do pão – e de súbito um véu se interpôs entre mim e a face murcha que eu contemplava, e esse
véu era feito de lágrimas...
E
58
FEMINIZAR É PRECISO:
esquerda do Pasquim, nos anos 70, investindo com unhas
e dentes contra a estética de Betty Friedan, as feministas
foram percebidas como mulheres feias, infelizes, sexualmente rejeitadas pelos homens e, convenhamos, não é
muito raro ouvirmos outras mulheres reafirmando estes
estigmas ainda hoje. 2
Deve-se perguntar, então, a que vem a perpetuação
desse estigma sobre mulheres que lutam e lutaram por
outras mulheres, que se empenham pela melhoria da condição feminina, que dão visibilidade a questões radicalmente novas, que propõem outras alternativas para o pensamento e que, sem dúvida alguma, ajudam a construir
um mundo novo e muito mais saudável também para os
homens? E mais, o que a utilização desse estigma nos informa sobre o lugar do feminino em nossa cultura e sobre
a relação que se mantém com o diferente? A reflexão sobre essas questões nos ajuda a perceber como a sociedade
reage ante a idéia de que as mulheres passem a se pensar
com autonomia, como podendo figurar por conta própria
na História, recusando-se a girar, como auxiliares ou sombras, em torno dos homens.
A persistente associação da feminista com o lesbianismo, a histeria, o “furor uterino”, a incapacidade de ser
amada por um homem, repondo-se todas as misóginas
concepções vitorianas sobre a sexualidade feminina, marcam profundamente a referência pela qual se lida com o
fenômeno, ainda hoje. Essa questão adquire maior importância quando levamos em conta que o feminismo colocou como uma de suas principais bandeiras as “políticas
do corpo”, o direito ao próprio corpo, a reivindicação do
prazer sexual para as mulheres e que, aliás, progrediu nessa
direção.
As críticas às misóginas leituras médicas do corpo feminino, que dessexualizaram e patologizaram cientificamente o corpo da mulher, foram manifestadas, embora por
uma minoria, desde o século passado, ou seja, desde o
momento mesmo em que estavam sendo formuladas e
divulgadas. A redescoberta do clitóris, no final dos anos
60, foi inegavelmente uma conquista feminista, posteriormente apropriada por revistas femininas de grande circulação no mercado, a exemplo da Nova, lançada em 1972,
pela Editora Abril Cultural, ou a Veja, que dá visibilidade
ao tema, em sua edição de maio de 2001.
Hoje, as feministas colocam como uma das mais importantes bandeiras de luta a questão dos direitos
reprodutivos, aí incluindo-se temas como maternidade,
aborto, violência doméstica e saúde integral da mulher.
Por que, então, as feministas têm sido historicamente
POR UMA CULTURA FILÓGINA
dessexualizadas, se na prática têm reivindicado uma maior
sexualização ou, em outros termos, o direito à própria
sexualidade?
Trata-se, sem dúvida, de uma disputa pelo controle do
que significa ser mulher, mulheres e homens propondo
interpretações historicamente muito diferentes e opostas.
É óbvio que uma das questões centrais do feminismo, antes e agora, tem sido a de propor a construção de identidades femininas sob outras bases e parâmetros conceituais.
Uma recusa, portanto, das formas de sujeição impostas
pelo olhar masculino, pela ciência, pela moral e pela cultura masculinas, principalmente nas últimas décadas em
que cresce a luta mais pela “desidentificação”, ou pela
possibilidade de construção de múltiplas subjetividades
pessoais, grupais, sexuais. 3
É de se perguntar, portanto, a que vêm essas construções misóginas e por que foram e são amplamente aceitas? Como se explica que as feministas, que lutaram pela
redescoberta da sexualidade feminina, fossem tachadas de
dessexualizadas ou, no limite, de lésbicas? Será que essas
imagens se ancoravam em amplas constatações empíricas,
isto é, eram todas as feministas virgens solteironas ou homossexuais? E, afinal, por que até mesmo as mulheres, nem
todas evidentemente, mas sobretudo as das gerações mais
jovens não reconhecem o muito do que hoje se conquistou, as enormes possibilidades econômicas, sociais, sexuais
e políticas abertas às mulheres, especialmente nas últimas
três décadas, desde os direitos civis à revalorização do
corpo e à autonomia sexual, como um resultado das pressões e lutas colocadas historicamente pelo feminismo?
Como historiadora feminista, inquieta-me a maneira
pela qual determinadas dimensões do passado são totalmente esquecidas, tão logo seus questionamentos tenham
sido debatidos, avaliados e incorporados. Isso acontece
com alguns pensadores, que, de repente, somem do cenário intelectual e político, enquanto suas idéias, que num
momento preciso relampejaram fulminantes, “sacudindo
as evidências”, como diz Michel Foucault, autonomizamse e passam a ser repetidas localmente, como se nascidas
naquele preciso instante ou, então, como se estivessem
sempre existido lá. Um fenômeno de autonomização das
idéias, em que memória e história se descolam, em que
presente e passado se desconectam e se descontextualizam,
em que se borram, ou mesmo se perdem os movimentos
de origem e as condições de possibilidade de determinados acontecimentos.
Esse processo de eliminação da historicidade dos fenômenos, ou de naturalização pode ser claramente per-
59
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 15(3) 2001
cebido na relação estabelecida com vários movimentos
sociais, entre o feminista, o hippie e o anarquista, entre
outros, é claro. Como se se operasse um profundo corte
entre gerações imediatamente sucessivas, o que é proposto de maneira impactante e conflituosa por uma, é vivido
pelas seguintes com naturalidade, como ordem natural do
mundo, esquecendo-se a dimensão da luta realizada para
sua conquista e tachando-se o movimento originário de
“derrotado”.
Nem se está referindo, nessa direção, aos mecanismos
já tão discutidos de apropriação e neutralização das reivindicações trabalhistas dos operários das primeiras décadas do século XX pelo governo Vargas, construído como
o grande “pai dos pobres”, após a destruição desses mesmos movimentos sociais. Penso mais especificamente nas
profundas críticas ao movimento hippie dos anos 60/70,
visto como “alienado” pela esquerda marxista, radicalmente condenado por ter sido absorvido pelo “sistema”. Não
se observa, por conseguinte, o quanto a sociedade ganhou
e cresceu ao incorporar vários valores, concepções, atitudes e práticas anticapitalistas, libertários e dionisíacos,
pregados por aqueles. O mesmo poderia ser dito em relação ao anarquismo, visto sempre como o “grande derrotado da História”, por não haver proposto o partido político, como se afinal os que o propuseram tivessem tido
melhor sorte, ou como se a sociedade hoje não fosse muito mais libertária, especialmente no sentido de questionar
mais sofisticadamente os macro e micropoderes, as relações de saber-poder, assim como os modos de sujeição,
inclusive aqueles impostos pelas organizações partidárias.
Parte-se, evidentemente, do suposto que apesar dos
enormes retrocessos e das profundas intolerâncias que
atravessam nossos tempos, vivemos também um mundo
muito mais libertário e feminista, questionado ininterruptamente em todos os seus movimentos, seguramente há
mais de 30 anos.
Em relação ao movimento feminista, não é raro ser
considerado atualmente como “coisa do passado” por
muitos que se consideram aliviados por seu final, apesar
das grandes conquistas femininas em curso e da enorme
visibilidade – radiante e colorida –, é bom dizer, das mulheres em quase todas as profissões, na vida social, nas
instituições, nos sindicatos, nas ruas, praças e nos bares
da cidade. Ninguém duvida de que o mundo se tornou mais
feminino e feminista, no Ocidente, entendendo no primeiro
caso maior aceitação e reconhecimento da “cultura feminina”, de um “saber-fazer” específico das mulheres, mesmo que culturalmente determinado e não resultante de
diferenças biológicas; e no segundo caso, referência à luta
pelo direito à vida em igualdade de condições para os dois
sexos. Aceita-se, em geral, que as mulheres obtiveram
inúmeros espaços sociais antes inexistentes ou proibidos
para elas, que conquistaram muitos cargos importantes,
que provocaram muitas mudanças nas relações de gênero, mudanças que, por sua vez, afetaram a própria maneira de ser homem e de pensar. Contudo, poucas vezes o
feminismo é invocado como sendo o produtor principal
das mudanças positivas.
Essas constatações têm levado a se tentar entender por
que à entrada maciça das mulheres na esfera pública, sobretudo nos últimos 30 anos, à decorrente “feminização
da cultura”, isto é, à incorporação crescente de valores,
idéias, formas, concepções especificamente femininos pelo
mundo masculino, não correspondeu uma crescente valorização do feminismo, tanto quanto uma incisiva adesão a
ele, seja se for considerado um conjunto de idéias que reivindicam os direitos da mulher, seja como referência às
práticas e lutas que eclodiram e têm eclodido na sociedade.
Seria oportuno também refletir, mesmo que brevemente,
sobre o tema da “feminização da cultura”, questionando
os motivos pelos quais freqüentemente suscita uma série
de objeções, pois não há consenso de que realmente existiu e existe. É de se perguntar, então, se ainda há dúvidas
sobre a transformação cultural provocada pela maior inserção das mulheres no mundo contemporâneo. E se ainda há quem pense que as mulheres se tornaram “homens”
ao entrar no espaço masculino, esquecendo e abandonando tudo aquilo que caracterizava sua condição de gênero.
É possível não perceber a “feminização cultural” contemporânea, isto é, a maneira pela qual temas, valores, questões, atitudes, comportamentos femininos foram incorporados na modernidade? Por que, enfim, esse fenômeno não
é percebido como um resultado extremamente positivo das
pressões históricas do feminismo, num mundo em que
todos reconhecem a falência dos modos cêntricos – faloeuro-etnocêntricos – de agir e pensar?
Não se pretende responder a todas essas questões, mas
é importante enunciá-las e denunciar os mecanismos sutis
de desqualificação e de humilhação social que operam em
nossa cultura, em relação às mulheres e à cultura feminina. Justamente por serem sofisticadas e imperceptíveis a
um primeiro olhar, essas estratégias de aniquilamento ou
de neutralização das conquistas sexuais e de destruição
dos movimentos e das atitudes contestadoras da ordem
masculina estabelecida devem ser evidenciadas e enunciadas a cada instante.
60
FEMINIZAR É PRECISO:
O MEDO DO FEMININO
E A REAÇÃO MISÓGINA
POR UMA CULTURA FILÓGINA
res e homens passavam a desfrutar de um convívio mais
intenso, desde o início do século XX, inúmeras vozes levantaram-se amedrontadas, apontando para a “dissolução dos costumes” e para o que supunham ser uma forma
de desagregação social. Os debates sobre a definição das
esferas sexuais, a ameaça de perda de virilidade da civilização, o avanço dos valores femininos na cultura acirraram as controvérsias entre os teóricos da Modernidade,
desde meados do século XIX.
Na belle époque vienense, por exemplo, ao lado de
Wagner e Nietszche, Johann Jakob Bachofen, teórico de
grande penetração no Brasil e no mundo, autor de O
matriarcado. Pesquisas acerca da ginecocracia de natureza reliogiosa e jurídica no mundo antigo, publicado em
1861, atacava radicalmente a feminização da cultura em
curso e o “crepúsculo do patriarcado” (apud Le Rider,
1992). Denunciava o amolecimento da raça, a degringolação moral, a degenerescência racial, o retorno à cultura
dionisíaca, visando valorizar o patriarcado como “a realização dos valores espirituais trazidos pelo cristianismo.”
Segundo ele, “O progresso da sensualidade corresponde
em toda parte à dissolução das organizações políticas e à
decadência da vida pública. No lugar da rica diversidade,
impõe-se a lei da democracia, da massa indistinta e essa
liberdade, essa igualdade, que distinguem a vida de acordo com a natureza da sociedade civil organizada e que se
ligam à parte corporal e material da natureza humana.”
(apud Le Rider, 1992:179).
Otto Weininger, por sua vez, construiu uma teoria da
bissexualização da cultura, movimento que caracterizaria
os novecentos como decadência estética e moral.
“A extensão que de alguns anos para cá foi assumida
tanto pelo dandismo quanto pelo homossexualismo não
podem-se explicar senão por uma feminização geral. Não
é sem motivo profundo que o gosto estético e sexual deste início de século busca seus modelos na arte dos prérafaelitas.” (apud Le Rider, 1992:176).
Adolf Loos, em artigo sobre a “Moda Feminina”, publicado em 1902, procurava explicar porque a mulher tinha mais necessidade de roupas do que o homem, nos seguintes termos:
“Mas, a mulher nua é desprovida de charme para o
homem. (...) Este é o motivo que obriga a solicitar a sensualidade do homem através de sua vestimenta, de excitar
nele uma sensualidade doentia que resulta unicamente do
espírito da época. (...) A roupa da mulher se distingue
exteriormente pelos ornamentos e as cores. A mulher se
atrasou em relação à evolução da indumentária. No pas-
Deve-se descartar a primeira resposta, já bem conhecida, “À falocracia, as mulheres propõem a vaginocracia!”,
e perguntar pelo grande medo do feminino na cultura ocidental, medo este historicizado por intelectuais do porte
de Jean Delumeau, Mario Praz e Mireille Dottin-Orsini
(1994; 1996; 1996). A punição das feiticeiras pela
Inquisição desde a Idade Média, a expropriação do saber
das parteiras, desde o século XIX, pela medicina masculina, o alarde em torno da figura da “mulher fatal” destruidora da civilização no século XIX, como Salomé, ou
na representação de Marlene Dietrich, no filme O anjo
azul, de 1930, concomitante à valorização da “rainha do
lar”, a perseguição policial das prostitutas e não dos clientes são temas já bem explorados. Falemos, então, das
reações ao feminismo, por aí entendendo também o medo
provocado pela idéia da liberdade feminina.4
Esse movimento, ao lado da crescente entrada das mulheres no mundo público, questionou categorias de significação e explicação sociais amplamente aceitas, mostrando sua dimensão falocêntrica, e provocou uma profunda
desestabilização das referências sexuais e culturais ao longo
do século XX, em várias partes do mundo. Nas quatro últimas décadas, forçou a incorporação das reivindicações
colocadas na agenda pública e obrigou a sociedade a perceber e discutir a “questão feminina”. Desestabilizou as
tradicionais definições das identidades de gênero – que
destinavam rigidamente o espaço público para os homens
e o privado para as mulheres –, revelando a hierarquização, as relações de poder e a misoginia nelas contida.
Assim, se de um lado abriu novas perspectivas para um
amplo setor da humanidade, de outro suscitou profundas
angústias e medos em outros setores sociais.
Múltiplas reações se fizeram sentir aos avanços femininos e às conquistas feministas, destacando-se a emergência dos debates sobre a divisão dos papéis sexuais, a
preocupação com a definição dos códigos da feminilidade e masculinidade, os direitos e deveres das mulheres, o
casamento e o adultério, o controle da prostituição, o perigo da homossexualidade e o próprio feminismo, ao longo do século passado. O clima foi descrito por Elaine
Showalter (1994) como sendo de “anarquia sexual”. Ante
a liberalização dos costumes, a diversificação da vida social e cultural, a emergência de novas práticas de lazer e
de novos espaços de sociabilidade, como os bares, restaurantes, cafés-concertos, teatros, cinemas, onde mulhe-
61
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 15(3) 2001
sado, o homem também usava vestimentas ricamente ornadas. A evolução magnífica que nossa cultura conheceu
durante este século teve o feliz efeito de ultrapassar o ornamento. Quanto mais baixo é o nível de uma cultura, mais
o ornamento se manifesta nele com força.” (apud Le Rider,
1992:12).
Esses autores, cujos livros se encontram com relativa
facilidade nas bibliotecas públicas brasileiras, tiveram uma
ressonância bastante grande entre nossos pensadores e
governantes, que buscavam nas fontes européias respostas para os problemas do país. Menos conhecidos entre
nós foram aqueles que apresentaram questionamentos e
respostas alternativas às questões de gênero, a exemplo
da feminista Rosa Mayreder, ou do filósofo Georg Simmel,
traduzido para o português apenas na década de 90.
Em seu ensaio de 1905, intitulado Crítica da feminilidade, Mayreder trazia uma nova interpretação sobre as
razões da emergência do feminismo. Constatava uma profunda crise da identidade masculina na modernidade e o
abandono por parte dos “guerreiros” dos espaços e modelos que tradicionalmente ocupavam. Isso sim estaria levando e até mesmo exigindo maior presença das mulheres na vida pública e social, considerava ela. A emergência
do feminismo seria, então, explicada menos como uma luta
das mulheres pela liberdade, buscando destronar os homens, do que como resultado da feminização e de um certo refinamento da cultura, que fizera com que a forma
masculina de vida se aproximasse da forma de vida das
mulheres. Essas, aliás, passavam a ocupar os postos outrora dominados pelos homens, por uma necessidade vital e social, uma vez que eles haviam desertado de seus
postos.
“Já que os homens se tornaram mulheres, as mulheres
não têm outra escolha senão ocupar o terreno por eles
desertado.”, afirmava ela (apud Le Rider, 1992:265).
Georg Simmel, por sua vez, em um artigo de 1902,
apresentava uma posição menos polarizada e indagava
sobre a possível contribuição das mulheres ao participarem de um mundo construído objetiva e racionalmente,
segundo a visada masculina. Com um olhar profundamente
perspicaz, analisava: “...essa cultura, que é a nossa, se
revela inteiramente masculina, com exceção de raros domínios. A indústria e a arte, o comércio e a ciência, a administração civil e a religião foram criação do homem, e
não só apresentam um caráter objetivamente masculino,
como, ademais, requerem, para a sua efetuação repetida
sem cessar, forças especificamente masculinas” (Simmel,
1993:74).
Participando mais intensamente do mundo masculino,
as mulheres trariam uma colaboração muito enriquecedora,
em função de sua formação e experiência singulares, desconhecidas dos homens, desde que aceitas e reconhecidas. Assim, poderiam oferecer o complemento necessário à cultura dominante, caracteristicamente masculina.
Nesse sentido, propunha: “O verdadeiro problema cultural que colocamos assim (produzirá a liberdade que as
mulheres buscam novas qualidades culturais) só encontrará resposta positiva mediante uma nova partilha das
profissões ou mediante uma nova modulação destas, fazendo não que as mulheres se tornem cientistas ou técnicas, médicas ou artistas no sentido em que os homens o
são, mas que realizem trabalhos que eles são incapazes
de realizar. Trata-se, em primeiro lugar, de estabelecer
uma outra divisão do trabalho, de redistribuir os trabalhos globais de uma profissão dada, de reunir depois os
elementos especificamente adaptados ao modo de trabalho feminino para constituir esses ofícios parciais, singulares, diferenciados. Não se obteriam, assim, apenas um
aperfeiçoamento e um enriquecimento extraordinários de
todo o setor de atividade envolvido, mas também se evitaria em boa parte a concorrência dos homens.” (grifos
meus) (Simmel, 1993:74).
Simmel raciocinava em termos da complementaridade
trazida pela experiência feminina, bastante diferenciada
da masculina, tanto por questões culturais quanto naturais. O fato de desacreditarmos hoje da existência de uma
suposta “natureza feminina” não invalida suas colocações,
afinal as diferenças de gênero, construídas social e culturalmente, marcaram profundamente a formação de nossa
identidade ao longo do tempo, assim como a definição dos
espaços sociais femininos e masculinos. O filósofo defendia que a luta pela emancipação das mulheres, pela destruição dos preconceitos sexistas, pela igualdade de direitos entre os sexos traria grandes benefícios para a
humanidade, pois considerava a cultura masculina como
restrita, dura, objetiva e racional, ou seja, excludente de
outras importantes dimensões vitais da experiência humana. A entrada das mulheres na vida pública e social poderia, afirmava ele, transformar e enriquecer consideravelmente a maneira de viver, de pensar e de solucionar os
problemas individuais e coletivos, inovando em relação
aos métodos utilizados e às técnicas produzidas. Num
pensamento bastante avançado, pensava muito mais em
termos da interação de duas culturas sexualmente determinadas, do que na substituição de uma pela outra. Assim, na medicina, dizia ele, as mulheres dariam uma enor-
62
FEMINIZAR É PRECISO:
me contribuição, pois tendo um aprendizado diferente de
lidar com o corpo e com as emoções, poderiam perceber
melhor e mais detidamente o próprio doente.
“Os métodos de exame clínico tidos como objetivos
logo se esgotam, se não forem completados por um conhecimento subjetivo do estado do doente e de seus sentimentos, seja esse conhecimento imediatamente instintivo,
seja mediatizado por manifestações quaisquer. (...) é por
isso que estou persuadido de que, confrontada a mulheres, uma médica, além de ter o diagnóstico mais exato e o
pressentimento mais fino para tratar dos casos individuais
de maneira conveniente, ainda poderia, sob o ângulo puramente científico, descobrir conexões típicas, não detectáveis por um médico, e dar com isso contribuições específicas à cultura objetiva; porque as mulheres possuem,
com sua constituição idêntica, uma ferramenta de conhecimento recusada aos homens.” (Simmel, 1993:76).
Na mesma direção, a anarquista italiana Luce Fabbri,
desde os anos 30, acreditou que as mulheres podiam dar
uma contribuição especial à cultura dominante, justamente
por não terem tido a experiência de guerra dos homens,
por não terem participado dos governos, dos exércitos, da
polícia e por terem desenvolvido uma cultura salutar, ligada aos cuidados com a vida, com a organização doméstica e com a sobrevivência das crianças e velhos. Numa
entrevista realizada em 1996, afirmou: “...as mulheres têm
algo de seu para dar, algo de gênero, uma experiência única
de uma economia não competitiva: a economia doméstica, em que as crianças têm precedência, em que os velhos
estão assistidos porque são velhos, em que cada qual dá o
que pode e consome o que necessita, isto é a economia
doméstica. 5
No Brasil, infelizmente, as pesquisas históricas referentes aos discursos científicos e políticos predominantes
até os anos 60, masculinos, é claro, permitem perceber
muito menos os ecos dessas concepções filóginas, na
problematização das relações entre os gêneros, do que a
acentuação dos discursos misóginos, produzidos e reproduzidos no contexto das discussões sobre os rumos de
construção da nação e a formação do povo.
Principalmente a partir da instalação da República, do
início da industrialização, da imigração européia maciça
e da modernização das cidades, desde o final do século
XIX, a maioria dos médicos, juristas, políticos, escritores, jornalistas e ativistas políticos, reagiu muito mais
negativamente às transformações que desestabilizavam as
relações entre mulheres e homens. Para eles, a desestabilização das antigas fronteiras de gênero destruiria a anti-
POR UMA CULTURA FILÓGINA
ga organização familiar e as definições tanto da feminilidade quanto da masculinidade. Muitos reagiam inquietos
à emergência das reivindicações feministas, à modernização dos costumes, ao surgimento de novas formas de sociabilidade, ao crescimento das práticas de lazer, dos passeios nas ruas aos novos ritmos musicais e às novidades
da moda.
Os médicos tiveram um papel bastante grande na redefinição dos códigos da sexualidade feminina, ao buscar
na própria anatomia do corpo da mulher os limites físicos, intelectuais e morais à sua integração na esfera pública. Esforçaram-se para definir a especificidade do corpo feminino em relação ao masculino, acentuando seus
principais traços: fraqueza e predestinação à maternidade. Para o importante dr. Roussel, médico iluminista francês, cujas teorias tiveram ampla repercussão no mundo
ocidental, na mulher “os ossos são menores e menos duros, a caixa toráxica é mais estreita; a bacia mais larga
impõe aos fêmures uma obliqüidade que atrapalha o andar, pois os joelhos se tocam, as ancas balançam para encontrar o centro de gravidade, o andar é vacilante e inseguro, a corrida rápida é impossível às mulheres”, explica
Knibiehler (1983:90).
Ademais, os doutores conseguiram ampla penetração
social, como inúmeros estudos mostram, interferindo incisivamente na constituição do imaginário social e sexual,
sobretudo por apresentarem-se como portadores do discurso científico legítimo, produtor da verdade e das soluções aos problemas da doença e da morte. 6
Nesse sentido, o saber médico informou uma série de
práticas autoritárias e misóginas, que permitiram justificar objetivamente a exclusão das mulheres de inúmeras
atividades políticas, econômicas e sociais, para não dizer das sexuais, estigmatizando aquelas que, como as
feministas, se colocaram na contramão. Ao mesmo tempo, propôs alternativas para um reajustamento das relações de gênero, mantendo inalteradas as formas da
dominação masculina. Segundo a “brasilianista” Susan
Besse (1996), as relações sexuais foram modernizadas, nas
décadas iniciais do século, tendo em vista atender às necessidades masculinas, mas não acabar com as desigualdades de gênero.
Contudo, o medo e à aversão ao feminino, visto como
o grande desconhecido, não impediu a própria transformação da vida social e das formas culturais ao longo de todo o século XX, principalmente em função da
crescente entrada das mulheres no mundo público, a
partir dos anos 70.
63
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 15(3) 2001
DA FEMINIZAÇÃO CULTURAL
tiva ao assumir como ponto de partida de suas análises o
direito dos grupos marginalizados de falar e representarse nos domínios políticos e intelectuais que normalmente
os excluem, usurpam suas funções de significação e representação e falseiam suas realidades históricas”
(Holanda, 1994:8).
Buscando a construção de um novo conceito de cidadania, Sonia Alvarez mostrou como a atuação das mulheres e sua interferência na esfera pública burguesa, no Brasil
das últimas décadas, forçou a incorporação de suas demandas, levando a que se ampliasse seu espaço de representação. As mulheres passaram a participar de todos os
campos social e político: suas demandas foram levadas
aos partidos políticos, às centrais de trabalhadores, aos
sindicatos, aos coletivos e criaram-se instituições especificamente voltadas para a questão feminina (Alvarez, 1990;
Alvarez e Escobar, 1992). Evidentemente, são muitos os
problemas que emergem a partir de então, mas, sem dúvida alguma, a visibilidade que a “questão feminina” ganha
não deixa de ser um ponto de partida fundamental para
qualquer negociação possível.
Segundo outra feminista, Eleonora Menicucci de Oliveira (1990), as mulheres politizaram praticamente o privado, desfazendo as tradicionais barreiras que opõem o
público-masculino ao privado-feminino. Ao trazerem as
questões privadas para o espaço público, ao assumirem a
discussão pública de sua sexualidade, entre os anos 70 e
80, forçaram sua incorporação e produziram uma profunda transformação naquilo que era considerado os direitos
de cidadania. Nesse sentido, a sexualidade, antes silenciada
e considerada questão de pouca importância política e
social, foi trazida para o cenário político, levando a uma
discussão sobre os pressupostos hierárquicos que regem
nossas representações sexuais e nossas definições do lícito e do ilícito para toda a sociedade.
É preciso levar em conta a tradição política autoritária
e clientelista de nosso país, onde nunca se formou uma
clara noção de esfera pública moderna e de direitos do
cidadão. Aqui, as mulheres sempre foram vistas como
muito mais irracionais do que os homens pobres, porque
foram consideradas como muito mais sensuais e sexualizadas do que as dos países de tradição puritana. Discutir
a sexualidade no Brasil é, então, de extrema importância,
pois com base no argumento da “sensualidade tropical”,
característica fundamental das mulheres, das índias nuas
às mulatas carnavalescas de Sargentelli, justificou-se a
dominação masculina e patriarcal e sua exclusão do mundo dos negócios e da política (Parker, 1993). Lembre-se
A maneira pela qual a valorização da cultura feminina
tem afetado nosso mundo é perceptível em vários momentos, dos quais seria importante apenas sugerir alguns breves exemplos no âmbito da ciência, da política e da sexualidade.
Em relação à produção do conhecimento, sem dúvida
alguma a constituição de uma área de “estudos feministas” em quase todas as universidades do mundo ocidental
permitiu inovar profundamente não apenas no reconhecimento da participação das mulheres nos processos
históricos, mas na crítica à própria narrativa histórica,
vista agora como produção sexuada ou “generificada”
(gendered).7 Da inclusão das mulheres nos acontecimentos políticos e sociais, passou-se a perceber as dimensões
femininas da vida humana, antes excluídas do discurso
histórico, a exemplo da história da vida privada, da história das sensibilidades, das emoções, dos sentimentos, e
de outras dimensões consideradas femininas em nossa
cultura (Rago, 1996). E daí perceberam-se praticamente
as limitações dos conceitos masculinos, inscritos na lógica da identidade, para representar o “irrepresentável” e,
nesse caso, para dar conta das experiências e práticas femininas, ou de outros grupos sexuais.
A epistemologia feminista, como mostra Sandra
Harding (1996:13), apontou para a necessidade da descentralização do foco da atenção da masculinidade no interior do pensamento e nas práticas sociais: o masculino,
embora instituído culturalmente, deveria deixar de ser o
único padrão existente para o assim chamado ser humano, uma vez que os homens não são os únicos habitantes
humanos do planeta. Centrar a atenção exclusivamente nas
necessidades masculinas, nos seus interesses, desejos,
concepções, garante apenas uma compreensão distorcida
e parcial das práticas sociais.
Na área da política, o feminismo questionou, de maneira diferenciada nos seus dois momentos expressivos –
os anos 20/30 e os anos 60/80 do século passado –, os
conceitos básicos que sustentam os princípios liberais,
como o universalismo, a idéia de liberdade e igualdade,
originados a partir do contrato social, denunciando que
este sempre foi formado a partir da exclusão de muitos e
que, portanto, a constituição de uma esfera pública autônoma só seria possível pela perspectiva da diferença e não
da igualdade. Várias autoras observaram que “os estudos
feministas, assim como os estudos étnicos ou antiimperialistas, promovem um deslocamento radical de perspec-
64
FEMINIZAR É PRECISO:
que, poucas décadas atrás, “mulher pública” evocava a
prostituta e não uma figura que participava do mundo da
política, e que as prostitutas, no passado, também não
haviam ainda criado seus movimentos de luta pela cidadania, como o que surge a partir de 1987, nem sugerido a
figura da “trabalhadora do sexo” como alternativa política para sua identidade.
O feminismo veio questionar essa leitura hierarquizadora e excludente da política, informada pelo discurso
médico masculino, que justificava com base em argumentos científicos a incapacidade física e moral das mulheres
para a condução dos negócios da cidade. Mostrou como
se opera a exclusão social das mulheres do mundo público, assim como o silenciamento e a desqualificação de seus
temas e questões. Lutou e luta para que as mulheres se
reconheçam como sujeitos políticos, cidadãs com deveres e direitos a serem reconhecidos e criados. Tem ampliado, portanto, o conceito de cidadania, propondo uma nova
concepção da prática política, que se manifesta não apenas nos espaços permitidos e institucionalizados da política, mas na própria vida cotidiana.
Contudo, é importante remontar ao passado e perceber
como essa tradição de pensamento se constituiu historicamente, onde e quando as primeiras feministas enunciaram seus temas, revelando a especificidade da condição
feminina; onde e quando falaram publicamente sobre a
questão da sexualidade, abrindo espaço para sua interferência no público; onde e quando se manifestaram em prol
da emancipação feminina e foram silenciadas e excluídas.
Se essa crítica foi amplamente formulada nas últimas décadas do século XX pelo movimento feminista, vale lembrar que foi colocada no próprio movimento de constituição da esfera pública, no final do século XIX, e que o
silenciamento deste fato pela memória histórica masculina estabelece mais um elemento da exclusão das mulheres do direito de viver com dignidade.
Finalmente, para além do questionamento da política e
das restrições da cidadania, o feminismo expandiu sua
crítica para as bases de constituição da racionalidade que
norteia as práticas sociais e sexuais. Estendeu a crítica às
próprias formas da cultura, revelando como a dominação
se constitui muito mais sofisticadamente nas próprias formas culturais que instituem uma leitura da política e da
vida em sociedade, convergindo com outras correntes do
pensamento pós-moderno, como “o pensamento da diferença”.8 Nesse sentido, longe de pretender destronar o “rei”
para colocar em seu lugar uma “rainha”, o feminismo propõe a destruição da monarquia no pensamento e nas prá-
POR UMA CULTURA FILÓGINA
ticas sociais, inclusive dentro de si mesmo. Afinal, hoje
as feministas dificilmente aceitariam falar em nome de um
único feminismo, pluralizando, portanto, suas definições
e campos de atuação.
POR UM MUNDO FILÓGINO
Retomando a pergunta inicial: como se explica, então,
a atitude antifeminista socialmente difundida e incorporada, mesmo por aquelas que usufruem das conquistas
feministas que levaram muitas décadas para se concretizar? Certamente, o mecanismo de naturalização e de
cristalização das práticas sociais, que implica sua deshistoricização, é fundamental na configuração do imaginário misógino. De outro modo, como entender esse grande
paradoxo que não permite atar nenhum fio com a tradição
feminista que herdamos, fazendo supor que um dia o mundo mudou, as portas se abriram para as mulheres e ponto
final? Como entender que as mulheres independentes do
nosso mundo, sobretudo as jovens, as mais livres, não se
identifiquem ou não se sintam em nada devedoras em relação àquelas que lutaram, ou lutam pela abertura do campo
de possibilidades de que desfrutam na atualidade, senão
por um mecanismo perverso que faz com que tomem como
origem o que não deixa de ser efeito produzido cultural e
socialmente?
Uma mudança de olhar, um pensamento diferencial
poderia dar conta de permitir uma maior sensibilidade em
relação ao feminino e à construção de um mundo filógino.
