Folia de Rua em Arapiraca - Alagoas
José de Souza Gomes Junior (1) Geraldo Majela Gaudêncio Faria (2)
(1) Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Dinâmicas do Espaço Habitado da FAU, UFAL,
Brasil. E-mail: [email protected]
(2) Professor, Doutor do Programa de Pós-Graduação em Dinâmicas do Espaço Habitado da FAU,
UFAL, PUCRS, Brasil. E-mail: [email protected]
Resumo: Folia de Rua é o carnaval fora de época que acontece em Arapiraca – Alagoas. É um
evento anual que acontece há mais de uma década em certas ruas da cidade causando um contraste
de configuração e de uso quando comparado com as situações da rotina cotidiana. Assim, surge uma
indagação sobre como esse modo de apropriação, ainda que extraordinário, pode exercer alguma
influência sobre a forma do espaço público. Procedeu-se a uma pesquisa documental e bibliográfica
para a caracterização do evento assim como a observações nas ruas em que o mesmo é realizado
para se comparar as apropriações feitas nas ruas pelas pessoas em um dia cotidiano com as do dia
do evento. Chegou-se, então, à conclusão que, a partir da permissividade relacionada com o
fenômeno em questão, ligado ao carnaval, a distinção entre público e privado é reconfigurada por
um breve período, o que altera modos de apropriação do espaço: exclusivamente neste dia, rua e
calçada viram um único meio de passagem com novas funcionalidades.
Palavras-chave: Folia de Rua; Usos; Espaço Público.
Abstract: Folia de Rua is the off-season carnival that takes place in Arapiraca - Alagoas. It is an
annual event that takes place for more than a decade in certain city streets causing a configuration and
use contrast when compared to the situations of everyday routine. Thus arises a question about how
this mode of appropriation, yet extraordinary, can exert some influence on public space. There has
been a documental and bibliographic research to characterize the event as well as observations on the
streets in which it is performed to compare the allocations made in the streets by people on a daily
date with the day of the event. This has resulted, then, to the conclusion that, from the permissiveness
related to the phenomenon in question, linked to the carnival, the distinction between public and
private is reset for a short time, what amending the space appropriation modes: only this day, street
and sidewalk become a single through passage with new features.
Key-words: Street festivals; Uses; Public Space.
1. INTRODUÇÃO
A Folia de Rua, o carnaval “fora de época” da cidade de Arapiraca, é um evento cíclico que
acontece há mais de uma década. Desde então, faz parte do calendário cultural de eventos da
cidade. Foi inicialmente idealizada pelo “Candeeiro Aceso”, uma Organização NãoGovernamental (ONG), e pela Unimed Metropolitana do Agreste. Em seguida passou a ter o
apoio da Prefeitura de Arapiraca. Hoje, também é organizado pela Secretaria Municipal de
Cultura e Turismo, recebendo apoio da Liga de Blocos de Arapiraca e empresas locais. A
Folia de Rua busca se integrar com a comunidade proporcionando entretenimento em uma
das maiores prévias carnavalescas do estado de Alagoas1.
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Eventos similares ocorrem também em Maceió e Penedo.
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O número de blocos participantes vem aumentando desde o início do evento. Cada um deles
traz a sua banda de fanfarra ou batuque, sem o uso de equipamentos eletrônicos ou
amplificadores proibidos pelo edital do evento. Em 2015, saíram às ruas trinta blocos
carnavalescos que, concentrando-se na Avenida Ventura de Farias, desfilaram pela rua
Miguel Correia Amorim (antiga Avenida Norte), no bairro do Baixão, finalizando no Lago da
Perucaba, um dos cartões-postais da cidade (Figura 1).
