Debates em Direito Público
Revista de Direito dos Advogados da União
ano 12 - n. 12 - outubro de 2013
Conselho Editorial
Erico Ferrari Nogueira (Presidente)
Armando Miranda Filho
Boni de Moraes Soares
Ciro Carvalho Miranda
Leonardo Albuquerque Marques
Luciano Medeiros de Andrade Bicalho
Luís Henrique Martins dos Anjos
Marcelo Ribeiro do Val
Milton Nunes Toledo Junior
Rodrigo Pereira Martins Ribeiro
Rogério Telles Correia das Neves
Valeschka e Silva Braga.
Diretoria da ANAUNI – Biênio 2013/2015
Presidente: Rommel Madeiro de Macedo Carneiro (CONJUR/MJ)
[email protected]
Vice-Presidente: Carlos Luiz Weber (PU/GO)
[email protected]
Secretário-Geral: Marcos Luiz da Silva (PU/PI)
[email protected]
Diretora Financeira: Gabriela Moreira Feijó (CONJUR/MS)
Adjunta: Maria Clarice Maia Mendonça (CONJUR/MJ)
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CONSELHO DE ÉTICA, DISCIPLINA E PRERROGATIVAS –
BIÊNIO 2013/2015
Presidente: Carlos Luiz Weber
Membro: César Jackson Grisa Júnior
Membro: Francisco Sales de Argolo
Membro: Marina Maniglia Puccinelli
Membro: Roberto de Aragão Ribeiro Rodrigues
DELEGADOS ESTADUAIS DA ANAUNI – BIÊNIO 2013/2015
ACRE – Delegado Titular: Bruno Gomes Bahia.
ALAGOAS - Delegado Titular: Gerson José Cajueiro Camerino
AMAPÁ - Delegado Titular: Utan Lisboa Galdino
AMAZONAS - Delegado Titular: Claudio Silvino Braga
BAHIA - Delegado Titular: Bruno Leonardo Guimarães Godinho /
Delegado Suplente: Cristiano Oliveira Sampaio Santos
CEARÁ - Delegada Titular: Karla Simões Nogueira Vasconcelos /
Delegada Suplente: Cristiane Caracas de Souza Cidade
DISTRITO FEDERAL - Delegado Titular: Adriana Pereira Franco /
Delegada Suplente: Flávia do Espírito Santo Batista
ESPÍRITO SANTO - Delegado Titular: Marcos Dupin Coutinho
GOIÁS - Delegado Titular: Luís Fernando Teixeira Canedo /
Delegado Suplente: Fábio Adriano Pereira de Morais Afonso
MARANHÃO - Delegado Titular: Alessandro Neres Lindoso /
Delegado Suplente: Gustavo André dos Santos
Diretor Administrativo: Roque José Rodrigues Lage (CONJUR/MJ)
Adjunto: Marcos Henrique de Oliveira Góis (CONJUR/MDIC)
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MATO GROSSO - Delegada Titular: Marina Maniglia Puccinelli /
Delegado Suplente: Bruno Scomparim Pereira
Diretor de Atividades Legislativas: Tiago Bacelar Aguiar Carvalho (PGU)
Adjunto: Rogério Pereira (CONJUR/MJ)
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MINAS GERAIS - Delegado Titular: Cil Farne Guimarães
Diretor Jurídico: Bruno Moreira Fortes (CONJUR/ME)
Adjunto: Marco Antônio Perez de Oliveira (PRU – 3ª Região)
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PARAÍBA - Delegado Titular: Antônio Inácio Pimentel Rodrigues de Lemos /
Delegado Suplente: Petrov Ferreira Baltar Filho
Diretor de Comunicação: Leonardo Albuquerque Marques (PU/MA)
[email protected]
PERNAMBUCO - Delegado Titular: Herbert Caetano Barreto /
Delegado Suplente: Marcelo Medicis Maranhão e Silva
Diretor Social: Rogério Sóther (PRU – 5ª Região)
Adjunta: Márcia Bezerra David (PRU – 4ª Região)
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PIAUÍ - Delegado Titular: Reginaldo de Castro Cerqueira Filho /
Delegado Suplente: Ricardo Resende de Araújo
Assessoria Parlamentar – ANAUNI
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Assessoria de Imprensa – ANAUNI
Jornalista Responsável: (61) 8536.3112
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CONSELHO FISCAL DA ANAUNI – BIÊNIO 2013/2015
Titular: Cristiano Soares Barroso Maia
Titular: Fábio Gomes Pina
Titular: Everton Pacheco Silva
Suplente: Dario Dutra Sátiro Fernandes
Suplente: Max Casado de Melo
MATO GROSSO DO SUL - Delegada Titular: Erika Swami Fernandes
PARÁ - Delegada Titular: Maria Carolina Golin de Oliveira /
Delegado Suplente: Francisco Alexandre Colares Melo Carlos
PARANÁ - Delegado Titular: Vitor Pierantoni Campos
RIO DE JANEIRO - Delegado Titular: Roberto de Aragão Ribeiro Rodrigues /
Delegado Suplente: Eugênio Muller Lins de Albuquerque
RIO GRANDE DO NORTE - Delegado Titular: Maria Heloísa de Sena Pinheiro /
Delegado Suplente: Marcio Lopes da Costa
RIO GRANDE DO SUL - Delegado Titular: César Jackson Grisa Júnior /
Delegado Suplente: Sandra de Cássia Viecelli Jardim
SANTA CATARINA - Delegado Titular: Luciano Cardoso Backer /
Delegado Suplente: Rafael Mendes dos Santos
SÃO PAULO - Delegada Titular: Teresa Villac Pinheiro Barki /
Delegada Suplente: Cristiana Mundim Mello
SERGIPE - Delegado Titular: Francisco de Sales de Argolo /
Delegado Suplente: Lyts de Jesus Santos
TOCANTINS - Delegado Titular: João Gomes Dutra Neto /
Delegado Suplente: André Luís Rodrigues de Souza
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DEBATES EM DIREITO PÚBLICO
REVISTA DE DIREITO DOS ADVOGADOS DA UNIÃO
ano 12 - n. 12 - ISSN 1677-8146
Brasília – outubro 2013
Periodicidade: anual
Tiragem: 1.250 exemplares
Edição: Associação Nacional dos Advogados da União
SHS Qd. 06 Conj. A Bl. “C” Salas 504/505 – Edifício Brasil 21
CEP 70316-109 – Brasília, DF
Sumário
Apresentação................................................................................................................. 7
Evolução dos controles de juridicidade no Estado Democrático de Direito –
A busca do equilíbrio entre o político e o jurídico: revisitando a missão da
Advocacia de Estado
Diogo de Figueiredo Moreira Neto........................................................................... 9
1
Introdução........................................................................................................... 9
2
Origem do conceito da divisão tripartite de poderes............................................ 10
3
Releitura do conceito de separação de poderes como uma separação de
funções.............................................................................................................. 11
4
A multiplicação democrática dos controles da sociedade sobre o Estado............. 12
5
Essencialidade do novo conceito dos controles independentes, formais e
informais, exercidos pela sociedade à plenitude da democracia na
pós-modernidade............................................................................................... 15
6
Conclusão.......................................................................................................... 16
Current Constitutional Developments in Latin America
Dante Figueroa......................................................................................................... 19
1
Introduction....................................................................................................... 19
2
What is New in Constitutional Law in Latin America?.......................................... 20
2.1 Re-foundational Aspirations ............................................................................... 21
2.2 Rupture in the Historical Relationship between the Catholic Church and
the State............................................................................................................ 22
2.3 Moralistic Overtone in the New Constitutional Principles..................................... 23
2.4 Promotion of Indigenous Causes......................................................................... 23
2.4.1 Constitutional Recognition of the Multiplicity and Plurality of the New Nations... 24
2.4.2 Official Language............................................................................................... 25
2.4.3 Aboriginal Medical Practices............................................................................... 25
2.4.4 Creation of Parallel Judicial Systems for Aboriginal Peoples.................................. 26
3
The Traditional Family......................................................................................... 26
4
Political Participation and Political Parties and Movements .................................. 26
5
Personal Freedoms.............................................................................................. 27
6
Reforms in Criminal Procedure and Sentencing .................................................. 28
7
Changes Affecting the Branches of Government................................................. 32
7.1 Executive Branch.................................................................................................... 32
7.1.1 Presidential Reelection......................................................................................... 32
7.1.2 Other Amendments Concerning the Executive Branch......................................... 33
7.1.3 Constitutional Issues Concerning the Executive Branch........................................ 34
7.2 Legislative Branch............................................................................................... 36
7.3 Judicial Branch.................................................................................................... 36
8
Constitutional Emergencies................................................................................. 38
9
Economic Model................................................................................................ 39
10 Fight against Narcotrafficking and Organized Crime............................................ 40
11 12 13 14 Fight against Government Corruption................................................................. 41
International Law and International Relations...................................................... 41
Constitutional Amendment Procedures............................................................... 44
Conclusion......................................................................................................... 45
Acesso à informação e transparência governamental – Situando o debate na
Administração Pública brasileira
Patrícia Lima Sousa, Antonio Augusto Ignacio Amaral........................................ 47
1Introdução......................................................................................................... 47
2
Patrimonialismo, burocracia e reformas gerenciais na Administração Pública
brasileira: situando a accountability nesses modelos............................................ 48
3
Transparência governamental no Brasil e o advento da Lei de Acesso
à Informação...................................................................................................... 53
4
Implementação da LAI e desafios para a Administração Pública........................... 59
5
Acesso à informação e accountability vertical...................................................... 61
6
Considerações finais........................................................................................... 63
Referências......................................................................................................... 64
Reflexões sobre controle, legalidade e discricionariedade
Eugenio Müller Lins de Albuquerque..................................................................... 65
Introdução......................................................................................................... 65
1
Controle da Administração Pública...................................................................... 67
1.1 Controle de legalidade e de mérito. Atos vinculados e discricionários.................. 67
1.2 Controle interno. Controle externo...................................................................... 70
1.3 Controle jurisdicional.......................................................................................... 71
1.4 Considerações sobre a Advocacia Pública e Controle........................................... 73
2
Transformações no Direito Administrativo........................................................... 76
2.1 Crise da lei formal............................................................................................... 77
2.2 Constitucionalização do Direito Administrativo.................................................... 78
2.3 Pós-positivismo. Normatividade dos princípios.................................................... 80
2.4 Fim da dicotomia atos vinculados versus discricionários. Graus de vinculação
dos atos administrativos à juridicidade. Sistematização dos parâmetros de
controle judicial dos atos administrativos............................................................ 82
3
Controle do ato administrativo pelo Advogado Público....................................... 84