Ou será uma questão de coração, mais do que de olhar?
Filoginia, do grego philos, amigo + gyne, mulher – amor
às mulheres – antônino Misoginia, aversão às mulheres
(Grande Dicionário Larousse, 1999:432).
NOTAS
1. Sobre as escritoras brasileiras, veja-se o belo estudo de Norma Telles (1986).
2. Oswald de Andrade: “Em Londres, fui encontrar vivas nas ruas duas novidades – o assalariado e a sufragete. Esta era representada por mulheres secas e machas
que se manifestavam como se manifestava o operário. Ordenadamente, às vistas
da polícia, mas protestando contra um estado de coisas de que minha ignorância
mal suspeitava.” (1959:69).
3. Veja-se a respeito Costa (1996).
4. Dois importantes trabalhos sobre a história do feminismo no Brasil são: Família e feminismo: reflexões sobre os papéis femininos na imprensa para mulheres
(Moraes, 1981) e Feminismo e autoritarismo: a metamorfose de uma utopia de
liberação em ideologia liberalizante (Golberg, 1987).
5. Veja-se a respeito Margareth Rago (2001:315).
6. Vejam-se por ex. Meretrizes e doutores (Engel, 1989); e Os prazeres da noite.
Prostituição e Códigos da Sexualidade Feminina em São Paulo (Rago, 1991).
65
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 15(3) 2001
GAY, P. A experiência burguesa da Rainha Vitoria a Freud. São Paulo, Companhia das Letras, 1995, v.3: O cultivo do ódio.
7. Como a bibliografia na área é vastíssima, indicam-se apenas alguns trabalhos
muito conhecidos: Gender and the politics of history (Scott, 1988); Gender trouble.
Feminism and the subversion of identity e Bodies that matter (Butler, 1991 e
1993); Feminismo como crítica da modernidade (Benhabib, 1991); Poética do
pós-modernismo (Hutcheon, 1991); Pós-modernismo e política (Holanda, 1991);
Uma questão de gênero (Bruschini e Oliveira, 1990).
GRANDE DICIONÁRIO LAROUSSE CULTURAL DA LÍNGUA PORTUGUESA. São Paulo, 1999.
GOLDBERG, A. Feminismo e autoritarismo: a metamorfose de uma utopia de
liberação em ideologia liberalizante. Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro, UFRJ, 1987.
8. Susan Bordo (2000) levanta instigantes questões a respeito dessa aproximação, perguntando-se pelos motivos que levam à grande visibilidade dos “filósofos da diferença” em contraste com a invisibilidade das teóricas feministas.
HARDING, S. Whose science? Whose knowledge? Thinking from women´s lives.
Nova York, Cornell University Press, 1996.
HOLANDA, H.B. Pós-modernismo e política. Rio de Janeiro, Rocco, 1991.
_________ . Tendências e impasses. O feminismo como crítica da cultura. Rio
de Janeiro, Rocco, 1994.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
HUTCHEON, L. Poética do pós-modernismo. Rio de Janeiro, Imago, 1991.
ALVAREZ, S. Engendering democracy in Brazil: women’s movement in transition
politics. Princeton, N.J., Princeton University Press, 1990.
KNIBIEHLER, Y. e FOUQUET, C. La femmes et les medecins. Paris, Hachette,
1983.
ALVAREZ, S. e ESCOBAR, A. The making of social moviments in latin america:
Identity, strategy and democracy. Boulder, Westview Press, 1992.
LE RIDER, J. A modernidade vienense e as crises de identidade. Rio de Janeiro,
Civilização Brasileira, 1992.
ANDRADE, O. de. Um homem sem profissão. Sob as ordens de mamãe. Rio de
Janeiro, Ed. Civilização Brasileira, 1959.
MORAES, M.L.Q. de. Família e feminismo: reflexões sobre os papéis femininos na imprensa para mulheres. Tese de Doutorado. São Paulo, FFLCH/
USP, 1981.
BENHABIB, S. Feminismo como crítica da modernidade. Rio de Janeiro, Rosa
dos Tempos, 1991.
BESSE, S. Restructuring patriarchy. The modernization of gender inequality in
Brazil, 1914-1940. The University of North Carolina Press, 1996.
OLIVEIRA, E.M. de . A reapropriação do corpo feminino: da recusa do
confinamento doméstico à invenção de novos espaços de cidadania . São
Paulo, Departamento de Ciência Política da USP, 1990.
BORDO, S. “A feminista como o outro”. Revista Estudos Feministas. Centro de
Filosofia e Ciências Humanas da UFSC, v.8, n.1, 2000, p.10-29.
PARKER, R. Corpos, prazeres e paixões. A cultura sexual no Brasil contemporâneo. São Paulo, Ed. Bestseller, 1993.
BRUSCHINI, C. e OLIVEIRA, A. Uma questão de gênero. Rio de Janeiro/São
Paulo, Ciec/Carlos Chagas, 1990.
PRAZ, M. A carne, a morte e o diabo na literatura romântica. Campinas, Ed. da
Unicamp, 1996.
BUTLER, J. Gender trouble. Feminism and the subversion of identity. Nova York,
Routledge, 1991.
RAGO, M. Os prazeres da noite. Prostituição e códigos da sexualidade feminina em São Paulo . Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1991.
_________ . “Epistemologia feminista, história e gênero”. In: GROSSI, M. e
PEDRO, J. Masculino, feminino, plural. Florianópolis, Ed. das Mulheres,
1996.
_________ . Bodies that matter. Nova York, Routledge, 1993.
COSTA, C.L. “Sujeitos ex/cêntricos: explorando as fronteiras das teorias feministas”. Fazendo gênero. Revista da Pós-Graduação em Letras da UFSC,
1996.
_________ . Entre a história e a liberdade. Luce Fabbri e o anarquismo contemporâneo. São Paulo, Ed. da Unesp, 2001.
DELUMEAU, J. História do medo no ocidente. São Paulo, Companhia das Letras, 1994.
SCOTT, J. Gender and the politics of history. Nova York, Columbia University
Press, 1988.
DOLORES, C. Almas complexas. Rio de Janeiro, Editor Calvino Filho, 1934.
SHOWALTER, E. Anarquia sexual. Rio de Janeiro, Rocco, 1994.
DOTTIN-ORSINI, M. A mulher que eles chamam fatal. Rio de Janeiro, Rocco,
1996.
SIMMEL, G. Filosofia do amor. São Paulo, Martins Fontes, 1993.
TELLES, N. Encantações. Escritoras e imaginação literária no século XIX. Tese
de Doutorado, São Paulo, PUC-SP, 1986.
ENGEL, M. Meretrizes e doutores. São Paulo, Ed. Brasiliense, 1989.
66
FEMINISMO
E
RECORTES DO TEMPO PRESENTE:
MULHERES EM
...
FEMINISMO E RECORTES DO
TEMPO PRESENTE
mulheres em revistas “femininas”
TANIA NAVARRO SWAIN
Professora do Departamento de História da Universidade de Brasília
Resumo: Ouve-se dizer que o feminismo acabou. Que tudo já foi conseguido pelas mulheres, conquistas em
todos os campos sociais. Apesar de evidentes modificações nas relações de gênero em alguns países do Ocidente, o que aqui se pretende analisar é a dimensão das representações sociais do feminino, constitutivas das
configurações identitárias e corpóreas, já que presentes na apreensão do real. A mídia e as revistas femininas
compõem um locus especial de análise da ação do discurso e das imagens modelando corpos e assujeitando-os
a uma certa representação do feminino.
Palavras-chave: feminismo; revistas femininas; representações sociais; corpo e identidade sexual.
sões físicas, humilhações, palavras, gestos, é apenas um
marco de imagens e representações que instauram um
corpo genitalmente definido e reduzido a um sexo biológico.
A noção de “gênero” criada pelos estudos feministas
desmascara a ação do social contida nos discursos sobre
a “natureza” humana e seu valor heurístico é incontornável;
entretanto, a força compreendida nas análises da generização humana tende a se diluir nos aspectos demonstrativo e relacional como se o diagnóstico pudesse por si só
curar o mal.
As composições de gênero determinam os valores e
modelos desse corpo sexuado, suas aptidões e possibilidades, e criam paradigmas físicos, morais, mentais, cujas
associações tendem a homogeneizar o “ser mulher”, desenhando em múltiplos registros o perfil da “verdadeira
mulher”. Se o masculino também é submetido a modelos
de performance e comportamento, a hierarquia que funda
sua instituição no social desnuda o solo sobre o qual se
apóia a construção dos estereótipos: o exercício de um
poder que se exprime em todos os níveis sociais.
A análise dos mecanismos de condensação discursiva
e representacional da carne em corpos sexuados permite
detectar agentes estratégicos na reprodução, reatualização,
ressemantização de formas, valores e normas definidoras
de um certo feminino naturalizado, travestido em slogans
modernos, em imagens de “liberação”, cujos sentidos,
Q
ue rumor é este, “trocas verbais no interior de
uma sociedade”, 1 que se ouve nas esquinas, nos
bares, nas salas de jantar e nas de aula, nos ônibus superlotados e nos carros de luxo? O feminismo acabou? O infinito e insidioso ruído do discurso
social sussurrado, explicitado, demonstrado, sugere a desnecessária continuidade de um movimento tornado obsoleto diante das “evidentes” conquistas das mulheres: no
plano político, já podem votar e ser votadas, qual a queixa? São minoria nos altos postos legislativos e judiciários? Questão de tempo. No campo profissional as portas
se abrem, para algumas eleitas. Questão de competência.
Salários desiguais para tarefas idênticas? Os ajustes se
fazem aos poucos…
Decreta-se assim no senso comum e na análise teórica
o fim do feminismo: afinal, os gêneros não são igualmente construídos socialmente? Entretanto, colocando-se no
mesmo assujeitamento ao social a constituição do feminino e do masculino, esquece-se facilmente o caráter hierárquico da generização do humano.
De fato, o ufanismo discursivo da igualdade de oportunidades não consegue encobrir a profunda polarização
da sociedade ocidental em imagens esculpidas em formatos binários – mulher e homem –, cujos contornos
assimétricos delimitam, autorizam, definem os papéis, a
ação, o ser no mundo. Na prática social, a violência direta
e indireta que povoa o cotidiano das mulheres com agres-
67
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 15(3) 2001
constituídos em redes significativas, são expressão de um
assujeitamento à norma instituída.
Algumas transformações formais, de fato, realizaramse em alguns países ocidentais em níveis legais e/ou jurídicos, graças justamente aos movimentos feministas, caracterizados pela sua multiplicidade, táticas e estratégias
diversificadas diante de realidades. Mas o dinamismo e o
alcance das mudanças – maiores ou menores de acordo
com o país – têm-se reduzido ou mesmo regredido (Faludi,
1991), na medida em que as transformações não atingem
as representações de gênero que constituem os corpos
humanos em modelos de ser.
O que aqui se pretende argumentar é que, além do papel social definido em feminino e masculino, as representações e imagens de gênero constroem e esculpem os corpos biológicos, não só como sexo genital mas igualmente
moldando-os e assujeitando-os às práticas normativas que
hoje se encontram disseminadas no Ocidente.
Nessa perspectiva, as representações sociais são consideradas uma forma de construção social da realidade cuja
mediação atravessa e constitui as práticas pelas quais se
expressam. Para Denise Jodelet (1994:46), um pressuposto
fundamental do estudo das representações sociais é o da
“(…) inter-relação de uma correspondência entre as formas de organização e de comunicação sociais e as modalidades de pensamento social, vistas sob o ângulo de suas
categorias, de suas operações e de sua lógica”.
Assim, seja no rumor das conversas que fundamentam
o senso comum, na literatura, no discurso científico, ou
em tudo que é impresso ou falado, podemos encontrar
representações sociais que instituem o mundo em suas
clivagens valorativas, nos recortes significativos que definem as categorias de percepção, análise e definição do
social.
A comunicação expõe assim sua própria constituição
de categoria ao se expressar e as matrizes de inteligibilidade do discurso social podem ser apreendidas em sua
análise; o discurso social é aqui entendido como “(…) tudo
o que é dito e escrito em uma determinada sociedade; tudo
que se imprime, tudo que se diz publicamente ou se representa hoje na mídia eletrônica. Tudo que se narra ou
argumenta, se consideramos que narrar e argumentar são
as duas maneiras principais de elaboração discursiva.”
(Angenot, 1989:13). Assim, a televisão, as novelas, os
romances, as revistas em quadrinhos, as revistas em geral, os jornais, a internet, etc., em seu espaço de recepção
e interação, veiculam representações sobre as mulheres,
os homens, a sociedade. Imagens e textos compõem um
mosaico que integra a maneira de se perceber o mundo e
o desenho de sua positividade.
Dessa forma, se o discurso da mídia em seu dialogismo
com o rumor social decreta o fim do feminismo, o campo
conotativo do que é dito e do dizível indica a recuperação
e/ou atualização de representações binárias, excludentes
e hierarquizadas sob novas roupagens. Mulheres e homens
continuam a ocupar lugares tradicionalmente traçados
segundo sua “natureza” feminina ou masculina, esta mesma “natureza” desconstruída pelo feminismo contemporâneo. Longo é o caminho trilhado pelos feminismos plurais em suas estratégias e argumentações desde Simone
de Beauvoir, quando a pretensa essência da mulher é
desconstruída em uma simples frase que vincula o “ser
mulher” ao “ser” social.2
Se a história das mulheres restitui de alguma forma a
presença, a ação e a resistência das mulheres ao imaginário ocidental em narrações pontuais, o feminismo argumenta e analisa a construção, os mecanismos que produzem poder e reproduzem as desigualdades de gênero.
Entretanto, se as teorias feministas não cessam de expandir seu acervo de categorias e seu horizonte de análise, os movimentos feministas em sua prática social se vêem
desautorizados e desmotivados diante da afirmação generalizada de que “o feminismo acabou” e que, sobretudo, o
feminismo é uma prática anacrônica uma vez que, finalmente, “a igualdade já não foi alcançada?”
Jane Flax (1991) observa que a análise das relações de
gênero, como são constituídas, pensadas e experimentadas, é uma meta básica do feminismo; sublinha, entretanto, a necessidade de apontarmos o domínio do pensável,
ou seja: como reproduzimos estas relações em torno de
valores e significados cuja aparência anódina não permite uma imediata apreensão das hierarquias implícitas?
Como são representadas, em que constelações de sentido
se inserem as imagens de gênero que são veiculadas no
espaço midiático, locus privilegiado de um imaginário
instituinte de relações sociais?
Nunca é demais destacar a démarche proposta por
Foucault (1991) de inversão das evidências na análise do
discurso social: buscar a vontade de verdade e os recortes
discursivos que, no caso, constroem a naturalização de
papéis. O discurso de verdade apóia-se na tradição, na ciência, na religião para definir a essência dos seres: uma identidade baseada em critérios arbitrários que se apresenta
com um caráter atemporal, negação de toda historicidade,
em asserções do tipo “eterno feminino”, “prostituição, a
mais antiga profissão do mundo”. Para Foucault (1991:22),
68
FEMINISMO
esta “(…) vontade de verdade que se impôs a nós há tanto
tempo é tal que a verdade assim proposta não pode senão
escondê-la”, pois a evidência esconde em suas dobras a
vontade de poder que a anima.
De fato, as representações sociais, estudadas em um
tempo e local determinados sobre um corpus específico,
são também reatualizações de imagens que permanecem
alojadas nos nichos do interdiscurso, “(…) processo de
reconfiguração incessante no qual uma formação discursiva
é levada (…) a incorporar elementos pré-construídos, produzidos fora dela, com eles provocando sua redefinição e
redirecionamento (…)” (Maingueneau, 1989:113).
Assim, no Ocidente, as representações das mulheres
vêm sendo diabolizadas ou santificadas, e essas expressões compõem a noção de uma natureza sexuada selvagem, rebelde, má, cuja domesticação resultaria na imagem da “boa”, da “verdadeira” mulher. Os discursos
fundadores dessas “certezas” em torno do feminino vão
de Aristóteles a Paulo de Tarso, passando por inumeráveis caminhos discursivos e temporalidades diversas, entre o medievo e a modernidade. (Swain, s.d.)
No saber instituído pela filosofia e pela história, a palavra dos “grandes homens” esclarece sobre a “verdadeira” natureza da mulher, repondo sem cessar, nos espaços
interdiscursivos, representações pejorativas sobre o feminino que delimitam seu lugar no mundo, suas possibilidades e as práticas às quais ela deve se restringir.3
Alguns exemplos: Jean de Marconville, em 1564, invoca os gregos, os romanos, os textos bíblicos, os padres
da Igreja para demonstrar a maldade das mulheres. Segundo ele, Adão, “(…) o mais dotado de todas as perfeições que todos os outros homens, foi entretanto vencido
no primeiro assalto que lhe fez sua mulher”. Ainda assegura que as mulheres não têm aptidões “(…) para manejar e conduzir coisas grandes e difíceis como costumes,
religião, república e família, pois parecem ter sido feitas
mais para a volúpia e o ócio que para tratar negócios de
importância.” (Marconville, 1991:97 e 101).
Montaigne (apud Groult, 1993:83): “A mais útil e honrada ciência e ocupação para uma mulher é a ciência da
limpeza”; Diderot (apud Groult, 1993:89): “A mulher tem
em seu interior um órgão sucetível de espasmos terríveis
que dela dispõem e suscitam em sua imaginação fantasmas
de toda espécie” Schopenhauer (apud Groult, 1993:93):
“Não deveriam existir no mundo senão mulheres de interior, dedicadas à casa, e jovens aspirando a isto e que formaríamos não à arrogância, mas ao trabalho e à submissão.” E ainda: “A mulher (…) permanece toda sua vida uma
E
RECORTES DO TEMPO PRESENTE:
MULHERES EM
...
criança grande, uma espécie de intermediária entre a criança e o homem, este o verdadeiro ser humano”.
Proudhon (apud Groult, 1993:96-97), o “pai do anarquismo moderno” explicita seis casos em que o marido
pode matar sua mulher, entre eles “a insubmissão obstinada, o impudor e o adultério”, e acrescenta: “Uma mulher que usa sua inteligência torna-se feia, louca, (…) a
mulher que se afasta de seu sexo, não somente perde as
graças que a natureza lhe deu (…) mas recai no estado de
fêmea, faladeira, sem pudor, preguiçosa, suja, pérfida,
agente de devassidão, envenenadora pública, uma peste
para sua família e para a sociedade”. Nietzsche (apud
Groult, 1993:102): “O homem inteligente deve considerar a mulher como uma propriedade, um bem conservado
sob chave, um ser feito para a domesticidade e que só chega
à sua perfeição em situação subalterna”.
E isso sem citar a autoridade dos Rousseau, Freud,
Hegel, Comte, Lutero, Lombroso, dos tratados médicos e
dos manuais de confissão, da literatura e do teatro, da
poesia, veiculando essas imagens que desqualificam e atrelam a mulher a um destino biológico e criam “(…) um
campo de elementos antecedentes em relação aos quais
se situa, mas que tem o poder de reorganizar e de
redistribuir segundo relações novas” (Foucault, 1987:143).
Assim a sedução perversa, a inferioridade física e social,
a incapacidade intelectual, a dependência de seu corpo e
de seu sexo, a passividade, vêm sendo reafirmadas em
imagens e palavras que povoam o imaginário ocidental.
Essas imagens do feminino ancoradas na memória
discursiva 4 se incorporam às representações de mulheres
atuais, transformadas, mas guardando as nuanças que fazem das práticas sociais um espaço binário assimétrico,
cujas polarizações reforçam e justificam a divisão
generizada do mundo. Ao feminino, o mundo do sentimento, da intuição, da domesticidade, da inaptidão, do
particular; ao masculino, a racionalidade, a praticidade, a
gerência do universo e do universal.
Apenas os discursos religiosos integristas ou de extrema direita se permitem na atualidade declarações de um
tal teor pejorativo sobre as mulheres; entretanto, os ditos
populares, as piadas, as letras de música e as representações sociais que encontramos em imagens e textos
midiáticos reformulam o atrelamento da mulher a seu corpo
e à natureza “feminina”.
Os produtos culturais destinados ao público feminino
desenham, em sua construção, o perfil de suas receptoras
em torno de assuntos relacionados à sua esfera específica: sedução e sexo, família, casamento, maternidade e fu-
69
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 15(3) 2001
tilidades. A ausência, nas revistas femininas, de debate
político, de assuntos econômico-finaceiros, das estratégias
e objetivos sociais, das questões jurídicas e opinativas é
extremamente expressiva quanto à participação presumida, à capacidade de discussão e criação, ao próprio nível
intelectual das mulheres que as compram. O feminino
aparece reduzido a sua expressão mais simples e simplória: consumidoras, fazendo funcionar poderosos setores
industriais ligados às suas características “naturais”:
domesticidade (eletrodomésticos, produtos de limpeza,
móveis), sedução (moda, cosméticos, o mercado do sexo,
do romance, do amor) e reprodução (produtos para maternidade/crianças em todos os registros, da vestimenta/
alimentação aos brinquedos).
Mulheres e homens, a “evidência” da diferença biológica seria o argumento último da necessária separação de
esferas sociais baseada na diferença de sexos. Acompanha-se, entretanto, Judith Butler (1990) e Nicole Claude
Mathieu (1991) quando questionam essa nova naturalização: a primeira afirma que o gênero só existe quando se
materializa na prática do social, heterogênea em sua
historicidade:
“O gênero pode também ser designado como o verdadeiro aparato de produção através do qual os sexos são estabelecidos. Assim, o gênero não está para a cultura como
o sexo para a natureza; o gênero é também o significado
discursivo/cultural pelo qual a ‘natureza sexuada’ ou o ‘sexo
natural’ é produzido e estabelecido como uma forma ‘prédiscursiva’ anterior à cultura, uma superfície politicamente neutra sobre a qual a cultura age” (Butler, 1990:7).
Mathieu (1991:256) acrescenta que é esse gênero instituído que cria o sexo biológico, pois a heterogeneidade cultural de relações sexo/gênero “(…) nos leva a pensar não
mais que a diferença dos sexos é ‘traduzida’ ou ‘expressa’
ou ‘simbolizada’ pelo gênero, mas que o gênero constrói o
sexo. Entre sexo e gênero é estabelecida uma correspondência ‘socio-lógica’ e política”.5 Ou seja, a importância dada
ao sexo, ao aparelho genital, na positividade e divisão da sociedade, é ela mesma uma criação histórica e social.
Isso nos leva à questão dos corpos que se transformam
em feminino e masculino num processo significativo que
restitui, no discurso e na matéria, as representações
valorativas que dão sentido às relações sociais. Assim, a
sexualidade torna-se o eixo principal da identidade e do
ser no mundo, fundamentando-se em valores institucionais tais como procriação, casamento, família; a hegemonia
da heterossexualidade, prática sexual entre outras, como
atesta a multiplicidade de culturas, torna-se naturalizada.
Essa montagem complexa compreende todo um sistema de representações e auto-representações sociais codificada em normas, regras, paradigmas morais e modelos
corpóreos, que delimita os campos do aceitável, do dizível,
do compreensível. Teresa de Laurentis (1987:5) chama
essa engrenagem de sex gender system que seria “um
construto sociocultural e um aparatus semiótico, um sistema de representação que confere sentido (identidade,
valor, prestígio, localização no parentesco, status na hierarquia social, etc.) aos indivíduos na sociedade”.
Na perspectiva feminista de detectar os mecanismos de
produção e atualização deste quadro representacional
Laurentis (1987:19) aponta para “as tecnologias do gênero” que de forma discursiva ou imagética “(…) têm o poder de controlar o campo do sentido social e então produzir, promover ou implantar as representações de gênero”.
Essas tecnologias no mundo contemporâneo possuem
sua expressão paroxística no discurso mídiático. Como
comenta Foucault (1988:180), “(…) Afinal, somos julgados, condenados, classificados, obrigados a desempenhar
tarefas e destinados a um certo modo de viver ou morrer
em função dos discursos verdadeiros que trazem consigo
efeitos específicos de poder.”
Apesar da proliferação dos textos e imagens no murmúrio contínuo e inesgotável do cotidiano ocidental, a
apropriação social do discurso se dá em diferentes instâncias discursivas, lugares de fala, posições de autoridade
que legitimam ou excluem, delimitam ou expandem as
hierarquias e os valores definidores de sentido e de lugares sociais, na Ordem do Discurso, na economia de um
imaginário em que se pode detectar a hegemonia das representações tradicionais e naturalizadas de gênero.
Regularmente o discurso social retoma a medicalização
do homossexualismo, a dependência psíquica incontornável
da mulher em relação a seu corpo sexuado na incapacitação
que resulta da TPM (tensão pré-menstrual) ou na universalização dos “males” da menopausa, como veremos adiante.
Esses tipos de asserções reduzem a multiplicidade da experiência à imagem da mulher, essencializada, partilhando
igualmente a fragilidade de uma natureza que finalmente
justifica e reitera seu lugar subordinado. A questão que se
impõe é: como se pode confiar no julgamento, na palavra e
no raciocínio de um ser subjugado periodicamente por nervosismos ou calores? Isso não seria apenas uma reformulação da imagem da “mulher histérica”?6 O assujeitamento
das mulheres e das próprias feministas a esse tipo de discurso revela a força de autoridade do discurso médico, divulgado e reafirmado pela mídia.
70
FEMINISMO
Foucault (1991:110) afirma que “(…) em toda sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por um certo
número de procedimentos (…)” e as tecnologias de produção de gênero fazem parte integrante desta démarche,
conjurando e ao mesmo tempo assimilando as transformações sociais conseguidas pelos movimentos feministas.
Sob novas roupagens, quais as representações do feminino veiculadas pela mídia atualmente, nas propaladas reformulações das relações de gênero?
A análise de revistas “femininas” recorta, no universo
discursivo, este “(…) conjunto de discursos que interagem
num dado momento (…)” (Maingueneau, 1996:14) um
lugar de fala que nos traz textos e imagens como objetos
sociais e históricos, elaborados no social segundo códigos e significados pré-construídos; por outro lado são,
também, produtores/ressematizadores das representações
instituidoras da socialidade. Disputando um mercado milionário, entre publicidades, reportagens, conselhos, dicas, moda, receitas culinárias e de vida, procuram interpelar e conduzir as receptoras para um espaço de
significações cuja proximidade da dóxa assegura sua possibilidade de leitura; existiria talvez um projeto pedagógico que urde a trama dos sentidos assim veiculados, numa
retórica que busca “(…) convencer os outros de que, de
fato, apesar de tudo, ainda se vive no melhor dos modos
possíveis (…)”(Eco, 1993:174).
Os sentidos do mundo, assentados em valores e normas, expectativas e barreiras, definições e identidades, são
assim constituídos em opinião pública, ciência, religião,
lei, nas instâncias discursivas que regem e regulam a
socialidade.
O mundo da comunicação contemporâneo é hoje talvez o único espaço sem fronteiras e a circulação de imagens e representações sociais é virtualmente sem limites;
as matrizes de inteligibilidade partilhadas e veiculadas pela
mídia atualizam, das profundezas da memória discursiva,
imagens estereotipadas do feminino e do masculino, mas
não apenas em um espaço cultural definido.
Assim, podemos sugerir a hipótese de que se o feminismo se desdobra hoje em teorias e estratégias plurais
que apontam para a multiplicidade das situações e das
condições materiais das mulheres, a mídia, em tempos
de globalização, pretende a homogeneização da condição feminina e a recuperação da imagem da “verdadeira mulher” feita para o amor, a maternidade, a sedução, a complementação do homem, costela de Adão
reinventada.
E
RECORTES DO TEMPO PRESENTE:
MULHERES EM
...
Com efeito, a mídia se localiza na noção de dispositivo, aventado por Foucault (1979:244) como “(…) um
conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados
científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas”.
Assim, as tecnologias do gênero descritas por Laurentis
aprofundam essa noção verticalizando-a na constituição
das representações generizadas do humano.
Para transitar nesse universo globalizado da atualidade, em que a troca cultural é parte do mercado mundial,
foram escolhidas para análise quatro revistas em dois países: Nova (jun, 1999) e Marie Claire (maio, 1999), revistas brasileiras, e Elle-Québec (janvier, 1999) e La
Chatelaîne (décembre, 1998) da província francesa do
Québec-Canadá.
Línguas latinas, matrizes culturais imbricadas, numa
economia de trocas representacionais da América do Norte
e América do Sul. A intenção é tentar observar como as
representações de gênero constroem os corpos sexuados
e as práticas femininas são assim homogeneizadas. 7
O tom geral das revistas é de alegria, de confiança no
futuro, certeza de poder conciliar tarefas, assumir os novos espaços abertos às mulheres sem perder um só grama
de sua “feminilidade”, perspectiva que “(…) em nada se
distingue daquela ética da felicidade barata pela qual se
rege uma civilização do lucro e dos consumos” (Eco,
1993:174). De fato, o que se nota é uma certa condescendência em relação à mulher profissional, cuja atividade
seria apenas um acréscimo às suas tarefas habituais, nunca uma modificação da divisão “natural” do trabalho. O
público-alvo é a mulher de classe média, jovem, com um
certo nível de instrução e renda, cujas preocupações e interesses são presumidos nos apelos publicitários e nos temas desenvolvidos.
As capas das revistas brasileiras Nova e Marie Claire
apresentam chamadas que indicam as matrizes de sentido
sobre as quais se apóiam o corpo e seus contornos, a sexualidade heterossexual, a sedução, o casamento e a maternidade. O corpo tecnológico, refeito, remodelado para
seguir o modelo de mulher cujas imagens povoam a revista aparece em ambas: plástica na barriga e transplantes
em Marie Claire (MC); em Nova, aumento dos seios com
silicone. Na rede discursiva texto/imagens dessas revistas, as publicidades vêm reforçar os sentidos e as representações propostas nas capas, como veremos mais adiante.
Em MC, as três primeiras chamadas discutem a sexualidade e o casamento: “As fases da separação: da dor ao
71
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 15(3) 2001
alívio”; “Lua-de-mel: como era e como ficou”; “Orgasmo, a ginástica sexual que aumenta o poder feminino”.
Um depoimento – lugar de fala da leitora – anuncia a
maternidade: “um milagre de amor salvou meu filho”. Um
belo rosto de mulher compõe a capa, moreno, olhos castanhos, cujo sorriso anuncia o bem-estar da mulher brasileira.
A capa da revista Nova é mais provocante: uma exuberante loura de olhos azuis, seminua, apenas envolta em
gaze azul: mulher versão Barbie, o retorno infindável? As
chamadas estão todas voltadas para a sexualidade e a sedução: “14 histórias inconfessáveis de ousadias sexuais”;
“O que você faz para engatar ou destruir o namoro”; “Terapia sexual é uma saída para casamentos na corda bamba?”; “50 homens charmosos e solteiríssimos que querem
receber sua mensagem”. De fato, as duas revistas são construídas em função de um personagem cuja presença é
incontornável e em torno do qual giram as mulheres incansavelmente: o homem.
Em ambas as revistas o corpo é central, pois é a partir
de sua capacidade de sedução que os demais elementos
da rede discursiva se integram. O cyborg analisado por
Donna Haraway, o corpo tecnológico, é evocado pelo discurso sobre o transplante, do qual se trocam as peças na
luta contra a morte; a plástica na barriga e as publicidades de cosméticos e cremes rejuvenescedores apelam à
eterna juventude, ao corpo produzido: o modelo corporal
está finalmente ao alcance de todas, na luta contra o tempo e as imperfeições. Com a cosmetologia, nenhuma mulher precisa ser feia, uma vez que a beleza é condição sine
qua non para o romance e a felicidade.
As publicidades referentes ao corpo em MC apontam
para a beleza possível, mostrando às mulheres como elas
PODEM ser. “Livrei-me da barriga e das recordações tristes” diz uma leitora em MC: o excesso no corpo remete à
tristeza e à infelicidade.
O sumário de MC transita entre reportagens que articulam valores tradicionais (entrevista com Adélia Prado
e comunidade tradicional no Rio Grande do Sul) e matérias sobre duas personalidades masculinas, decoração e
interior (interesse principal e locus específico da mulher),
problemas de relacionamento de casais e é claro, Moda,
Beleza, Saúde e dicas para uma Boa vida).
A única matéria de cunho político strictu sensu referese às “viúvas e órfãs de Pinochet”, na qual aparecem como
guardiãs de uma memória – de um pai ou marido, cujas
imagens são predominantes. “Até hoje muitas mulheres
continuam procurando saber o que aconteceu com seus
parentes desaparecidos”. Apesar do corpo da matéria apontar para mulheres que foram torturadas, violadas e assassinadas, a construção do texto e as imagens as tornam
espectadoras e auxiliares das verdadeiras vítimas – os homens, que perderam a vida pela liberdade. A resistência
das mulheres à ditadura não aparece senão como a dor da
perda, mote das chamadas e das fotos: a corda sensível é
a quebra familiar, o registro da emoção e do individual,
único aparentemente capaz de motivar as mulheres e fazêlas respeitadas nesta “invasão” do espaço público.
A sexualidade aparece explícita nas três primeiras reportagens: na matéria sobre a lua-de-mel, a superfície
discursiva da chamada mostra um caminho evolutivo de
mudanças no comportamento sexual. Podem-se destacar
algumas palavras que sustentam o texto nas palavras da
avó: ingênua, choque, dor, medo, vergonha, ansiedade.