FIGURA 1 – Percurso realizado pelos blocos. Fonte: GoogleMaps
Percebe-se que a rotina da sociedade individualizada, na qual indivíduos e grupos tendem a
se distanciar cada vez mais uns dos outros - o que sugere uma segregação social cada vez
maior -, neste momento do extraordinário dentro da cidade, esse fenômeno do distanciamento
com a sua dinâmica e determinações transforma parte da população em seres coletivos, numa
forma de organização menos rígida onde se é grupo ou multidão (DAMATTA, 1997).
A configuração dos espaços de uso público pelos indivíduos é de grande importância para a
formação da sociedade na medida em que é neles que usualmente se constitui a arena pública
na qual os indivíduos travam relacionamentos entre si para o desenvolvimento de um certo
tipo de sociabilidade de posicionamento sobre os problemas da existência (FARIA, 2002). A
cidade de Arapiraca tem vários espaços de uso público que são utilizados pela população para
essa finalidade. Os parques e praças da cidade proporcionam espaços para o lazer,
contemplação e encontros, mas é na rua que se pode observar a forte apropriação que a
população exerce na arena pública. Esta apropriação se dá, extraordinariamente e em ciclos
determinados, como festividades ou cerimoniais - cívicos (cortejos) ou religiosos (procissões)
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- que a cidade oferece a si mesma. Assim, elas acontecem por iniciativa da população em
ocasiões específicas do ano, como no carnaval com os blocos de rua, ou, conjunturas que
ensejam manifestações de demandas por melhorias na cidade ou por direitos que não são
tratados devidamente pelos gestores públicos. Em todos os casos, percebe-se a interação entre
os indivíduos. É nelas que a sociabilidade se atualiza, no momento em que todos estão nas
ruas participando de uma atividade em conjunto, pois, como disse Hanna Arendt (2001, p.
31), “Nenhuma vida humana, nem mesmo a vida do eremita em meio à natureza selvagem, é
possível sem um mundo que, direta ou indiretamente, testemunhe a presença de outros seres
humanos”.
Nessas ocasiões excepcionais, fica clara uma diferenciação do uso cotidiano e rotineiro da rua
pela população que se apropria do espaço em um paradoxo numa organização
“desorganizada”, pois o espaço deixa de ser utilizado como em um dia “normal” fornecendo
uma liberdade à brincadeira: a divisão dos blocos, a proibição de trânsito de veículos nas ruas
do percurso, uma parcial mistura entre rua e calçada, pois fica evidente que as calçadas são
apropriadas pelos observadores enquanto a rua pelos personagens que se agrupam em blocos
de folia. Esta interação que cada indivíduo estabelece com o ambiente da rua-só-parapessoas, ampliadas desse modo as potencialidades de interação, compõe cenas de um
processo de atualização das individualidades face à multiplicidade de personagens presentes,
demonstrando assim a importância da cidade na formação do indivíduo contemporâneo,
especialmente nesses momentos em que papéis sociais podem ser invertidos (DAMATTA,
1997) como parte dos jogos festivos.
A partir dessas observações surge-nos uma indagação de caráter genérico: podem os modos
de apropriação de ruas em eventos cíclicos influenciar a conformação do espaço? DaMatta
(1997), por exemplo, afirma que, em relação ao tempo, há um contraste estabelecido entre as
rotinas diárias e tais situações extraordinárias, mas socialmente programadas, neste caso, a
Folia de Rua.
O objetivo específico do estudo é o de, a partir da observação de modos diferenciados de
apropriação das ruas de Arapiraca em temporalidades definidas – cotidiano e eventos cíclicos
-, identificar determinações sociais diferenciadas na conformação do espaço. Quer-se, com
isto, contribuir para o entendimento do papel da cidade no processo de reprodução social,
especialmente o papel dos espaços de uso público numa cidade de médio porte cuja dinâmica
situa-a numa zona intermediária entre a metrópole (Maceió) e o campo. Para a caracterização
do evento Folia de Rua são utilizadas fontes documentais locais e observações diretas da rua
e da calçada.