3.1 Estado Democrático de Direito. Administração gerencial..................................... 85
3.2 Controle de legalidade. Evolução. Controle de juridicidade.................................. 88
3.3 Controle de juridicidade dos atos discricionários e Advocacia Pública................... 90
3.4 Missão do Advogado Público e controle jurisdicional. Princípio da eficiência.
Prevenção da improbidade. Controle de juridicidade e resgate do processo
administrativo.................................................................................................... 92
3.5 Limites ao controle dos atos discricionários pelo Advogado Público..................... 94
Conclusões......................................................................................................... 96
Referências ........................................................................................................ 98
Tombamento de bens públicos e abrangência de interesses – É possível a
aplicação da regra contida no artigo 2º, §2º do Decreto-Lei nº 3.365/1941?
Márcio Fernando Bouças Laranjeira...................................................................... 101
1
2
Introdução....................................................................................................... 101
Do tombamento segundo a legislação pátria.................................................... 103
3
Da abrangência de interesses e o tombamento de bens públicos....................... 110
4
Conclusão........................................................................................................ 119
Referências....................................................................................................... 122
Autorização Ambiental de Funcionamento e lavras ilegais de minério
Valkiria Silva Santos Martins................................................................................. 125
1
Introdução....................................................................................................... 125
2
Sustentabilidade – Mineração para esta geração e as futuras............................ 126
3
Legislação minerária pertinente ao tema........................................................... 133
4
Licenciamento ambiental para lavra de minério................................................. 135
5
Autorização Ambiental de Funcionamento como instituto diferenciado do
licenciamento ambiental................................................................................... 138
6
Procedimento simplificado na contramão do desenvolvimento sustentável........ 141
7
AAF em atividades minerárias – Lavra ilegal por nulidade.................................. 146
8
Conclusão........................................................................................................ 151
Referências ...................................................................................................... 153
Suspensão de liminar – Instrumento político ou jurídico?
Marco Aurélio Ventura Peixoto............................................................................. 157
1
Introdução....................................................................................................... 157
2
Contextualização histórica e previsões legais..................................................... 158
3
Natureza jurídica.............................................................................................. 162
4
Legitimidade e competência............................................................................. 164
5
Requisitos para a utilização do instituto............................................................ 166
6
A discutível possibilidade de utilização concomitante da suspensão e do
agravo.............................................................................................................. 168
7
Efeitos da decisão que defere a suspensão........................................................ 170
8
O agravo interno/regimental como via recursal................................................. 172
9
A possibilidade de renovação do pedido junto às instâncias superiores.............. 173
10 Suspensão coletiva........................................................................................... 175
11 Questionamentos quanto à constitucionalidade e o perigo do uso político........ 176
12 Conclusão........................................................................................................ 178
Desmilitarização da polícia – A Proposta de Emenda à Constituição
nº 102/2011, do Senado Federal, é constitucional?
Daniel Pinheiro de Carvalho.................................................................................. 181
Introdução....................................................................................................... 181
1
Breve histórico sobre as polícias militares no Brasil............................................ 182
2
Teor da PEC nº 102/2011.................................................................................. 184
3
Exclusividade da investigação criminal pela polícia unificada e fim do controle
externo exercido pelo Ministério Público........................................................... 188
4
Provimento dos cargos das carreiras policiais unificadas.................................... 195
4.1 Da inconstitucionalidade da regra que permite a ascensão funcional................. 195
4.2 Da inconstitucionalidade da transposição entre cargos com atribuições,
estrutura remuneratória e requisitos de ingresso distintos................................. 200
5
Da inconstitucionalidade da cláusula que assegura aos inativos e pensionistas
das carreiras policiais as garantias da paridade e da integralidade, por ofensa
ao direito à igualdade....................................................................................... 202
6
Da desmilitarização da polícia ostensiva e unificação das polícias...................... 203
Conclusão........................................................................................................ 204
Referências ...................................................................................................... 206
O conflito entre o regulamento autônomo e a lei
Felipe Nogueira Fernandes.................................................................................... 209
1
Introdução....................................................................................................... 209
2
O poder regulamentar...................................................................................... 211
3
Espécies de regulamentos................................................................................. 211
4
O regulamento autônomo no direito brasileiro.................................................. 213
5
Conclusão........................................................................................................ 224
Referências....................................................................................................... 225
A judicialização de políticas públicas relativas à segurança pública é o melhor
caminho?
André Petzhold Dias............................................................................................... 227
1
Introdução....................................................................................................... 227
2
Do estado de natureza à reunião em sociedade (Estado Político)....................... 229
3
Visão atual do Estado Liberal e sua atuação...................................................... 231
4
Segurança pública na CF 88 – Preâmbulo, artigos 5º, 6º e 144......................... 234
5
Características do direito à segurança pública................................................... 238
6
Políticas públicas – Conceito, características e consequências de sua
formulação e implementação coercitiva pelo Poder Judiciário............................ 242
7
Necessidade de constante atualização de políticas de segurança pública........... 244
8
Rigidez das fases procedimentais como incompatibilidade................................ 246
9
Institutional choice – O Judiciário é a melhor instituição para decidir sobre
políticas de segurança pública?......................................................................... 248
10 Considerações finais......................................................................................... 249
Referências....................................................................................................... 249
Apresentação
A publicação da 12. ed. da Revista Debates em Direito Público traduz
uma nova fase no processo de seleção de seus textos. A partir desta edição
a Revista passou a utilizar o sistema double blind review para avaliação dos
artigos. O emprego desse sistema significa maior objetividade na análise
e avaliação dos textos e, consequentemente, um passo importante para
melhor qualificação acadêmica da Revista.
Mantendo o nível do debate jurídico-acadêmico das edições an­­
te­riores, esta edição inicia-se com as transcrições das palavras do Dr.
Diogo de Figueiredo Moreira Neto, a partir da Conferência apre­sen­tada
ao XIII ENAU — Encontro Nacional dos Advogados da União —, em
Brasília, 08 de novembro de 2012, que trataram da evolução do controle de juridicidade no Estado Democrático de Direito. Em seguida, o
Dr. Dante Figueroa trata das tendências e novidades constitucionais no
contexto da América Latina.
Em sequência, a Dra. Patrícia Lima Sousa e o Dr. Antonio Augusto
Ignacio Amaral analisam o acesso à informação e transparência governamental na Administração Pública brasileira. O Dr. Eugenio Müller Lins
de Albuquerque, por sua vez, traz reflexões sobre controle, legalidade
e discricionariedade. Já o Dr. Márcio Fernando Bouças Laranjeiras
aborda em seu artigo a questão do tombamento dos bens públicos e a
abrangência e o alcance da regra contida no Decreto-Lei nº 3.365, de
1941. Em seguida, a Dra. Valkiria Silva Santos Martins disserta sobre a
autorização ambiental de funcionamento e as lavras ilegais de minério.
Já o Dr. Marco Aurélio Ventura Peixoto nos oferece contribuição
relevante sobre a suspensão de liminar e as polêmicas decorrentes desse
instituto. De outra parte, o Dr. Daniel Pinheiro de Carvalho aborda tema
relacionado à desmilitarização da polícia, a partir da análise da Proposta
de Emenda à Constituição nº 102, de 2011, do Senado Federal. O Dr.