Mas “meu marido era um lorde (…) eu tinha de deixar (..)
afinal o casamento tinha de ser consumado, era nossa obrigação”. Para a filha, a lembrança da noite de núpcias invocava “ansiedade, nervosismo, dor, vergonha; “a virgindade era um bem a ser preservado. Na verdade a gente
falava muito, mas sabia pouco”. Prazer? “(…) senti prazer, um prazer de estarmos juntos (..) tinha de ser e ele foi
supercarinhoso e paciente”. Em comum as matrizes de
sentido: medo, vergonha, obrigação, falta de prazer e a
idealização de um marido gentil e compreensivo.
Quanto à terceira geração, na primeira relação sexual
“Eu não tinha vergonha, (…) não doeu, não sangrou, mas
não senti prazer”. O casamento, feito “(…) porque as famílias queriam” mostra uma opção moderna, que dispensaria
o institucional; seu relato, entretanto, é o único que enfatiza os rituais realizados nos mínimos detalhes, o que é significativo sobre a importância da cerimônia para os próprios noivos. O relato é finalizado com a ênfase dada à
transmissão da experiência para a filha “(…) passando para
ela o máximo que puder do que é a relação com um homem, os sentimentos, a beleza, sem tabus (…) inspirar na
nossa filha esse sentimento de algo muito natural e bom.”
Esses depoimentos, numa linha de progresso, apóiam o
caminho inexorável de um relacionamento cada vez melhor entre os gêneros, exemplificado no artigo pelo discurso da atualidade. Locus de gentileza, afeto, estabilidade, a
família é exaltada na transmissão dos valores mais tradicionais e a sexualidade no casamento, vestida de modernidade, afirma a boa ordem do mundo. Essa é, portanto, a sexualidade correta, ligada ao que é “natural e bom”.
Essa matéria se atrela à naturalização do institucional
e ao obscurecimento de sua historicidade; como sublinha
72
FEMINISMO
Adrienne Rich (1981:17), “Em nenhum dos livros que tratam da maternidade, dos papéis e relações sexuais, das
normas sociais para as mulheres, leva-se em consideração a heterossexualidade obrigatória como instituição
capaz de afetar profundamente todos os fatos sociais; e a
idéia de ‘preferência’ ou de ‘orientação inata’ não é, da
mesma forma, posta em questão”.
Na mesma linha da tradição e família, encontra-se uma
longa entrevista com Adélia Prado, para quem o lugar de
fala e de autoridade é logo estabelecido: “a maior poeta
brasileira viva”, que “(…) defende valores cada vez mais
contestados e escreve textos cada vez mais admiráveis.”
Com 41 anos de casada, fé no “sacramento do matrimônio”, mãe, avó, católica, dona de casa, o perfil traçado
fundamenta o discurso em torno de alguns eixos: fé, estabilidade, valor espiritual do casamento. Adélia Prado afirma que “(…) as feministas me acham antiga demais da
conta” e a revista apressa-se em afirmar: “Mas os críticos
são quase unânimes em reconhecer o talento e a força desta
teologia poético-pessoal e feminina”.
A oposição feminino/feminista reforça a percepção do
senso comum: o feminismo é desqualificado pela afirmação do feminino, ligado aos valores das “verdadeiras
mulheres” assegurados pelos críticos, pelo mundo masculino.
Adélia Prado tem sua definição de feminino: “capacidade de dizer sim, de se dobrar, de aceitar a condição de
perdão radical.” Da mesma forma indica que: “Uma coisa
que me aflige é o direito da mulher. Eu fico com uma vergonha na hora que dizem isso. Porque me inferioriza, sou
ofendida enquanto ser humano (…) acho que já está tudo
lá nos direitos humanos.” A palavra “vergonha” sugere a
inadequação total de reivindicações que desestabilizariam
o natural das posições definidas para mulheres e homens
– humanos, cada qual em seu lugar, decisão divina.
O discurso de Adélia Prado nessa revista nega a condição subordinada da mulher, nega a violência social e institucional que hierarquiza e marca os indivíduos sexualmente. Esses comentários seriam apenas desprezíveis se
não estivessem inseridos em uma rede discursiva que os
revestem de legitimidade para o senso comum, adensando
a dóxa da inscrição corporal.
Por outro lado, para ela, escrever é um ato masculino:
“(…) vergonha de fazer poesia nunca tive, mas era do ofício que tinha vergonha”. Usurpação do lugar do homem,
opróbio do deslocamento da ordem das coisas, da ordem
do Pai: aos homens o intelecto, às mulheres o sentimento,
a intuição. “Cada macaco no seu galho” diz o ditado.
E
RECORTES DO TEMPO PRESENTE:
MULHERES EM
...
Adélia Prado continua: “(…) qualquer ato criativo eu sinto como um ato masculino. De fato eu sou um homem neste
sentido, quando estou escrevendo.” Assim, ser agente no
mundo é privilégio do ser masculino; anulação total, negação do ser feminino que se procura afirmar: a criação
para a mulher é apenas ligada à reprodução. “Virgindade,
casamento, é necessário passá-los para os filhos”, conclui.
A repórter marca o lugar da recepção esperada: “Saí de
sua casa com uma inveja boa, querendo ser um pouco como
ela (não fosse eu estragada de nascença) só para acreditar
no que e como ela acredita.” O desalento, a descrença marcam essa fala que aponta para a retomada de valores e crenças tradicionais. Quem sabe não éramos mais felizes?
A revista MC continua a discursar sobre a sexualidade
e a chamada agora é: “Ginástica íntima: técnicas milenares
e aparelhos que aumentam o prazer da mulher”. No corpo
do texto a matéria versa sobre a “contração voluntária dos
músculos circunvaginais, a fim de induzir sensações eróticas no pênis durante o ato sexual”. Prazer de quem?
Uma citação de Jorge Amado completa o texto em um
quadro, em destaque: “uma mulher pode ser feia de aparência, pior de formas, mas se a boca do corpo for de chupeta, trata-se de diamante puro”. A grosseria da frase teria foros libertários? O fato é que aqui a mulher é apenas
uma vagina, não importa seu aspecto físico.
O deslocamento entre o título e o texto marca o próprio
deslizamento da sexualidade da mulher para a do homem,
a que se torna central na matéria. A jornalista afirma ainda
que “idolatradas pelos homens, muitas ‘pompoaristas’ não
divulgam a técnica para não aumentar a concorrência”: assim, aquelas que compraram a revista esperando conselhos
para um maior prazer pessoal, se vêem conduzidas a um
universo de concorrência e sedução, em que seu corpo é
um simples aparelho masturbatório.
Por outro lado, na seção de cartas, um comentário sobre um bordel para mulheres: “Em algum lugar deste mundo as mulheres podem exercer suas vontades, fantasias e
desejos sem o menor problema ou constrangimento.” A
prostituição, expressão paroxística da violência social,
torna-se aqui o locus naturalizado de expressão livre do
desejo: a liberação sexual é equiparada à prostituição,
estratégia discursiva comum tomada como justificativa da
objetificação e mercantilização humanas.
As publicidades compõem a rede que estabelece o lugar, a conduta adequada, o perfil psicológico da mulher:
numa delas, o amor da mãe pelo filho torna-se admiração
sem limites da mulher pelo homem, pois ele ensina-lhe a
usar Nescafé.
73
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 15(3) 2001
Os anúncios de carro revelam a relação das mulheres
com a máquina: aparência e segurança são os motes. Numa
delas a família feliz, duas crianças, o pai dirige, a mãe
olha-o com adoração e põe a mão em sua perna. O carro
para as mulheres é uma extensão de sua casa, extensão de
seu papel e de suas obrigações.
Além da moda e da cosmetologia, cujas publicidades
compõem cerca de um terço da revista, anúncios de sabão
em pó: “todo o mundo tem de escolher entre o que precisa
fazer e o que gostaria de fazer (…) enquanto Ariel trabalha, você tem todo o tempo livre para dedicar a sua família, a sua casa, a você mesma”. “Dia das mães. Se depender da gente pode-se chamar Dia da Independência –
assinado: produtos Maggi.”
A divisão de trabalho é aqui naturalizada ao máximo:
entre precisar/querer, a opção é obrigatória, e facilitar o
trabalho de casa permite uma dedicação ainda maior à …
casa. Por último, eventualmente, a si mesma. De toda forma, a mulher foi destinada à resignação e ao sacrifício,
como diria Adélia Prado. A independência, para as mulheres, se resume a fazer comida com maior facilidade.
Em SEU lugar: a cozinha.
A revista Nova já em sua denominação apela para a
idéia de transformação, de modernidade: a “nova mulher”
deve aí encontrar a sua imagem. As chamadas da capa
referem-se a práticas sexuais, possíveis transgressões, casamento, namoro, remodelagem do corpo: “14 histórias
inconfessáveis de ousadias sexuais, a gente nem imagina
do que as mulheres são capazes!” (O lugar de fala aqui é
externo e na perspectiva binária da revista, só pode ser
masculino – seria um convite a seus olhares?) “Negra e
vitoriosa: volta por cima do preconceito” “50 homens
charmosos e solteiríssimos querem sua mensagem”; “Terapia sexual para casamentos”; “Engatar ou destruir um
namoro – os homens revelam”; “Idéias espertas para trabalho extra”; “Aumento do seio com silicone”. Dessas
chamadas, quatro são relativas ao relacionamento com um
homem e uma refere-se à busca da perfeição corpórea,
marco de sedução.
Nos artigos e reportagens, uma personalidade em destaque, pondo em relevo sua carreira, expectativas de trabalho: um homem. Duas mulheres aparecem também como
tema de reportagem: uma é a mulher mais elegante do
Brasil e outra é Betty Faria, atriz, mas a ênfase aqui é dada
à sua vida particular e sobretudo amorosa. Os domínios
de atuação são assim claramente demarcados.
Outras duas matérias se debruçam sobre as fantasias
sexuais e problemas amorosos, uma sobre o casamento e
dentre as “21 coisas a fazer antes do ano 2000”, a primeira é “fazer as pazes com o corpo” e a segunda, “honrar a
palavra” da qual o exemplo dado é “fazer dieta”.
A reportagem especial é sobre “paquera”. Seguem-se
moda e beleza (ao alcance de todas), cartas, horóscopo,
dicas, novidades, nudez, mulher liberada. As categorias
axiais permanecem as mesmas: corpo, sedução, amor.
As publicidades de moda, culinária, perfumaria e beleza, com ênfase para o rejuvenescimento, compõem quase
metade da revista. “Quero ser seu par”: 14 páginas sob
este título mostram em grande formato casais em posições
claramente sexuais ou de apropriação. Os seios voltam à
baila, explicitando que a perfeição está ali, próxima: “Aumenta o volume! Se você não nasceu com seios perfeitos
pode optar pelas moderníssimas próteses de silicone. Levantamos tudo sobre o assunto!”, em seis páginas. O corpo da mulher desenha-se assim sob o olhar do outro, aquele
a ser seduzido, aquele que faz de mim um sujeito dotado
de significação social.
Que corpo é este, construído em todas suas linhas e
desenhos; que corpo é este contra o qual devem se erigir
o mundo feminino e a indústria de cosméticos/perfumaria/ginástica/produtos dietéticos/medicina/pesquisa? Para
melhor domesticá-lo, para controlá-lo e mostrar que, neste caso, a natureza pode e deve ser contornada, pois todas
as mulheres têm ao seu alcance a BELEZA, caminho para
o amor, o casamento, o jogo da sedução e da felicidade.
Tomadas ao acaso, as superfícies discursivas de produtos de beleza: “… o mais revolucionário tratamento de
beleza contra o processo de envelhecimento e combate aos
radicais livres”; “…aparelho especialmente desenvolvido para modelar o seu corpo, quando você não tem tempo
para fazer exercícios” (ao lado de uma dançarina do ventre com o rosto velado e seminua). “Segredos da natureza
para renovar sua pele, cabelos e sentidos”; “Novo Chic…
não pense no custo. Pense no benefício. (mulher de
calcinha e sutiã sobre um fundo azul de um rosto em close
de um homem); “Agarre seu homem pelos cabelos”. De
fato, as mulheres se vêem pelo olhar “panóptico” masculino, que as constrói em seu reflexo no espelho e em sua
representação mental.
Num metadiscurso, a revista faz um anúncio dela mesma – Nova Beleza – com a chamada principal: “Todas as
respostas para você ter um bumbum perfeito: exercícios,
óleos, dietas…” e outras compondo a próxima capa: “a
primeira noite com ele: como deixar seu corpo macio,
cheiroso, gostoso de pegar”; “cabelos ondulados, cacheados, crespíssimos”; “os 22 melhores cremes… para você
74
FEMINISMO
começar já!”; “Decidi mudar radicalmente meu visual. E
consegui!”; “Seios que parecem maiores, barriga quase
invisível. As lingeries que modelam seu corpo”. Mulhercorpo?
Para Susan Bordo (1997:19-20), o corpo funciona como
uma metáfora da cultura e esta densa rede discursiva tece
as malhas simbólicas e normativas da definição do feminino. Afirma a autora que “Por meio de disciplinas rigorosas e reguladoras de dieta, maquiagem, e vestuário –
princípios organizadores centrais do tempo e do espaço
nos dias de muitas mulheres – somos convertidas em pessoas menos orientadas para o social e mais centradas na
automodificação”. E esse combate cotidiano é incitado,
conduzido e levado aos extremos pelo dispositivo da sexualidade definido por Foucault (1976), no qual as tecnologias de gênero afunilam a performance na construção
de corpos sexuados, no esquema binário e valorativo que
funciona e oscila nos registros da sedução, posse, romantismo, apropriação.
Ainda no “ramo publicitário” os anúncios de carro expressam em suas superfícies discursivas uma certa representação da mulher: “conforto e segurança” (antes de tudo,
pensar no transporte das crianças); “novo design, novo conjunto ótico: faróis e pisca numa única peça de policarbonato transparente” (alta tecnologia para o mundo feminino); “pára-choques envolventes na cor do veículo que
suporta pequenos choques” (mulher dirige mal e só conhece do carro a cor), novo revestimento com toque suave”, (próprio das damas); “novo quadro de instrumentos
com conta-giros de série e iluminação por leds azuis de
alta intensidade e filetes em vermelho” (cores e luzes, atrativos maiores) “computador de bordo … nova regulagem
no comando de válvulas e injeção, deixando o carro ainda mais gostoso de dirigir” (detalhe apenas: computador,
injeção eletrônica – não se assustem, é agradável para dirigir). Poderia ser a descrição de um carrinho de brinquedo mas “combina com seu estilo de ser” e como é um anúncio para a “Nova Mulher” conclui: “irreverência nas ruas.”
O capítulo “sexualidade” nessa revista tem três partes:
terapia, fantasias e entrevistas com homens sobre como
vêem as mulheres, nas quais a questão é vê-las moldes
“para casar” ou “para outras coisas”. As respostas se dividem em partes iguais: a primeira metade acha um absurdo essa divisão, mas suas afirmações ainda constroem
um mundo separado para homens e mulheres. Assim, a
afirmação “o que faço com outras mulheres posso muito
bem fazer com minha namorada” supõe a multiplicidade
de parceiras. Estaria sua namorada no mesmo registro, seria
E
RECORTES DO TEMPO PRESENTE:
MULHERES EM
...
isto aceitável? Ou apenas uma reafirmação da dupla moral, a sexualidade múltipla para os homens e a monogamia
para as mulheres? “Adora badalação … e nem por isso é
uma vagabunda”. O que é ser uma vagabunda? Quais os
limites, quais as margens? “Cheguei à conclusão que somos iguais”, pensamento profundo, solitário, inovador e
moderno, nada a ver com as transformações conseguidas
a duras penas pelos movimentos feministas.
A outra metade dos entrevistados afirma claramente
suas expectativas: “… por mais que um homem seja moderno ele não consegue pensar em casamento quando se
relaciona com uma mulher que faz questão de sua própria liberdade… mesmo que isto não a comprometa em
nada”; “prefiro uma mais quietinha, que confie em mim e
não me dê dor-de-cabeça com mania de independência”;
“para casamento com certeza prefiro uma garota serena,
caseira e natural”.
As palavras destacadas acima compõem por si só um
texto de advertência às mulheres: o espaço de domesticidade, a reserva própria ao feminino, a volta à “natureza” são condições sine qua non para o casamento. Nos
anos 70, Germaine Greer (1971:295) apontava essa dupla
face do casamento: “Cada esposa deve se contentar de seu
lar e de sua vida familiar enquanto que para o homem trata-se apenas de um lugar de refúgio para onde se retira
como um guerreiro cansado (…).”
Esses homens, que assim se expressam, são jovens entre 25 e 35 anos, nos anos 90, nascidos já em meio ao
debate engendrado pelo feminismo; suas representações
sociais, entretanto, continuam presas aos esquemas binários do mundo, de dupla moral e do binarismo implícito
nas práticas sociais, sejam elas econômicas, morais,
relacionais, sexuais, instituidoras de um mundo cindido
“naturalmente”, em masculino e feminino.
A revista constrói sutilmente sua rede de representações em outras reportagens: uma leitora queixa-se que seu
noivo a subestima, suas opiniões, ações, “não me considera capaz. Perguntei se acha que sou burra, ele apenas
sorriu, como se estivesse dizendo mais uma bobagem.”
Essa superior condescendência é atenuada pela revista que
afirma: “Ele é uma vítima do mecanismo que o obriga a
ser assim (…) mas para dominar, precisa de uma cúmplice, dê-se ao respeito.”
Esse ato retórico de inversão constrói um campo de
significação e persuasão em que a vítima é transformada
em ré ou cúmplice: de um lado explica socialmente a atitude do homem e de outro acusa a mulher. Nos casos de
estupro, agressão, assédio, violência conjugal, de quem é
75
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 15(3) 2001
afinal a culpa? Já diz o ditado: “se você não sabe porque
está batendo, ela sabe porque está apanhando”.
Logo em seguida, uma entrevista com um músico muito liberal, que adora as mulheres com uma “saudável rebeldia”. Entretanto afirma que “garotas doces, meigas e
certinhas, tímidas e passivas exercem um grande fascínio
sobre os homens”. Não chega nem a ser uma retórica paradoxal: de um lado, uma certa rebeldia, moderna, mas
dentro de limites precisos, pois no jogo da sedução é o
papel tradicional, “natural” da mulher que vai atrair e “fisgar” os homens.
Outra reportagem refere-se às “dez fantasias sexuais
mais quentes”: nas dos homens encontram-se o voyerismo
e o homossexualismo. Mas a revista previne, para deixar
claras as fronteiras sexuais: “não, ele não é gay, é só uma
curiosidade positiva”. Sadomasoquismo é outra fantasia
masculina mas a relação natural entre os gêneros aí fica
explícita: dominador/dominada”.
Ser amarrada é uma das fantasias femininas favoritas;
amarrar, um sonho tipicamente masculino. “Tem a ver com
a obtenção do poder ou a renúncia a ele”. Ou seja, mesmo
no nível da fantasia não há disputa de lugares: as mulheres renunciam ao poder (passividade, submissão, aceitação) e os homens exercem-no.
A simulação do estupro é outra fantasia masculina e
diz a revista: “(…) forçar uma mulher não está relacionado à violência mas com a vontade que o sujeito tem de
submeter a parceira por meio de uma técnica fantástica.
Ela começa dizendo não depois muda de idéia, porque é
incapaz de resistir ao gostosão. Para ele é uma viagem do
ego. Ninguém se machuca e a vítima também se diverte.”
Essa “fantasia” nega a violência do corpo usado, da humilhação, do desprezo e da negação da individualidade;
diminuída, banalizada, apresentada como um jogo, lúdico
e prazeroso – uma técnica fantástica. “Viagem do ego,
incapaz de resistir ao gostosão.” Como negar a força das
palavras, a força dessas imagens que saltam do texto e
interpelam as emoções? Como negar que essa retórica
persuade e estimula a agressão, reafirmando antigas fórmulas como: “ela começa dizendo não”?
Assim, vemos a mídia atuando na tessitura da rede
representacional reafirmando e fazendo funcionar o poder generizado em “(…) nível do processo de sujeição ou
dos processos contínuos e ininterruptos que sujeitam os
corpos, dirigem os gestos, regem os comportamentos, etc.”
como explicita Foucault (1979:182).
O homossexualismo está entre as fantasias e ousadias
sexuais das mulheres mas a revista desculpabiliza “(…)
só porque tem a idéia não quer dizer que vai ser obrigada
a cortar o cabelo e pôr um terno”. O estereótipo indica
que uma passagem rápida pelo desejo sáfico não pode
desviar do caminho correto, o que reforça no campo das
representações sociais “(…) a convicção das mulheres de
que o casamento e a orientação sexual para os homens são
componentes inevitáveis de sua existência”, como afirma
Adrienne Rich (1981:23).
Por outro lado, sexo oral, sexo romântico, ser considerada irresistível aparecem como fantasias sexuais ousadas. Que tipo de relação sexual têm as mulheres “modernas” que lêem Nova? Que tipo de relação podem considerar
satisfatória se nessas fantasias “ousadas” a sedução é mais
importante que o sexo?
Nas fantasias aparece, é claro, como contraponto, o
“sexo contra sua vontade” e a revista explicita: “elementos de conquista à força, não de dor e violência”. Agir como
prostituta é também uma fantasia das mulheres “sexualmente inibidas”, pois informa a revista Nova, “o pagamento
é confirmação do poder de atração, você tem uma coisa
tão almejada que ele está disposto a desembolsar dinheiro por ela.” A mulher reaparece aqui como a representação de seu corpo ou uma parte dele e a prostituição, exacerbação da violência social, é tratada como um estágio
superior da sedução.
Essas são estratégias discursivas de construção de gênero
e seu efeito de poder é a construção de um corpo biológico
generizado que traz, como sublinha Foucault (1979:22) “(…)
em sua vida e sua morte, em sua força e sua fraqueza, a sanção de todo erro e de toda verdade (…)”. Verdades construídas, datadas, que circulam no social com a força da evidência, com o selo do natural e do inquestionável quando se trata
de corpos sexuados feitos mulheres.
Outra cultura, outro espaço, outra materialidade: a província canadense de Québec, de língua francesa. O momento: Natal. A revista, La Chatelaîne, que logo marca
seu lugar de fala: “a revista mais lida do Québec”. As chamadas da capa enquadram um belo e jovem rosto de mulher, sorridente: “Viagra: a vingança dos homens”; “Educação, quando os pais não sabem dizer não”; “Michel
Rivard: a felicidade reencontrada”; “Natal: seja bela para
as festas”; “Não procure mais: 15 páginas de presentes
fabulosos”. A trama discursiva se organiza em torno do
consumo, da beleza, da família, da sexualidade e dos homens. A capa sinaliza assim o conteúdo significativo da
revista.
Abrindo a revista, em duas páginas uma publicidade
de perfume na qual um homem beija uma mulher. Consu-
76
FEMINISMO
mo, sedução, amor, o tríptico das revistas femininas. A
publicidade tem um papel notável nessa revista, na recuperação e reafirmação de estereótipos: numa delas (que
se repete na revista Elle) uma mulher executiva, sobrancelha levantada, lábios estreitos, braços cruzados, tailleur
estrito, cabelo preso, sentada em uma cadeira de espaldar
alto e reto, atrás de uma mesa sobre a qual repousam caneta, óculos, agenda. Na placa em que deveria estar seu
nome, que em francês se escreve NOM, está escrito, porém, NON, ou seja, a negação: não.
Essa imagem negativa, de dureza e severidade para uma
executiva, imagem rígida de uma mulher no exercício de
uma profissão de comando, é colocada em um campo significativo e polissêmico com a simples palavra instalada
em sua frente: Não. Não à profissional? Não à mulher
severa? À mulher em posição de poder? À mulher que não
se adapta ao modelo? À mulher sem os atributos “naturais” da feminilidade? “No Natal, ofereça algo doce a quem
mais precisa” diz o texto. E sublinha: “para as que precisam se dar prazer”. Imagem e texto, ato retórico desconstrutivo da representação da mulher que trabalha, que decide, que manda, pois perde sua doçura, sua suavidade, e
sobretudo, seu prazer – de ser mulher.
As publicidades nessa revista concentram-se em produtos de beleza (35 páginas) que asseguram a juventude,
a perfeição em detalhes do corpo: maquiagem, cabelos,
unhas, pele, lábios, cílios, apontando para as possibilidades infinitas de correção de imperfeições e da passagem
do tempo. A “arte” da maquiagem é a arte do disfarce,
mas isto supõe que o rosto da mulher sem pintura seja
defeituoso. “(…) As tecnologias da feminilidade são praticadas pelas mulheres contra este pano de fundo da percepção de um corpo deficiente; isto explica seu caráter
muitas vezes compulsivo e ritualístico”, sublinha Sandra
Bartky (1988).
Por outro lado, 32 páginas e publicidades sobre cozinha e comida trazem conotações sexuais, familiares, sedutoras. A mulher é a provedora ou a que “pega o homem
pelo estômago”. Uma delas é uma receita para a sedução,
a respeito de trufas com chocolate branco: “depois de uma,
seu homem lhe dá a lua; depois de três, renega a cozinha
da mãe; depois de cinco, começa a compreender o que
significa “preliminares.”
O grande número de apelos à degustação de receitas
ou as fotos de doces suculentos é uma contradição constante com as imagens oferecidas como modelos de beleza, diáfanas, magras, magras, magras. Essa contradição
impregna a vida das mulheres ocidentais pois, como
E
RECORTES DO TEMPO PRESENTE:
MULHERES EM
...
explicita Susan Bordo (1997:25), “As regras dessa construção de feminilidade (…) exigem que as mulheres aprendam como alimentar outras pessoas, não a si próprias, e
que considerem como voraz e excessivo qualquer desejo
de auto-alimentação e cuidado consigo mesmas. Assim,
exige-se das mulheres que desenvolvam uma economia
emocional totalmente voltada para os outros.”
Outras fontes de representações sobre as mulheres são
as publicidades de carros: nestas, os textos são longos e
retomam o senso comum. Na descrição do automóvel enfatiza-se o espaço e as “portas com duplas fechaduras”,
ideal para transportar as crianças; por outro lado, “os instrumentos fáceis de ler”, ajudam a pobre mulher a compreender uma máquina misteriosa para sua mente limitada. Ou então, o que importa são as linhas e a aparência:
“top model: elegância, raça, grife, conforto,”; “todas as
suas esperanças alcançadas: espaço, conforto, rádio, regulador de velocidade e ah! 150 cavalos!” De fato, a
performance do motor é secundária, todos sabem que as
mulheres só conhecem dos carros as cores. Facilidade,
conforto, segurança, espaço; adjetivos: elegância, beleza,
grife. A venda de carros retoma como eixos a aparência, a
utilidade familiar, a futilidade, o acessório em lugar do essencial, e sobretudo a relação “natural” da mulher com a
máquina: a incapacidade de compreendê-la, de avaliá-la.
A diferença entre homens e mulheres é tomada como
tema de uma das reportagens da revista e o subtítulo sugere uma modificação representacional: “os geneticistas
exageram!” Da Université Laval, única universidade no
Québec que tem um programa de “Estudos Feministas”
com diplomação específica, vem o interlocutor que responde às questões da revista: é um homem, antropólogobiologista. Nessa escolha, a revista reforça a idéia da autoridade masculina, voz que pode esclarecer as dúvidas
de todas as leitoras “modernas”, ávidas de aprendizado.
Segundo ele, os antropólogos contestam que as diferenças sejam naturais mas em nenhum momento fala do
papel do feminismo nessa contestação do papel “natural”
atribuído ao feminino e ao masculino. Afirma que “na
maior parte das sociedades de caçadores-colhedores que
existiam antes da agricultura, as mulheres se dedicavam à
colheita e os homens à caça”. Essa universalização é totalmente desprovida de fundamento, na medida em que
os dados a respeito dessas sociedades – indícios – estão
sujeitos à interpretação dos analistas impregnados de suas
representações sociais. Nada pode provar essa divisão de
trabalho, a não ser as pressuposições contidas em suas
próprias concepções de papéis de gênero. As generaliza-
77
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 15(3) 2001
ções históricas a respeito das relações mulheres/homens
são fruto de um positivismo anacrônico que se fundamenta apenas na afirmação de suas premissas: é natural porque é, e sendo assim sempre foi.
E ele continua: “Seria porque as mulheres são menos
hábeis na caça? Isso está longe de ser provado!” Mas sua
afirmação anterior solidificou a universalização das relações sociais generizadas desde o início dos tempos, artifício discursivo em que a força da representação tradicional apaga a afirmação contrária.
E apesar de afirmar que o cultural tem mais força que
o biológico, continua dizendo que “naturalmente creio que
existe uma parte de explicação biológica (…) em milhares de sociedades estudadas pelos antropólogos não encontramos nenhum exemplo em que as mulheres exercessem o poder como os homens o fazem em nossas
sociedades antes do feminismo”. Seu discurso recortado
pode significar totalmente o contrário do que anuncia o
título da matéria e se apóia na rede de sentidos estabelecida pela revista.
A última pergunta: “Para resumir, podemos dizer que
a diferenciação dos papéis de homem e mulher é o resultado de um caminho cultural e de uma predisposição biológica?” Resposta: “Indubitavelmente. E esse caminhar
cultural não acabou. Nada nos permite afirmar que em
alguns séculos as mulheres não ocuparão mais espaço do
que os homens na cena pública.”. Ficamos todas felizes
com essa perspectiva secular, tempo necessário para transformar a biologia rebelde das mulheres em seres aptos ao
poder público.
Em outra matéria, chamada da capa “Viagra: vingança
dos machos contra as feministas”, o feminismo é colocado CONTRA os homens, reafirmação do senso comum:
feministas = mal-amadas, viragos, lésbicas. O depoimento do editor de Penthouse atualiza o discurso do século
XV sobre as feiticeiras que castravam os homens: “O feminismo emasculou o macho americano e esta emasculação
engendrou problemas orgânicos”. O Malleus Maleficarum,
manual dos confessores de 1486 se inquieta sobre essa
questão: “(…) pergunta-se se as feiticeiras, pelo poder do
demônio, podem verdadeiramente e realmente cortar o
membro ou somente dar a impressão ilusória disto? (…)
Ninguém duvida que certas feiticeiras façam coisas espantosas em torno dos órgãos viris; muitos o viram, muitos
ouviram falar.” (Institoris e Sprenzer, 1990).
O sentimento de castração adviria da perda ou do
questionamento do poder sobre as mulheres, com seu discurso de igualdade? A retomada do vigor sexual – sinôni-
mo e símbolo do poder – seria a recuperação do poder
sexual/social?
Mas a riqueza significativa dessa reportagem não se
exaure facilmente: “para as mulheres de uma certa idade,
sobretudo se estão na menopausa e não seguem a hormonoterapia (que luta contra a secura vaginal), não têm necessariamente vontade de ser solicitadas novamente”. O
papel passivo da mulher na prática sexual é aqui reafirmado; a sexualidade destina-se apenas àquelas leitoras da
revista, jovens e em idade de reprodução, que cuidam de
sua beleza e seu corpo, são sedutoras dentro dos padrões
estabelecidos e consomem os produtos adequados. O fantasma da velhice aparece como uma advertência para as
mulheres que não seguem os recursos médico-cosmetologistas.
Pode-se ver, assim, nessas superfícies discursivas, a
medicalização dos corpos, a criação de um novo invólucro, de uma nova categoria: as mulheres na menopausa.
Vaginas desérticas, ossos quebradiços, desejo esquecido,
o discurso médico generaliza e cria a menopausa como
um castigo, num corpo envelhecido, caminho de todas,
se… não seguirem a hormonoterapia, os cuidados com a
pele e os cabelos, a ginástica, a dieta.
O corpo tecnológico é o corpo moderno da mulher e o
envelhecimento pode ser driblado em novos estágios de
sedução, renovação do dispositivo da sexualidade em
novas práticas, em desdobramentos da indústria da beleza e da juventude eterna: médica, cirúrgica, farmacêutica, cosmética.
Essa construção discursiva dos corpos, fraturados em
hierarquias de idade, volume, altura e classificados pelo
olhar paradigmático que define as possibilidades de sedução, performance, realização pessoal, cristaliza-se em
práticas delimitadoras de um sexo biológico atreladas às
representações do gênero feminino. Assim o sexo é desenhado não como uma superfície neutra de inscrição de
práticas generizadas mas é igualmente un constructo que
se erige em dado natural. Para Donna Haraway (1991:35758), “(…) não se nasce organismo. (…) os corpos como
objeto de conhecimento são nódulos generativos materiais
e semióticos. Seus limites se materializam na interação
social. (…) Os vários corpos em questão emergem da interação da investigação científica, da escrita e da publicação, do exercício da medicina e de outros negócios, das
produções culturais de todas as classes, incluídas as metáforas e as narrativas disponíveis (…)”.