2. ESPAÇOS DE USO PÚBLICO
2.1. Definições
Devemos partir da ideia que os espaços urbanos de uso público fazem parte de um processo
fundamental de produção e reprodução das cidades. Por uma parte, historicamente, são nestes
espaços que se desenvolvem as relações de vivência e cooperação de uma comunidade. Por
outra parte, são em grande parte definidos como áreas livres de edificações, vegetadas ou
não, adequadas à dinâmica da natureza essencial à reprodução psico-fisiológica do ser
humano (FARIA, 2011). Avaliada pela sua dimensão social e humana, a importância de uma
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cidade é proporcional aos atributos urbanos de seus espaços públicos e aos predicados
arquitetônicos que os delimitam. Esses e outros espaços de lazer são símbolos materializados
na paisagem que transcendem ao tempo e o espaço local (GOMES et al, 2012).
Tais espaços são lugares projetados para uso cotidiano e suas formas mais conhecidas são as
ruas, as praças e os parques. Estes locais são abertos e acessíveis a todas as pessoas. Trata-se
de espaços de interação social na qual pessoas de diferentes segmentos compartilham de copresença para uma prática de civilidade e diálogo (ALEX, 2008; GOMES et al, 2012), além,
é claro, do fato elementar de serem espaços comunais para os fluxos de natureza econômica
vitais e outros programados para a reprodução da sociedade.
Para Sun Alex (2008), praças, ruas, jardins e parques formam o conjunto de espaços abertos
na cidade, que mesmo que não haja uma farta vegetação, respondem ao ideal de vida urbana
em determinado momento histórico. Esses espaços, com funções, usos e inserção urbana
diversos, exigem, consequentemente, projetos de natureza diferentes. Assim, o espaço
público em nossa cultura vincula-se à acessibilidade de todos os indivíduos, moradores ou
visitantes capazes de interagir livremente na mesma base, independente de sua condição
social. Ainda segundo o autor, a localização de tais espaços na cidade, sua permeabilidade
como acesso, a impressão que irradia e a atmosfera de seu interior, que convidam a adentrálos, amplificam suas condições de espaços públicos. Outra característica refere-se à
multiplicidade de usos urbanos que eles admitem, como o comércio, os serviços, o encontro,
o lazer ou até mesmo o descanso.
De acordo com Paulo C. da C. Gomes (2002), além da ideia de liberdade e igualdade, os
atributos de um espaço público são os que têm relação com a vida pública, e para que o
mesmo opere uma atividade pública é necessário que se estabeleça, em primeiro lugar, uma
copresença de indivíduos. Este mesmo autor ainda afirma que tal espaço é, antes de tudo, “o
lugar, praça, rua, shopping, praia ou qualquer tipo de espaço onde não haja obstáculos à
possibilidade de acesso e participação de qualquer tipo de pessoa”. É uma área de mistura
social de diferentes segmentos, com diferentes expectativas e interesses que, ultrapassando
suas diversidades e o particularismo, interagem em uma prática recorrente da civilidade e do
diálogo. Geraldo M. G. Faria (2002) relembra que, para Hannah Arendt (1958), o fator
primordial da formação de um público é haver interesse – inter essere - comum.
2.2. A rua e a calçada
A rua, estruturadora do traçado urbano, regula a disposição dos edifícios e quarteirões, além
de ligar os vários espaços e partes da cidade (LAMAS, s/d, apud MENDONÇA, 2007). Ela
também é apontada como extensão para diversas comunidades, vista por meio de atividades
cotidianas, como as brincadeiras infantis e encontros entre vizinhos, ou sazonais, como as
festas (SANTOS; VOGEL, 1985). Como espaço público, a rua é o lugar relacionado com a
formação e o crescimento da cidade.