Felipe Nogueira Fernandes, por sua vez, dedica-se a tema importante
no âmbito da Administração Pública ao analisar eventual conflito normativo entre lei e regulamento autônomo emanado por Chefe do Poder
Executivo. Por fim, o Dr. André Petzhold Dias tece explanações sobre a
judicialização de políticas públicas relativas à área de segurança pública.
Feitas as apresentações, aproveito a oportunidade para deixar
consignado meu agradecimento ao Presidente da Associação Nacional
dos Advogados da União, Dr. Rommel Madeiro de Macedo Carneiro,
pela confiança na assunção dessa função; ao ex-presidente do Conselho
Editorial, Dr. Francisco Alexandre Colares Melo Carlos, pelo repasse
das informações necessárias para a condução deste mister; aos autores e
membros do Conselho Editorial, pela paciência, agilidade e excelência de
suas contribuições; e, por derradeiro, à Editora Fórum, pela qualidade,
profissionalismo e seriedade na condução deste trabalho.
Erico Ferrari Nogueira
Presidente do Conselho Editorial
Evolução dos controles de juridicidade
no Estado Democrático de Direito –
A busca do equilíbrio entre o político
e o jurídico: revisitando a missão da
Advocacia de Estado1
Diogo de Figueiredo Moreira Neto
Professor Titular da Universidade Candido Mendes. Procurador do estado do Rio de Janeiro.
Palavras-chave: Separação de poderes. Democracia na pós-modernidade.
Controle de juridicidade.
Sumário: 1 Introdução – 2 Origem do conceito da divisão tripartite de
poderes – 3 Releitura do conceito de separação de poderes como uma
separação de funções – 4 A multiplicação democrática dos controles da
sociedade sobre o Estado – 5 Essencialidade do novo conceito dos controles
independentes, formais e informais, exercidos pela sociedade à plenitude
da democracia na pós-modernidade – 6 Conclusão
1 Introdução
Na origem, a distinção entre interesses individuais e interesses coletivos,
que ditará a necessidade de priorizar uns ou outros, conforme as circunstâncias. Em consequência, surgem as confrontações entre a liberdade, congênita ao indivíduo, e a autoridade, conata ao grupo, que, com o tempo,
passam a informar o que hoje se considera, respectivamente, conforme
a prevalência que se atribua à primeira ou à segunda, respectivamente,
a tônica dos regimes democráticos ou dos autocráticos.
Paralelamente, será o enriquecimento do discurso dos valores que
definirá, no espaço e no tempo, as inúmeras espécies históricas de re­
gimes: tanto as efetivamente vivenciadas como aquelas hipoteticamente
concebidas, que se inclinam, ora com predomínio dos valores referidos
ao indivíduo, ora com prelazia dos valores referidos ao grupo.
Em todas essas experiências, porém, encontram-se sempre valores
predominantes que, uma vez incorporados à ordem jurídica em sua milenar
1
Conferência apresentada ao XIII Encontro Nacional dos Advogados da União (ENAU), em Brasília, 08 de
novembro de 2012.
10 Diogo de Figueiredo Moreira Neto
evolução, ditam os limites de direito entre os protagonistas da política — a
sociedade e o Estado — que nos chegaram à Modernidade.
Não obstante a diversidade de combinações políticas historicamente experimentadas, ou mesmo as meramente concebidas, é possível
distinguir um bloco de valores convergentes para a caracterização da
justiça, assim entendida como síntese axiológica de um hipoteticamente
justo equilíbrio que se deva alcançar entre os poderes individuais entre si,
destes com os coletivos e entre os próprios coletivos, incluídos aqueles
que passaram a ser formalmente atribuídos ao Estado e, por isso, categorizados como poderes estatais.
Assim é que, perseguindo o ideal de justo equilíbrio entre interesses,
além da demarcação precisa dos limites jurídicos, tanto da ação dos poderes conferidos ao Estado como dos poderes retidos pelos indivíduos,
tornou-se necessário definir um sistema de controle voltado à observância
desses limites, assim erigido a tema nuclear para o Direito Público desde o
surgimento do Estado moderno.
Neste ensaio, já posto sob a óptica pós-moderna, releva apreciar
a obsolescência, entre outros conceitos que se tornaram míticos com a
Modernidade, destacadamente, o da divisão de poderes, provocada pelo
ressurgimento e da expansão contemporânea dos direitos humanos e da
democracia, que vieram reorientar e redefinir todo o sistema de controle estatal, no centro do qual passou a desempenhar papel essencial a
Advocacia de Estado.
2 Origem do conceito da divisão tripartite de poderes
Em breves traços, remonta a Aristóteles a mais antiga discrimina­
ção das funções públicas atribuídas à polis: a deliberação sobre os assuntos
públicos, a administração de sua realização e a administração da justiça. Esse mesmo esquema tripartite se repetiu com Maquiavel, com sua
separação de funções parlamentares, reais e judiciais. Foi, porém, com
Locke, que essa discriminação de funções se converteu no embrião da
teoria da separação de poderes, que se integraria, com Montesquieu, com
sua observação, no Livro VI do Espírito das leis, sobre a experiência inglesa, ao destacar o Legislativo, o Executivo e o Judiciário, como poderes
independentes e harmônicos.
Evolução dos controles de juridicidade no Estado Democrático de Direito – A busca do equilíbrio... 11
Assim, a expressão “poder” na língua inglesa, tal como recolhida
por Montesquieu, tornar-se-ia sinédoque amplamente difundida para
o enunciado da vitoriosa fórmula política destinada a incrementar a
eficiência da governança pública pela especialização funcional e, simultaneamente, promover a limitação do poder, por sua compartimentação, que,
até então, estivera fortemente concentrado nos reis e caracterizando,
por longo tempo, a hegemonia do absolutismo.
O amadurecimento dessa concepção se processou através das três
grandes Revoluções Liberais: iniciou-se com a Revolução Gloriosa (16881689), a que se deve a contribuição do modelo inglês da independência do
Parlamento ante a Coroa; prosseguiu com a Revolução Americana (17751783), com a contribuição da independência da Suprema Corte dos Estados
Unidos da América; e concluiu-se com a Revolução Francesa (1789-1799),
que conferiu independência à Administração Pública.
Esse modelo, que, com algumas variações, seguiria a linha fundada
nos conceitos de independência e de harmonia entre os poderes, inspirou a
grande maioria das Constituições que se seguiram e resistiu, até mesmo,
ao fatídico renascer absolutista do século XX.
3 Releitura do conceito de separação de poderes como uma
separação de funções
A necessidade de expandir o modelo tripartite assomou justamente
com a geral convicção de que a fórmula não havia logrado proteger as
sociedades das autocracias absolutistas que haviam proliferado e tornado
o século XX em um sinistro intermezzo histórico de holocausto e sangue.
Com efeito, havia se confiado que as limitações introduzidas pelo
modelo tripartite, dotadas dos contrapontos parlamentar e judicial instituídos, seriam suficientes para refrear a histórica tendência à hipertrofia
patológica dos governantes executivos, constantemente intentada por
Chefes de Estado carismáticos e manipuladores perversos das raras instituições de controle político, então extremamente vulneráveis, quando
não apenas decorativas.
Mas os horrores de duas Guerras Mundiais, a que se seguiria ainda uma “Guerra Fria”, mas não menos letal e angustiante, no curso das
quais a pessoa humana de pouco ou nada valia ante os despóticos donos
do poder, exauriu essa ingênua confiança, tendo sido a dura lição de
12 Diogo de Figueiredo Moreira Neto
que necessitaram os povos exaustos e exangues da Europa, a começar
dos mais atingidos sacrificados — Itália e Alemanha — para conseguir
ultrapassar o modelo superado.
Era necessário recomeçar pela revisão do vínculo entre sociedade e
Estado, não mais como uma relação de sujeição, mas como uma relação
de serviço, devolvendo ao indivíduo a condição de cidadão e não de
súdito, mudança se processou, a partir do término da Segunda Guerra
Mundial, com o processo juspolítico de transformação do modelo tripartite clássico, na busca do almejado equilíbrio entre o poder político e
seu controle jurídico.
Como o simples controle político, que havia sido alcançado com a
instituição dos processos eletivos para a escolha dos governantes se tinha
mostrado insuficiente, a sociedade demandava novos canais instituciona­li­
zados de controle, notadamente para evitar uma perigosa recidiva das devas­
ta­doras ideologias autoritárias e totalitárias do século XX, garan­tindo
o primado da pessoa humana e, paralelamente, canalizando ordei­ra­mente
as emergentes e crescentes demandas das sociedades pós-modernas.
Esse novo modelo haveria, assim, de multiplicar e de aperfeiçoar
os canais participativos da cidadania, para tanto instituindo novas funções
constitucionalmente independentes da sociedade, que operassem harmonicamente
dentro do próprio aparelho de Estado.