Outro artigo fala das mulheres que exercem profissões
masculinas, “não-tradicionais”, vencedoras de um concur-
78
FEMINISMO
so promovido pelo Estado para estimular as mulheres a
abrirem o leque de suas atividades. No Québec os movimentos feministas, tanto acadêmicos quanto sociopolíticos,
abriram um espaço excepcional para a atuação das mulheres. As discriminações são atenuadas mas existem em
termos de representatividade política e de desigualdade
de salários, nas manifestações da violência social contra
as mulheres em todas suas dimensões, da conjugal à prostituição. Assim, em níveis representacionais, igualmente
as mulheres encontram-se em patamares assimétricos. De
quatro entrevistadas, três têm nível médio e todas desviaram-se para uma carreira masculina, após um início em
cozinha, contabilidade e moda. Se o texto demonstra a
competência das mulheres, na pesca, na topografia e em
tecnologias de elaboração de papel, são apresentadas, no
entanto, como minoria, como casos excepcionais e uma
delas se destaca como “diferente”: aparência esportiva,
medalha de bronze no campeonato canadense de futebol.
Mulheres, mas nem tanto.
A única entrevistada de nível superior, vice-presidente
de um banco, teve um início profissional clássico para as
mulheres, transitando indecisa, entre o teatro, assistência
social, literatura, história, etc. Mesmo tendo chegado a esse
posto, continua em dúvida se não irá se dedicar ao serviço de desenvolvimento na África. A dúvida, a dedicação
aos outros… traços marcantes do feminino. Com 36 anos
para um homem esse posto seria o resultado de uma bela
e rápida carreira; ela, entretanto, sublinha que “não digo
que minha vida profissional teve precedência sobre minha vida pessoal, mas eu gostaria que as duas tivessem
tido o mesmo sucesso.” A imagem publicitária da executiva dura e sem prazer forma rede com esta representação
da mulher de sucesso, porém triste. A escolha é óbvia: ou
a profissão e a carreira ou a felicidade. Mesmo com o espaço institucional aberto, o campo representacional restringe a atuação das mulheres, sancionando-as em sua vida
pessoal.
A revista Elle-Québec, que completa o corpus desta
análise, traz em sua capa chamadas em torno do “Sexo,
rendez-vous para o amor!”; “Moda, a magia da meia-noite”; Metamorfose, três mulheres se prestam a este jogo”;
“As mulheres do ano: heroínas, militantes, estrelas…” e
finalmente “Todo o seu ano em nosso especial Astro”.
A moda nessa publicação ocupa 40 páginas e produtos
de beleza, apenas 34; na La Chatelaîne seu espaço é menor, 9 páginas, e nas revistas brasileiras, 28 em Marie
Claire e 48 em Nova. Uma vez construído o corpo é preciso vesti-lo e a indústria da moda, assim como a
E
RECORTES DO TEMPO PRESENTE:
MULHERES EM
...
cosmetologia e os perfumes, é o pilar das revistas femininas. Barthes (1981:262-63) comenta: “Assim é a Mulher
ordinariamente significada pela retórica da Moda: feminina imperativamente, jovem absolutamente, dotada de
uma identidade forte e entretanto de uma personalidade
contraditória (…) seu trabalho não a impede de estar presente em todas as festas do ano e do dia; ela sai todo fim
de semana e viaja todo o tempo (…) a mulher da Moda é
ao mesmo tempo o que a leitora é e o que sonha ser”.
Analisa ainda que a Moda seleciona os corpos aos quais
se aplica, excluindo outros, ou então cria os corpos “na
moda”, de acordo com o modelo ideal: “(…) alonga, incha, reduz, aumenta, diminui, afina e por estes artifícios a
Moda afirma que pode submeter não importa que acontecimento (não importa o corpo real) à estrutura que ela
postula”. A tirania da moda não é uma palavra vã: os corpos se espremem e se contorcem para se ajustar aos contornos da moda.
Se nos ativermos às reportagens anunciadas pela capa,
as mulheres do ano, que marcaram o Québec em 1998,
são cineastas, artistas, modelos, escritoras, designers,
comunicadoras, pequenas empresárias, mas ao lado das
profissões o destaque para certas mulheres é também dado
por suas qualidades “naturais”: altruísmo (freira) e maternidade (25 filhos). Profissões tradicionais ou ligadas
ao representacional feminino; por outro lado, a astronauta que aparece no fim da reportagem “é do calibre das
estrelas”; a diretora-geral da Banque Royale no Québec
“está engajada em muitas causas humanitárias e é a mãe
de Anne-Sophie”.
Na reportagem seguinte, “o encontro com o amor” é
um homem que detém o poder da palavra: na introdução
ele afirma que a liberação de uma moral repressiva em
relação à sexualidade trouxe “solidão e sofrimento”. Salienta que as conquistas modernas foram: a desculpabilização do prazer, a emancipação das mulheres e o fim
do ostracismo dos homossexuais, o que localiza seu discurso na atualidade. Mas indica tabus fundadores: incesto, pedofilia e violência conjugal colocando na mesma
categorização práticas sociais correntes que longe de representarem um tabu são elementos de disseminação do
poder generizado.
Continua incentivando a reapropriação da “verdadeira
dimensão da sexualidade” – que naturalmente ele sabe qual
é – e recusa “a acomodação com um mundo sem valores
nem finalidade”. Mas o melhor de seu discurso é sobre o
feminismo, marcando bem sua distinção em relação ao
feminino, pois mostra à “nova” mulher moderna, a mu-
79
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 15(3) 2001
lher que lê a revista, sua verdadeira dimensão: “A emancipação das mulheres já estando adquirida (ou quase) vemos aparecer intelectuais que chamarei de pós-feministas. Elas aceitam a herança da emancipação, mas rompem
com o feminismo de ontem – o de Simone de Beauvoir –
que designava à mulher um projeto de masculinização (tornar-se igual ao homem). Essas novas mulheres se querem
liberadas mas mulheres no pleno sentido do termo, capazes de pôr em relevo sua especificidade feminina, entre
elas a maternidade, que Beauvoir recusava.” Esse é um
típico discurso didático: “liberadas, mas…” a verdadeira
mulher sabe seu lugar, que não é igual ao do homem.
Quem é ela? A de Rousseau? A de Proudhon? Assim,
tudo o que era possível já foi conseguido e o feminismo
acabou?, interrogação com a qual se deu início a esta análise. Sua esperança é a família “célula necessária a toda sociedade”, cuja fundamentação está em sua afirmação apoiada na teia representacional sobre a qual se constitui. Esses
são axiomas explicativos baseados nos contratos veridictórios entre o emissor e o receptor, em que a autoridade
de quem fala se encontra com a crença de quem ouve. Como
sublinha Angenot (1989:33), “(…) lugares comuns do jornalismo (…) que repelem os enunciados incompatíveis e
se constroem uns em relação aos outros como co-inteligíveis (…) permitindo dissertar sobre todas as coisas e dominando em ‘baixo contínuo’ o rumor social”.
Tereza de Laurentis (1987:3) afirma que “a representação do gênero é sua construção”, mas podemos igualmente
refletir o corpo como uma construção representacional em
modelos de gênero, pois passa-se da idéia de diferença sexual à observação dos mecanismos, do processo de construção cultural dos corpos sexuados, definidos em práticas
normativas de sexualidade (Mathieu, 1991:133).
As tecnologias da mídia e especialmente as revistas
femininas elaboram, em torno do aparelho genital, os contornos e limites de um corpo sexuado impregnado de valores, crenças, atualizando e reafirmando representações
que passam a existir nas práticas que as elaboram. Assim,
o corpo construído em feminino exprime as modalidades
culturais que o confinam a um gênero que se torna inteligível “(…) na medida em que mantém relações de coerência entre sexo, gênero, prática sexual e desejo” (Butler,
1990:17).
As matrizes de inteligibilidade que constróem esse
corpo naturalizado em sexo feminino podem ser identificadas em torno da família heterossexual e de atributos
essencializados na “verdadeira mulher”: sedução, maternidade, submissão, altruísmo, abnegação.
Para Foucault (1987:126), o corpo está sempre inserido em uma teia de poderes que lhe ditam proibições e
obrigações, coerções que determinam seus gestos e atitudes e que delimitam e investem seu exercício e suas práticas, mecanismos de se construir o corpo inteligível num
campo político de utilidade-docilidade. Essa é a “disciplina”, um sistema de sujeição que cria um ‘saber’ sobre
o corpo “(…) que não é exatamente a ciência de seu funcionamento, e um controle de suas forças que não é mais
que a capacidade de vencê-las: esse saber e este controle
constituem o que se poderia chamar a tecnologia política
do corpo” (Foucault, 1987:26).
No discurso da mídia vimos em funcionamento uma das
tecnologias de produção do corpo sexuado, o aparato da
produção do corpo feminino útil e dócil dentro das normas heterossexuais, que instituem o binário inquestionável
do sexo biológico no social fazendo funcionar, no jogo
da linguagem e da imagem, os mecanismos de assujeitamento à norma. Feminismo? Mais do que nunca necessário, pois lendo-se as revistas “femininas” percebe-se que
as representações instrumentadoras das práticas sociais
hierarquizadoras apenas modificaram os trajes que revestem os mesmos corpos definidos em sexo.
NOTAS
E-mail da autora: [email protected]
Publicado em francês, no Cahiers d’Etudes Féministes. Montreal, Université de
Québec à Montréal – UQAM, n.6, 2000.
1. As citações de obras em língua estrangeira são traduzidas livremente pela autora. (Maingueneau, 1993).
2. “On ne naît pas femme, on le devient”, frase que se tornou clássica na literatura feminista.
3. Ver por exemplo a satanização da mulher no Ocidente em Delumeau, (1978).
Ver igualmente o livro de Groult (1993), que compila citações masculinas dotadas de autoridade sobre a mulher na história.
4. “(…) De forma geral, a toda formação discursiva é associada uma memória
discursiva constituída de formulações que repetem, recusam e transformam outras formulações.” (Foucault, 1987:115).
5. Nesta mesma obra a autora faz uma tipologia das relações sexo/gênero levando
em conta sua pluralidade.
6. A palavra histérica vem do grego Husteriko, de Hustera (útero), definida como
“atitude de doentes, considerada antigamente como um acesso de erotismo mórbido feminino” (Rey e Rey, 1995).
7. A escolha dos números das revistas foi totalmente arbitrária e a baliza temporal vai de dezembro de 1998 a maio de 1999.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ANGENOT, M. 1889, un état du discours social. Montréal, Le Préambule,1989.
BARTHES, R. Système de la mode. Paris, Seuil, 1981.
BARTKY, S.L. “Foucault, feminity and patriarchal power”. In: DIAMOND, I. e
QUIMBY, L. Feminism and Foucault. Boston, Northeastern University Press,
1988.
80
FEMINISMO
E
RECORTES DO TEMPO PRESENTE:
MULHERES EM
...
BORDO, S. “O corpo e a reprodução da feminidade: uma apropriação feminina
de Foucault ”. In: JAGGAR, A. e BORDO, S. Gênero, corpo e conhecimento. Rio de Janeiro, Rosa dos Ventos, 1997.
INSTITORIS, H. e SPRENGER, J. Le marteau des sorcières, Malleus
Maleficarum – 1486. Grenoble, Ed. Jerôme Million, 1990 (traduit du latin
et précédé de l’Inquisiteur et ses sorcières par Amand Danet).
BUTLER, J. Gender trouble. Feminism and the subversion of identity. Nova York,
Routeledge, 1990.
JODELET, D. Les représentations sociales. Paris, PUF, 1994.
LA CHATELAÎNE. “Le mensuel féminin le plus lu au Québec”. Canadá, décembre
1998.
DELUMEAU, J. La peur en Occident, XIV-XVIII è siècles. Paris, Fayard, 1978.
ELLE-QUÉBEC. Canadá, n.113, janvier, 1999.
LAURENTIS, T. de. Technologies of gender, essays on theory, film and fiction.
Bloomington, Indiana, University Press, 1987.
FALUDI, S. Backlash, la guerre froide contre les femmes. Paris, Ed. Des Femmes,
1991.
MAINGUENEAU, D. Novas tendências em análise do discurso. Campinas, Ed.
Unicamp, 1989.
FLAX, J. “Pós-Modernismo e relações de gênero na teoria feminista”. In:
HOLANDA, H.B. de (org.). Pós-modernismo e política. Rio de Janeiro,
Rocco,1991.
_________ . “Analyse du discours et archive”. In: PEYTARD, J. e MOIRAND, S.
Configurations discursives. Paris, Les Belles Lettres, 1993.
ECO, U. Apocalípticos e integrados. São Paulo, Ed. Perspectiva, 1993.
_________ . Les termes clés de l’analyse du discours. Paris, Ed. Seuil, 1996.
MARCONVILLE, J. de. De la bonté et de la mauvaiseté des femmes – 1564.
Paris, Côté-femmes, 1991.
FOUCAULT, M. Histoire de la sexualité. v.I. Paris, Gallimard, 1976.
_________ . A microfísica do poder. Rio de Janeiro, Graal, 1979.
MARIE CLAIRE. “Chique é ser inteligente”. Editora Globo, n.98, maio 1999.
_________ . A arqueologia do saber. Rio de Janeiro, Forense, 1987.
MATHIEU, N.-C. L’anatomie politique, catégorisations et idéologies du sexe.
Paris, Côté-Femmes,1991.
_________ .Vigiar e punir. Petrópolis, Vozes, 1987.
_________ . A microfísica do poder. Rio de Janeiro, Graal, 1988.
NOVA/Cosmopolitan. “A revista feminina mais vendida no mundo”. São Paulo,
Ed. Abril, ano 27, n.6, jun. 1999.
_________ . L’ordre du discours. Paris, PUF, 1991 (tradução livre das citações de obras em língua estrangeira).
REY, J. e REY, A. Le nouveau Petit Robert. Paris, 1995.
GREER, G. La femme eunuque. Paris, Robert Laffont, 1971.
GROULT, B. Cette mâle assurance. Paris, Albin Michel, 1993.
RICH, A. “La contrainte à l’hétérosexualité et l’existence lesbienne”. Nouvelles
Questions Féministes. Ed. Tierce, n.1, p.15-43, mars, 1981.
HARAWAY, D.J. Ciencia, cyborgs y mujeres, la reinvención de la naturaleza.
Valença, Editiones Cátedra, 1991.
SWAIN, T.N. “De deusa a bruxa: uma história de silêncio”. Humanidades. Brasília,
Edunb, s.d.
81
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 15(3) 2001
FUTEBOL E ESTÉTICA
ARLEI SANDER DAMO
Professor do Departamento de Ciências Humanas da Universidade de Santa Cruz do Sul
Resumo: Este ensaio pretende dar uma contribuição ao entendimento do esporte e, particularmente, do futebol
no Brasil a partir de uma perspectiva estética. Desta forma são apresentadas e discutidas três categorias analíticas: o ritual disjuntivo, o “pertencimento” clubístico e a noção de jogo absorvente.
Palavras-chave: cultura; futebol; estética.
gosto pelo futebol resistiu à crítica de esquerda,
acadêmica ou não, à apropriação pela direita,
especialmente pelas ditaduras, e até se constituiu,
de 1970 para cá, em uma ocupação profissional e em um
segmento em expansão da economia de mercado. Na
América Latina, onde o futebol foi usado pela propaganda dos regimes antidemocráticos, justificando, em grande
parte, o “denuncismo” esquerdista, o interesse por ele não
diminuiu com o descrédito dos ditadores. Segue sendo a
“religião leiga da classe operária”, como afirmou Hobsbawm
há tempos. Isso vale inclusive para a Europa, “berço da
civilização esportiva”, de onde surgiram também os
hooligans, em meados dos anos 70. Na África e na Ásia,
os esportes modernos 1 eram pouco difundidos até meados do século XX. Houve, de lá para cá, um despertar
generalizado, mais intenso, em que os conflitos étnicos
são menores ou há mais abertura para o ocidente, respectivamente.2
Diante desse cenário era preciso que as ciências humanas repensassem suas convicções, uma vez que, até bem
pouco tempo, desdenhara o esporte, considerando-o um
“tema menor” (Guedes, 2000; Leite Lopes, 1995). Nas
duas últimas décadas – e, na América Latina, nos anos 90
– as ciências humanas foram superando os preconceitos e
tratando o esporte, o lazer e o tempo livre com a mesma
seriedade com que trata os temas clássicos (Alabarces,
2000).
Atualmente, o esforço de quem pesquisa e escreve sobre os esportes está dirigido para a compreensão e superação de certas perspectivas analíticas já esboçadas sobre
o tema. Por isso mesmo, o que foi dito contra o esporte
pelos intelectuais de esquerda, fundamentados nas várias
correntes marxistas – que o esporte era uma ferramenta
ideológica da propaganda anti-democrática, que promovia a coesão interclasses e amenizava o enfrentamento entre
patrões e empregados, que tinha paralelos com o nacionalismo, etc. 3 –, não pode ser tomado como algo apenas
despropositado. O que se tenta fazer na atualidade é compreender a crítica ao esporte, por vezes transformada em
militância anti-esportiva, como uma leitura possível da
realidade, diversa, por exemplo, daquela feita por grande
parte dos próprios operários. 4 Observa-se, então, que as
conjecturas anti-esportivas dos intelectuais de esquerda
eram uma reprodução muita próxima dos discursos dos
sindicalistas da primeira metade do século XX. O componente político sobrepunha-se, em ambos os casos, ao componente heurístico. Na verdade, não se pretendia compreender o esporte e nem mesmo as razões pelas quais as
classes trabalhadoras lhe tinham tanto apreço, mas denunciar o seu uso pelo Estado e pela burguesia (Oliven e Damo,
2001).
A perspectiva funcionalista também tem recebido críticas. Circunscrevendo o futebol ao esporte e o esporte ao
campo do lazer e do entretenimento, os funcionalistas ten-
O
82
FUTEBOL E ESTÉTICA
dem a destacar o caráter compensatório das práticas em
questão. Diferentemente da rotina previsível e racionalizada do mundo do trabalho ou da vida doméstica, os esportes constituiriam um espaço-tempo no qual seria possível vivenciar sentimentos agradáveis, de grande
excitação, necessários à renovação das tensões essenciais
à saúde mental. “O caráter essencial do seu efeito catártico
é a restauração do tônus mental normal através de uma
perturbação temporária e passageira da excitação agradável” (Elias e Dunning, 1992:137-38). O problema das incursões funcionalistas é o seu caráter universalisante, 5 a
partir do qual o significado de uma prática social é
substantivado, como equivalente para todos os indivíduos
ou grupos que dela se apropriam. Se, por um lado, evidencia-se a totalidade do fenômeno, por outro, perde-se
de vista as particularidades locais e as variações diacrônicas. Ainda que o esporte possa ter um componente
catártico – desde Aristóteles esta explicação é evocada –
e restaurador, a maneira como foi apropriado, por diferentes grupos em contextos históricos e sociais igualmente distintos, demonstra que as suas “funções” pouco têm
de essenciais, tendo seu significado variado consideravelmente.
Também existem as investidas metafóricas a partir das
quais os esportes tendem a ser relacionados com outras
instituições, sendo seu significado imposto de fora para
dentro. Ou, como diria Gumbrecht (2001), os esportes passam a ser interpretados como qualquer coisa diferente do
que realmente são. O problema aqui não é propriamente a
recorrência a metáforas, mas certos vínculos forçados, até
mesmo grosseiros, desconsiderando as especificidades de
um e outro campo. No caso do Brasil, por exemplo, dizse que a popularidade do futebol deve-se, em grande medida, ao fato de, por ser praticado com os pés e, portanto,
ser menos preciso do que aqueles praticados com as mãos
– sobre as quais recai um extenso aprendizado e, por extensão, um domínio cultural – seu êxito e fracasso estarem sujeitos a explicações de ordem mágica – porque os
pés são pouco treinados, estando sob o domínio da natureza –, dos componentes contingenciais tais como sorte,
azar e assim por diante. Ao contrário, nos esportes praticados com as mãos raramente se pensa em infortúnios, mas
em ineficácia. Em outras palavras, os esportes praticados
com as mãos seriam aceitos mais facilmente em contextos nos quais prevalece uma base racionalista – mas democracias consolidadas –, ao passo que o futebol combinaria melhor com sociedades em que o pensamento mágico
ainda possua um apelo significativo. Sendo o Brasil pen-
sado a meio caminho entre o tradicional (mágico) e o
moderno (racional), o futebol teria entre nós grande aceitação, de modo que a mesma base epistemológica serviria
para explicar o êxito e o fracasso da nação e da seleção.
O problema é como explicar, a partir dessa homologia, a
popularidade do futebol na Europa.
Finalmente, há o pop-psicologismo de senso comum
afirmando que os perdedores na vida se identificam com
os vencedores no esporte. A questão aqui é saber se os vencedores na vida se identificam com os perdedores no esporte ou se a explicação só vale para o primeiro caso. De
qualquer modo, seria difícil sustentar tal conjectura sabendo que no esporte também se perde – nada garante de antemão que o perdedor na vida vença no jogo – e, principalmente, de que nos esportes, e particularmente no futebol,
existem regras de “pertencimento”, pois perder e ganhar
fazem parte da experiência de atletas e torcedores.
Descartadas as possibilidades criticadas acima, como
e de que modo compreender o esporte e, particularmente,
o futebol? Uma delas, sem dúvida, passa pelo reconhecimento da especificidade do campo esportivo, no interior
do qual o futebol está situado. Essa proposta explicitaria
a maneira como as preferências esportivas estão distribuídas em diferentes contextos. Também informaria os princípios que norteiam tais escolhas e a relação delas com
outros valores e atitudes – políticos, religiosos, econômicos, etc. Teríamos então um amplo espectro sociológico
das afinidades esportivas, mas nos faltaria, ainda, entender o esporte em sua especificidade. Isso não significa que
ele tenha uma essência, igual em toda parte, mas que existe,
em toda parte, algo que não pode ser reduzido a outra coisa;
que lhe é próprio.
Pensar sobre esta questão, “por que gostamos de esportes”, requer, como sugere Gumbrecht, em recente publicação do Caderno Mais!, uma “rematada estética”. “Levar esportes a sério como um fenômeno estético pode
tornar conscientes a nós (...) os locais sociais da beleza.
(...) É lícito dizer que não há outro fenômeno na cultura
contemporânea que leve o prazer da beleza a mais gente
do que os esportes. Se deixarmos de reconhecer esse fato
é porque temos enormes dificuldades para separar a fruição
da beleza dos rituais da ‘cultura elevada’ (2001:6)”.
Mas talvez não seja uma estética formalista kantiana,
nos moldes sugeridos por Gumbrecht, que possibilitará o
avanço desejável. Para ele o ponto de partida para uma
abordagem estética dos esportes “reside na incontroversa
competência dos verdadeiros fãs de dizer se um jogo foi
bonito ou feio – independente do placar final. Tal juízo
83
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 15(3) 2001
será sempre ponto pacífico para quem aprecie o jogo,
embora normalmente não sejam capazes de dizer com base
em quais conceitos e critérios acham-no belo” (Gumbrecht,
2001:6).
A contrariedade em relação à perspectiva de Gumbrecht
é, em grande medida, produto de um olhar diferenciado,
desde um ponto de vista antropológico. Como não se trata de substituir um olhar por outro – o da filosofia e da
crítica literária pelo antropológico – e sim de complementálo, não se pode destacar a análise de Gumbrecht em sua
totalidade. Mas oferecer às definições precedentes pontos de vistas divergentes. A primeira questão diz respeito
à presumível independência entre o juízo estético e o resultado do jogo. A segunda sugere a existência de “verdadeiros fãs” e de que estes não são capazes de expressar os
critérios e conceitos que fundamentam seus juízos.
Concordando que o ponto de vista estético é essencial
para se entender a razão pela qual os esportes em geral e
o futebol em especial são apreciados intensamente pelo
público, será apresentado, daqui por diante, um contraponto à visão de Gumbrecht. Parte-se, portanto, da hipósete
que:
- o resultado do jogo é um componente importante não
apenas para entender o juízo dos torcedores, senão para
entender a própria lógica dos esportes, especialmente do
futebol;
como: ritual disjuntivo, “pertencimento” clubístico e jogo
absorvente.
O RITUAL DISJUNTIVO
Existe nos meios esportivos e até fora deles uma desaprovação ao suposto aumento da competitividade e da
violência. É difícil responder se essa constatação é procedente pela ausência de critérios objetivos. 6 A tendência
quase unânime, dos torcedores aos críticos, é concordar
com a afirmação de que o futebol já não é mais o que fora,
especialmente no caso brasileiro, em que, segundo dizem,
era voltado para o espetáculo: dribles, fintas, toques de
efeito e malabarismos diversos; e o gol sendo o produto,
o acabamento natural, jamais o objetivo principal do embate, como teria se tornado na atualidade.
Essa visão romântica que evoca a “beleza do morto” é
decorrente, em grande medida, do fato da mídia reproduzir um dado recorte do passado futebolístico, geralmente
os gols e as jogadas de exceção. Assim, a memória das
gerações mais jovens inclina-se a ser tendenciosa, uma vez
que é influenciada pelo recorte operado pelos meios de
comunicação. Os lances menos cotados, encontrões, pontapés e jogadas violentas são preteridos, o que pode produzir no público a impressão de que o futebol de outrora
era o que as imagens mostram em vez de entender as imagens mostradas atualmente como uma seleção e, portanto, parte do que fora o futebol.
Os contra-exemplos à tese do futebol romântico são
tantos que não vale a pena listá-los aqui. De qualquer modo
deve-se afirmar, uma vez mais, não existirem dados objetivos capazes de apontar para um aumento da competitividade e nem mesmo da violência. Mais vulneráveis ainda são os encadeamentos (i)lógicos e as justificativas
usadas para explicar a mudança de cenário. O que se diz,
em geral, é que o aumento da competitividade gerou o
aumento da violência – dentro e fora de campo – e isso
tudo devido ao incremento do capital econômico no esporte, cujos resultados passaram a interessar aos investidores em marketing e publicidade, sendo, então, sinônimos de lucro ou prejuízo. 7 Os esportes, especialmente o
futebol, seriam na atualidade a negação dos seus próprios
ideais, dos seus valores originais, tornando-se uma atividade permeada por interesses difusos, enquanto outrora
se caracterizaram pelo amadorismo e, portanto, pela disputa em outros parâmetros, normalmente vistos como acima dos interesses econômicos: no caso, pelo amor à agremiação e coisas do gênero.
- em vez de verdadeiros – e falsos – torcedores, existem
diferentes modalidades de vínculos entre torcedores e clubes e dos próprios torcedores entre si, às quais correspondem formas diferenciadas de expressar o sentimento de
“pertencimento”; e, finalmente, que existem alguns critérios, bastante gerais, a partir dos quais se pode afirmar,
segundo o comportamento dos torcedores, se um jogo é
bom ou ruim – e nem tanto se é bonito ou feio;
- tratando-se do comportamento dos torcedores, na sua
interação com a dinâmica do jogo, importa não apenas os
juízos expressos verbalmente mas um conjunto de signos
comportamentais que, observados por ocasião dos jogos,
indicam se esse é ou não um jogo absorvente.
Compreender as categorias que tornam um embate denso e envolvente é a chave compreensiva do fenômeno esportivo. O objetivo deste ensaio é dar continuidade a um
debate que está apenas sendo iniciado e que pode, dada a
possibilidade abrangente que a interpretação estética proporciona, juntar muitas das contribuições recentes no campo dos estudos sobre os esportes. Para tanto, pretende-se
destacar a importância de certas categorias analíticas tais
84
FUTEBOL E ESTÉTICA
O aporte financeiro cresceu continuamente nas três últimas décadas trazendo mudanças significativas. Contudo, não alterou substancialmente a sua dinâmica estrutural. Se tomarmos Elias e Dunning (1992) como referência,
veremos que os esportes evoluíram no sentido do controle e da restrição à violência física (e não em sentido contrário), mantendo, ainda, um grau variado de violência
potencial, presente na própria estrutura do jogo. Em resumo, diria que a violência (física ou simbólica), os lucros
(pecuniários ou não) e a competitividade estão prescritos
pela estrutura do jogo e, fundamentalmente, o jogo não
perde sua dimensão estética por apresentar tais componentes, como supõe a visão romântica.
Para entender melhor essa formulação é preciso retomar a comparação paradigmática entre ritual e jogo feita
por Lévi-Strauss (1989). Os gahuku-gama, da Nova Guiné,
jogam tantas partidas de futebol quantas forem necessárias até que o escore final de partidas ganhas e perdidas
seja equivalente. Já os índios fox simulam um jogo entre
mortos e vivos deixando os mortos vencerem para que seus
espíritos, prestigiados com a vitória, permaneçam onde
estão, sem admoestar os vivos. A maneira como nós, os
ocidentais, encaramos os jogos é simetricamente oposta à
maneira dos povos ditos primitivos. No jogo dos ocidentais, parte-se de uma situação de presumida equivalência
entre as partes, reforçada pela existência de regras que
devem ser respeitadas pelos contendores, para, ao final,
produzir-se a assimetria, uma disjunção entre vencedores
e vencidos. No jogo dos primitivos, as partes estão inicialmente em desequilíbrio, entre iniciados e não-iniciados,
por exemplo, e ao fim são integradas sob uma mesma categoria. Enquanto no primeiro caso a simetria é estruturalmente pré-ordenada, a assimetria é engendrada pelos
acontecimentos do jogo, por fatores tais como competência, preparo, sorte, etc. Daí porque o jogo é chamado de
ritual disjuntivo. No correspondente inverso, o ritual conjuntivo, a performance consiste em fazer passar todos os
participantes para o lado do ganhador, sendo o processo
orientado para esta finalidade. O jogo, ou se se preferir, o
ritual disjuntivo, produz acontecimentos, uma realidade
inicialmente aberta embora limitada estruturalmente –
ganhar, perder e, em alguns poucos esportes, empatar –,
mas de todo modo desconhecida até o final do evento.
Dessa comparação é importante reter duas premissas:
o jogo possui uma estrutura, dita disjuntiva, que produz
realidade, eventos/acontecimentos. Uma abordagem estética deve ter em conta essas premissas porque elas determinam uma certa perspectiva de encarar os jogos, uma
sensibilidade que norteia a ação de atletas e torcedores,
diferentemente do modo como atores e espectadores
vivenciam o teatro, o cinema e o circo. Boa parte do interesse pelo espetáculo esportivo é dado pela expectativa
em relação ao seu desfecho, à disjunção. Ainda que essa
expectativa esteja presente em certos gêneros teatrais ou
cinematográficos – no suspense, especialmente –, no caso
dos esportes não existe um roteiro pré-definido, mas uma
indeterminação completa, especialmente no caso dos
contendores serem equiparados, o que é considerado como
ideal. 8
A imprevisibilidade é um dos componentes centrais do
espetáculo esportivo. Ela é responsável pela manutenção
da tensão entre os atletas e, por extensão, entre os torcedores. Embora a indeterminação seja essencial ao bom espetáculo esportivo, este não se reduz a ela. Por isso a compreensão da estrutura é importante, porém insuficiente para
se entender, por exemplo, porque alguns jogos são mais
espetaculares do que outros tendo todos eles a mesma base
estrutural. O placar final não traduz, em hipótese alguma,
os desdobramentos da partida. A excitação proporcionada pelos esportes decorre, fundamentalmente, da experimentação das ambigüidades proporcionadas pelo desenrolar dos eventos próprios à sua dinâmica, cujos códigos
são de domínio.
Um jogo raramente possui um desenvolvimento linear,
tendendo a oscilações significativas que são o produto do
enfrentamento e da disputa entre os contendores, razão
pela qual cada gesto ou seqüência de movimentos tende a
ser acompanhada com expectativa. É perceptível, no comportamento das torcidas, quando um jogo está empolgando ou não. Certamente não será quando os atletas trocam passes laterais, quando um atacante desperdiça todas
as oportunidades de gol ou, ainda, quando uma das equipes tem sucesso em todas as investidas. Ao contrário do
teatro, em que os atores ensaiam exaustivamente o roteiro para apresentá-lo o mais fiel possível, 9 no esporte os
atletas treinam para, a partir do domínio de certas técnicas elementares – chamadas de fundamentos –, improvisar durante o espetáculo, daí porque cada jogo é um jogo,
dizem os torcedores. Enquanto Hamlet já foi não apenas
reconstituído, mas adaptado segundo diferentes versões
dos diretores, ainda não surgiu nenhuma adaptação da final da Copa de 50, exceto para o cinema, obviamente. 10 A
“tragédia do Maracanã” – derrota do selecionado brasileiro para o uruguaio por 2 a 1 – recebeu este epíteto por
ser irreparável. O desfecho, naquele episódio, foi completamente diverso do esperado, foi um final surpreenden-
85
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 15(3) 2001
te. As discussões enunciadas no condicional – “se Bigode
tivesse barrado Ghiggia” ou “se Barbosa estivesse atento” e assim por diante – dão a clara idéia de que existe
algo irredutível, próprio de um acontecimento, intangível
a reprodução (Perdigão, 1986).
Em nossa cultura o espetáculo esportivo está assentado sobre uma dinâmica de forças oponentes, na qual o êxito
de uma das partes implica o fracasso da outra. Não há síntese possível entre o bandido e o mocinho e, portanto, o
confronto entre eles não gera um evento único, um filme
tal ou qual. Para os torcedores é a vitória/derrota do seu
time que lhes importa sobremaneira e boa parte dos juízos
estéticos – que definirão se um jogo foi bom ou ruim, mais
do que se foi bonito ou feio – repousa sobre esta variante.
Isso não significa que eles se importem apenas com isso,
mas o resultado do jogo influencia de tal modo a sensibilidade que acaba se tornando determinante.