Com a apropriação veicular das ruas e a ordenamento-segregação dos fluxos, às calçadas
cabe desempenhar o papel residual de substrato físico do espaço público. Delaqua (2013)
coloca que o passeio tem um enfoque na atividade entre o público e o provado. As calçadas
não devem ser programadas para apenas um uso porque a superposição de funções em seu
desenho adiciona valor nos usos proporcionados: amplas, com toldos, árvores ou galerias e
ainda ser apenas um lugar para passear ou distrair-se e ainda propiciar um caminho seguro
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para um determinado destino. Ainda segundo o autor, tendo em vista que as cidades e suas
ruas não são estáticas, e ainda de que é na calçada que aparece a ideia de formação de
valores, elas continuam existindo como facilitadoras – dizemos nós, instauradoras – da vida
urbana.
2.3. União entre rua e calçada na Folia de Rua
As ruas percorridas possuem uma homogeneidade nas construções prevalecendo a ocupação
de residências térreas com alguns pontos comerciais como bares e supermercados. Os fluxos
veiculares são em mão dupla e o trânsito é controlado.
A Folia de Rua, sendo um evento extraordinário que se diferencia dos dias do cotidiano,
fornece uma nova possibilidade de utilização da rua. Esta, assim como certos hábitos
individuais, sofre uma transformação. A rua e a calçada se tornam uma só (Figuras 3 e 4), na
medida em que os blocos percorrem o percurso acompanhado pelas pessoas. Os foliões
compactuam do mesmo objetivo fazendo parte da coletividade, diferente dos dias da semana
do cotidiano (Figuras 5a e 5b), nos quais as pessoas estão ocupadas com seus problemas
individuais.
FIGURA 3 – Utilização da rua e da calçada na Folia de Rua. Fonte: arapiraca.al.gov.br
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FIGURA 4 – Utilização da rua e da calçada na Folia de Rua. Fonte: arapiraca.al.gov.br
FIGURAS 5a e 5b – Utilização da rua e da calçada em dias comuns. Fonte:googlemaps
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3. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Constata-se, então, que em Arapiraca, a forma de apropriação da rua neste evento
extraordinário é diferenciada pois há uma permissividade que não há nas rotinas diárias dos
indivíduos. A distinção entre público e privado é aparentemente desfeita quando a rua e a
calçada viram um só meio de passagem (desfile) ou de permanência. Durante a Folia, a rua
serve exclusivamente para o público espectador, foliões, blocos e “trios”. Não obstante a
restrição ao fluxo veícular, motociclistas ainda arriscam trafegar pelas calçadas. Face as
mudanças de apropriação, que mediações se estabelecem entre a rua e as propriedades (casas,
lojas)?
A forma da rua continua aparentemente a mesma ao longo do tempo, porém a forma de
utilização é diferenciada. No cotidiano, há uma hieraquização dividida entre pedestre x
veículo. Já em um evento como este, essa hierarquia é desfeita por um tempo determinado
assim como as rotinas diárias socialmente programadas. Nessa curta duração, algum
elemento material permanece? Algum elemento é modificado? Se sim, qual ou quais?
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Editora Senac São Paulo, 2008.
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Primeira edição: 1958.
DAMATTA, Roberto. A casa e a rua – espaço, cidadania, mulher e morte no Brasil. 5ª ed. Rio de
Janeiro. 1997. Primeira edição: 1985
DELAQUA, Victor. A Recuperação da Calçada no Desenho da Cidade, 19 Mai 2013. In: ArchDaily
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FARIA, Geraldo Majela Gaudêncio (2002). Voix publique-Voies publiques (Critique de la sphère
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FARIA, Geraldo Majela Gaudêncio (2011). Notas sobre as determinações dos espaços livres urbanos
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GOMES, Paulo Cesar da Costa. A condição urbana: ensaios de ecopolítica da cidade. Rio de
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LESSA, Sérgio. A reprodução do indivíduo. In. Sociabilidade e Individuação. Maceió, AL: Edufal,
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MENDONÇA, Eneida Maria Souza. Apropriações do espaço público: alguns conceitos. In: Estudos
e pesquisas em psicologia, UERJ, Rio de Janeiro, ANO 7, n.2, 2007.
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