4 A multiplicação democrática dos controles da sociedade sobre o
Estado
O atingimento do almejado equilíbrio — entre os poderes individuais entre si, destes com os coletivos e entre os próprios coletivos, incluídos
aqueles formalmente atribuídos ao Estado e, por isso, categorizados como
poderes estatais — necessitava não apenas de uma ampliação dos controles
sociais sobre o Estado, como a garantia de sua efetividade, o que só se obteria
satisfatoriamente dotando-os de novas expressões próprias do poder estatal,
quebrando e expandindo o provecto — e já mítico — conceito tripartite.
Porém essas novas funções a serem introduzidas não deveriam estar
atreladas a orientações e interesses partidários, senão que, por serem lídimas expressões de valores fundantes da sociedade como um todo, deveriam,
à semelhança das funções jurisdicionais, ser exercidas com independência
político-partidária, ou seja, como funções neutrais.
Evolução dos controles de juridicidade no Estado Democrático de Direito – A busca do equilíbrio... 13
Assim, no novo modelo, o controle sobre o Estado administrador se
desdobra: o antigo, exercido pelos tradicionais controles internos a cargo
das funções legislativas e executivas, ambas política e partidariamente
orientadas e cometidas a órgãos próprios do Estado, e o novo, secundo,
exercido por controles externos a cargo de funções de fiscalização, promoção e
defesa de interesses constitucionalmente assegurados, tanto cometidas e
exercidas formalmente, por órgãos independentes da sociedade, política
e partidariamente neutrais, instituídos no próprio aparelho de Estado, como,
informalmente, pela cidadania, fora do aparelho de Estado.
Como se depreende, a pluralização, bem como a especialização
desses novos controles — politicamente neutros e capilarmente disseminados por todo o corpo social —, passa a desempenhar papel essencial,
não apenas para manter a legalidade estrita da ação estatal, como, inovadoramente, também a sua legitimidade e licitude, atuando como sistemas
formais e informais de proteção da juridicidade.
Assim é que a Constituição brasileira ostenta hoje rica diversificação
de funções de controle neutrais, além da tradicionalmente exercida pelo
Judiciário, com suas características próprias de ser passivo e terminativo.
São elas:
1. As funções neutrais constitucionalmente independentes de fiscalização contábil, financeira e orçamentária, para a tutela da legalidade, legitimidade e economicidade da gestão administrativa,2
e da impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência da
gestão pública, categorizadas como atividades de zeladoria e
controle, cometidas ao sistema de Tribunais de Contas;3 4
2. As funções neutrais constitucionalmente independentes de controle da atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário
e do cumprimento dos deveres funcionais dos juízes, de custódia
da autonomia da instituição, do cumprimento do estatuto da
magistratura e da observância dos princípios da Administração
Pública, de promoção de justiça em casos de crime contra
Administração Pública e abuso de autoridade e atribuições
Art. 70, caput, CF.
Arts. 70 a 75, CF.
4
Art. 37, caput, CF.
2
3
14 Diogo de Figueiredo Moreira Neto
correlatas,5 categorizadas como de zeladoria, controle e promoção
de justiça e cometidas ao Conselho Nacional de Justiça;
3. As funções neutrais constitucionalmente independentes de controle da atuação administrativa e financeira do Ministério Público
e do cumprimento dos deveres funcionais dos seus membros, de
custódia da autonomia funcional e administrativa dessa instituição e da observância dos princípios da Administração Pública,
e atribuições correlatas,6 categorizadas como de zeladoria e
con­trole e cometidas ao Conselho Nacional do Ministério Público;
4. As funções neutrais constitucionalmente independentes e definidas como essenciais à justiça, categorizadas como de controle,
zeladoria e promoção de interesses juridicamente qualificados
de toda natureza, cometidas, respectivamente, conforme a especificidade dos interesses, aos membros de quatro complexos or­
gânicos distintos: do Ministério Público,7 da Advocacia de Estado,8 9
da Advocacia10 e da Defensoria Pública;11 e
5. As funções neutrais constitucionalmente independentes, categorizadas como de controle, zeladoria e promoção de interesses
específicos relativos à inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual ou à constitucionalidade de lei ou
ato normativo federal,12 bem como em concursos públicos de
ingresso na magistratura,13 no Ministério Público14 e nas procuradorias dos Estados e do Distrito Federal,15 cometidas à Ordem
dos Advogados do Brasil.
Art. 103-B, §4º, CF.
Art. 130-A, §2º, CF.
7
Art. 129, CF.
8
Art. 131, CF (da União) e art. 132, CF (dos Estados e do Distrito Federal).
9
Não obstante a Constituição nomear apenas a advocacia de Estado da União, dos Estados-membros e
do Distrito Federal, também a advocacia de Estado dos Municípios e a das autarquias de todos os
níveis federativos estão nela implícitas: 1º - porque, sendo idênticas as funções, impõe-se a isonomia de
tratamento; 2º - porque o constituinte não teve intenção em discriminar, fechando um elenco taxativo,
mas somente de dar destaque institucional às nominadas; 3º - porque todos seus exercentes, uma vez
providos por investidura pública, como tal, gozam da mesma fé pública, que impõe ser reconhecida, como
comanda o art. 19, II, CF.
10
Art. 133, Constituição da República Federativa do Brasil.
11
Art. 134, Constituição da República Federativa do Brasil.
12
Art. 103, VII, Constituição da República Federativa do Brasil.
13
Art. 93, I, Constituição da República Federativa do Brasil.
14
Art. 129, §3º, Constituição da República Federativa do Brasil.
15
Art. 132, caput, Constituição da República Federativa do Brasil.
5
6
Evolução dos controles de juridicidade no Estado Democrático de Direito – A busca do equilíbrio... 15
5 Essencialidade do novo conceito dos controles independentes,
formais e informais, exercidos pela sociedade à plenitude da
democracia na pós-modernidade
Redirecionados todos os controles examinados de proteção à pessoa
humana, com sua vida e dignidade, resulta que a sua expressão política
democrática tornou-se constitucionalmente essencial.
Com efeito, leitura atenta da Carta põe este valor em evidência,
não obstante a inversão operada pelo constituinte no artigo 1º, pois,
se o fundamento sine qua non é a dignidade humana (art. 1º, II), tanto o
fundamento da cidadania, que equivocadamente o antecede (art. 1º, II),
como o do pluralismo político, que acertadamente lhe sucede (art. 1º, V)
são seus evidentes consectários.
Assim, é da existência desse duplo fundamento — da cidadania e
do pluralismo — que se há de dessumir a existência de uma democracia,
tal como afirmada na própria caracterização constitucional dada ao Estado
brasileiro: como Democrático (art. 1º, caput).
Mas, em que pese essa clara afirmação, à efetiva realização da demo­
cracia opõe-se a resistência dos restolhos da herança absolutista trazida da
Modernidade, ainda mais agravada por nossa tradição ibérica, proclive
à imperatividade, às imunidades e privilégios do poder.
O controle do Estado por seus próprios órgãos politicamente decisórios — parlamentares e executivos — portanto, um controle interno, por
serem político-partidariamente comprometidos, obviamente não logra atender
às qualidades de generalidade e de neutralidade exigidas por um Estado
Democrático, instituído sobre o fundamento da igualdade política dos
cidadãos, o que deles faz, a cada um, órgãos aptos a exercer o controle.
Por outro lado, como o controle externo exercido pelo Poder Judiciário,
que é tradicionalmente neutral, só atua provocado, a solução constitucional
voltou-se à pluralização dos órgãos de fiscalização e de promoção, bem como
à criação de instâncias administrativas intermédias de controles especializados,
todas dotadas de iniciativa própria e de independência funcional.
Com esses avanços e aperfeiçoamentos, integra-se no País um
sistema nacional democratizado de controles, já não apenas do Estado (os tradicionais), como no Estado (os novos), que cumprem harmonicamente a
elevada missão de acrescer à democracia formal, que é a referida à escolha
16 Diogo de Figueiredo Moreira Neto
dos agentes políticos eletivos, a democracia substancial, que é a referida à
escolha das ações públicas.
Esse valioso processo democratizante, para o qual tanto tem contribuído os novos órgãos constitucionalmente independentes, só não tem
progredido mais, pela falta de hábito de o cidadão lutar pelos próprios
direitos, notadamente os coletivos e difusos, não obstante o grande avanço
nesse sentido já registrado desde a vigência da Constituição de 1988.
Por outro lado, permanece a velha resistência aos controles, por parte
dos detentores do poder político, por motivos mais históricos que jurídicos, porém que mais se agravam com o fenômeno, universalmente
observado por juristas e cientistas sociais de diferentes especializações,
da imbricação paulatina da política e do direito, de modo que a atividade
política se vai tornando cada vez menos infensa aos controles jurídicos, e
a atividade jurídica, cada vez mais pervasiva das imunidades da política.