De um atleta ou da equipe pela qual se torce não se
esperam apenas gestos tecnicamente bem executados, cuja
beleza possa ser contemplada em si mesma, mas uma certa eficácia. Cada movimento necessita produzir uma vantagem técnica sobre os adversários e isto configura uma
relação de poder. O drible de Garrincha era repetitivo,
esperado – desequilibrando o adversário com um jogo de
negadas e saindo sempre para o lado direito. Seu êxito
representava a humilhação do adversário incapaz de contêlo, numa inequívoca demonstração de poder, de violência
simbólica; um raro espetáculo de supremacia para o deleite de botafoguenses e brasileiros. Apenas uns poucos
torcedores e, particularmente, os críticos do esporte, possuem ou imaginam possuir a distância necessária para assistir um jogo sem se prender aos ímpetos de euforia e ira
provocados por lances como o drible de Garrincha. Os
torcedores, ou a maior parte deles ao menos, não assistem
aos jogos para formular juízos imparciais – o que requer
certo distanciamento –, mas antes para vivenciá-los.
Além do espetáculo decorrente do êxito de determinado gesto ou de uma seqüência deles, também há um prazer estético invisível, fruto da tensão originada pelo desenlace imprevisível que cada jogada proporciona. O gol
– goal no original, significando meta, objetivo – é um
desfecho possível e pode proporcionar aos espectadores
o prazer estético pela forma, quer dizer, pela execução
primorosa, mas pode, simplesmente, proporcionar o mesmo êxtase em razão da importância que ele possui para o
resultado final do enfrentamento ou pela expectativa criada
em relação a ele. Isso tudo, é claro, depende ainda de quem
seja observador. Para uns, o gol é o coroamento bem-su-
cedido de uma longa espera, para outros ele representa
um triste episódio que significa a morte.
“Nenhum torcedor diria que se ‘entretém’ com seu time,
que vai ver um jogo como vai a um concerto. Vai para
dilacerar ou ser dilacerado, vai para a guerra, mesmo que
seja quase sempre uma guerra metafórica. Assim, para ser
atraente, o esporte não pode ter nenhum dos atrativos do
espetáculo, nenhuma sugestão de montagem ou faz-deconta. Tem de ser uma séria e quase trágica competição
por um cetro (...), a busca do coração do inimigo e da glória eterna – mesmo que no ano seguinte todos voltem a ter
zero ponto” (Veríssimo, 1996).
Parte da estética esportiva não está ao alcance de quem
observa apenas a forma. Desse ponto de vista o futebol
mais parece uma seqüência de lances inócuos, repetitivos
e sem sentido; com a bola sendo conduzida de uma intermediária a outra. Trata-se do ponto de vista daqueles que
não têm familiaridade com as regras, com o significado
do embate, enfim, com o próprio futebol. O prazer estético depende do entendimento da dinâmica do jogo, o que
pressupõe aprendizado e, de outra parte, concordância em
relação a alguns significados. Um desses significados partilhados pelos futebolistas é que o jogo é uma guerra
mimética. Talvez este seja um dos paradoxos do esporte;
ele é uma guerra, mas apenas simulada, é um faz-de-conta, e nisto se parece com o teatro. De outra parte, ele não
pode parecer uma montagem premeditada, o suspense deve
produzir-se ao longo do próprio espetáculo, sendo, portanto, um acontecimento. A compreensão do esporte na
sua especificidade passa pelo reconhecimento desse paradoxo. Raros são os torcedores que vão ao estádio – nenhum, como sugere Veríssimo, é hiperbólico – para assistir ao seu time e muito menos para assistir a jogos em
que seu time do coração não esteja envolvido. Vai-se aos
jogos para torcer, empurrar o time ou, em certas circunstâncias, para protestar, por meio das vaias – a forma de
participação política mais contundente no futebol. Os torcedores, de modo geral, têm uma atitude ativa, participando
intensamente do espetáculo. Como diria Armando Nogueira, “(...) quando moço, do alto da arquibancada, nunca errei
um passe e muito menos um chute. Cheguei a perder a
conta dos gols que fiz com os pés que não foram meus”
(Nogueira apud Toledo, 1994:25).11
Findo o ritual disjuntivo, os torcedores seguem o curso
normal da vida. Visto sob esta perspectiva, o jogo mais
parece uma fissura no tempo e, no caso dos que vão ao estádio, no espaço. Sendo assim, qual é o tipo de realidade
produzida pelos esportes? É da ordem do simbólico, atua-
86
FUTEBOL E ESTÉTICA
lizando um intrincado jogo de símbolos associados aos
chamados clubes do coração e ao gênero masculino.12 Além
do prazer mimético, do faz-de-conta, próprio da brincadeira e da ludicidade, os jogos produzem acontecimentos que
reverberam no interior do próprio campo esportivo. Apenas em circunstâncias especiais, como ocorre por ocasião
de eventos como a Olimpíada, a Copa do Mundo ou uma
final de certame nacional, os fatos esportivos avançam sobre a vida real. São raros os episódios em que o futebol,
popularíssimo entre nós desde o início do século XX, produziu perturbações duradouras na política ou na economia
nacional, vindo alterar o curso geral da Nação.
ponderam” foi zero, superando, inclusive, os itens: refrigerante, 4,7%; chocolate, 7,3%; e programa de TV, 8,7%.
Como a escolha do clube do coração não é feita ao sabor das contingências, uma vez realizada não pode ser
alterada facilmente, cabendo ao torcedor arcar com o ônus
da sua opção. Trocar de clube, “virar a casaca”, é uma
falta gravíssima, podendo gerar suspeitas sobre a hombridade do sujeito. Como diz o hino do Flamengo, e isto
vale para os demais clubes, “uma vez Flamengo, sempre
Flamengo... Flamengo até morrer”. Omitir ou mesmo encobrir a opção clubística é uma falta gravíssima e pode
suscitar ameaças.
Recentemente, a Mancha Verde, do Palmeiras, distribuiu 50 mil cópias de um manifesto contra o narrador
Galvão Bueno e a Rede Globo. Diferentemente da postura imparcial e isenta, pretendida e afirmada pelo narrador
e pela emissora, o panfleto endereçado “à grande nação
palmeirense” denunciava a suposta imparcialidade classificando a transmissão como “tendenciosa e desrespeitosa”. Embora os cronistas esportivos procurem, via de regra, omitir sua predileção clubística para se manter
eqüidistantes da ira torcedora, estes últimos tendem a
enquadrá-los de acordo com critérios muitas vezes duvidosos. Segundo Dentinho, presidente da Gaviões da Fiel,
“a gente prefere aqueles já declarados, que não escondem
para que time torcem” (Folha de S.Paulo, 6/8/2000:12,
TV Folha).
Em que pese o pertencimento ser vivenciado no domínio público, ele é indissociável das redes de sociabilidade próximas ao indivíduo, tais como família, vizinhos e
amigos. 15 Não por acaso se diz que os clubes são do coração, o topos corporal no qual se representam as emoções,
e os distintivos dos clubes estão fixados do lado esquerdo
do peito. A rede de sociabilidade responsável pela socialização primária e, portanto, pela inculcação de certas
sensibilidades emocionais, permanece na lembrança dos
torcedores. Exceto aqueles cuja escolha ocorreu muito
cedo – isto é muito freqüente entre famílias de torcedores
fanáticos, cujo “pertencimento” a mesma agremiação remonta três e até quatro gerações, assemelhando-se a uma
casta – ou outros, cuja importância dada ao futebol é mínima, os demais geralmente lembram com detalhes o momento em que se tornaram palmeirenses, atleticanos ou
vascaínos. Como não se trata de uma escolha de natureza
ideológica, embora política, os processos de convencimento são travados na esfera das emoções e o “sim” normalmente é ritualizado: por ocasião de um presente, de um
autógrafo e da ida ao estádio.
O PERTENCIMENTO CLUBÍSTICO
O amor aos clubes é a mola propulsora dos esportes
coletivos, especialmente do futebol.13 Ainda que tenhamos torcedores não-praticantes, é raro encontrar praticantes que não tenham seu clube do coração. Torcer por um
clube de futebol é a chave para a entrada num universo
dominado pelo movimento e pela prática corporal, requisito indispensável a qualquer esporte, mas que, ironicamente, discutir é mais importante do que praticar – mesmo que, em discussões mais acirradas, o praticante possa
evocar sua experiência como dispositivo de autoridade.
O domínio dos códigos futebolísticos garante o acesso a
certas discussões que ocorrem em momentos de sociabilidade intensa. Essas discussões, normalmente circulares
– pois não são jamais conclusivas – e de natureza hipotética – pois os jogos são recriados, cada qual escalando
seu time e fazendo-o atuar –, exigem dos envolvidos uma
clara definição acerca da posição em que se encontram.
Opina-se a partir de um referencial, como torcedor de uma
dada agremiação, embora seja possível, evidentemente,
discutir-se futebol em termos abstratos.
A escolha do clube do coração é realizada desde muito
cedo, ocasião a partir da qual o indivíduo torna-se pessoa,
passando a fazer parte de um mundo mais amplo que a casa
e a família, o que lhe permite se definir e exercitar como
parte de uma totalidade, vivida na rua, em pleno domínio
público (Da Matta, 1994). A importância de se ter um clube para torcer pode ser dimensionada pela precocidade da
escolha e pela sua extensão. Uma pesquisa sobre as marcas
mais lembradas entre as crianças, a Top Kids,14 realizada
no Rio Grande do Sul em 1997, revelou um dado impressionante: nenhum(a) dos(as) entrevistados(as) se furtou à resposta quando perguntado(a) sobre qual o “time de futebol”
que lembrava. O índice dos que “não sabiam” ou “não res-
87
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 15(3) 2001
O “pertencimento” também é único, embora seja comum certos torcedores realizarem escolhas em segundo
grau de importância.16 A fidelidade ao clube contraria frontalmente a tese do pop-psicologismo, segundo a qual os
perdedores na vida se identificam com os vencedores no
esporte. De mais a mais, a escolha depende muito indiretamente da performance da equipe. Claro que é difícil
convencer uma criança ou um adolescente a tornar-se
botafoguense, fluminense ou colorado nos dias atuais,
quando estes clubes repetem desempenhos medíocres.
Todavia não basta que um clube esteja exposto na mídia,
que vença vários campeonatos, para angariar adesões. Elas
devem ser compassadas pela rede de sociabilidade, uma
espécie de militância especialmente desperta quando o clube está em evidência.
Torcer por um clube de futebol é uma atitude política,
como escreveu o poeta Drummond: “A estética do torcedor é inconsciente: ele ama o belo através de movimentos
conjugados, astuciosos e viris, que lhe produzem uma sublime euforia, mas se lhe perguntam o que sente, exprimirá antes uma emoção política. Somos fluminenses ou
vascos pela necessidade de optar, como somos liberais,
socialistas ou reacionários” (Revista do Grêmio, s.d.:44).
O "pertencimento" clubístico é uma máscara social, uma
das tantas existentes nas sociedades complexas. A partir
dela se tem acesso a um universo no qual a brincadeira e
a jocosidade são essenciais, pois é por intermédio delas
que se expressam sentimentos e pontos de vista, não raro
preconceituosos, que dificilmente seriam ditos de outro
modo e em outro lugar. A máscara clubística, quando
vivenciada coletivamente, em espaços públicos, estabelece o anonimato individual (Toledo, 1996). Assim, podese xingar a polícia, os torcedores adversários e os atletas
e dirigentes do próprio clube.
Torcer é uma forma de participação política bastante
peculiar. Abordar o “pertencimento” e as atitudes decorrentes deste vínculo desde o ponto de vista estético implica reconhecer nas manifestações dos torcedores – das
falas, gestos, vestuário, etc. – certas mensagens cuja decifração, em termos de forma e conteúdo, permite-nos
acessar alguns conflitos subjacentes à dinâmica social. Ou
seria mero casuísmo o fato de os clubes de futebol no Brasil
estarem, via de regra, identificados em pares de contrários do tipo elite/popular, branco/negro, centro/periferia,
grande/pequeno, entre outros?
Por tudo isso, a estética futebolística brasileira, um caso
particular da estética esportiva, é algo que a perspectiva
formalista não pode captar. Há um sentido profundo nos
embates, um pano de fundo cultural no qual os sentimentos de pertença e o próprio gosto pelo futebol estão
alicerçados. O caráter democrático – em contrapartida ao
autoritarismo e ao conservadorismo dos cartolas que manipulam as regras – torna cada torcedor um comentador,
um crítico autorizado para falar em estilos de jogo e
associá-los a certas categorias sociais. O futebol-arte revelaria o caráter do carioca, o futebol-força, a maneira
como são os gaúchos e assim por diante (Damo, 1999).
Se existe um campo no qual a autoridade dos críticos tem
de ser permanentemente afirmada, e a duras penas, este
campo é o do futebol.
UM JOGO ABSORVENTE
O futebol é um ritual performático que, assim como os
demais esportes, põe em ação diferentes atores sociais e
pode ser interpretado desde o ponto de vista da atuação
de atletas, torcedores, mídias, cartolas, etc. Sendo uma prática corporal, revela, pela arte de jogar – do uso de técnicas específicas e do treinamento para produzir a eficácia
– diferentes estilos que variam no tempo e no espaço. Como
é um fato social de grande apelo popular, informa os gostos e os interesses do seu público, os parâmetros éticos e
estéticos que orientam o comportamento individual e coletivo dos aficcionados. Todavia, nem todos os espetáculos futebolísticos despertam o interesse e boa parte deles
tem-se realizado sem a presença de público nas arquibancadas. A pergunta é um tanto óbvia, mas não pode ser
desdenhada: afinal, o que vem a ser um bom jogo de futebol, aquele que desperta o interesse do público?
A idéia de jogo absorvente é retirada de um texto clássico em Antropologia, sobre a Briga de galos em Bali
(Geertz, 1989), mas não se pretende aqui estabelecer analogias entre os fatos sociais. Entretanto, seguindo a chave hermenêutica geertziana, pode-se dizer que compreenderemos algo sobre a cultura brasileira – dos homens,
especialmente – observando o comportamento em torno
do campo, da mesma forma que se observa a rinha de
galos em Bali. Para tanto é necessário aprender certos
códigos do embate, como é o caso das regras e das apostas, e saber diferenciar um galo bom da sua imitação,
coisa que apenas os iniciados estão aptos. Finalmente, é
preciso saber que os homens não fazem suas apostas
pensando apenas no lucro pecuniário que poderão obter, mas respeitando certos códigos sociais. O jogo absorvente é aquele que põe frente a frente galos (atletas)
de boa linhagem e seus donos de status elevado (clubes
88
FUTEBOL E ESTÉTICA
tradicionais). O risco e a excitação decorrem dessa combinação.
No futebol brasileiro as rivalidades entre as torcidas
são causadas pelas rivalidades existentes entre os clubes.
Em linhas gerais, as torcidas atualizam certas querelas que
fazem parte da história das agremiações, boa parte delas
circunscrita à própria origem dos clubes. Por isso os
enfrentamentos mais densos são aqueles envolvendo clubes da mesma cidade, cujas rivalidades foram forjadas
ainda nos tempos do amadorismo – antes dos anos 30.
As identidades clubísticas são contrastivas, de modo
que o “pertencimento” não se esgota no amor ao clube do
coração, mas na aversão por outro, o seu contrário. As
rivalidades estão associadas a categorias mais amplas da
sociedade e giram em torno de sentimentos vinculados a
“grupos primordiais, aqueles em que nascemos, quer se
concentrem na língua, costume, religião, raça, tribo, etnia
ou lugar” (Lever, 1983:26). Cria-se, então, em torno dos
clubes de futebol, extensas comunidades imaginárias de
sentimentos (Souza, 1996:45).
Já os torcedores de um mesmo clube pensam-se a partir de uma lógica segmentar. As torcidas organizadas, por
exemplo, estão permanentemente lutando por espaço e
visibilidade diante dos demais torcedores, dos quais se
diferenciam pela forma e intensidade de pertença. Os membros dessas torcidas acreditam demonstrar seu amor ao
clube com um tipo de envolvimento militante, como se
fossem um exército incumbido de defender verbal e fisicamente, se preciso for, a honra da nação-clube de futebol, podendo se envolver em atos violentos, tidos como
heróicos. As hostilidades não se limitam aos torcedores
dos “outros” clubes. Há divergências fortíssimas mesmo
entre as torcidas organizadas de um mesmo clube. Na
medida em que certas marcas diacríticas vão perdendo sua
capacidade de distinção, outras tantas tendem a ser inventadas. Essas segmentações de natureza estrutural podem
ser ilimitadas, mobilizando códigos e "pertencimentos" até
certo ponto aleatórios – de bairro, colégio, gosto musical,
e outras tantas afinidades exógenas ao clube do coração e
ao futebol.17
A cada jogo e mesmo no espaço do cotidiano essas
pertenças segmentadas são afirmadas e reafirmadas das
mais variadas formas, dependendo, é claro, da posição e
da intensidade com que cada torcedor vivencia o futebol.
Os jogos que se sucedem uns aos outros, ano após ano,
numa temporalidade cíclica, vão atualizando e reordenando
as relações de pertença. Assim, “cada jogo é um jogo”, e
a cada evento são “jogados” – do ponto de vista dos tor-
cedores – códigos, valores e atitudes de acordo com a peculiaridade dos clubes envolvidos no confronto. A trajetória pregressa de cada um deles, do confronto entre eles
e as implicações mais imediatas que o resultado do embate pode acarretar, constituem os elementos mais significativos de um jogo.
De um lado há os 90 minutos de jogo, do ritual
disjuntivo propriamente dito. Nele destaca-se a tensão
decorrente do risco que o embate enseja, tanto maior
quanto mais densa a rivalidade entre os clubes e os
desdobramentos que o resultado pode acarretar. O gol é
um evento raro, inserido noutro, que é o jogo, e como
tal estabelece uma ruptura decorrente da densidade do
seu significado. “Esse é o ritmo próprio do futebol: muitas ameaças, poucos gols. (...) Há poucos prazeres comparáveis ao de pular e gritar com a multidão, comemorando um gol que passa a ser de todos, por direito de
contigüidade emocional” (Prado, 1997:213). O tempo do
gol é um tempo espesso, vertical, marcado mais pela sua
riqueza e densidade e menos pela duração. Daí existe uma
dimensão estética que só pode ser apreendida se
contextualizada, o que implica observar a sua forma – a
seqüência de lances propriamente dita, à qual correspondem certos comportamentos dos torcedores – e também
o seu significado.
De outro lado existem a história, a tradição e a memória. São o resultado de sobreposições e arranjos múltiplos
produzidos pelos vários segmentos que constituem o universo futebolístico, num tempo e espaço que não é o do
jogo propriamente dito. É o tempo do cotidiano, ligado ao
espaço da casa e da rua, do trabalho e do lazer, em que se
“discute futebol”. Nesse espaço-tempo é que circulam as
anedotas, as informações, as lembranças, os mitos, enfim,
no qual se aproximam futebol e sociedade, dando a este
esporte um encadeamento com outras esferas do social e
aos agentes sociais – por intermédio daqueles que se dizem
torcedores – uma sociabilidade vivida de modo particularíssimo, como um “faz-de-conta”.
Uma partida de futebol pode ser apreciada simplesmente pelo espetáculo que os jogadores proporcionam. Mas
será mais espetacular ainda se puder identificar a trajetória dos atletas, a importância do jogo e a história dos clubes. Todavia, será plenamente espetacular para aqueles
cujos jogadores e clubes pertencem. Um jogo poderá ser
excitante mesmo que tecnicamente fraco, basta que a tradição lhe assegure uma posição de destaque, denominando-o “clássico”. E o inverso também é verdadeiro. Mas
quando um jogo é denso de ambos os pontos de vista, do
89
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 15(3) 2001
1. Aos leitores menos familiarizados com a literatura esportiva, convém esclarecer que o termo “esportes modernos” abarca um conjunto extenso de práticas
corporais competitivas, regradas, individuais ou coletivas, praticadas por amadores ou profissionais, inventadas a partir da segunda metade do século passado
nos internatos para jovens da elite européia, notadamente entre as public schools
inglesas. Os esportes modernos diferenciam-se dos jogos tradicionais praticados
na Renascença e na Idade Média pelo incremento das regras, visando, em última
instância, reduzir a violência física e manter a violência simbólica (Bourdieu, 1983;
Elias e Dunning, 1992; Leite Lopes, 1995). Nessa perspectiva o futebol deve ser
compreendido como um esporte moderno, em que pese ele tenha assumido tamanha importância entre nós, que transcende o campo esportivo ou das práticas corporais.
ritual disjuntivo e da tradição, é que ele pode ser dito absorvente; “inesquecível”, como dizem os torcedores.
ARREMATE
O significado do futebol não poder ser condensado em
um conceito fechado, definitivo, substantivado. O ritual
disjuntivo, o “pertencimento” clubístico e o jogo absorvente são categorias que nos permitem chegar ao gosto
dos torcedores, incursionando sobre os valores éticos e
estéticos que orientam esta modalidade de participação
na vida pública das sociedades contemporâneas. O futebol e os demais esportes não devem ser entendidos como
meros negócios manipulados pelas grandes corporações
multinacionais, mas também não se pode ignorar a influência delas. Sendo um fato social relativamente recente,
exige, para a sua compreensão, um longo trabalho de pesquisa empírica aliado à ousadia teórica.
A hipótese de que os eventos esportivos produzem acontecimentos está indissociada da idéia de que boa parte deles
são consumidos no próprio meio. E, fundamentalmente, à
idéia de que consumir implica “destruir, gastar, desperdiçar, esgotar” (Featherstone, 1995:41). Uma estética do
esporte, do futebol especialmente, deve incorporar as noções de excesso, de desperdício e de desordem: do excesso de significado de certos eventos (como o gol, por exemplo), do desperdício de dinheiro (empenhado para
freqüentar os espetáculos e adquirir objetos ligados ao
clube do coração), da ordem alterada nas cidades por ocasião dos jogos e das comemorações tresloucadas (festas,
bebedeiras, violência, etc).
Mas o futebol também tem ordem, expressa pela estrutura ritual, pela lógica do “pertencimento” e pela densidade dos embates. Há ainda a hierarquização dos espaços
nos estádios, segmentadores do público, e a diferenciação do consumo de imagens e produtos de acordo com as
possibilidades socioeconômicas. A carnavalização dos
espetáculos contrapõe-se ao padrão que está sendo implementado nos estádios modernos: cada torcedor ocupando
seu lugar, de preferência numerado, preservando sua individualidade. As sensibilidades, o modo de torcer, de
protestar, de comemorar o gol, são atitudes que estão em
permanente processo de mudança e é preciso captá-las.
2. Na ocidentalização do Oriente e orientalização do Ocidente os esportes ocupam um lugar de destaque. Uma prova disso é a grande quantidade de eventos
esportivos internacionais realizados em países asiáticos com sucesso de público,
uma das razões pelas quais a Copa de 2002 será sediada por Japão e Coréia do
Sul. De outra parte, práticas marciais como o judô, o caratê, o kung-fu e outras,
acabaram se esportivizando – transformando-se em competição – e se popularizando no Ocidente. Em relação à África é crescente a participação bem-sucedida
de seus atletas no atletismo – especialmente em provas de resistência – e também
no futebol, tendo-se tornado nas duas últimas décadas o grande celeiro do futebol
europeu, juntamente com a América Latina.
3. A bibliografia que empregou as noções marxistas e frankfurtianas – tais como
alienação, massificação, etc. – para explicar o fenômeno esportivo é bastante extensa. Como exemplo, Brohm (1972), Sebreli (1981) e Ramos (1984).
4. Sobre a tentativa de apropriação do futebol por parte dos sindicalistas e da
resistência a ela por parte dos operários ver Antunes (1994).
5. Esta é uma crítica ao funcionalismo em geral, não apenas a sua explicação do
esporte, e a todas as suas matizes, não apenas à Escola Britânica, de Malinowski
a Radcliff-Browm. Em relação a Norbert Elias é oportuno explicitar que o viés
funcionalista de alguns dos seus postulados não compromete a totalidade de sua
obra, especialmente de A busca de excitação, escrita em parceria com Eric Dunning,
e cujo aporte ao “tema menor do esporte” está acima de qualquer contestação. De
qualquer modo, o seu processo civilizador de longa duração é mais apropriado
para o entendimento da emergência dos esportes modernos – e apenas em parte
para compreensão de sua diáspora –, ao passo que as suas investidas funcionalistas para explicar o gosto contemporâneo sugerem um reducionismo empobrecedor.
Para mais apreciações críticas a Elias, ver Souza (1996).
6. Embora o aumento da competitividade e, por extensão, da violência, seja tido
como obviedade, faltam argumentos consistentes capazes de demonstrar a assertiva.
Para um exemplo da fragilidade dos argumentos mais recorrentes, sugere-se a
leitura da resenha crítica de Lovisolo (1998) à tese de Mauro Betti – Violência
em campo, dinheiro, mídia e transgressão às regras no futebol espetáculo –,
cujas pretensões eram, justamente, dar a esta impressão leiga contornos científicos e, a partir deles, contrapor-se à maneira como o futebol vem sendo apropriado pela economia de mercado. (Como pesquisador, o autor deste artigo, Damo,
tem a pretensão de suspender temporariamente seus juízos – francamente contrários aos supostos benefícios, anunciados pela mídia, acerca da mercantilização
do futebol brasileiro – para apreciar as mudanças em curso na atual conjuntura do
futebol. Creio ser necessária certa cautela para não contaminar as observações de
campo, o entendimento que diferentes segmentos têm sobre a questão, com
prejulgamentos.
7. Ora, o Ba-Gua, disputado pelo Grêmio Bagé e pelo Guarani da mesma cidade,
na fronteira meridional do Rio Grande do Sul, nunca serviu à publicidade e por
certo não é pelo valor econômico do enfrentamento que se explicam as peleias
decorrentes do confronto entre os co-irmãos. De mais a mais, os pesquisadores
na área do esporte têm a obrigação de estar atentos e saber distinguir o contexto
e o significado da manipulação de valores e símbolos no campo esportivo. Se é
fato que os torcedores se queixam de que os atletas são mercenários e não têm
“amor à camisa”, não é menos verdade que seguem devotos do clube semiprivatizado, como é o caso de quase todos os grandes clubes do futebol brasileiro. O aumento do aporte de recursos financeiros no esporte requer uma análise
mais sutil do que aquela freqüentemente empreendida.
8. Esta é uma das razões pelas quais existem divisões hierárquicas em todos os
esportes. No futebol, por exemplo, existe uma primeira divisão que separa amadores de profissionais e, entre estes, duas, três e até quatro segmentações que estabelecem, entre aqueles que pertencem a um mesmo estrato, uma certa eqüidade.
NOTAS
9. O suspense, o teatro de improviso ou realista, a performance circense, entre
outros, se aproximam do jogo, mas são gêneros específicos dentro do cinema, do
teatro e do circo. Para uma análise comparativa do simbolismo entre futebol e
teatro cf. Soares (1979).
Agradeço a presteza de Patrice Schuch pelas valiosas críticas e sugestões às versões preliminares.
90
FUTEBOL E ESTÉTICA
10. Barbosa, curta-metragem de Jorge Furtado.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
11. Veja-se o caso das torcidas organizadas. Elas têm um comportamento espetacular, atuando como conjuntos cênicos. São parte do espetáculo, com suas coreografias, gritos de guerra e xingamentos, despertando o interesse – admiração e
medo – dos outros torcedores, até mesmo o do próprio clube e também da mídia.
Especialmente aquelas tuteladas pelos clubes, como no caso do Rio Grande do
Sul, seu comportamento é preestabelecido: ocupam sempre o mesmo espaço no
estádio; têm certos cânticos para as diferentes circunstâncias do jogo e para os
diferentes adversários; coreografias ensaiadas; enfim, delas se espera apoio ao
time em qualquer circunstância, sendo-lhes vedada a vaia e o protesto. Não é
esse o caso das torcidas organizadas independentemente do clube.
ALABARCES, P. “Los estudios sobre deporte y sociedad: objetos, miradas, agendas”.
In: ________. (org.). Peligro de gol. Buenos Aires, Clacso, 2000, p.11-30.
ANTUNES, F. “O futebol nas fábricas”. Dossiê Futebol/Revista USP. São Paulo, n.22, 1994, p.102-09.
BOURDIEU, P. “Como é possível ser esportivo”. Questões de Sociologia. Rio
de Janeiro, Marco Zero, 1983, p.136-53.
BROHM, J.-M. Deporte, cultura y represión – Colección Punto y Línea. Barcelona, Gustavo Gili, 1972.
12. Tal qual a guerra, o futebol é um campo reservado, preponderantemente, ao
gênero masculino. Essa reserva é obra da cultura inscrita no social - de modo que
nos EUA, por exemplo, o soccer é praticado pelas mulheres em larga escala –
nada tendo a ver com limitações de ordem biológica, exceto para uns poucos
preconceituosos. Trata-se de um campo do qual os meninos, que da prática se
aproximam, e as meninas, que dela se afastam (atualmente com menos ímpeto, na
medida em que as fronteiras de gênero tornaram-se mais porosas), percebem como
sendo bom para se exercitar performances masculinas, tais como: confrontos físicos às vezes violentos, uso da força e dos pés, agressividade verbal por
xingamentos, etc.
DA MATTA, R. “Esporte na sociedade: um ensaio sobre o futebol brasileiro”.
In: ________ .(org.). Universo do futebol: esporte e sociedade brasileira.
Rio de Janeiro, Pinakotheke, 1982, p.19-42.
_________ . “Antropologia do óbvio”. Dossiê Futebol/Revista USP. São Paulo, n.22, 1994, p.10-7.
DAMO, A. “Ah! Eu sou gaúcho! O nacional e o regional no futebol brasileiro.”
Estudos Históricos. Rio de Janeiro, FGV, v.13, n.23, 1999, p.87-117.
ELIAS, N. e DUNNING, E. A busca da excitação. Lisboa, Difel, 1992.
FEATHERSTONE, M. Cultura de consumo e pós-modernismo. São Paulo, Studio
Nobel, 1995.
13. Até as empresas de marketing já se deram conta disso, como é caso da Hicks,
Muse, Tate & Furst, empresa norte-americana que investe em clubes, estádios,
direitos de transmissão, redes de TV a cabo, entre outros. Segundo Charles Tate,
representante da empresa no Brasil, “as pessoas estão interessadas no que acontece com o seu clube. O torcedor acompanha o time quando este participa de uma
competição regional, o que vale também para um torneio internacional. Os torcedores querem ver seus times, mais do que suas seleções na Copa” (Revista Exame, 9/2/2000).
GEERTZ, C. “Um jogo absorvente: notas sobre a briga de galos balinesa”.
In: ________ . A interpretação das culturas. Rio de Janeiro, Guanabara,
1989, p.278-321.
GUEDES, S. “Malandros, caxias e estrangeiros no futebol: de heróis e anti-heróis. In: GOMES, L.; BARBOSA, L. e DRUMMOND, J. (orgs.). O Brasil
não é para principiantes. Rio de Janeiro, Editora FGV, 2000, p.125-42.
GUMBRECHT, H.U. “A forma da violência: em louvor da beleza atlética”. Folha de S.Paulo, 11/03/2001, Caderno Mais, p.6-9.
14. A pesquisa Top Kid é uma versão para crianças e adolescentes da Top of
Mind. Elas captam a lembrança imediata dos entrevistados sobre marcas de produtos e serviços. Nesse tipo de pesquisa, o entrevistado é convidado a citar, a
cada estímulo do entrevistador, o primeiro nome que lhe vem à cabeça. “Quando
eu falo em (time/clube de futebol), que marca lhe vem à cabeça?” (Revista Amanhã, 1997).
LEITE LOPES, J.S. “Esporte, emoção e conflito social”. In: Mana – Estudos de
Antropologia Social. Rio de Janeiro, Museu Nacional-Relumé/Dumarú, v.1,
n.1, 1995, p.141-63.
LEVER, J. A loucura do futebol. Rio de Janeiro, Record, 1983.
15. A Pesquisa de Marketing Aplicado, desenvolvida pelos alunos da disciplina
“Pesquisa de Marketing” da Escola de Administração da Universidade Federal
do Rio Grande do Sul – realizada no segundo semestre de 1997 – revelou que a
escolha do clube do coração ocorre até os 15 anos de idade em mais de 80% dos
casos, sendo que quase a metade dos torcedores faz sua opção antes mesmo dos
cinco anos de idade. A pesquisa também demonstra a importância da rede de sociabilidade mais intensa na definição do pertencimento. Em mais de 70% dos casos
a escolha foi influenciada por alguém da família ou amigos próximos a ela.
LÉVI-STRAUSS, C. O pensamento selvagem. Campinas, Papirus, 1989.
16. É comum, por exemplo, o sujeito dizer-se corinthiano, mas no Rio Grande do
Sul ser colorado, no Rio de Janeiro ser flamenguista e em Minas, atleticano e
assim por diante. Um clube em cada região ou Estado e, o que é muito freqüente
entre os políticos, um em cada cidade, preferencialmente o mais popular. No caso
do torcedor hipotético (exemplificado acima), a lógica da escolha, a partir do
Corinthians, tido como um clube popular, segue o mesmo padrão. Ou seja, torcese por todos os clubes tidos como populares. Existem, contudo, outros padrões
de escolha como é o caso das cores dos uniformes – são-paulino, fluminense,
gremista, bahiano, todos tricolores – mas os mais freqüentes no Brasil são os recortes de raça, classe social e região.
