ID: 47519397
06-05-2013
Tiragem: 41267
Pág: 45
País: Portugal
Cores: Cor
Period.: Diária
Área: 19,69 x 22,89 cm²
Âmbito: Informação Geral
Corte: 1 de 1
Sobre Rompuy, Sampaio
e Walesa no Estoril
“O
João Carlos Espada
Cartas de Varsóvia
Estoril foi sempre um
lugar de acolhimento de
dissidentes, um lugar de
encontro entre pontos
de vista diferentes e,
por isso, de alargamento
de horizontes, mesmo
durante os tempos
sombrios e acanhados
do antigo regime”. Mais
ou menos com estas palavras, que cito
de memória, Carlos Carreiras, presidente
da Câmara Municipal de Cascais, abriu
na semana passada a terceira edição das
Estoril Conferences. Durante quatro dias
intensivos, tivemos oportunidade de ouvir
pontos de vista diferentes, vindos dos mais
variados pontos do globo, com as mais
variadas inclinações políticas. Foi uma
festa de debate de ideias, sem obediências
predefinidas — realmente rara entre nós,
realmente herdeira do melhor espírito de
abertura do Estoril.
Ensaiar uma síntese do que se passou seria
contrariar esse espírito de abertura. Não
sei fazer essa síntese, não sei se haverá uma
síntese. Ouvimos vozes diferentes, ouvimos
respirar a liberdade de crítica e a liberdade de
opinião. E cada um terá diferentes registos do
que se passou por lá.
Eu registei, por exemplo, a resposta de Van
Rompuy, presidente do Conselho Europeu,
a uma pergunta de Ricardo Costa sobre o
facto de um reputado economista português
(presumo que João Ferreira do Amaral)
defender a saída de Portugal do euro. Rompuy
respondeu enigmaticamente dizendo que ele
e o seu pai eram economistas e que sempre
houve muitas opiniões entre os economistas.
Mas que o objectivo fundamental do euro não
era económico nem monetário, e sim político:
a construção de uma união política europeia.
Francamente, acho uma pobre resposta,
para dizer o mínimo. O senhor Rompuy não
é presidente da zona euro, mas do Conselho
Europeu, o qual reúne 27 países, 10 dos quais
não estão na zona euro. Está simplesmente a
exorbitar as funções para que foi mandatado
democraticamente ao identificar o projecto
europeu — que deve representar — com o
projecto do euro, que apenas abrange uma
parte das nações que ele representa.
Por outras palavras, o senhor Rompuy
não deveria ter assumido uma posição
vanguardista — más línguas diriam autoritária.
Deveria, isso sim, ter dito que a decisão
sobre essa matéria cabe ao Parlamento e aos
eleitores portugueses, os quais decidiram
voluntariamente aderir ao euro e devem ser
livres de sair do euro se assim o desejarem.
Muito mais estimulante foi, em meu
entender, a posição de Jorge Sampaio —
que falou noutra sessão das conferências,
juntamente com Anthony Giddens.
Começou por dizer que, em sua opinião,
sair do euro era impensável para Portugal
e que preferia que o assunto nem sequer
fosse equacionado. Mas, simultaneamente,
sustentou que o projecto do euro não
poderia ter sucesso com os níveis actuais de
desemprego e a legítima quebra de confiança
dos eleitores em relação ao euro.
Este é o ponto de partida para qualquer
discussão séria sobre o euro e a crise actual:
é preciso reconhecer que os alarmantes
níveis de desemprego na zona euro são
insustentáveis; é preciso reconhecer que
sistematicamente aumentar impostos e
diminuir pensões para os que já estão
reformados não é aceitável numa sociedade
de pessoas livres; é preciso reconhecer que a
receita actualmente seguida na zona euro é
insustentável.
É também preciso reconhecer que as
justificações tecnocráticas para estas
políticas estão esgotadas. “When facts change,
I change my mind. What do you do, Sir?” —
estas são as famosas palavras de Keynes
que deveriam ser recordadas aos nossos
tecnocratas e ao senhor Rompuy.
A frase de Keynes tem uma profunda
dimensão filosófica e política, qualquer
que seja a nossa opinião sobre as propostas
específicas de Keynes (e a minha é
parcialmente crítica). A frase de Keynes
exprime uma prioridade dos factos sobre
as teorias — as quais, como Karl Popper
sublinhou sempre, devem ser testadas
pelos factos, em vez de os factos serem
“ajustados” para agradar às teorias. E
exprime uma prioridade democrática sobre
os visionários tecnocratas: estes devem
poder fazer experiências com o seu dinheiro,
mas não devem ser autorizados a abusar de
experiências com o dinheiro dos outros, dos
contribuintes e dos pensionistas.
Lech Walesa exprimiu no Estoril esta
capacidade de pensar fora dos esquemas
politicamente
correctos aceites
pelos tecnocratas.
Embora tivesse
evitado a questão
do euro, exprimiu
com vigor as simples
convicções de um
homem de bem que
se atreveu a desafiar
um estado de coisas
que parecia imutável.
E que continua a
surpreender-nos com
apelos ao sentido
de responsabilidade
e dever, numa
atmosfera dominada
por ausência de
regras de conduta
voluntariamente
aceites.
Teria sido uma boa companhia a Lech
Walesa no Estoril a voz da sua antiga parceira
na defesa das pessoas comuns — Margaret
Thatcher. Foi com uma citação de Thatcher
que Clara de Sousa encerrou eloquentemente
as conferencias do Estoril. E é a Margaret
Thatcher que voltarei na próxima semana, a
propósito da sua biografia por Charles Moore,
que acabou de ser publicada em Londres.
Foi uma festa
de debate de
ideias, sem
obediências
predefinidas —
realmente rara
entre nós
Professor universitário, IEP-UCP
e Colégio da Europa, Varsóvia.
Escreve à segunda-feira
Download

Sobre Rompuy, Sampaio e Walesa no Estoril