É o que ocorre, exemplificativamente, com a crescente preocupação
como o controle da gestão pública, não apenas em seu iter administrativo,
mas em todo o seu percurso, ou seja: desde o planejamento, passando
pela orçamentação e pela execução, até o atingimento concreto do resultado.
Observe-se que desde a sua formulação — política e administrativa
— desse assim caracterizado complexo processual das políticas públicas, ele
se tornou constitucionalmente sujeito aos controles instituídos de juridi­
cidade, que se estendem desde suas fases híbridas iniciais — quais sejam
as do planejamento e da orçamentação, pois que demandam ambas atos
coordenados materialmente administrativos e formalmente legislativos
— até a sua fase executiva, que é puramente administrativa, compreendendo, como entende a mais recente doutrina administrativista, o seu
consequente resultado.
6 Conclusão
Em suma, as funções essenciais à justiça apresentam-se, nesta exposição, como órgãos da sociedade inseridos no aparelho de Estado, para o exercício
de diversificadíssimas funções de controle de juridicidade — de fiscalização, de
promoção e de defesa —, cobrindo todo o espectro de direitos garantidos pela
Constituição.
Sua missão é tanto mais importante e delicada quando a esfera de
atuação cometida à Advocacia de Estado envolve, necessariamente, todo o
Evolução dos controles de juridicidade no Estado Democrático de Direito – A busca do equilíbrio... 17
complexo parlamentar e executivo da gestão pública, não mais se restringindo,
como no passado, à sua mera fase administrativa, envolvendo, portanto,
todo o espectro do controle de juridicidade, ou seja: do planejamento, da
orçamentação, da execução e, notadamente, da efetivação de seu resultado.
Por isso, em razão de seu campo de atuação jurídica se ter tornado
profundamente imbricado com a atuação política — já que esta não mais
poderá se processar nem fora nem, muito menos, acima do Direito — a missão
da Advocacia de Estado se apresenta, cada vez mais, como imprescindível à
realização neutral da justiça e, em consequência, da democracia.
Eis porque atentarão contra a pureza e a elevação constitucional
dessa missão, que lhes é constitucionalmente cometida, aos Advogados de Estado,
pela sociedade, tanto o receio de seus membros de desagradar quaisquer agentes
políticos que se sintam contrariados, como, e com mais razão, a pretensão
destes de dirigir ou condicionar espuriamente a ação dos Advogados de Estado
de modo a que atuem em contrariedade de sua consciência jurídica e de sua
independência funcional.
Nada, portanto, deverá desviá-los dos interesses públicos primários
da juridicidade, para atender a interesses públicos secundários, quando
não a interesses públicos terciários, partidariamente orientados, sempre
que afrontem o direito, a justiça e a democracia, pois que estes valores
fundamentais nesses agentes têm a sua primeira e essencial linha de defesa.
Violado está, em suma, o próprio conceito de Estado Democrático
de Direito, se não existir recíproco respeito e acatamento a todos os institutos de controle de juridicidade constitucionalmente instituídos para
sua defesa.
Teresópolis, primavera de 2012.
Current Constitutional Developments
in Latin America
Dante Figueroa
Professor da Georgetown University de Washington DC, Washington College of Law, na cadeira
de International Business Transactions in Latin America and Latin American Law. Senior Legal
Information Analyst on Latin American Law. Consultor da Library of US Congress. Advogado
no Chile, em New York e Washington DC.
Abstract: This article seeks to identify the new constitutional philosophies
underlying the most important constitutional changes that have occurred
in Latin America since 1999, when the new Constitution of Venezuela was
passed. This brief examination does not address every Latin American
country, or every aspect of constitutional law. The countries sampled
have been selected based on their strong departure from constitutional
tradition; the far-reaching effects of their political, social, and economic
aims; or because of the high geopolitical relevance of such jurisdictions.
The areas of focus cover the economic, social, and political bases of the
State; the organization of the State and the distribution of power among
the branches of government; and the constitutional protection of personal freedoms. The article also highlights some new areas of attention on
constitutional drafting in the region, including the rights of indigenous
peoples, third-generation rights, and the validity and influence of international law at the domestic level.
Key words: Constitutional Law. Latin America Constitutional Systems.
Historical and comparative aspects.
Summary: 1 Introduction – 2 What is New in Constitutional Law in
Latin America? – 3 The Traditional Family – 4 Political Participation and
Political Parties and Movements – 5 Personal Freedoms – 6 Reforms in
Criminal Procedure and Sentencing – 7 Changes Affecting the Branches
of Government – 8 Constitutional Emergencies – 9 Economic Model – 10
Fight against Narcotrafficking and Organized Crime – 11 Fight against
Government Corruption – 12 International Law and International
Relations – 13 Constitutional Amendment Procedures – 14 Conclusion
1 Introduction
Latin America is an area of the world in constant change, sometimes
peaceful, and sometimes not. Political and social changes ultimately find
their way into the constitutional framework of Latin American jurisdictions. An examination of constitutional law developments in the region
since 1999, when the new Venezuelan Constitution was passed, shows that
there are many common aspects to these constitutional developments.
20 Dante Figueroa
Accordingly, this article seeks to identify the new constitutional philoso­
phies underlying the most important changes that occurred in this period
of time and determine their commonalities.
This brief examination does not address every Latin American
country, or every aspect of constitutional law. The countries sampled
have been selected based on their strong departure from constitutional
tradition; the far-reaching effects of their political, social, and economic
aims; or because of the high geopolitical relevance of such jurisdictions.
The areas of focus cover the economic, social, and political bases of the
State; the organization of the State and the distribution of power among
the branches of government; and the constitutional protection of personal freedoms. The article also highlights some new areas of attention
on constitutional drafting in the region, including the rights of indigenous peoples, third-generation rights, and the validity and influence of
international law at the domestic level.
In this context, this survey focuses on the new constitutions of
Venezuela (1999); Ecuador (2008); and Bolivia (2009). It also encompas­s­
es constitutional amendments passed in Mexico in 2008, 2009, and 2011,
related to constitutional guarantees, criminal justice, government corruption, kidnapping, organized crime, secular character of the country,
and human rights. The study further explores the constitutional changes
that occurred in Colombia in 2009 and 2012 related to the recognition
of third-generation rights, to political parties and movements, to the
peace process, and to military jurisdiction. Reference is also made to
Peru’s constitutional amendment of 2009 concerning the organization
of the legislative branch. Furthermore, two constitutional decisions concerning presidential succession, one from Nicaragua (2009), and another
from Colombia (2010), are examined. Similarly, this survey analyzes the
Ecuadorian Referendum of 2011 that introduced amendments to the
judicial branch. Finally, the constitutional aspects of the political trial
against former president Lugo (2012) and the succession of Hugo Chavez
after his death (2013) will be examined.
2 What is New in Constitutional Law in Latin America?
A first glance at recent constitutional law developments shows
several trends, described below:
Current Constitutional Developments in Latin America 21
2.1 Re-Foundational Aspirations
It was the Constitution of Venezuela of 1999 that set the stage for
new political aspirations to rebuild society. Its preamble declares that the
supreme goal of the Venezuelan people is to
refound the Republic to establish a society that is democratic, participatory,
and protagonist, multiethnic and pluricultural in a State of justice, federal
and decentralized, that consolidates the values of freedom, independence,
peace...1
Following this trend, the Constitution of Bolivia of 2009 provided
in its preamble,
[W]e left behind our colonial, republican, and neoliberal past. We assume
the historic challenge to build collectively our Social Unitarian State of
Communal Plurinational Law, that integrates and articulates the purpose
of advancing toward a Bolivia that is more democratic, productive, and that
carries, inspires, and is engaged in peace.2
The preamble continues, saying straightforwardly that “we ... build
a new State ... [and] we ... refound Bolivia.”3
Coupled with the refoundational aim is a strong reaction against
perceived “foreign influence.” This has been an issue long present in
Latin American constitutionalism, but only recently has it emerged so
strongly. In Bolivia, again, the Constitution expressly includes a prohibition against the installation of foreign military bases in the national
territory.4 Renewed efforts at implementing Simón Bolívar’s aspiration
of making Latin America a single political unit in the form of Latin
American integration are also noticeable in recent constitutions.5
1999 CONSTITUCIÓN DE LA REPÚBLICA BOLIVARIANA DE VENEZUELA (hereinafter, 1999 CONST. OF
VENEZUELA), Gaceta Oficial del jueves 30 de diciembre de 1999, No 36.860, available at: <http://www.
asambleanacional.gob.ve/index.php?option=com_content&view=article&id=24728&Itemid=238&lang
=es>. All translations in this article are those of the author unless otherwise stated.
2
REPÚBLICA DEL BOLIVIA CONSTITUCIÓN DE 2009 (hereinafter, 2009 CONST. OF BOLIVIA), available at:
<http://consuladoboliviano.com.ar/portal/node/119>.
3
Id.
4
Id. art. 10(III).