REVISTA AMANHÃ. “As marcas do Rio Grande”. Porto Alegre, ano XI, n.118,
abr.1997.
LOVISOLO, H. “Futebol, mercantilização e violência”. Motus Corporis. Rio de
Janeiro, Gama Filho, v.5, n.2, nov. 1998, p.174-83.
OLIVEN, R. e DAMO, A. Fútbol y cultura. Buenos Aires, Norma, 2001.
PERDIGÃO, P. Anatomia de uma derrota. Porto Alegre, L&PM, 1986.
PRADO, D. de A. Seres, coisas, lugares: do teatro ao futebol. São Paulo, Cia.
das Letras, 1997.
REVISTA DO GRÊMIO. Porto Alegre, ano 2, n.11, s.d.
RAMOS, R. Futebol. Ideologia do poder. Rio de Janeiro, Vozes, 1984.
SEBRELI, J. Fútbol y masas. Buenos Aires, Galerna, 1981.
SOARES, L.E. “Futebol e teatro, notas para uma análise de estratégias simbólicas”. Boletim do Museu Nacional. Rio de Janeiro, n.33, jun. 1979, p.1-23.
SOUZA, M. A ‘Nação em chuteiras’: raça e masculinidade no futebol brasileiro. Dissertação de Mestrado. Brasília, UnB, 1996.
17. A segmentação “Nós, os gremistas” por oposição aos “outros”, sejam eles
pertencentes a outras “nações” ou simplesmente alheios às predileções clubísticas,
perde sua eficácia distintiva no âmbito dos torcedores do Grêmio. Nem mesmo as
diferenças entre “nós, das organizadas” e os “outros, que não são” são suficientes para demarcar a identidade desses grupos de torcedores. “Nós, da Raça”, ao
contrário “deles, da Jovem”, é apenas mais uma segmentação, a rigor, seguida
por “nós, da Raça que viajamos com o Grêmio” e os “outros, da Raça, que não
viajam”.
TATE, C. Entrevista. Revista Exame, 9/2/2000.
TOLEDO, L.H. Torcidas organizadas de futebol. Dissertação de Mestrado. São
Paulo, Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da USP, 1994.
_________ . de Torcidas organizadas de futebol. São Paulo, Autores Associados/Anpocs, 1996.
VERÍSSIMO, L.F. “Um dilema”. Jornal do Brasil, 30/11/1996.
91
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 15(3) 2001
TRÂNSITO RELIGIOSO NO BRASIL
RONALDO DE ALMEIDA
Professor da Escola de Sociologia e Política, Pesquisador do Cebrap
PAULA MONTERO
Diretora do Museu de Arqueologia e Etnologia da USP, Pesquisadora do Cebrap
Resumo: O campo religioso sofreu transformações nas últimas décadas que levaram à fragmentação institucional e à intensa circulação de pessoas pelas novas alternativas religiosas. Este artigo pretende caracterizar a
configuração atual do campo religioso brasileiro a partir de dados sociodemográficos de uma pesquisa nacional realizada para o Ministério da Saúde e, num segundo momento, formular um fluxograma exploratório do
padrão de migração de pessoas e crenças entre as religiões.
Palavras-chave: religião; mobilidade; Igreja Universal; Renovação Carismática.
e modo geral, a literatura científica sobre o campo religioso brasileiro tem sido desafiada por um
curioso paradoxo: o acúmulo de conhecimento
sobre as diferentes cosmovisões parecia ter tornado evidente que, do ponto de vista dos ritos, das crenças e da
lógica interna de cada universo, os cultos podem ser considerados bastante diferentes entre si, mas, quando se observa o comportamento daqueles que freqüentam esses cultos, as fronteiras parecem pouco precisas devido à intensa
circulação de pessoas pelas diversas alternativas, além da
acentuada interpenetração entre as crenças. A pesquisa
Comportamento Sexual da População Brasileira e Percepções do HIV/Aids, realizada em todo o Brasil, em 1998,
revelou que 26% da população mudou de religião. 1 Concomitante à circulação de pessoas, ocorreu também a
multiplicação das alternativas religiosas, encontrando sua
expressão máxima entre os evangélicos, cuja fragmentação institucional é estrutural ao seu próprio movimento
de expansão. Nesse processo sempre renovado de divisão
por “cissiparidade”, as denominações continuamente dão
origem a novos grupos. 2
Essa aparente contradição entre o modo como especialistas e adeptos percebem o campo religioso representa
um desafio para a interpretação científica que, muitas vezes, tem se contentado em adjetivá-lo de fluido, híbrido,
sincrético ou contínuo. O conceito weberiano de “conversão”, que até muito recentemente explicava o complexo
processo subjetivo de adesão a um novo credo, não parece mais capaz de elucidar essas rápidas idas e vindas entre religiões aparentemente tão díspares entre si: um processo interior em que a consciência religiosa não acusa,
pelo menos à primeira vista, incongruências cognitivas.
Uma das tentativas para compreender esse fenômeno
reduziu a diversidade religiosa à metáfora do mercado.
Estaria subjacente a esse enquadramento do pluralismo a
idéia de que a racionalização do sagrado no mundo moderno realizar-se-ia pela transformação das crenças em
mercadorias a serem consumidas pelos adeptos que, volúveis, escolheriam os produtos segundo suas necessidades imediatas. A redução do fenômeno do trânsito religioso ao processo de mercantilização dos bens de salvação
acabou por deixar na sombra os mecanismos particulares
de ressignificação das crenças religiosas. Em ensaio de
1994, sugeriu-se que as diferentes tradições religiosas estão
em permanente processo de reinvenção e rearticulação
muitas vezes responsável pelo obscurecimento da nitidez
das fronteiras. Desse ponto de vista, a circulação entre os
diferentes códigos seria estimulado pela existência de um
substrato cognitivo e/ou cultural comum às religiões populares brasileiras, fundado seja em uma idéia abstrata de
deus que incorpora todas as variantes, seja em uma representação ambígua e não dicotômica da idéia de mal
(Montero, 1994). Um exemplo disto é a Igreja Universal
do Reino de Deus, que pode ser entendida como resultan-
D
92
TRÂNSITO RELIGIOSO
te da interação entre uma tradição evangélica-pentecostal
e um catolicismo afro-kardecista, articulada em torno da
figura do diabo (Almeida, 1996). Outros estudos apontam na mesma direção ao demonstrarem que, entre a
“malineza” dos encantados da cultura amazônica, dos
demônios do catolicismo popular e dos evangélicos e os
“exus” das religiões afro-brasileiras, haveria a permanência de uma concepção ética particular às camadas populares (Birman, Novaes e Crespo, 1997).
Esse macroprocesso de contínua síntese e diferenciação é o fenômeno que aqui interessa ser descrito. A literatura especializada convencionou denominá-lo, por economia, de trânsito religioso. Esta noção aponta, pelo menos,
para um duplo movimento: em primeiro lugar, para a circulação de pessoas pelas diversas instituições religiosas,
descrita pelas análises sociológicas e demográficas; e, em
segundo, para a metamorfose das práticas e crenças
reelaboradas nesse processo de justaposições, no tempo e
no espaço, de diversas pertenças religiosas, objeto preferencial dos estudos antropológicos.
O problema se coloca, portanto, em dois níveis de análise: um propriamente institucional, que descreve a mudança das filiações; e outro mais cognitivo, que mostra as
semelhanças e as diferenças entre as representações dos
universos religiosos. A partir desses níveis, este artigo
objetiva, em primeiro lugar, desenhar a configuração atual
das principais tradições religiosas e suas características
sociodemográficas e, em segundo, compreender alguns
fluxos preferenciais nesse trânsito generalizado de fiéis e
idéias religiosas. Preferenciais porque a intensidade da
NO
BRASIL
circulação varia de acordo com as instituições envolvidas, como se houvesse fluxos mais intensos entre algumas do que entre outras. Trabalha-se com a hipótese de que
as pessoas não mudam de religião de maneira aleatória. A
movimentação ocorre em direções precisas, dependendo
das instituições envolvidas. Algumas são preferencialmente “doadoras”, enquanto outras são mais “receptoras”; algumas trocam adeptos entre si, enquanto em outras são as
crenças que circulam mais. Nossa proposta é formular um
fluxograma exploratório do trânsito religioso ocorrido no
Brasil nestas últimas décadas.
CARACTERIZAÇÃO SOCIOECONÔMICA
DOS RELIGIOSOS
Os católicos foram os que mais perderam fiéis em números absolutos nas últimas décadas. Contudo, apesar da
volumosa perda, o catolicismo mantém-se como o maior
grupo religioso no Brasil, com 67,4% da população, dividido equilibradamente entre os sexos, com maior concentração nas regiões Norte/Nordeste e sendo mais confesso
por pessoas com idade superior a 41 anos e jovens com
menos de 25 anos. Em parte, este último dado se explica
pelo fato de as pessoas herdarem a religião dos pais e iniciarem preferencialmente – se for o caso – um processo
de mudança religiosa quando mais velhas. O quadro geral, portanto, é de perda de católicos, tendo como base os
dados censitários de 1980 e 1991. Mantida esta tendência, muito provavelmente essa geração que se encontra
entre 26 e 40 anos produzirá, em alguns anos, uma popu-
TABELA 1
Distribuição dos Indivíduos de 16 a 65 anos, por Sexo, Estratos Amostrais e Faixas Etárias, segundo Religião Atual
Brasil – 1998
Em porcentagem
Sexo
Religião Atual
Total
Homens
Estratos Amostrais
Mulheres
CentroX
Católica
67,4
66,3
68,3
67,9
Pentecostal
11,8
9,0
14,4
5,2
6,2
4,3
Protestantismo Histórico
NorNor
Faixa Etária
SulX
16 a 25
26 a 40
41 a 55
56 a 65
Anos
Anos
Anos
Anos
72,8
74,2
64,3
68,3
64,7
68,5
12,2
7,8
13,5
12,0
11,6
13,8
7,3
7,0
6,3
4,3
4,7
3,9
6,4
9,4
Espírita Kardecista
2,9
2,7
3,1
3,4
2,0
3,2
1,2
4,1
3,8
1,3
Afro-brasileira
0,5
0,5
0,5
0,6
0,7
0,3
0,4
0,2
0,9
1,0
5,7
Outra
2,2
1,1
3,3
1,0
1,6
2,8
1,6
2,6
1,0
Sem Religião
9,7
13,9
5,9
7,9
6,8
11,5
11,4
12,6
5,3
2,6
Não Respondeu
0,2
0,3
0,2
0,0
0,5
0,2
0,4
0,2
0,2
0,0
Fonte: Ministério da Saúde. Pesquisa sobre Comportamento Sexual da População Brasileira e Percepções sobre HIV/Aids.
93
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 15(3) 2001
TABELA 2
Distribuição dos Indivíduos de 16 a 65 Anos, por Grau de Instrução, segundo Religião Atual
Brasil – 1998
Em porcentagem
Religião Atual
Total
Católica
Protestantismo Histórico
Pentecostal
Espírita Kardecista
Afro-brasileira
Sem Religião
Outra
Analfabeto
6,3
6,9
9,1
5,0
0,0
0,0
4,5
4,2
Fundamental Incompleto
Fundamental Completo
46,0
44,4
41,8
65,2
12,9
41,6
46,6
44,4
Médio Completo
Superior
Total
16,7
17,0
20,8
9,1
42,7
4,3
14,3
16,3
9,4
10,0
4,2
2,8
18,9
33,0
13,1
4,3
100,0
100,0
100,0
100,0
100,0
100,0
100,0
100,0
21,7
21,7
24,1
18,0
25,4
21,1
21,4
30,8
Fonte: Ministério da Saúde. Pesquisa sobre Comportamento Sexual da População Brasileira e Percepções sobre HIV/Aids.
TABELA 3
Distribuição dos Indivíduos de 16 a 65 Anos, por Estratos Socioeconômicas, segundo Religião Atual
Brasil – 1998
Em porcentagem
Estratos Socioeconômicos
Religião Atual
Total
Católica
Protestantismo Histórico
Pentecostal
Espírita Kardecista
Afro-brasileira
Sem Religião
Outra
A
B
C
D
E
4,2
4,6
3,0
1,5
3,6
0,0
7,1
1,1
21,3
22,3
17,9
8,9
58,4
36,9
17,0
31,4
35,9
33,0
36,3
47,3
29,9
22,2
44,4
35,6
30,3
29,9
39,1
38,5
7,0
40,9
25,7
27,7
8,3
10,3
3,7
3,8
1,1
0,0
5,7
4,2
Total
100,0
100,0
100,0
100,0
100,0
100,0
100,0
100,0
Fonte: Ministério da Saúde. Pesquisa sobre Comportamento Sexual da População Brasileira e Percepções sobre HIV/Aids.
lação ainda menos católica, devido ao crescimento vegetativo de outras religiões, além da sua capacidade de atração de novos adeptos. Em contrapartida a esta projeção,
a consolidação do movimento carismático pode inverter
esse comportamento ao promover a “readesão” ao catolicismo.
Em relação à distribuição espacial, no Centro X, a participação dos católicos está próxima à média nacional,
enquanto no NorNor encontra-se acima da média e, no
SulX, abaixo. Esta divisão do país em três grandes regiões
– que obedece aos objetivos da pesquisa citados anteriomente – requer maior precisão. 3 De acordo com outras
pesquisas, o Centro-Oeste é considerado uma região que
recebeu um forte fluxo migratório poucas décadas atrás.
Entre os migrantes, encontra-se um número expressivo de
evangélicos vindos do Sul do país. Minas Gerais, ao contrário, é um Estado que, pelo Censo Demográfico de 1991,
mostrava-se extremamente católico, acompanhando o comportamento do Nordeste: uma forte presença do catolicis-
mo tradicional e popular das festas, procissões e romarias. Como Minas Gerais encontra-se no CentroX, a resultante da presença católica nesta região foi próxima à
média nacional. O mesmo pode ser pensado para o NorNor,
pois o Nordeste é muito católico e pouco evangélico, enquanto em Estados do Norte, como Rondônia, Pará e
Amapá, houve migração recente com significativa presença
evangélica proveniente do Sul do país. Contudo, como os
Estados do Nordeste são mais populosos, a média de católicos no NorNor é significativamente superior à média
do Brasil. Por fim, o dado encontrado para a área SulX é
o mais próximo da realidade para todos os Estados: menor presença de católicos do que a média nacional. Destacam-se, nessa região, pentecostais, umbandistas,
kardecistas e sem religião.
Em relação à escolaridade e à renda, os católicos, pelo
fato de serem a maioria, obedecem ao padrão nacional,
tendo em vista o “critério Brasil”. 4 Baseando-se em dados qualitativos, observa-se que muitas pessoas têm ou-
94
TRÂNSITO RELIGIOSO
tras práticas religiosas, mas identificam-se como “católico apostólico romano” quando perguntadas “qual é a sua
religião?”, principalmente entre os estratos mais pobres e
menos escolarizados. Na verdade, trata-se de uma identidade religiosa pública, muito embora as crenças e práticas católicas ocupem um plano mais secundário na vida
do fiel em relação ao condomblé, umbanda, espiritismo,
entre outros.
A esse tipo de católico que mantém simultaneamente
religiosidades diferentes – cada uma localizada num plano da vida do fiel – acrescentam-se ainda os chamados
“não-praticantes”, categoria sociologicamente pouco precisa, mas com uma auto-identificação significativa que
compõe uma parcela importante do segmento. São os católicos dos batismos, casamentos e enterros, para os quais
os sacramentos atuam como ritos de passagem tradicionais na sociedade brasileira. Trata-se daqueles indivíduos
que acreditam na Igreja, batizarão seus filhos nela, aceitam-na como identidade religiosa, mas não a praticam,
como ir periodicamente aos templos ou manter alguma
devoção a um santo, por exemplo. A auto-identificação
de “não-praticante” deve-se à pouca freqüência aos serviços religiosos e à ausência de relações mais comunitárias.
Por meio de entrevistas qualitativas, é possível inferir que
um número considerável de pessoas pode muito bem se
identificar como católico “não-praticante”, ou simplesmente sem religião, dependendo do dia em que for entrevistada. Não por acaso, curiosamente, entre aqueles que se encontram na categoria sem religião, 30,7% freqüentam
algum serviço religioso anualmente e 20,3% mais de uma
vez ao mês (Tabela 4).
Em relação aos afro-brasileiros, verifica-se que, para a
alternativa “nunca freqüenta serviços religiosos”, o valor
NO
BRASIL
corresponde a zero (Tabela 4). Para o candomblé e a
umbanda, a religiosidade está diretamente ligada às práticas rituais. Suas exigências não são do tipo comportamental, como entre os evangélicos, mas sim de cumprimento
ritual de “dar comida para o santo”. Além disso, o calendário ritual afro-brasileiro tem uma periodicidade mais
espaçada do que o cristão: católicos e evangélicos (protestantes históricos e pentecostais). Porém, para os primeiros, a freqüência semanal à Igreja é pouco superior a
50%, enquanto entre os pentecostais este índice chega a
quase 90%, número semelhante ao dos protestantes históricos e um pouco superior ao dos kardecistas.
De acordo com a Tabela 1, os pentecostais constituem
o segundo maior segmento, com 11,8% da população, e
apresentam a maior taxa de crescimento conforme os dois
últimos Censos Demográficos. O grande contingente é
feminino: 63,7% dos pentecostais, são mulheres – enquanto
que a proporção feminina na população do Brasil é de
52,3% –, só perdendo para a categoria outras religiões,”
com 77,0% (sobre as quais nada se pode afirmar devido à
variedade compreendida pela categoria). Contudo, algumas denominações pentecostais conseguem ter um índice
ainda maior do que este. Quase 80% dos que freqüentam
a Igreja Universal, por exemplo, são compostos por mulheres.
Em relação à escolaridade, a maioria dos pentecostais
(65,2%) é formada por pessoas com o fundamental incompleto (para a população brasileira, a média é de 46%). A
presença diminui relativamente nos extremos da escolaridade: poucos pentecostais entre os analfabetos e aqueles
com ensino médio completo e menos ainda com nível superior (Tabela 2). Verifica-se comportamento semelhante na estratificação socioeconômica. Os pentecostais pre-
TABELA 4
Distribuição dos Indivíduos de 16 a 65 Anos, por Freqüência aos Serviços Religiosos, segundo Religião Atual
Brasil – 1998
Em porcentagem
Freqüência aos Serviços Religiosos
Religião Atual
Nunca
Total
Católica
Protestantismo Histórico
Pentecostal
Espírita Kardecista
Afro-brasileira
Sem Religião
Outra
6,7
3,2
0,3
0,7
7,2
0,0
43,0
1,5
Anualmente
Mais de Uma
Vez ao Mês
Semanalmente
Várias Vezes
por Semana
Total
19,9
22,6
7,3
7,9
6,3
6,5
30,7
6,3
18,6
22,6
4,2
4,8
4,7
47,3
20,3
9,6
41,0
46,1
43,7
34,4
68,9
30,1
5,6
39,1
13,7
5,5
44,5
52,2
12,9
16,1
0,4
43,5
100,0
100,0
100,0
100,0
100,0
100,0
100,0
100,0
Fonte: Ministério da Saúde. Pesquisa sobre Comportamento Sexual da População Brasileira e Percepções sobre HIV/Aids.
95
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 15(3) 2001
dominam mais nos estratos C e D e menos em A, B e E.
Em suma, baixa e média escolaridade e renda caracterizam esses religiosos.
O segmento pentecostal é significativamente composto por jovens e adultos, sendo pequena a presença de pessoas com mais de 55 anos. Ao se distribuir a população
total pelas faixas etárias, constata-se uma maior participação de pessoas mais velhas no catolicismo, no protestantismo histórico, e outras, enquanto os mais jovens optam, curiosamente, pela filiação aos segmentos católico e
pentecostal, ou pela não filiação religiosa. Quanto aos
católicos, vale a explicação anterior sobre a herança religiosa. Os outros (pentecostais e sem-religião) predominam nas faixas etárias de 16 a 25 anos e de 26 a 40 anos,
ocupando cada um em torno de 12% da população em cada
faixa. Esses dados apontam dois movimentos concomitantes, a princípio contraditórios. Um em direção a uma
religiosidade exclusivista e espiritualizada, que insere o
fiel em outra rede de sociabilidade, desencadeando nele
mudança de comportamento. Neste pode-se incluir também a Renovação Carismática que, embora ocorra no interior do catolicismo, caracteriza-se pela incorporação de uma
religiosidade tipicamente evangélica: pouca liturgia e muita música e gestos que dinamizam a celebração; ênfase na
conversão e nos dons espirituais como o poder de cura, além
de utilizar, assim como os evangélicos, os meios de comunicação como importante veículo de propagação da “fé
católica renovada”.
O outro movimento está direcionado à desfiliação ou à
não-identificação com nenhuma instituição, que muitas
vezes é acompanhada de desqualificação da vida religiosa. Assim, não só proliferam as religiões como também
os sem-religião, que formam o terceiro maior grupo. Esta
polaridade do campo religioso contribui para a discussão
que ainda domina parte da sociologia da religião, qual seja,
se esta mudança de configuração aponta para um “reencantamento do mundo” ou trata-se apenas de um ajuste
da religião no macroprocesso de secularização, no qual
se encontra a sociedade brasileira pelo menos desde a separação da Igreja do Estado (Montero e Almeida, 2000).
Os sem-religião apresentam um nível de escolaridade
alta e, em relação à renda dos brasileiros, estão bastante
presentes nos estratos A e C. Pelos dados não é possível
estabelecer uma relação direta entre maior filiação religiosa e estrato socioeconômico baixo. Os sem-religião encontram-se mais entre jovens e adultos até 40 anos e, principalmente, entre os homens. Em relação ao sexo dos
religiosos, a pesquisa mostra que há predominância mas-
culina somente nas alternativas sem religião – numa relação de quase dois homens para uma mulher – e protestantismo histórico. Em geral, a religiosidade é mais confessa
pelas mulheres. Logo, em alguma medida, a distinção de
gênero afeta o processo de secularização.
O protestantismo histórico forma o quarto maior grupo, com 5,2% da população, e comporta uma maioria
masculina. Estes religiosos encontram-se mais entre as
pessoas que possuem ensino fundamental (incompleto e
completo) e médio completo, bem como nos estratos B, C
e, principalmente, D (Tabela 2). Assim, como os católicos, os protestantes históricos encontram-se mais presentes entre as pessoas acima de 41 anos e mais ainda entre
aqueles com idade superior a 56 anos. Os protestantes estão
pouco presentes entre os mais jovens, sendo que o aumento
vegetativo deste segmento é inferior ao católico e a taxa
de crescimento é pequena. Contudo, assim como ocorreu
com o catolicismo, eles foram atingidos também pelo
movimento carismático que tem atraído muitos fiéis e criou
um segmento religioso com características intermediárias
entre protestantes históricos e pentecostais: são os protestantes carismáticos ou renovados.
Os kardecistas, com 2,9% dos brasileiros, são os religiosos com maior nível de escolaridade e renda. Nenhum
caso de analfabetismo foi registrado entre os entrevistados, poucos possuíam ensino fundamental incompleto e
completo e muitos tinham médio completo e superior.
Quanto à renda, este segmento está mais concentrado nos
estratos D e B. 5 Curiosamente, as religiões afro-brasileiras possuem maior participação entre as classes altas e com
maior escolaridade, muito embora a experiência mostre
que muitos pobres são adeptos dessas religiões. Recorrese novamente ao argumento anterior, para o qual boa parte dos brasileiros mantém uma religiosidade privada e outra
(a católica) como identidade pública, principalmente se a
resposta for dada no contexto de um survey, o que limita
a caracterização de certas religiões.
MOBILIDADE DOS RELIGIOSOS
Como dito inicialmente, o quadro descrito é resultado
de uma intensa circulação de pessoas entre as religiões,
ocorrida nas últimas três décadas. De acordo com as características sociodemográficas, o universo feminino tem
um nível de filiação maior do que o dos homens, mas isto
não significa que as mulheres mantenham a religião herdada; ao contrário, são elas as que mais mudam e, na maior
parte das vezes, sempre direcionadas para outras religiões.
96
TRÂNSITO RELIGIOSO
O SulX, por sua vez, foi a única região onde as pessoas
mudaram de filiação acima da média nacional, criando o
cenário mais plural do Brasil. Os muito pobres com pouquíssima escolaridade e os muito ricos e de alta escolaridade mudaram muito menos de religião. Em resumo, a
mudança ocorreu de forma mais concentrada no SulX, nas
classes C e D, com escolaridade baixa e média e entre as
mulheres, segmentos em que os pentecostais mais se proliferaram.
Em números absolutos, os católicos foram os que mais
perderam. Em seguida vêm os sem-religião, os protestantes históricos, os pentecostais e pouquíssimos kardecistas
e afro-brasileiros. Por outro lado, os segmentos que mais
receberam pessoas, em ordem crescente, foram: os pentecostais (quatro vezes mais do que perdeu); sem-religião
(cerca de metade a mais); protestantes históricos (quase
igual ao que perderam); católicos; kardecistas; e afro-brasileiros. Porém, ao reduzir o universo unicamente aos
NO
BRASIL
26,5% que mudaram de religião, quais são as principais
conexões entre as alternativas religiosas? Isto é, quem
recebeu de quem e quem doou para quem? É como se quiséssemos saber, por exemplo, de onde vieram os fiéis do
kardecismo e para onde vão os kardecistas quando mudarem de religião. Para construir esse movimento, a pesquisa perguntou a religião atual do entrevistado e em qual
ele foi criado. Desta maneira, cada religião pôde ser analisada em dois momentos: como pontos de recepção e de
emissão de fiéis. Considerando-se o estoque de pessoas
de cada uma dessas categorias e a alta circulação interna,
o campo religioso brasileiro pode ser articulado em torno
de três principais vértices.
O primeiro vértice é formado pelos católicos, que funcionam como uma espécie de “doador universal”, de onde
todos os segmentos arregimentam boa parte dos seus fiéis.
O grupo preferencial para onde migram os católicos é o
pentecostalismo, seguido por aquele sem religião. Do
TABELA 5
Distribuição dos Indivíduos que Mudaram de Religião, por Religião em que foi Criado, segundo Religião Atual
Brasil – 1998
Em porcentagem
Religião em que foi Criado
Religião Atual
Católica
Total
Católica
Protestantismo Histórico
Pentecostal
Espírita Kardecista
Afro-brasileira
Sem Religião
Outra
100,0
14,9
36,5
13,5
2,3
23,6
9,2
Protestantismo
Histórico
100,0
12,2
3,0
0,3
0,1
79,5
4,9
Pentecostal
100,0
36,7
0,6
Espírita
Kardecista
100,0
63,6
0,0
5,6
2,5
0,0
58,8
1,4
Afro-brasileira
Nenhuma
Outra
Total
100,0
24,1
9,3
11,1
0,0
100,0
20,3
31,1
46,3
0,0
0,0
100,0
23,9
1,9
39,7
2,8
0,0
31,7
100,0
9,0
12,8
31,1
9,0
1,5
29,9
6,7
0,0
29,6
1,2
55,6
0,0
2,2
Fonte: Ministério da Saúde. Pesquisa sobre Comportamento Sexual da População Brasileira e Percepções sobre HIV/Aids.
TABELA 6
Distribuição dos Indivíduos que Mudaram de Religião, por Religião em que foi Criado, segundo Religião Atual
Brasil – 1998
Em porcentagem
Religião em que foi Criado
Religião Atual
Católica
Total
Católica
Protestantismo Histórico
Pentecostal
Espírita Kardecista
Afro-brasileira
Sem Religião
Outra
63,6
74,0
74,8
95,4
99,6
50,1
87,8
Protestantismo
Histórico
9,4
12,7
0,9
0,4
0,4
25,0
6,9
Pentecostal
7,6
31,0
0,3
Espírita
Kardecista
Afro-brasileira
2,0
14,4
0,0
0,4
2,1
0,0
14,9
1,6
0,0
2,0
0,4
Fonte: Ministério da Saúde. Pesquisa sobre Comportamento Sexual da População Brasileira e Percepções sobre HIV/Aids.
97
0,3
0,9
0,2
0,1
0,0
0,6
0,0
Nenhuma
Outra
Total
10,0
22,6
24,4
14,9
0,0
0,0
6,9
18,4
1,0
8,9
2,2
0,0
7,3
100,0
100,0
100,0
100,0
100,0
100,0
100,0
100,0
3,3
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 15(3) 2001
ponto de vista da recepção, quase metade das pessoas
entrevistadas que aderiram ao catolicismo afirmou não ter
pertencido anteriormente a nenhuma religião ou que eram
pentecostais. Porém, como dito anteriormente, em parte
o primeiro dado se explica pela fronteira pouco precisa
entre os que se dizem católicos “não-praticantes” e os semreligião. Trata-se de um catolicismo dado pela tradição,
em que as pessoas receberam a religião dos pais e a ativam no uso dos sacramentos e nos momentos de dificuldades pessoais (familiar, financeira, saúde, etc.), ou, mais
recentemente, por meio da “readesão carismática”.
Os kardecistas, por sua vez, orbitam em torno do catolicismo, formando um fluxo preferencial. A quase totalidade (95,4%) afirmou ter sido católica e, quando as pessoas saem do kardecismo, vão (ou voltam) para o
catolicismo, ou têm, como segunda opção, não ter religião. O fluxo de pessoas do (ou para o) catolicismo é explicado, em parte, pelo comportamento da maioria dos
kardecistas, que, assim como os afro-brasileiros, não deixam de se identificar como cristãos e católicos: um “católico espírita”, cujos práticas não são excludentes, mas que,
dependendo da situação, o indivíduo pode utilizar uma ou
outra identidade. Os afro-brasileiros, em parte, orbitam
em torno do catolicismo como os kardecistas, mas, diferentes destes, a maioria das pessoas, quando sai das religiões afro-brasileiras, declara-se sem religião.
No segundo vértice encontram-se os sem-religião, categoria equivalente a um “receptor universal”, que, numa
sociedade em processo de secularização, recebe pessoas
de todas as confissões. Acrescente-se, contudo, que a literatura antropológica demonstrou exaustivamente como
muitas pessoas compõem um repertório particular de crenças e práticas variadas, mas não se identificam com nenhuma religião específica. Não se trata, portanto, somente de um movimento em direção ao ateísmo, mas sim a
composição de um repertório simbólico particular, afinal,
a não-filiação não significa necessariamente ausência de
religiosidade. Um dos exemplos contemporâneos mais
significativo de composição desses arranjos particulares
é formado pelo circuito neo-esotérico, cuja religiosidade
não se expressa prioritariamente pela filiação a uma instituição, mas é definida por um certo estilo de vida, fenômeno bastante presente nas classes média e alta dos grandes centros urbanos (Magnani, 1999).
Um fluxo significativo envolve ainda os sem-religião
e protestantes históricos. Os históricos são semelhantes
aos católicos, aumentando praticamente de forma vegetativa e perdendo fiéis quase na mesma proporção; contudo, diferentes dos católicos que aderem a todas as alternativas, a maior parte dos ex-protestantes (79,5%)
simplesmente fica sem religião. Neste caso, o comportamento é semelhante ao kardecismo, que se explica a partir dos conteúdos específicos dessas religiões que tendem
à secularização, como uma religiosidade que pretende um
caráter científico.
Finalmente, o terceiro vértice é formado pelos pentecostais, cujo aumento é semelhante ao daqueles sem-religião,
mas, diferente destes, buscam seus fiéis entre alguns es-
FIGURA 1
Padrões de Migração entre Religiões
Fonte: Elaboração dos autores.
98
TRÂNSITO RELIGIOSO
tratos sociais e segmentos religiosos – basicamente entre
católicos, afro-brasileiros e sem-religião, que compõem
um repertório simbólico “católico-afro-kardecista” que
manipula simultaneamente elementos de confissões diferentes: lógica mágica, reencarnação e destino, devoção a
santos e crença na comunicação com os mortos. Os
pentecostais pouco atraem os kardecistas – o que se explica pelas diferenças sociais que caracterizam estes segmentos –, mas confrontam-se com algumas de suas idéias
como espíritos de mortos e reencarnação. Os afro-brasileiros, por sua vez, estão na esfera de ação dos pentecostais
por serem alvos privilegiados da evangelização e modelo
simbólico religioso a ser combatido. Porém, o grande celeiro dos pentecostais é formado pelo catolicismo. Neste
sentido, a Renovação Carismática não deve ser entendida
apenas como um movimento de readesão, mas também de
reação ao avanço evangélico.
No cenário atual, pode-se entender a neopentecostal
Igreja Universal, fundada em 1977, como resultante da
interação, tanto simbólica quanto numericamente, dos
universos evangélico e umbandista. A Igreja Universal
construiu uma religiosidade que condenou – e ao mesmo
tempo validou – os conteúdos de outras religiões, contudo, paradoxalmente, incorporou as formas de apresentação e certos mecanismos de funcionamento de um prática
encontrada particularmente na umbanda. Ela ficou mais
parecida com a religiosidade inimiga ao elaborar um
sincretismo às avessas, que associou as entidades da
umbanda e orixás do candomblé ao pólo negativo do cristianismo: o diabo. Se originalmente os universos foram
formados em contextos diferentes, a interação (produto
do trânsito de pessoas e idéias) gerou uma religiosidade
que mistura exus com glossolalia, exorcismo com transe;
de tal maneira que se estabeleceu uma continuidade pela
qual as entidades conseguiram transitar e esses universos
puderam, pelo transe, se comunicar. Os pares negação/
inversão e assimilação/continuidade são os mecanismos
fundamentais pelos quais se processaram essa antropofagia religiosa. Graças a esses binômios, a Universal pôde
manter o proselitismo de fiéis e, ao mesmo tempo, ser
sincrética com outras crenças, que, juntamente com os
infortúnios vividos pela população brasileira, formam o
alimento constitutivo do seu simbolismo religioso
(Almeida, 1996).
Outro fluxo significativo gerador de um novo padrão
de religiosidade foi formado pela interação entre catolicismo, pentecostalismo e protestantismo histórico, resultando na Renovação Carismática. A penetração de alguns
NO
BRASIL
elementos evangélicos no catolicismo ocorreu em duas
dimensões: do pentecostalismo, a Renovação adotou os
dons espirituais ou carismas, como a glossolalia e a cura;
e do protestantismo histórico, a idéia de conversão pessoal que, em termos práticos, manifesta-se como experiência emocional com implicações direta no comportamento
do fiel em esferas da vida social, como a família e o trabalho, e ainda no seu estado psíquico-emocional (depressão, vício, solidão, etc.). A conversão ocorre como internalização da religião acompanhada de mudança de
comportamento social e reorganização da vida em torno
de uma “comunidade de irmãos”. Contudo, a conversão
evangélica tem implícita a necessidade de dissidência institucional e uma nova filiação. Porém, como aderir ao catolicismo se já nasci católico? A contribuição da Renovação é conseguir operar uma mudança, “ser um novo
homem”, sem romper com a Igreja. Na verdade, ela promove a “re-adesão” a um novo corpo de fiéis atingido pela
religiosidade evangélica dentro da própria Igreja. Um fluxo
em torno de si mesmo. O resultado é um fiel que junta
glossolalia com o culto mariano, o que garante catolicidade
ao movimento. 6
CONCLUSÃO
Neste artigo, não se tentou assentar a discussão nas
lógicas internas dos diferentes credos, mas sim compreender como estas rebatem umas nas outras, e em planos distintos. Seria interessante, portanto, retomar de maneira
mais sistemática, noções que perpassam as diversas religiões, tais como a dicotomia bem/mal, justiça, pecado,
pobreza, sofrimento, salvação, etc., com a finalidade de
acompanhar com maior precisão as migrações religiosas.
Promover um espelhamento entre as religiões, para apreender zonas de tensão e regiões de fusão, definido pela simultaneidade de interações que são desiguais entre si.
Citam-se a Universal e a Renovação por considerá-las
os produtos mais recentes das transformações do campo
religioso brasileiro. É como se, a partir delas, fosse possível recuperar parte do processo de interação das tradições
católica, evangélica e afro-kardecista. Esses exemplos
mostraram o espraiamento do pentecostalismo pelo catolicismo e pelo protestantismo histórico (dando origem aos
carismáticos e renovados) e, simultaneamente, a absorção
de práticas e crenças da umbanda, que, por sua vez, é resultado da articulação entre os universos kardecista e afrobrasileiro com a mediação do catolicismo, este sim, o grande doador não só de pessoas, mas também de um campo
99
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 15(3) 2001
semântico comum às religiões no Brasil. Diante deste cenário, “o campo religioso será ainda hoje o campo das
religiões?”, para refazer a pergunta-título de um artigo de
Pierre Sanchis (1995).
Mencionando novamente a pesquisa sobre “Comportamento Sexual da População Brasileira e Percepções do
HIV/Aids”, as perguntas sobre a mobilidade religiosa
eram: “qual a sua religião atual” e “em qual você foi criado”. Essas perguntas têm dois limites metodológicos: o
cruzamento só mede uma mudança de religião e pressupõe que, no momento da entrevista, o indivíduo só tenha
uma filiação. Pela característica do campo brasileiro, não
é nenhum absurdo supor uma trajetória que apresentasse
mobilidade institucional (num processo de sucessivas
“conversões”) ou a simultaneidade de vários credos (como
se fosse um sincretismo privado).
Isto posto, ao invés de citar um dado etnográfico específico, suponhamos um movimento ideal no campo. Comecemos por um religioso de referência, tão comum no
Brasil: o católico “não-praticante”. Um indivíduo que
passou pela Igreja em momentos como batizado, talvez
uma comunhão e uma crisma, o casamento e, no futuro,
receberá dela a extrema-unção – alguém que pode muito
bem se declarar sem religião, dependendo do dia em que
for entrevistado, mas, ao descobrir ser portador de uma
grave doença, recorrerá à fé católica, aos santos milagreiros
e a alguma devoção a Maria. Não conseguindo o seu objetivo, recorre à umbanda, que lhe promete a cura mediante
oferenda de sacrifício para alguma entidade afro-brasileira. A cura, no entanto, não vem. Ele, então, assiste na televisão os testemunhos de milagres que ocorrem a quem
for à Universal; e lá se fixa o fiel-doente. A partir de pesquisa na Igreja Universal, pode-se afirmar que até aqui
essa trajetória é significativamente observável.
Envolvido com o meio evangélico, esse sujeito pode
seguir ainda dois caminhos. Primeiro, passar para outras
igrejas históricas. A pesquisa Novo Nascimento pode levar a esta conclusão, uma vez que 25% dos evangélicos
pertenceram a mais de uma denominação (Fernandes et
alii, 1998). O único problema é que o fluxo ocorre preferencialmente das históricas para as pentecostais, e muito
pouco no sentido inverso. Um outro caminho possível, mas
que precisa de constatação empírica, é o fiel-doente aprender a doutrina da conversão e do Espírito Santo na Renovação Carismática e voltar à religião da sua tradição: o
catolicismo.
Evidente que esse conjunto de passagens representa uma
trajetória ideal, porém, como dito, plausível de acordo com
a bibliografia sociológica e antropológica. Não se entende que exista uma relação de determinação entre as duas
circulações, na qual a mobilidade de fiéis seria o suporte
pelo qual o conteúdo religioso fluiria. Ou o inverso disso:
que a invenção religiosa torna mais plausível para uns do
que para outros a mudança de filiação. As circulações
devem ser entendidas em planos distintos, porém correlatas, como se houvesse uma retroalimentação que acelerasse tanto a mobilidade de fiéis quanto o trânsito de práticas e crenças, resultando na invenção religiosa e em novos
agrupamentos de pessoas. Acredita-se, contudo, que essa
correlação e interpenetração devem ser indicadas, em primeiro lugar, na trajetória do indivíduo (daí a necessidade
de melhorar as perguntas sobre pertença religiosa, associando-as a dados qualitativos) e não propriamente na instituição. Os circuitos se concretizam e se tornam mais claros na trajetória do indivíduo, sendo que o acúmulo de
experiências proporcionadas pelo trânsito torna o seu repertório religioso mais amplo do que o pregado pela instituição à qual se filiou em determinada etapa da vida.
NOTAS
E-mail dos autores: [email protected] e [email protected]
Agradecemos a preciosa ajuda de Marta Rovery de Souza e Eduardo Marquês,
na análise dos dados quantitativos, de Maria Dirce G. Pinho e Maria Paula Ferreira,
pela preparação do banco de dados e tabulações.
1. Esta pesquisa, cuja representatividade da amostra (3.600 indivíduos, entre 16
e 65 anos, moradores das áreas urbanas de 169 microrregiões do Brasil) tem a
capacidade de inferência da ordem de 77,7% do universo (constituído, em 1996,
por 77.018.818 pessoas), foi realizada pela área de População e Sociedade do
Cebrap para o Ministério da Saúde, sob a coordenação da Dra. Elza Berquó. Seu
objetivo principal foi “identificar representações, comportamento, atitudes e práticas sexuais da população brasileira e conhecimento sobre HIV/Aids, com vistas
a estabelecer estratégias de intervenções preventivas das DSTs e HIV” (Coordenação Nacional de DST/Aids, 2000:11). No questionário foram incluídas sete perguntas (num total de 204) para compreender como as diferentes religiões influenciam o comportamento sexual. Este artigo vale-se das perguntas sobre religião e
as referentes às características socioeconômicas da população para discutir um
outro problema: a intensa mobilidade das pessoas pelas religiões, que também foi
constatada por outras pesquisas, mas em universos menores, como o município
de São Paulo (Prandi, 1996) e a Região Metropolitana do Rio de Janeiro (Fernandes
et alii, 1998).
2. O dicionário de dados do Censo Demográfico, que serve de orientação para o
entrevistador do IBGE, apresentava, em 1980, nove alternativas para a questão
sobre filiação religiosa, passando para 51, em 1991. Estas 51 alternativas também foram utilizadas para classificar as respostas dos entrevistados da pesquisa
Comportamento Sexual da População Brasileira e Percepções do HIV/Aids e,
posteriormente, agregadas em sete grandes categorias que expressam as principais tradições religiosas no Brasil: católicos, protestantes históricos, pentecostais,
afro-brasileiros, kardecistas, outras e sem religião.
3. A pesquisa dividiu o território nacional em três grandes regiões: CentroX (que
compreende o Centro-Oeste mais os Estados de Minas Gerais e Espírito Santo),
NorNor (Norte e Nordeste) e SulX (Sul e Sudeste, menos Minas Gerais e Espírito Santo).
4. “Nele são associados valores ao número de bens de consumo existentes no
domicílio e ao nível de instrução do chefe da família e/ou pessoa de referência.
Também são considerados, para essa classificação, o acesso ao número de automóveis e a existência de empregadas mensalistas. Este novo critério de pontua-
100
TRÂNSITO RELIGIOSO
ção permite uma maior aproximação da realidade socioeconômica dos entrevistados, além de poder ser utilizado como proxy da renda familiar” (Coordenação
Nacional de DST/Aids, 2000:32).
NO
BRASIL
COORDENAÇÃO NACIONAL DE DST/AIDS. Série Avaliação. Brasília, Ministério da Saúde, n.4, out. 2000.
FERNANDES, R. et alii. Novo nascimento: os evangélicos em casa, na política
e na igreja . Rio de Janeiro, Mauad, 1998.
5. Outras pesquisas confirmam este alto perfil socioeconômico dos kardecistas
(Almeida e Chaves, 1998).
MAGNANI, J.G. Mystica urbe: um estudo antropológico sobre o circuito neoesotérico na metrópole. São Paulo, Studio Nobel, 1999.
6. Destaca-se este aspecto por considerá-lo um dos mais significativos desse
hibridismo religioso, porque Maria, para os evangélicos, não pode ser considerada a mãe de deus e tampouco objeto de culto, assim como nenhum santo.
MONTERO, P. “Magia, racionalidade e sujeitos políticos”. Revista Brasileira
de Ciências Sociais. São Paulo, ano 9, n.26, out. 1994.
MONTERO, P. e ALMEIDA, R. “O campo religioso brasileiro no limiar do século: problemas e perspectivas” In: RATTNER, H. (org.). Brasil no limiar
do século XXI. São Paulo, Edusp, 2000.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
PIERUCCI, F. e PRANDI, R. A realidade social das religiões no Brasil. São
Paulo, Hucitec, 1996.
ALMEIDA, R. A universalização do Reino de Deus. Dissertação de Mestrado.
Campinas, IFCH/Unicamp, 1996.
PRANDI, R. “Religião paga, conversão e serviço”. Novos Estudos. São Paulo,
Cebrap, n.45, jun. 1996.
ALMEIDA, R. e CHAVES, M.F. “Juventude e filiação religiosa”. Jovens acontecendo na trilha das políticas públicas. Brasília, Comissão Nacional de
População e Desenvolvimento, 1998.
SANCHIS, P. “O campo religioso será ainda hoje o campo das religiões?” In:
HOORNAERT, E. (org.). História da igreja na América Latina e no Caribe
(1945-1995). Petrópolis, Vozes/Cehila, 1995.
BIRMAN, P.; NOVAES, R. e CRESPO, S. (orgs.). O mal à brasileira. Rio de
Janeiro, UFRJ, 1997.
101
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 15(3) 2001
A CULTURA NA ESTEIRA DO TEMPO
MARIA APARECIDA DE MORAES SILVA
Professora do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Unesp/Araraquara e do
Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva da Faculdade de Medicina da Unesp/Botucatu, Pesquisadora do CNPq
Resumo: Objetiva-se neste texto analisar os traços culturais de um mundo anterior à emigração dos trabalhadores rurais para as cidades, como um dos ingredientes da memória social e individual, tendo em vista o
processo de desenraizamento decorrente da modernização da agricultura, implantada no final da década de
60. A cultura material e simbólica do mundo rural de antes caracteriza-se como lugar, em razão do seu nãolugar no conjunto da sociedade atual.
Palavras-chave: cultura e memória; cultura e trabalhadores rurais; cultura e reterritorialização.
se diante da implantação das grandes usinas e complexos
agroindustriais. Pretende-se, portanto, tecer algumas reflexões sobre os traços culturais dos trabalhadores rurais
que passaram a residir nas periferias das cidades. Várias
pesquisas desenvolvidas ao longo das duas últimas décadas1 comprovam que a cultura do mundo rural de antes se
desagregou em virtude da homogeneização imposta pela
cultura de massa, sobretudo aquela veiculada pela televisão. O que existe são os fragmentos daquela cultura na
memória e na lembrança de alguns. A fim de dar conta
deste objetivo, a cultura de antes será tratada como lugar, presente na memória individual e na conservação de
algumas tradições. As tradições do mundo de antes, inseridas na sociabilidade ancorada nas relações familiares,
de compadrio e de vizinhança, se desmoronam com a vinda
para as cidades. Esse fato está relacionado ao modo de
expulsão desses trabalhadores do campo. Em outro trabalho (Silva, 1999), analisaram-se as conseqüências imediatas provocadas pelo Estatuto do Trabalhador Rural
(ETR), promulgado em 1963, em todo o país. Para a região de Ribeirão Preto, espaço empírico sobre o qual se
fundam as presentes reflexões, vieram milhares de migrantes rurais, provenientes não apenas do próprio Estado de
São Paulo, como de várias outras áreas do país, dentre
elas do Nordeste. Nesse sentido, as periferias das cidades
médias e das cidades-dormitório foram constituídas pelo
ajuntamento de milhares de pessoas, de várias procedên-
ada vez mais afirma-se, na época contemporânea,
a sociedade do esquecimento, marcada pelo domínio homogeneizador da informação midiática.
Recuperar o passado individual e coletivo, por meio da
memória como metodologia de análise, configura-se como
um dos caminhos possíveis para a redescoberta dos processos de desenraizamento social e cultural, e, por conseguinte, para a redefinição dos projetos que articulam passado, presente e futuro.
“E o que é a lembrança para a senhora? A senhora
acha que lembrar faz bem? Ah, faz! Não faz mal não.
É (ri). É... nunca que a gente esquece... Tanta coisa
boa, tanta modinha bonita que eu... (Pausa) da moreninha... tu és bela... é muito, é bastantinho de verso. A moça andando no fio de arame para lá, para
cá, ia lá longe e vinha cá no fio de arame, dançando... E cantando... E cantando essa moreninha...
Moreninha, tu és bela, és mimosa igual à flor/ Eu te
adoro e te namoro, moreninha, meu amor...” (Fragmento da entrevista de dona Onícia em 1997, aos
83 anos. Faleceu dez meses depois).
No que se refere ao Brasil, especificamente ao Estado
de São Paulo, a partir da década de 60, em virtude dos
projetos de modernização agrícola, houve um processo
continuado de emigração forçada para as cidades. As formas de produção caracterizadas pela parceria, arrendamento, colonato, posse e agricultura familiar desagregaram-
C
102
A CULTURA NA ESTEIRA
cias e, conseqüentemente, portadoras de múltiplas culturas e modos de vida diferenciados (Silva, 1993).
Espaços reduzidos, sociabilidade, marcada, muitas vezes, por conflitos, violência, preconceitos, e, sobretudo, por
sinais de estranhamento mútuo. A sociabilidade ancorada
nas relações primárias, caracterizadas pelo reconhecimento interpessoal e auto-reconhecimento, cede lugar à sociabilidade individualizada e estranhada. Com o passar dos
anos, a vida social foi sendo reconstruída nesses novos
espaços. No entanto, as tradições, a cultura do mundo de
antes, não couberam nos limites desses espaços. Foi necessária a construção dos lugares para protegê-las, para impedir sua morte.
DO
TEMPO
ele vinha valsando também assim, e valsava um
pouco, depois vinha e nós rodávamos. Era a dança, uma valsa. Então, era tão bonito, que só a senhora vendo! E... e... e nessa dança poderia cantar
verso assim, para um outro... A gente cantava aqueles versos agradando os moços, eles cantavam agradando as moças. Então, dos versos que eu tirei da
cadernetinha do meu pai, de quando ele era solteiro, é um verso assim... ‘Teus olhos quantas cores/
De uma Ave-Maria/ Que um rosário de amargura/
eu rezo todo dia’. A Seriema é uma valsa... E tinha
outro assim: ‘Fiz as minhas queixas no meio das
pedrarias/ (Não... como é que é, gente?) Fui fazer
as minhas queixas no meio das pedrarias/ Minhas
pedras pesam mais que quando... (Não. Meu... Ah,
esse eu errei!) Fui fazer a minha queixa no meio
das pedrarias... Minhas pedra(s) pesa(m) mais... do
que quantas pedras havia. Joguei meu lenço n’água/
e ligeiro ele foi ao chão/ Eu amo todo... eu... amo...
(Tá... estou muito esquecida hoje, ontem estava
mais lembrada). Joguei o lenço n’água/ e ligeiro
ele foi ao chão... ao fundo/ Eu amo só você, e você
ama todo mundo.’
É... é muito verso, mas a gente esquece, porque faz
muito tempo que eu deixei, num cantei mais ... ‘Se
você diz que eu sou sua/ se eu sou sua, eu não sei/
eu amo... eu amo só você e você ama todo mundo.
É. Eu tenho quatro amores/ dois de manhã, dois de
tarde/ com todo sorriso e brinco/ Sou homem, falo
a verdade’... Uma reza que eu vou falar para a senhora, que... quando rezava terço, nós cantávamos,
e agora eu... eu deixei de rezar por causa da seita de
agora... (Dona Onícia aderira à seita dos
pentecostais).
É. Nós... quando nós rezávamos, nós cantávamos
para beijar o santo. ‘Bendito, louvado seja, bendito, louvado seja/ Olha o santíssimo... o santíssimo
sacramento/ todos os anjos, os anjos, todos os anjos/ ... Os anjos benditos... (Fala muito baixo, para
si mesma, tentando se lembrar) Olha o santíssimo
sacramento.../ Olha o santíssimo sacramento/ Bendito, louvado seja, bendito, louvado seja/ Olha o
santíssimo sacramento/ olha o santíssimo sacramento... Abre essa porta, deixa o vento entrar/ para ver
os anjos no seu passear... Abre essa porta, deixa o
vento entrar/ para ver os anjos no seu passear...’ Só.
É, tem... tem mais coisa, modinha, mais eu esqueci
as modinhas bonitas mesmo, eu esqueci.
A MEMÓRIA COMO LOCUS DA CULTURA
“A curiosidade pelos lugares onde a memória se cristaliza e se refugia está ligada a este momento particular de
nossa história. Momento de articulação onde a consciência
da ruptura com o passado se confunde com o sentimento de
uma memória esfacelada, mas onde o esfacelamento desperta ainda memória suficiente para que se possa colocar
problema de sua encarnação. O sentimento de continuidade torna-se residual aos locais. Há locais de memória porque não há mais meios de memória” (Nora, 1993:7).
Essas reflexões de Nora são extremamente eficazes para
a análise da memória individual e também coletiva. A idéia
de encarnação da memória, após seu esfacelamento, pode
ser vista a partir de alguns fragmentos das lembranças de
dona Onícia, 83 anos, mineira, que viveu grande parte de
sua vida no campo e, quando interrogada sobre seu tempo
de juventude, fez um enorme esforço, tanto físico como
espiritual e mental, para se lembrar das músicas dançadas e
cantadas nos bailes. À medida que tentava se lembrar, seu
semblante se transfigurava e, por diversas vezes, se levantou
da cadeira, deixando de lado a bengala que lhe servia de apoio,
imitando com os braços, porque as demais partes do corpo já
não lhe permitiam, a dança da Seriema.
“É, lembrei de uma porção... de uma porção de versos, que nós cantávamos assim no baile. Estava com
aquela moça... aquelas moças, os moços ali todos
se divertindo, alegres.... tinha uma dança chamada
Seriema, a gente ia... assim falar com ela, ou eu, ou
a senhora, saía assim valsando assim, rodando lá na
sala do baile e... e valsando e cantando, e os que
estavam tocando o instrumento, é... também tocando, e a gente ia valsando. Quando chegava lá perto
daquele moço que a gente abanava o lenço para ele,
103
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 15(3) 2001
(Na procissão), tinha as meninas vestidas de anjo,
com aquelas asonas brancas bonitas... As meninas
com aquele vestuário mais lindo! E, dia de festa de
mês de maio... O povo saía da casa do padre, era
como daqui, longe da casa do padre, lá naquela casa
que tem na frente lá. Então, subia cantando... cantando, e a banda... a banda tocando, entrava dentro
da igreja. Então, tinha novena à noite, tinha novena
e tinha aquelas... aquelas meninas, quatro... tinha
aquelas coroas, aquelas grinaldas que iluminavam
aquelas flores... Então, duas meninas iam coroar.
Cada uma com pratinho de rosa ali. Então, elas cantavam assim... elas cantavam... eram duas de cada
lado. Faziam a coroação de Nossa Senhora ali. Então... (Dona Onícia encena) uma de cá e a outra de
lá que iam coroar. Então, elas cantavam: ‘Ó minha
mãe o bem querida, de possuir esse... de possuir...
de possuir... (Pequena pausa) ó minha mãe o bem
quiser/ó minha mãe o bem... (cantando baixo, tentando se lembrar) ...possuir este tesouro, para dar
neste dia uma rica coroa de ouro/ Para dar-vos neste dia uma rica coroa de ouro.’ Jogava flor, rosa e...
o sino batia e as meninas desciam do altar, trepavam lá em cima. É. Mais não ficou bonito isso não.
Porque eu não cantei bem bonito... Parecia que eu
estava vendo a coroação.
É umas modinhas bonitas, que era um encanto que
eu cantava. Houve um mutirão de panha (colheita)
de café. E nós fomos apanhar café, de dia apanhando café. Depois teve a janta, teve muita coisa boa de
comer. Teve macarronada, frango, carne de porco,
carne de vaca, muita comida boa lá. Quando foi à
noite, foi o baile. Então, eu fui. Eu era solteira, e eu
cantava modinha... E o meu tio me dizia: ‘Nícia, você
tem que cantar’. E ali perto tinha um ponteador de
violão para gente cantar, ele ponteava. Às vezes, meu
namorado ponteava, no violão, e o velho Jorge, nesse tempo... Eu cantava modinha, cantava verso...
‘Num tenho medo do homem, nem do ronco que ele
tem/ O besouro também ronca, mas se ver, não é ninguém/ O besouro também ronca, mais se ver, não é
ninguém.’ Ah, o moço respondia assim para ela.
(Pequena pausa. Dona Onícia esforça-se para lembrar) ‘Não... só vocês vendo uma coisa... muito verso... Mais eu vou ver se eu lembro ao menos um.
(Pausa) ‘Não tenho medo da mulher e nem quando
elas estão dormindo/ Os olhos estão fechados e as
sobrancelhas bolindo/ Os olhos estão fechados e as
sobrancelhas bolindo’. Era como se fosse um desafio... Era... um cantava uma coisa e o outro respondia. É, é um desafio.
Só vocês vendo que boniteza! Até isso eu cantava,
eles ponteavam, era aquela boniteza! Cantava quase a noite inteira, eu dançava bastante. Depois aí,
meu tio mandava eu cantar um pouco. Os outros, às
vezes, estavam dançando para lá, dançando catira,
é... Que eu namorei um mocinho dessa casa, mais
ele... eu gostava mais dele do que ele de mim. É,
então, ele cantava moda de viola, sapateava, dançava catira. Era José..., meu cunhado, e o João. É, é...
nessa casa. Eu... preciso lembrar... Tomé, eles eram
os Tomé: José Tomé, Jonas Tomé, que é meu cunhado, esse José Tomé, casado com a minha amiga
e... e o... e o João Tomé. Esse João Tomé era o
mais novo e eu... eu namorava ele, mais é que... eu
gostava mais dele do que ele de mim. Outro cântico
era asssim: ‘Eva querida, quero ser o seu Adão/ Eva
querida, quero ser o seu Adão/ Dar-te-ei a minha
vida em troca... em troca de seu coração/ Eva querida, dava minha vida... dou a minha vida... em troca
de seu coração/ Eva querida...’
Se eu lembrasse de mais... eu precisava ter uma
pessoa que visse eu cantar, para eu lembrar...
É, e nós numa bancada assistindo (no teatro). Que o
papai levava nós e o povo gostava mesmo das modinhas. O povo cantava, batia palma, gritava, só
vendo. É... era muito bonita. E cada verso bonito
mesmo... e nós cantávamos, nós cantávamos um
verso, às vezes assim ali junto do pessoal, todas
moças, os moços, os chefes da casa, tudo ali, era
aquela boniteza, que era um respeito, que só a senhora vendo. Num saía nada... nada ruim, era lugar
de dançar. É o finado Zé Quim que, na mocidade
dele, em São Thomás de Aquino, ele morava na roça;
hoje, ele ficou pobre de fazer festa para amigos. Que
os bailinhos que ele fazia aí... lá ele fazia aqueles
bailes... Ele andava muito bem vestido e nesses bailes só ia quem estava na casimira, quem entrava
nesses bailes lá em São Thomás de Aquino. Só quem
tivesse na casimira! Quem não estivesse assim na
casimira, não entrava. E... ou senão, um terno... tinha uns ternos que existiam para ir naqueles bailes.
Isso é no tempo da mocidade do meu pai, do meu
cunhado, da minha cunhada. Como é que chamava?
Esqueço... Um tal de..., ele era músico em São
Thomás de Aquino, era maestro de música. Quan-
104
A CULTURA NA ESTEIRA
do tinha aquelas festas de igreja, os músicos cantavam, subiam as ruas cantando... faziam procissão...”
Os fragmentos dessas lembranças fornecem a matériaprima para o trabalho da memória. Ao mesmo tempo em
que os fios da memória vão sendo puxados, vêm os personagens, as cenas e o cenário, jorrados na sucessão-sobreposição de tempos e espaços. À medida que as lembranças
vão brotando dos subterrâneos da memória e se dirigindo à
superfície, aquilo que era, até então, nebuloso vai aos poucos assumindo formas nítidas com conteúdos multicoloridos. As rosas lançadas pelas duas meninas durante a coroação de Nossa Senhora, a casimira dos homens durante os
bailes como exigência dos bons costumes, a bailarina que
se equilibrava no fio de arame enquanto cantava a música
da moreninha, assistida por muitas pessoas, o baile da
seriema, a dança catira após o mutirão, as músicas ponteadas pelos violeiros, a insistência do tio para que ela cantasse,
o namorado que gostava pouco dela, a família dos Tomé,
manifestam a sociabilidade das pessoas daquele tempo, as
quais, por meio de suas lembranças, encarnam-se no tempo/
espaço presente. O passado assume diante do ouvinte uma
realidade tal que, no final de cada narrativa, ela se levantava, acenava, cantava, num esforço supremo, em razão de
seus problemas de saúde, e completava dizendo: “só a senhora vendo que boniteza que era ...”.
O mundo rural de dantes, as festas, a fartura, a sociabilidade entre parentes e vizinhos são reconstruídos pela memória individual da lembradora. Não obstante, apesar de
seu esforço, não consegue lembrar de tudo. Em determinados momentos, chega a dizer que, se houvesse alguém para
ajudá-la a lembrar, ela teria condições de cantar todas as
músicas. Ou ainda, se lamenta pelo fato de ter perdido os
almanaques, nos quais estavam escritas as letras das músicas. Também se entristece pelo fato de não possuir fotos
das pessoas dessa época. Um ponto forte de seu depoimento refere-se à comida, particularmente às quitandas. Observa-se que o ato de preparar a comida era social:
“Então, uma vizinha, chamada Afonsina, forneava
e ela mandava me chamar, para ajudar a enrolar
aqueles biscoitos... Bem do jeito que ela enrolava,
eu enrolava. Porque na minha casa, a minha mãe
era quitandeira, nós ajudávamos a mamãe, ela fazia
doce de quinze em quinze dias... A mamãe forneava
tudo quanto era qualidade de quitandas. Interessante que de sal só fazia... só fazia... biscoito. Mais tudo
era de doce! Meu pai gostava muito de tudo que é
doce. Fazia rosca, só rosca, aquelas roscas que a
senhora ia comer rasgava assim feito um embrulho,
DO
TEMPO
de... de macia. Rosca de dois fermentos... Então,
fazia bolo de farinha de trigo, fazia bolacha, que eu
adoro uma bolacha bem-feita em casa. Que ela fazia aquelas bolachas tão gostosas, que só a senhora
vendo, mamãe...! Fazia umas... Nossa vizinha, que
era mulher do delegado, fazia umas broinhas de fubá
feitas assim: quebra os ovos ali, bate bem, põe gordura ali, põe canela ali, uma meia dúzia de ovos e
bate bem.... bate batido com a mão mesmo, ali.
Depois ainda engrossava aquelas broinhas com o
fubá de milho, vai ficar aquelas broinhas desse tamanho (demonstrando), bem assadinhas, ficavam
macias, gostosas. Comia com bicarbonato..., a mamãe aprendeu fazer com essa mulher. Ela fazia e
mandava para mamãe uma biscoiteira cheinha daquelas broinhas. Tinha uma tal de broinha que faz
com manteiga de leite... gordura, era manteiga de
leite, muito gostosa. Fazia aquela porção de quitanda, que ela forneava de quinze em quinze dias. Lá
era casa de fazenda, tinha um forno muito bem-feito, muito grande... Ela... é... até hoje, é nisso que
eu estava vendo a casa e tudo que tinha lá: aquele
forno bem-arrumado...
Tinha moinho de moer milho para ter fubá... Nós
íamos trocar fubá lá, eu ia com a otra irmã mais nova
que eu. Aos domingos, às vezes, nós íamos passear
lá, a mulher era italiana, muito boa, ela cozinhava
só com cebola de cabeça. Ela fritava a cebola na
gordura para refogar a comida, a senhora acredita
que era uma comida tão boa que ela fazia, que eu
nunca vi mais o gosto daquela comida feita só com
cebola, gostosa demais. Nós jantávamos lá, nós íamos passear e jantar. Não deixava nós sairmos sem
janta: a mamãe, eu e minhas irmãs.. Então, ela também sempre ia passear lá na nossa casa, era... numa
fazendinha, era a casa que o patrão mandou papai
fazer e morar, criar os filhos. Lá nós moramos 11
anos naquela casa. Se plantou de tudo quanto foi
arvoredo. Primeiro o povo morava nas fazenda
num... tempo mesmo! Dava tempo de plantar... plantava laranja, plantava abacaxi e banana, mangueira,
e... e enchia aqueles pomares de mandioca, só vendo, aquela fartura! E agora, acabou tudo isso, não é
mesmo?”
Como bem afirma Halbwachs (1990:54), a memória é
individual e social. Quem lembra é o indivíduo. No entanto, a memória individual não está inteiramente fechada e
isolada. “Um homem, para evocar seu próprio passado, tem
105
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 15(3) 2001
freqüentemente necessidade de fazer apelo às lembranças
dos outros. Ele se reporta a pontos de referência que existem fora dele, e que são fixados pela sociedade.” As palavras dessa mulher evocam um mundo rural, cuja cultura se
assentava nas relações primárias, pessoais, de conhecimento mútuo. As festas, os bailes, o preparo da comida, com a
conseqüente distribuição entre os conhecidos, faziam parte
de relações de compromisso, lealdade, existindo como dádiva, na expressão de M. Mauss.
Antes da implantação das usinas canavieiras, quando
grande parte da população habitava essa região do Estado
de São Paulo, um dos traços culturais dos sitiantes era a
troca de produtos – como pedaços de carne de animais abatidos nos sítios, quitandas, doces, polvilho e pamonhas –
entre os vizinhos. Todos esses produtos eram considerados iguarias, especialidades que, doadas aos vizinhos,
seriam retribuídas, assim que eles as produzissem. Os costumes, assentados nas tradições, solidificavam as relações
sociais imprimindo a essas populações um modo de vida
com características bem-definidas. A sociabilidade, assentada basicamente na solidariedade, era o substrato para as
manifestações simbólicas de todo o grupo social. O cumprimento das promessas pode ser um dos exemplos dessas manifestações.
No dia 13 de dezembro era comemorado o dia de Santa Luzia, protetora dos olhos. A festa dessa Santa era
feita com base na coleta de donativos dos vizinhos. O
beneficiado da graça recebida percorria todos os sítios, levando consigo o quadro com a imagem da Santa,
ornado com flores de papel. Ao receber o pagador da
promessa, o morador o fazia entrar na casa, levando a
imagem a todos os cômodos, à medida que ia pedindo
a sua proteção. Em seguida, oferecia-lhe algo para beber ou comer e lhe entregava o donativo, que podia ser
em produtos ou dinheiro. No dia da festa, rezava-se o
terço com a presença de todos diante da imagem da
Santa. Após a celebração, distribuía-se a comida angariada com os donativos. As crenças, as manifestações
simbólicas individuais somente tinham sentido porque
eram compartilhadas por todo o grupo, e, mais importante, dele dependendo a sanção, para serem validadas
individual e socialmente. Pode-se perceber, portanto,
a importância do grupo para a vida material e simbólica do indivíduo. Nesse sentido, as lembranças de dona
Onícia são definidas pelo meio em que viveu, e, pour
cause, ela tanto queria que alguém viesse em seu auxílio para ajudá-la a lembrar, apesar de ter enxergado (sic)
“a casa, com o forno bem-arrumado!”.