5
2008 CONSTITUCIÓN DE LA REPÚBLICA DEL ECUADOR (hereinafter, 2008 CONST. OF ECUADOR) pmbl.,
available at: <http://www.asambleanacional.gov.ec/documentos/Constitucion-2008.pdf>; 2009 CONST.
OF BOLIVIA art. 265(I).
1
22 Dante Figueroa
2.2 Rupture in the Historical Relationship between the Catholic
Church and the State
With a few historical exceptions,6 Catholicism has been the constitutionally-enshrined official religion of most Latin American countries since
their independence. Profession of the Catholic faith was even required
in some cases for high officials to assume office.7 Venezuela signaled a
departure in 1999 when it established that, “the State shall guarantee
freedom of religion and cult”,8 and that “freedom of conscience and faith
and in the teaching of religion shall be recognized and guaranteed...
without any dogmatic imposition”.9
Bolivia’s 2009 Constitution, in turn, recognizes “freedom of religion
and spiritual beliefs”,10 and that the “State is independent from religion”.11
The Constitution goes a step further in replacing the Catholic religion
as the moral foundation of the Bolivian society by affirming that the
“state assumes and promotes as ethical principles of the plural society,
aboriginal mottos such as: ‘don’t be lazy, a liar, or a thief ’”.12
Ecuador’s Constitution, in this vein, recognizes “all diverse forms
of religiosity and spirituality, and the wisdom of all cultures”.13 It too
reaffirms the “right to practice, keep, change, or profess publicly or
privately, each one’s religion or beliefs [and asserts the State’s duty] to
protect voluntary religious practices, as well as the expressions of those
who do not profess any religion”.14
Following this trend, in 2012 Mexico — a country with one of
the most catholic societies in the world — amended Article 40 of its
Constitution15 establishing that Mexico is a “secular”16 country. When
E.g., the case of Mexico under Porfirio Díaz, who served as the country’s President in the early nineteenth
century.
7
E.g., the case of former President Carlos Saúl Menem of Argentina, first elected to the Presidency in 1989,
who converted from Islam to Catholicism in order to be sworn in because the Constitution of Argentina
then required the President be a Catholic. Constitutional amendments adopted in 1994 eliminated this
requirement.
8
1999 CONST. OF VENEZUELA art. 59.
9
Id. art. 86.
10
2009 CONST. OF BOLIVIA art. 4 (emphasis added).
11
Id.
12
Id. art. 8.
13
2008 CONST. OF ECUADOR, pmbl.
14
Id. art. 66, No. 8.
15
Mexico’s Official Gazette of the Federation, available at: <http://www.dof.gob.mx/nota_detalle.php?cod
igo=5280961&fecha=30/11/2012>.
16
Article 40 of the Mexican Political Constitution states that “it is the will of the Mexican people to constitute
itself as a representative, democratic, secular, and federal Republic, comprised by free and sovereign states
6
Current Constitutional Developments in Latin America 23
discussing the bill at the Mexican House of Representatives, one representative argued that “granting an express secular character to our Mexican
State would both continue and confirm the path that our legislators posed
when drafting the Constitution of 1857, reaffirmed by the legislators of
the Constitution of 1917, because it has been proved, in our collective
experience and in the experience of other nations, that secularism is an
effective formula for coexistence of pluralism”.17
2.3 Moralistic Overtone in the New Constitutional Principles
Recent constitutional developments in Venezuela and Ecuador, to
name the principal players, are imbued with philosophical and ethical
calls to goodness, harmony, social integration, virtue, and other moralistic
goals. The Constitution of Ecuador, for example, created an institutional
apparatus called “National Equality Councils,” and other special mechanisms “for the control of public ethics and individual moral behavior”.18
In 1999 Venezuela had already institutionalized a fourth branch
of government attached to the traditional three, called the “Citizens’
Power” (Poder Ciudadano), whose responsibility is to “prevent, investigate,
and punish conduct that violates public ethics and administrative morals
[and to] promote education as a creative process of the citizenry, as well
as solidarity, liberty, democracy, social responsibility, and labor”.19 The
Citizens’ Power is exercised by the Republican Moral Council, composed
of the National People’s Defender, the Attorney General, and the General
Comptroller.20
2.4 Promotion of Indigenous Causes
The promotion of the causes of indigenous peoples is an area
where much innovation has occurred in Latin American constitutional
law. The pantheistic philosophical bases of this new movement are clearly
concerning its internal regime; but united in a federation established in accordance with the principles of
this fundamental law”.
17
Ruperto Patiño, La Reforma del Artículo 40 Constitucional [The Amendment of Article 40 of the
Constitution], Biblioteca Jurídica virtual del Instituto de Investigaciones Jurídicas de la UNAM 418, available
at: <http://biblio.juridicas.unam.mx/libros/7/3101/28.pdf>.
18
Id. art. 176.
19
1999 CONST. OF VENEZUELA art. 274.
20
Id. art. 273, para. 2.
24 Dante Figueroa
stated in the constitutions of Ecuador and Bolivia.21 The preamble of the
Ecuadorean Constitution “celebrates the ‘Pacha Mama’” — an indigenous
concept referring to planet earth — of which, it says, “we are all a part”.
The Constitution of Bolivia, in turn, deifies the planet earth under the
term, “sacred Mother Earth”.
This ideological conception is intimately connected with a clear
repudiation of the “colonial, republican, and neoliberal State”.22 The
Venezuelan charter “condemns all forms of imperialism, colonialism,
and neocolonialism”,23 while the Ecuadoran Constitution galvanizes
the “Ecuadoran people” as the “heirs of the social fights for the libera­
tion from all forms of domination and colonialism”.24 The Bolivian
Constitution openly speaks about the existence of original indigenous
farming peoples (pueblos indígenas originarios campesinos), who existed
“prior to the colonial Spanish invasion”.25
Several consequences emanate from these new developments:
2.4.1 Constitutional Recognition of the Multiplicity and Plurality of
the New Nations
The recognition of racial diversity in the country has accompanied
the recognition of the primacy of the aboriginal element. In Bolivia, at
least, new electoral districts have been formed to guarantee the representation of indigenous populations.26 The territorial and administrative
decentralization of the Bolivian State is guaranteed at the regional, local,
municipal, and other autonomous levels, and is to be achieved based
on the presence of indigenous populations.27 The self-government of
local indigenous populations is now constitutionally protected and
encouraged.28
See 2009 CONST. OF BOLIVIA, ch. IV, “Rights of Original Indigenous Farming Peoples and Nations”.
Id., pmbl.
23
1999 CONST. OF VENEZUELA art. 416, para. 8. This language is repeated in article 255(2) of the Constitution
of Bolivia, which states that one of the principles guiding the negotiation and execution of international
treaties is “[t]he rejection and condemnation of all forms of... colonialism, neocolonialism, and imperialism”.
24
2009 CONST. OF BOLIVIA, pmbl.
25
Id. art. 30, §2.
26
Id. art. 146(VII). It is also worth mentioning that in Bolivia’s neighboring country, Peru, a constitutional
amendment bill that would create the Special Electoral District for Native Communities and Original Peoples
is pending before the Peruvian Congress. See Bill 04332/2010-CR, of Sept. 23, 2010.
27
2009 CONST. OF BOLIVIA arts. 270, 303(2) & 391(3).
28
Id. art. 2.
21
22
Current Constitutional Developments in Latin America 25
Venezuela recognizes the preservation of indigenous peoples’
social, political, and economic organizations, as well as their culture,
traditions and ancient customs, languages, and religions.29 This constitutional recognition extends to their “ethnic and cultural identity, values,
spiritualities, and sacred and cult places”.30 The Venezuelan Constitution
also guarantees aboriginal representation in the National Assembly and
at other subnational levels.31 Finally, the composition of the National
Assembly includes representation quotas for indigenous communities.32
2.4.2 Official Language
Consistent with tradition, in 1999 Venezuela recognized Castilian
as the official language of the country. However, it stated that indigenous
languages are “also of official use”.33 Bolivia went a step further and
stated that, besides Castilian, thirty-seven other indigenous languages
are “official languages of the State” as well.34 The actual implications of
these innovations remain to be seen.35
2.4.3 Aboriginal Medical Practices
Venezuela gave constitutional recognition to indigenous medical
practices, and prohibited the registration of patents involving their
ancestral resources and their knowledge related to genetic resources.36
Traditional and natural aboriginal medical practices are also included
in the governmental guarantee of the right to health care in Bolivia.37
The Constitution of that country also protects the “original and ancestral
1999 CONST. OF VENEZUELA art. 119. In the context of advancing the indigenous cause, the Constitutional
Court of Colombia rendered a decision in 2010 approving an affirmative action program implemented
by a Colombian university for persons with indigenous ancestry. Case T-110/10, Acción de tutela contra
la Universidad Industrial de Santander, Ministerio de Educación y el ICETEX, available at: <http://www.
corteconstitucional.gov.co/relatoria/2010/t-110-10.htm>.
30
1999 CONST. OF VENEZUELA art. 121.
31
Id. art. 125.