Um outro ponto que merece ser destacado é a lembrança
do espaço. Os locais dos bailes, do teatro onde a bailarina
se equilibrava sobre o fio de arame, da procissão, da casa
que alojava o forno bem-arrumado, eram retratados com
muita nitidez não somente pela fala, como também pelos
gestos que apontam para a localização. Assim, vale a pena
inserir o depoimento de uma outra trabalhadora rural, também falecida, dona Durvalina (70 anos).
“Quando eu era católica, eu tinha muita fé, fé nos
Santos, em Jesus. Eu freqüentava muito as procissões. Na Semana Santa, havia a procissão dos homens que ia lá pelo estradão e procissão das mulheres que passava pela colônia aqui. Lá longe, as duas
se encontravam, lá na encruzilhada. Havia a separação por causa do encontro de Nossa Senhora com
Jesus na encruzilhada... Mas, agora, já acabou tudo,
há seis anos mais ou menos que não tem mais... também acabou a Folia de Reis. Antes passava a Folia
nas casas, agora, não passa mais, eu não sei por que,
mas acabou tudo...”
O estradão, a colônia, a encruzilhada, da mesma forma
que os lugares de dona Onícia, são imagens espaciais que
se definem como as marcas do grupo. Na verdade, há uma
simbiose entre espaços e grupos, construída pelas marcas
produzidas tanto por uns quanto por outros.
“Assim, não há memória coletiva que não se desenvolva num quadro espacial. Ora, o espaço é uma
realidade que dura: nossas impressões se sucedem,
umas às outras, nada permanece em nosso espírito,
e não seria possível recuperar o passado, se ele não
se conservasse, com efeito, no meio material que
nos cerca. É sobre o espaço, sobre o nosso espaço
– aquele que ocupamos, por onde sempre passamos,
ao qual sempre temos acesso, e que, em todo o caso,
nossa imaginação ou nosso pensamento é a cada
momento capaz de reconstruir – que devemos voltar nossa atenção; é sobre ele que nosso pensamento deve se fixar, para que reapareça esta ou aquela
categoria de lembranças”. (Halbwachs, 1990:143,
grifos nossos).
As reflexões desse autor são de extrema importância
para a compreensão da realidade dos trabalhadores rurais,
expulsos do campo e transformados em moradores das periferias das cidades. Como foi dito anteriormente, houve
um processo de desenraizamento cultural, em virtude da
perda dos substratos materiais para o alojamento das manifestações culturais. Nas cidades, ao terem os espaços
reduzidos aos limites da casa, esses trabalhadores perde-
106
A CULTURA NA ESTEIRA
ram as condições para as manifestações culturais de dantes. Dessa sorte, essas manifestações culturais, alojadas
nos subterrâneos da memória de cada um, são revivificadas
a partir da reconstrução desses espaços no nível do imaginário. “A imaginação não é apenas uma construção da
mente, é também o meio pelo qual os homens agem sobre
eles mesmos, uma ação autoplástica que adquire tanto mais
importância quando a ação aloplástica (transformadora da
realidade externa) se revela impossível. Com efeito, quando os homens não conseguem mudar o mundo... é toda
uma configuração imaginária que se transforma e tenta se
adequar às aspirações inconscientes” (Bertrand, 1989:29).
O processo de reconstrução do passado, ao levar em
conta esses elementos materiais e simbólicos da cultura,
atinge um conteúdo político, capaz de ser um importante
elo no conjunto de um projeto de transformação social. A
fim de acrescentar outros dados a essas reflexões, passa-se
à análise das formas de recriação cultural de uma das tradições mais importantes desses trabalhadores, a Festa de
Reis. De antemão, cabe lembrar que, em várias cidades
dessa região, todos os anos, as prefeituras locais patrocinam as Festas de Reis, que ocorrem no mês de janeiro, as
quais contam com a presença de várias Companhias de
Reisados não somente do Estado de São Paulo como também de outros Estados.2 Essas festas nas cidades se enquadram naquilo que Nora afirmou antes a respeito da problemática dos lugares. É necessário construir um lugar para
elas, pois já não mais existe o lugar das festas. Além dos
patrocínios financeiros, contam com a presença da mídia
televisiva e, algumas delas, já incorporaram elementos dos
sons modernos para atender aos gostos da cultura de massa urbana. Nos limites deste texto não será feita a análise
desses lugares, pois se optou por tecer algumas reflexões
sobre as Festas de Reis, que, embora sejam em número
bastante reduzido, são ainda realizadas pelos trabalhadores rurais nas cidades, cujas tradições são conservadas pela
recriação.
DO
TEMPO
canteiros de obras onde os andaimes nunca são desmontados porque a reconstrução cultural nunca termina”.
Durante a realização da pesquisa, Mulheres da cana:
memórias, 3 tomou-se conhecimento de duas Companhias
de Reis, existentes em Leme e Barrinha. No caso de Leme,
a maioria dos integrantes da Folia era proveniente da Fazenda Amália, localizada em Santa Rosa de Viterbo, pertencente ao Conde Matarazzo, que, no final da década de
60, foi expulsa juntamente com milhares de outros trabalhadores colonos, em razão de uma greve que, segundo os
resultados desta pesquisa, fora uma armadilha arquitetada
pelo proprietário dessa fazenda, com o apoio do regime
militar, então vigente (Silva, 1998). Com a expulsão, houve uma verdadeira diáspora para os municípios vizinhos,
onde os antigos colonos foram transformados em bóiasfrias e obrigados a viver nas cidades. Com o passar dos
anos, muitos dos antigos membros faleceram, enquanto
outros foram sendo incorporados. É preciso lembrar que
essa tradição é transmitida de pai para filho. Portanto, seu
desaparecimento foi ocorrendo em razão dos jovens, cada
vez mais, aderirem à cultura de massas. As entrevistas com
os antigos foliões revelam que os mais jovens não se interessam e, em virtude da bebida, muitos abandonaram a Folia
de Reis. Essa mesma situação foi encontrada em Barrinha.
Apesar de as letras das músicas diferirem, o sentido da Festa
de Reis é o mesmo: ela existe em função das promessas
feitas aos Santos para a obtenção de uma graça. Esse fato
está manifesto na bandeira da Folia, que se apresenta repleta de roupas de crianças, chupetas, laços de fitas, fios
de cabelos, fotografias de pessoas cujas graças foram
alcançadas. Esse simbolismo é representativo da recriação
contínua dessa tradição, apesar das mudanças havidas. Um
outro ponto em comum refere-se ao fato de os donativos
para a festa serem provenientes tanto da área urbana quanto da área rural. Isso significa que os integrantes da Folia
percorrem os dois espaços. A fim de aprofundar as reflexões sobre a recriação dessa tradição, serão apresentadas,
em seguida, a bricolagem feita pelas duas companhias, de
Leme e Barrinha.4
A RECONSTRUÇÃO DAS TRADIÇÕES
Em Leme (músicas gravadas durante o ensaio da Folia)
Em recente artigo, Burke (2001:11), ao comentar sobre
o livro A invenção das tradições (Hobsbawn e Ranger,
1984), afirma que, na realidade, não há propriamente uma
invenção das tradições e sim uma recriação ou mesmo uma
reconstrução, já que o que ocorre não é tanto a criação a
partir do nada, mas uma tentativa de bricolagem, de dar
novos usos a materiais antigos. Para esse historiador, a cultura é continuadamente recriada, “como uma espécie de
Música 1:
Deus lhe salve a casa santa/Onde Deus fez a morada/Onde mora o cálice bento /Com a hóstia consagrada/Os três Reis quando souberam/Viajaram sem
parar/Cada um trouxe um presente/Pro menino Deus
salvar.
107
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 15(3) 2001
Vou pedir a Nossa Senhora/Para ela abençoar
Música 2:
Nasceu o menino Deus/para ser nosso salvador/A
estrela do Oriente/Onde estão os três Reis Santos/
Vieram os três Reis Magos lá do Oriente/Seguiram
viagem pra encontrar o menino Deus/Cada um trouxe um presente/Em viagem ele seguia/Cada um levou um presente
Música 3:
Nessa hora verdadeira/Os três seguiram viagem/Na
chegada nessa casa/Lá no céu deu um clarão/Quando ele adormeceu/Lá no céu deu um clarão/Os anjos de lá desceu/Vou fazer a louvação/Pra fazer a
louvação/Vou pedir pro meu patrão/Pra fazer a louvação.
Reis chegou aqui com muita paz e alegria/Pra senhora peço licença/Pra entrar a Companhia/Reis
seguiu viagem com muita paz e união/Também peço
licença /Pra entrar os bastião/Deus te salve, casa
santa/Onde Deus fez a morada/Aqui mora cálice
bento/E a hóstia consagrada/Lá no céu tem três estrelas/Tem santo prestando atenção no tempo/Que
o menino Jesus nasceu/Do sagrado nascimento/Sagrado Nascimento/Onde devemos de adorar/Quando era onze horas da noite/Que os anjos veio rezar/
Espero o sino bater/E havia de se levantar/Nossa
Senhora sofredora/Sem ter parteira nem parto/Foi
virgem antes de Jesus nascer/E virgem depois do
parto/Os três Reis quando souberam/Que ia nascer
o menino Jesus/Arriaram seus camelos/E seguiram
sua profecia/E antes de sete anos/Fizeram em sete
dias/Deus menino podia ter nascido/Num lençol de
ouro fino/Para dar exemplo ao mundo/Ele nasceu
tão pobrezinho/Nasceu numa manjedoura/Onde boi
bento comia/Vinha vaca vaquejar/Vinha mula descobria/Maldição pegou na mula/Que nunca mais deu
cria/Os três Reis desceu do céu/Com o livro de São
João/Louvando Nossa Senhora/E a Virgem da Conceição/Quem é nascido em Belém/E batizado em
Jordão, cantador? (todos) O filho de Maria e afilhado de João/Pois Ave-Maria foi feito em Jerusalém/
Lá no céu cantava os Reis/E aqui nós canta também/De vinte e quatro pra vinte e cinco/Galo serra
anunciou/Que ia nascer Deus menino/pra ser nosso
Salvador/Os três Reis quando souberam/De viagem
lhe seguiam/prepararam os instrumentos/Pra fazer
saudação /Na hora do nascimento/Os três Reis foram guiados/Com a estrela que aparecia/Até che-
gar em Belém/Ela foi fazendo guia/Deus menino
podia ter nascido/Num lençol de ouro fino/Para dar
exemplo ao mundo/Ele nasceu tão pobrezinho/Nasceu numa manjedoura/Onde boi bento comia/Vinha vaca vaquejar/Vinha mula descobria/Maldição
pegou na mula/Que nunca ela deu cria/Ave-Maria
foi feito em Jerusalém/Lá no céu cantaram os Reis/
E aqui nós cantamos também. Pra senhora peço licença/Já fizemos louvação/Os três Reis que lhes
abençoam/A senhora e a família.
Os ritos são de louvação, saudação, esmola, agradecimento e de encontro das duas bandeiras. O depoimento do
embaixador revela traços muito importantes sobre as dificuldades encontradas, dentre elas, o fato de as pessoas não
os conhecerem, o que revela a mudança de sociabilidade,
fato que, muitas vezes, lhes impede de entrar nas casas.
Além disso, as dificuldades de improvisação, em razão do
alcoolismo de alguns participantes. Ao mencionar essas
dificuldades, lembra de como tudo “era muito mais bonito
antes”, ao se referir à fé nos Santos Reis, em razão da cura
de pessoas doentes. Reporta-se também ao fato de que,
antes, o número de pessoas que participavam era bem maior
do que nos dias de hoje.
“Na Usina Amália era aquela carreira de casa, que
a turma entrava de tarde. A coisa mais bonita é que
quando batia numa colônia, outra companhia chegava e pegava de lá pra cá. Era o encontro de bandeira! Nossa Senhora, era gente igual formiga! Chegava o encontro de bandeira. Coisa linda era o
encontro de bandeira!! Um embaixador canta de lá,
e o outro embaixador canta daqui. Vão cantando, vão
cantando, aí vai até trocar esmola. Aí, cruza as espadas, cruza as bandeiras, trocam as esmolas... E aquela
segue o destino dela e a outra segue no destino dela
novamente. E hoje tá difícil, tá difícil!
Cita vários casos de doentes que, pela fé, conseguiram a
cura. Para provar que a fé é muito recorrente, afirma que,
no final do mês de dezembro, é necessário trocar a bandeira
porque ela fica muito pesada em função do número de objetos presos pelos fiéis, porém nunca jogar fora os objetos.
Eles são remetidos à sala dos milagres da Basílica de Nossa Senhora Aparecida da cidade de Aparecida. Vale a pena
citar um dos casos de cura relatados:
“Igual tem uma igrejinha que chama Bonsucesso,
na Amália, nós cantamos lá todo ano. Aí, chegamos
lá, fomos chegando perto da casa, mas um molequinho desse tamanhozinho assim, saiu correndo
fardado... Era um bastiãozinho de Reis: capacete,
108
A CULTURA NA ESTEIRA
a máscara dele pequena e coisa e tal... a roupa pintada, (...) na mão. E aquele molequinho juntou com
nós. Aquele palhacinho juntou com nós. Chegamos
na casa do homem, vamos cantar. E cantando ali,
cantando... Aí, paramos de cantar e perguntamos pro
homem o que significava aquilo. ‘Olha, isso aí, eu
fiz uma promessa pra esse molequinho que ele tinha paralisia infantil... só que eu fiz uma promessa
pros três Reis Santos: ou vinha na minha casa, ou
não vinha, sete anos ele tinha de vestir isso. E cada
ano é um vestuário. Cada ano é uma máscara, cada
ano é um capacete, cada ano é um pano de roupa.
Então, vocês estão vindo aqui, ele está indo encontrar com vocês.’ Pra nós aquilo foi uma alegria! Uma
alegria! Quer dizer que ele fez um pedido pros três
Reis Santos e o molequinho sarou”.
DO
TEMPO
ia capturando a palavra desgarrada, criando novos significados, transformando realidade em sonho, sonho em realidade; música que ia acompanhando a bandeira para outro pedaço de rua onde haveria o encontro com uma outra
bandeira.
Esse é o momento de recriação, de bricolagem de tradições. Duas bandeiras. A dos Santos Reis, aquela que saiu
pelo mundo, aquela que ensinou o povo a sair pelo mundo.
A de Nossa Senhora Aparecida, aquela que não pode sair
pelo mundo. Aquela que não tem foliões. Aquela que tem
anjinhos, cumpridores de promessas e portadores de fé. A
bandeira de Nossa Senhora Aparecida é uma espécie de
convidada para a festa. O encontro das bandeiras simboliza um momento bíblico posterior, momento do encontro
de Maria e Jesus durante a Via Crucis. Nesse momento,
houve uma superposição de tempos. Nossa Senhora
Aparecida, negra, padroeira do Brasil, toma o lugar de
Nossa Senhora, mãe de Jesus de Nazaré. Há uma certa antecipação, de antevisão. Uma bandeira que representa o
nascimento do Menino Jesus e outra que representa o encontro de mãe e filho no Calvário. Espécie de destino antecipado. Antevisão de um trajeto. Dramatização da vida e
da morte, do começo e do fim, permeado pela fé:
“Na demora dos três Reis/ Herodes se indignou/chamou seus secretários e seu decreto, decretou/ Que
seguisse pra Belém/e que lá fosse matando/e que
matasse menino homem/ até a idade de dois anos”.
Mais uma recriação. Em geral, as mulheres não são admitidas na Folia. Em se tratando de promessas, elas são
admitidas como acompanhantes, sem direito a tocar instrumentos e nem cantar. O pretexto dessas proibições é
proteger as mulheres dos comentários sobre sua reputação.
Os mestres justificam a restrição afirmando que os Reis
Magos não trouxeram as mulheres consigo. Outros afirmam que nenhuma mulher visitou o presépio de Jesus. A
presença de mulheres desviaria o sentido da dramatização.
(Porto, 1982).
Durante a apresentação, compareceram duas mulheres,
uma com o pandeiro e outra que participava do coro, cujas
presenças transgrediam as normas masculinas. Por outro
lado, a bandeira da Santa, junto da bandeira dos Santos Reis,
era mais um sinal da recriação dessa tradição por esses trabalhadores.
Depois do encontro das duas bandeiras, os participantes
se dirigiram ao local da festa, uma barraca montada no meio
da rua, onde havia sido erguido um altar para acomodá-las.
À medida que os cânticos prosseguiam, os presentes beijavam as bandeiras e, muitos deles, pregavam chupetas, foto-
Em Barrinha
Tal como em Leme, a Companhia de Reis de Barrinha
tem também sua origem rural. O embaixador atual já o era
antes de vir para a cidade. Ao descrever a sua participação
na Folia, ele lembra que seu pai e seus irmãos passaram a
fazer parte dela em razão da doença de sua mãe, paralítica
em função do reumatismo. Num determinado dia, quando
uma Folia foi até sua casa, seu pai pedira aos Reis que a
curassem e, se isto ocorresse, ele e os filhos fundariam uma
companhia. Segundo ele, no dia seguinte, após ter beijado
a bandeira, a mãe deixou a cama e começou a caminhar.
Desde então, ele cumpre a promessa.
Durante a pesquisa de campo, foi possível acompanhar
a preparação da Festa de Reis, realizada na cidade, na rua
onde reside o mestre. Em sua casa, foi servido o almoço,
realizado com as contribuições conseguidas durante a peregrinação da companhia na área rural e também na urbana. Depois do almoço, os foliões dirigiram-se à casa da
festeira, onde estava guardada a bandeira. A dramatização
se iniciava. Os foliões vestiram as fardas, afinaram os instrumentos e cantaram os ritos de louvação.
A música mais parecia um lamento. Lamento que ia
unindo espaço e tempo, mundo de antes e de agora, corpo
e alma, sentimento e dor. Música cheia de palavras reveladas, que parecia semear em cada coração uma mensagem
para não sucumbir ao pranto. No momento em que a bandeira, segurada pela festeira, deixava a casa, ela, muito
emocionada, chorava enquanto olhava fixamente para as
imagens dos Santos. Aos poucos, a música parecia invadir
a alma, provocando a calma, a concentração; música que
109
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 15(3) 2001
grafias, flores, fitas nas bandeiras. Esse ritual continuou até
o cair da tarde, quando foi servido o jantar, e, em seguida,
houve o baile. Em todos os momentos dos ritos, a música
mais parecia um lamento. Um lamento que, simultaneamente, sintetizava um tempo perdido no passado e um vir-a-ser
fixado na imagem refletida na bandeira da Folia. Imagem
que transcende o mundo destradicionalizado. Imagem fixada na busca da recriação de uma tradição. Um possível real
e transcendental.5
A passagem de um modo de vida a outro, como foi visto
com esses exemplos concretos, não se faz com a destruição
de todos os traços culturais. Na verdade, há um processo
de destruição-recriação continuado. Recentemente, na cidade de Altinópolis/SP, durante a Festa de Reis, patrocinada pela prefeitura local, os foliões percorriam as casas, cantavam os ritos de louvação e da esmola, a fim de angariar
donativos para o próximo ano. Num desses momentos, quando solicitavam a entrada numa certa casa, o morador lhes
informou que a dona da casa havia falecido há alguns meses. Em vista disso, os palhaços retiraram as máscaras, ajoelharam-se diante de uma vela acesa, enquanto o coro pedia a salvação da alma daquela senhora, havendo, portanto,
a improvisação dos ritos de louvação. Todas as pessoas
presentes da casa, ajoelhadas, seguraram a bandeira participando da celebração. Pôde-se observar que, naquele instante, recriou-se uma sociabilidade, baseada na religiosidade e nos autos de fé entre os foliões e as pessoas da casa.
Os demais ritos se referiam ao ano anterior, momento em
que, naquele mesmo espaço, a senhora havia recebido a
bandeira. Parentes e foliões celebraram a ausência daquela
mulher, o tempo passado, por meio da comunhão de valores, que ainda persistiam, baseados na memória de cada um.
A presença da Folia naquele espaço representou para a família o detonador das lembranças, até então adormecidas,
da participação nas Festas de Reis em outros tempos.
perceber que a cultura rural não apenas não desapareceu,
como assumiu novos significados, num processo continuado de bricolagem. Ademais da cultura massificadora veiculada sobretudo pela mídia, os rodeios praticamente em
todas as cidades do interior paulista caracterizam-se, agora,
como as festas dominantes, que atraem pessoas de todas
as camadas sociais, inclusive trabalhadores rurais. Os rodeios representam a descaracterização da cultura de antes. O modelo, copiado dos Estados Unidos, possui estilo
próprio daquele país: roupas, música country, comidas e
assim por diante. Contudo, trata-se de uma festa transformada em mercadoria, da qual participam somente aqueles que podem pagar o alto preço dos ingressos. Não é
mais a festa definida como valor de uso, decorrente da
sociabilidade primária, da fé nos santos e das promessas
realizadas. Os rodeios caracterizam-se pelas relações de
estranhamento, pois reúnem pessoas de vários locais, e
pela mercantilização da festa. Nesses locais, pode-se presenciar aquilo que W. Benjamin definiu como pobreza de
experiência, uma nova espécie de barbárie, de uma nova
miséria, referente à interioridade (1987:115 e ss.).
Quanto à festa de Reis, os depoimentos e o conteúdo
das músicas revelam, ao contrário, uma forma de ação que,
no fundo, é um valor, um conjunto de princípios. A mudança da dramatização dos palhaços, diante da notícia da
morte da mulher, expressa a concepção da morte como algo
valorizado e não banalizado como atualmente. Toda a encenação, ao girar em torno da morte, revivificou a presença, a vida por meio da memória, havendo o entrelaçamento
entre vivos e mortos, por meio do simbolismo da bandeira.
E. Bosi (1987), ao analisar a memória de velhos, conclui
que a memória se constitui numa espécie de ação, de algo
vivo, transformador.
As andanças dos foliões, o encontro de situações inusitadas, como a do menino portando a farda da Folia em cumprimento à promessa de seu pai, a ressignificação dos
cânticos, como a presença da mula, que, em razão de sua
atitude, ao descobrir o menino Jesus, selou seu destino de
eterna esterilidade, a presença de mulheres na Folia, o encontro da bandeira de Santos Reis com a de Nossa Senhora Aparecida, composta por crianças, vestidas de anjos, em
vez de duas bandeiras de Reis, a realização da festa na rua,
representam a recriação continuada dessa tradição. E mais
ainda. Não se trata apenas da matéria bruta dessa tradição,
porém da recriação do fato, modificado, mediatizado, passando pelo processo da mimese, isto é, algo que passa pela
ligação entre rememorar e reinventar, entre memória e
imaginação e imaginação e desejo (Meneses, sd.).
CONCLUSÃO
Ao longo deste texto, procurou-se, a partir de evidências empíricas, mostrar a recriação da cultura dos trabalhadores rurais, cognominados bóias-frias, nas cidades, levando-se em conta a recriação da cultura em dois
momentos, ou seja, como lugar sediado na memória individual e social e como tradição. Apesar das profundas
transformações sociais, políticas, econômicas e espaciais,
ocorridas nestas últimas décadas, que afetaram profundamente o modo de vida do mundo de antes, sem contar o
domínio hegemônico da cultura de massas, foi possível
110
A CULTURA NA ESTEIRA
No que se refere à memória como depositária da cultura,
pode-se pensar que se trata de uma memória utópica, de um
tempo sem dificuldades, sem conflitos, já que um mundo de
fartura é longamente lembrado, sem contar a boa convivência entre seus membros. Seria apenas o saudosismo de um
tempo que não volta mais ou uma nostalgia romântica, ou
ainda a idealização do passado? Muitos autores já demonstraram que a memória é seletiva e que o silêncio é uma forma de resistência e não de esquecimento (Pollak, 1989).
Durante a entrevista, por muitas vezes, d. Onícia, ao se referir rapidamente ao tempo presente, afirmou que as dificuldades da vida “levam a gente a esquecer”. Em relação ao tempo passado, sua biografia revela que há momentos cuja
intensidade da lembrança é muito forte, ao passo que outros,
simplesmente, não são tocados. Embora não tenha sido objetivo deste texto analisar a história de vida dessa trabalhadora rural, os fragmentos de seu relato, no início apresentados, são muito fecundos para a compreensão de um
espaço-tempo que já não mais existe. Os ingredientes utópicos da narrativa – manifestos numa “boniteza, que só a senhora vendo”– representam uma mistura de imaginação, ficção, desejo, enfim, um irreal que constitui o elemento fundante
da realidade vivenciada num tempo passado, porém presentificado. Ao trazer para o presente aquelas imagens adormecidas da cultura, a narradora revive-a com adornos, flores
multicoloridas, casemiras, vestidos feitos por uma costureira muito famosa em Santo Thomás de Aquino, bolos, broas,
formando um caleidoscópio de imagens, músicas e danças,
cujos personagens, embora mortos, foram renascidos pela
trama da narrativa. Assim sendo, a memória, guardiã da cultura, revelou, a partir da seleção feita pela narradora, sua forma
superior, a estética, num verdadeiro ritual de transfiguração,
que não se comprimiu nos limites das lembranças individuais, mas retraduziu um contexto sociocultural (que não mais
existe?) até então adormecido, tal qual a poesia de d. Iracema:
“A Vida de Uma Bóia-fria
Iracema: Nasci em 31-7-45, eu sou a quarta da família, sou filha de um sertanejo, nasci no sertão, até
os 13 anos era uma vida muito linda, não enxergava
perigos, não tinha medo, não tinha ilusões, nós éramos muito felizes, nós planejávamos passeios, para
a mata levávamos um facão para marcar caminhos,
um saco para trazer frutas silvestres, nós conhecíamos todas as frutas e nós comíamos raízes, ou chupávamos o caldo e conhecia pela folha, bebia água
de urtiga ou de taguara, sabia orações para não encontrar com cobras, procurava mel de várias espé-
DO
TEMPO
cies bem como mirim, tichiguana (sic), irapuã, jataí,
e outras que davam debaixo da terra, conhecia o
nome das madeiras de lei, também as que eram boas
para queimar e para fazer casa e que não apodrecia
fácil. As frutas eram demais, umas mais gostosas
que as outras, uvaia, pitanga, cereja, amora, a branca era melhor ainda. O broto era remédio, vacum,
arretia (sic), sete-capote, gavejú, pinhão, banana-debugre, batata, pepino-de-veado, bago-de-raposa,
jaracatiá, sem contar os cocos e palmitos. As abelhas Europa eram nossas amigas. Eu subia nas árvores mais altas para disputar quem conseguia subir mais alto ou pegar uma fruta, que estivesse na
ponta da árvore...”
Poder-se-ia perguntar: Onde está o presente (n) A vida
de uma bóia-fria?
NOTAS
E-mail do autora: [email protected]
1. As pesquisas realizadas durante este tempo analisaram, num primeiro momento, o processo de constituição do proletariado agrícola da região de Ribeirão Preto, levando-se em conta a articulação entre categorias, classe, gênero, raça/etnia
e migrantes temporários. Em virtude do avanço tecnológico atual, definido pelo
descarte de milhares de trabalhadores, a investigação tem se voltado para os estudos de memória e a precariedade dessa força de trabalho.
2. No mês de janeiro de 2001, a prefeitura de Ribeirão Preto/SP, por meio da
Secretaria da Cultura, destinou uma verba para a apresentação de 50 Companhias
de Reis, provenientes de cinco Estados: Rio de Janeiro, Paraná, Bahia, Minas
Gerais, além do Estado de São Paulo. Cinco das Folias eram da própria cidade.
Segundo alguns entrevistados, essa tradição está desaparecendo em razão do desaparecimento dos foliões que se entregaram ao alcoolismo. Na cidade de
Altinópolis/SP, todos os anos acontece o encontro das Companhias de Reis, principalmente daquelas provenientes de Minas Gerais, que dura dois dias e tem o
apoio da prefeitura local. (Folha de S.Paulo, 28/01/2001).
3. Esta pesquisa contou com o auxílio financeiro da Fapesp e a concessão de bolsas pelo CNPq. Abrangeu o estudo de memórias com trabalhadores e trabalhadoras rurais da região de Ribeirão Preto/SP. Foi possível recuperar, por meio da
memória como metodologia, a história do mundo do trabalho rural de mais de
meio século dessa região (Revista Fapesp, fev. 2001).
4. Por definição, a Folia de Reis é uma festa cristã que lembra a visita dos três
reis magos – Gaspar, Melchior e Baltazar – a Jesus, em Belém, quando levaram
presentes como ouro, incenso e mirra. No Brasil, a festa foi trazida pelos portugueses na época colonial. Um grupo de pessoas, com homens representando os
três magos, vai de porta em porta nas casas, cantando e acompanhado de viola,
cavaquinho, pandeiro, caixa, representando pequenas peças teatrais em troca de
refeições e esmolas, que são utilizadas na Festa de Reis no dia 6 de janeiro. Geralmente, o grupo anda à noite e canta nas portas das casas, acordando seus moradores. A Folia de Reis é composta de três grupos: o bandeireiro, os palhaços e
o coro. Todos são dirigidos pelo mestre, que é a pessoa mais importante da Folia,
sendo também conhecido como embaixador. É o mestre quem improvisa os versos a serem cantados. O contramestre é o respondedor. Sua função é comandar o
coro. Há também o ajudante de respondedor, que equivale ao tenor, o requinta,
que é a voz mais característica de uma Folia. Entra em resposta ao último verso
de uma Folia. O bandeireiro tem a função de carregar respeitosamente a bandeira, o maior símbolo da Folia. Apresenta-a ao chefe da casa que a leva a todos os
cômodos, enquanto a Folia agradece e recebe os donativos. A bandeira é a representação dos três reis. Ela vai sempre à frente, seguida pelos representantes dos
pastores que seguiam os Reis Magos. Os palhaços, com suas danças, representam o momento de distrair as tropas de Herodes, enviadas para matar o menino
Jesus. O coro é constituído por tocadores de instrumentos e pelos cantores. As
111
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 15(3) 2001
roupas dos foliões são chamadas fardas. O trajeto de uma Folia é definido pelo
mestre. A dança é o cateretê e o balanceado.
BURKE, P. “Bricolagem de tradições”. Folha de S.Paulo, Cad. Mais, 18/03/2001.
5. Tratando-se de um bairro de trabalhadores rurais, muitas pessoas apenas se
mantiveram às portas de suas casas, enquanto os foliões passavam. Durante a
celebração no altar improvisado, também não era grande o número de participantes. Inquirido sobre as razões da não-participação dessas pessoas, o mestre disse
que muitas delas, ao aderir às seitas dos pentecostais, eram proibidas de participar dos rituais católicos. Quanto aos jovens, muitos deles consideravam essas
festas estranhas aos sons e ritmos veiculados pela cultura de massa, principalmente a televisiva, e, por isso, não consideravam que a festa era deles, embora a
observassem a distância.
HALBWACHS, M. A memória coletiva. São Paulo, Vértice, 1990.
FOLHA DE S.PAULO. C-5, 28/01/2001.
HOBSBAWN, E. “A invenção das tradições”. In: HOBSBAWN, E. e RANGER,
E. (orgs.). A invenção das tradições. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1984.
MENESES, A.M. “Memória: matéria de mimese”. In: BRANDÃO, C.R. (org.).
As faces de memória. Campinas, CMU, s.d.
NORA, P. “Entre memória e história. A problemática dos lugares”. Projeto História. São Paulo, v.10, dez. 1993.
POLLAK, M. “Memória e esquecimento”. Estudos Históricos. Rio de Janeiro,
v.2, n.3, 1989.
PORTO, G. As Folias de Reis do Sul de Minas. Rio de Janeiro, Funarte: Instituto
Nacional do Folclore, 1982.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
REVISTA FAPESP. São Paulo, n.61, jan.-fev. 2001.
BENJAMIN, W. “Experiência e pobreza”. In: BENJAMIN, W. Magia e técnica
(Obras escolhidas). 3a ed. São Paulo, Brasiliense, v.1, 1987.
SILVA, M.A.M. “A cidade dos bóias-frias”. Travessia. São Paulo, CEM, ano
VI, n. 15, jan./abr.1993.
BERTRAND, M. “O mundo clivado – a crença e o imaginário”. In: SILVEIRA,
P. e DORAY, B. (orgs.). Elementos para uma teoria marxista da subjetividade. São Paulo, Vértice, 1989.
_________ . “Silêncio e medo nas encruzilhadas da violência”. X Congresso
Internacional da IOHA. Anais... Rio de Janeiro, Cepedoc, v.1, 1998.
_________ . Errantes do fim do século. São Paulo, Edunesp, 1999.
BOSI, E. Memória e sociedade. Lembranças de velhos. São Paulo, Edusp, 1987.
112
Download

São Paulo em Perspectiva, vol.15 n.3 – Cultura