32
Id. The Seventh Transitory Provision of the Constitution enumerates the criteria for the election of indigenous
members of the National Assembly, and of State and Municipal Legislative Councils.
33
Id. art. 9.
34
2009 CONST. OF BOLIVIA art. 5(I).
35
In Peru, a constitutional amendment bill that would amend article 48 of the Constitution to officially
recognize aboriginal languages is pending before the Peruvian Congress. See Bill 03649/2009-CR, of
Nov. 5, 2010.
36
1999 CONST. OF VENEZUELA art. 124.
37
2009 CONST. OF BOLIVIA art. 35(II).
29
26 Dante Figueroa
coca, in its natural nonnarcotic state, as cultural patrimony, [as a] natural
renewable resource of Bolivia, and as a factor of social cohesion”.38
2.4.4 Creation of Parallel Judicial Systems for Aboriginal Peoples
In an unprecedented move, the Bolivian Constitution created an
independent judicial system parallel to, and with the same hierarchical
level of, the ordinary judicial system called “Original Farming Indigenous
Jurisdiction” (jurisdicción indígena originario campesina), which is in charge
of providing civil and criminal justice for indigenous peoples.39 Several
important questions — such as who is subject to this system, how to
differentiate indigenous from non-indigenous parties, and whether indigenous persons enjoy more privileges than non-indigenous persons
— remain unresolved by the Constitution and need to be developed
through implementing legislation.40 Indigenous representation at the
Pluri-National Constitutional Tribunal is mandated by the Constitution.41
3 The Traditional Family
Even the most progressive of the Latin American constitutional
regimes have provided constitutional protection to the traditional family
as the fundamental nucleus of society.42 Venezuela and Bolivia provide
constitutional recognition of marriage as between a man and a woman.43
Both countries also recognize stable, de facto unions between a man and
a woman as having the same legal consequences as marriage.44
4 Political Participation and Political Parties and Movements
Political participation is an area where constitutional activity is
exceedingly strong in Latin America. Two innovations are worth mentioning in this field. First, in 2003 Colombia amended its Constitution
to set minimum requirements for political entities to gain legal existence
Id. art. 384.
Id. art. 179(I), (II).
40
For more information on this new judicial system, see Bret Gustafson, Manipulating Cartographies:
Plurinationalism, Autonomy, and Indigenous Resurgence in Bolivia, 82 ANTHROPOLOGICAL Q. 985(32)
(Sept. 22, 2009).
41
2009 CONST. OF BOLIVIA art. 199(II).
42
Id. art. 62.
43
Id. art. 63(I); 1999 CONST. OF VENEZUELA art. 77.
44
2009 CONST. OF BOLIVIA art. 63(II); 1999 CONST. OF VENEZUELA art. 77.
38
39
Current Constitutional Developments in Latin America 27
(2 percent of legally issued votes),45 with some exceptions for electoral
districts holding minorities. The measure is effective for elections taking
place from 2011 onwards.46 The same amendment provided for partial
government financial contributions to political parties and movements
with legal existence,47 and leaves it to the legislature to establish limits
on electoral campaign expenditures by political parties and movements,
and on private contributions to political elections.48 Second, Bolivia’s
Constitution recognized the right of expatriates to vote in presidential
elections, and in other elections, as determined by law.49
5 Personal Freedoms
Latin American countries have faced endemic problems related
to corruption and the violation of human rights and freedoms. Recent
efforts show a clear intent to tackle these phenomena. In the case of
Mexico, multiple constitutional amendments were enacted in 2009.50
These reforms instituted constitutional due process protections, modeled
after the Fourteenth Amendment to the U.S. Constitution, concerning
the person, family, and other matters covered by the constitutional right
to privacy. Pioneering in Latin America, Mexico recognized a right of
protection over personal information held by the government. For this
purpose, it created the writ of habeas data (although not so named in
Mexico), which allows persons to challenge the information gathered by
the government about them, with certain exceptions.51 The amendment
of 2009 requires the finding of probable cause for the issuance of judicial
arrest orders.52
CONSTITUCIÓN POLÍTICA DE LA REPÚBLICA DE COLOMBIA DE 1991 (hereinafter, 1991 CONST. OF
COLOMBIA) art. 108, available at <http://www.senado.gov.co/.../images/stories/Informacion_General/
constitucion_politica.pdf>.
46
Id. art. 108, para. 1, as amended by Legislative Act No. 1 of 2003.
47
Id. art. 109, para. 1.
48
Id. art. 109, para. 4.
49
2009 CONST. OF BOLIVIA art. 27.
50
CONST. OF MEX. art. 16, as amended Aug. 24, 2009, available at <http://www.ordenjuridico.gob.mx/
Constitucion/cn16.pdf (official website)>.
51
Exceptions are based on considerations of national security, public policy, public safety and health, or the
protection of third parties’ interests. See CONSTITUCIÓN POLÍTICA DE LOS ESTADOS UNIDOS MEXICANOS,
as amended, Diario Oficial de la Federación, 5 Febrero de 1917 (hereinafter, CONST. OF MEXICO), art.
16, para. 2, available at http://constitucion.gob.mx/index.php?idseccion=168&ruta=1. “Writ of habeas
data” is the generally accepted name of the action aimed at protecting this new right in Latin America.
Other Latin American countries, including Brazil and Colombia, have a similar writ.
52
Id. art. 16, para. 3.
45
28 Dante Figueroa
Constitutional amendments have also entered the era of the protection of third generation rights — namely, environmental, cultural,
educational, and economic rights. Venezuela, again, set the tone in 1999
when it guaranteed the right to universal health care and social security,53
and it also included an extensive list of labor, employment, and social
security guarantees,54 and the human right to a “democratic, free, and
mandatory” education.55 Mexico, for its part, guarantees the constitutional right to the enjoyment of culture, cultural rights, and cultural
manifestations.56 Colombia mandates the State to provide health care
and environmental clean-up.57 Ecuador’s Constitution contains an entire
section on consumers’ rights.58 Finally, Bolivia crystallized the State’s
obligation to guarantee food safety by means of “healthy, adequate, and
sufficient nutrition for all the population”.59 Bolivia’s constitutional rights
in the areas of education, health care, labor, consumerism, and social
security are crafted along the lines of the Venezuelan Constitution as
well. Interestingly, the Bolivian Constitution prohibits the privatization
or concession of public health goods or services, or of social security
benefits.60
6 Reforms in Criminal Procedure and Sentencing
Perhaps the most meaningful criminal procedure reform in Latin
America took place in Chile in 2005, with the complete replacement of
the ancient inquisitorial criminal procedure system by an accusatorial
system.61 Mexico followed suit and in 2008 welcomed a new accusatorial
system as well.62 Mexico’s new procedure is generally conceived along the
lines of U.S. criminal procedure, with the notable exclusion of a jury.63
1999 CONST. OF VENEZUELA arts. 83-85.
Id. arts. 87-97.
55
Id. art. 102.
56
CONST. OF MEXICO as amended by Decree of April 30, 2009.
57
1991 CONST. OF COLOMBIA art. 49.
58
2008 CONST. OF ECUADOR arts. 52-55.
59
2009 CONST. OF BOLIVIA art. 16.
60
Id. arts. 38(I), 45(VI).
61
See Kirtland C. Marsh, To Charge or Not to Charge, That is Discretion: The Problem of Prosecutorial
Discretion in Chile, and Japan’s Solution, 15 PAC. RIM L. & POL’Y J. 543 (2006); Rafael Blanco et al., Reform
to the Criminal Justice System in Chile: Evaluation and Challenges, 2 Loy. U. Chi. Int’l L. Rev. 253 (2005);
Carlos de la Barra, Chile: Adversarial vs. Inquisitorial Systems: The Rule of Law and Prospects for Criminal
Procedure Reform in Chile, 5 SW. J.L. & TRADE AM. 323 (1998).
62
CONST. OF MEXICO art. 20.
63
For more on the differences between the civil law inquisitorial criminal system and the Anglo-American
accusatorial criminal procedure, see Rogelio Pérez-Perdomo & John Henry Merryman, “Civil Procedure”, in
53
54
Current Constitutional Developments in Latin America 29
The amendment also included sweeping procedural guarantees during
criminal prosecutions — including the constitutional right to be released
on bail and restrictions on incommunicado detentions — and renewed
efforts to prosecute organized crime.64 This new criminal system is to be
implemented gradually, along with the implementation of a new juvenile
criminal system.65
The Mexican amendments include the prohibition against station­
ing military personnel in private homes without the authorization of the
homeowner, with certain exceptions.66 They also allow Mexican nationals
serving sentences in foreign countries to be brought to Mexican territory
to complete their sentences, with their prior consent and in accordance
with international treaties.67 Finally, the Constitution abolished the death
penalty and prohibited severe corporal punishment, excessive fines,
confiscation, and any other unusual and far-reaching (trascendentales)
punishments.68
Pursuant to Article 22 of its Constitution,69 and in an effort to put an
end to its internal armed conflict — that has lasted almost half a century,
leaving millions of casualties — Colombia passed a new legislation in
2012,70 named “Legal Framework for Peace” that created the transitory
Article 66 of the Colombian Constitution. This new legislation allows
the Colombian Government to establish a transitional criminal justice
system for judging members of illegal armed groups (among them leftwing guerillas and right-wing paramilitary groups) and government
agents for crimes committed during the armed conflict.71 This initiative
THE CIVIL LAW TRADITION: AN INTRODUCTION TO THE LEGAL SYSTEMS OF EUROPE AND LATIN AMERICA
112-24 (J. Merryman et al. eds., 2007). See also Robert Kossick, Litigation in the United States and Mexico:
A Comparative Overview, 31 U. MIAMI INTER-AM. L. REV. 23 (2000).
64
CONST. OF MEXICO art. 20(B)(II).
65
Id. art. 18.
66
Id. art. 16, para. 17.
67
Id. art. 18, para. 7.
68
Id. art. 22, para. 1.
69
Article 22 of the Colombian Constitution states that “the peace is a right and a binding duty”.
70
Legislative Act Nº 1 of 2012, Colombian Official Gazette No. 48.508 of July, 31, 2012, available at: <http://
www.secretariasenado.gov.co/senado/basedoc/cp/acto_legislativo_01_2012.html>.
71
First paragraph of Transitory Article 66 of the Colombian Constitution prescribes that “the instruments of
transitional justice will be exceptional and will have the main goal of facilitating the end of the internal
armed conflict and achieving a stable and long-lasting peace, with guarantees of non-recurrence and
safety for all Colombians; to guarantee in the greatest possible extent, the rights of victims to the truth,
justice, and compensation.
A statutory law can authorize that, within the framework of a peace agreement, a different treatment be
given to the different illegal armed groups that have participated in the internal armed conflict, and also
to the agents of the State, regarding their participation in that conflict”.
30 Dante Figueroa
is intended to solve the legal situation of thousands of persons that had
demobilized from these armed groups, by prioritizing the prosecution
of the most serious cases, which would incentivize more demobilization
of members of those groups.72
The new constitutional provision, in its paragraph fourth, allows
Congress to pass legislation: (i) to determine selection criteria for the
criminal investigation against the main responsible of crimes against
humanity, genocide, and war crimes that were systematically perpetrat­
ed; (ii) establishing the conditions and requirements under which the
suspension of the execution of sentence would proceed; (iii) establishing
cases where extrajudicial sanctions, alternative penalties, and special
ways of execution and compliance of the penalties may be applied; and
(iv) allowing the conditional waiver of criminal prosecution of all cases
that were not selected.73
This amendment has been criticized both for Colombian jurists
and Human Rights Organizations because it is considered that it allows
Congress to enact statutes that leave unpunished crimes when committed
by people that were not the main responsible — but who had direct participation on those crimes — which violates international human rights law
and humanitarian law.74 Moreover, on April 5, 2013, Colombia’s General
Attorney filed a constitutional lawsuit requesting the Constitutional Court
Press Conference Room of the Colombian Senate, Acto legislativo que establecerá un nuevo marco legal
para la paz fue radicado en el Congreso [Legislative Act that will establish a New Legal Framework for
Peace is now being discussed in Congress], available at: <http://www.senado.gov.co/sala-de-prensa/
noticias/item/12294-acto-legislativo-que-establecera-un-nuevo-marco-legal-para-la-paz-fue-radicado-enel-congreso>.
73
In order to apply the above-mentioned measures, the fifth paragraph of Article 66 of the Colombian
Constitution sets that the beneficiaries must comply the following requirements: “leave the weapons,
assume their responsibility, contribute to establishing the truth and to the integral compensation of
victims, release the kidnapped people, and remove the minors that were illegally recruited and are
under the control of armed groups outside the law”. In addition, paragraph tenth of the same provision
establishes that “the application of transitional justice instruments to armed groups outside the law that
had participated in hostilities, will be limited to those who demobilize collectively within the framework
of a peace agreement, or individually according to the procedures established under the authorization of
the National Congress”.
74
Comisión Colombiana de Juristas, Comentarios al “marco jurídico para la paz” [Comments on the “Juridical
Framework for Peace”], available at: <http://www.coljuristas.org/documentos/actuaciones_judiciales/
comentarios_marco_juridico_2012-06-04.pdf>; See also Letter from José Miguel Vivanco, on behalf of
Human Rights Watch, to the Presidents of the Colombian Senate and House of Representatives on May
1, 2012, available at: <http://www.hrw.org/sites/default/files/related_material/Carta%20de%20HRW%20
sobre%20Marco%20Juridico%20para%20la%20Paz.pdf>.
72
Current Constitutional Developments in Latin America 31
to declare the unconstitutionality of certain terms mentioned above
(“main responsible”, “systematically perpetrated”, and “all cases”) since
the current provision would violate international obligations of Colombia
regarding the investigation and sanction of international crimes, which
could activate the jurisdiction of the International Criminal Court.75
Furthermore, in 2012 Colombia passed another amendment to the
Constitution (particularly to Articles 116, 152, and 221) that expanded the
military criminal jurisdiction.76 The amendment basically creates a new
tribunal — Tribunal de Garantías Penales (Criminal Guarantees Tribunal)
— that is in charge of (i) controlling the fulfillment of guarantees in
any criminal investigation or procedure against a member of the public
force; (ii) controlling the criminal accusation against members of the
Public Force, in order to guarantee the fulfillment of the material and
substantive admissibility requirements to initiate a criminal trial; and
(iii) solving the jurisdiction disputes between ordinary tribunals and military
criminal tribunals.77 Therefore, a previous procedure was established to
control the criminal accusation against a member of the military.
In addition, new Article 221 of the Colombian Constitution estab­
lishes that the violations to International Humanitarian Law will always
be under the jurisdiction of the military courts, unless the violations are:
(1) crimes against humanity; (2) genocide; (3) forced disappearances;
(3) extrajudicial executions; (4) sexual violence; (5) torture; or (6) forced
displacement. These and other reforms introduced by this constitutional
amendment have been criticized by the Inter-American Commission
on Human Rights (IACHR) who stated that “on the basis of the interAmerican standards that require States to judge human rights violations
in courts of ordinary jurisdiction, various countries of the region have
adopted reforms to significantly restrict the scope of military jurisdiction
Procuraduría General de la Nación, Procurador general de la Nación, Alejandro Ordóñez Maldonado,
solicita a la Corte Constitucional que se declaren inexequibles expresiones del Marco Jurídico para la Paz
[The General Attorney of the Nation, Alejandro Ordoñez Maldonado, request to the Constitutional Court
the Unconstitutionality declaration of terms from the Juridical Framework for Peace], available at: <http://
www.procuraduria.gov.co/portal/Procurador-general_de_la_Nacion__Alejandro_Ord_nez_Maldonado__
solicita_a_la_Corte_Constitucional_que_se_declaren_inexequibles_expresiones_del_marco_juridico_para_
la_paz.news>.
76
Legislative Act Nº 2 of 2012, Colombian Official Gazette No. 48.657 December 28, 2012, available at:
<http://www.secretariasenado.gov.co/senado/basedoc/cp/acto_legislativo_02_2012.html>.
77
2012 Colombian Const. Article 116.
75
32 Dante Figueroa
[...] the constitutional reform on military criminal jurisdiction would
reverse that progress and would constitute a serious setback that
jeopardizes the right to justice for victims of human rights violations”.78
The IACHR also criticized that grave human rights violation, like “war
crimes and arbitrary detentions”, are under the jurisdiction of military
tribunals.79
7 Changes Affecting the Branches of Government
7.1 Executive Branch
7.1.1 Presidential Reelection
Two recent cases illustrating the dynamics of Latin American politics are noteworthy, one affecting an administration with a progressive tilt,
where the possibility of reelection of an incumbent president succeeded,
and the other concerning a conservative government, where it failed.
The first case is that of Nicaragua, where in 2009 the Constitutional
Chamber of the Supreme Court issued a decision allowing the incumbent
President to run for reelection.80 The novelty of the decision resides in the
fact that it partially repealed language that had banned such reelection.
The Court found that the prohibition of reelection contradicted, among
other constitutional guarantees, the principles of unconditional equality
in the exercise of the political rights of the office holders to participate in
the political affairs of the country, the principle of proportionality, and
the principles of sovereignty and national self-determination. All these
principles, the Court held, are in accordance with international human
rights conventions by which Nicaragua is bound. The argument about
equality centered around the fact that under the Constitution the only
grounds for limiting the reelection bid of elected officials are age, criminal
conviction, or incapacity. The restriction on reelection was established,
the Court also stated, by the “derivative constitutional power” reflected in
a 1995 constitutional amendment, and not by the original constitutional
framers.81 By extending its powers beyond those expressly granted by
Organization of American States, IACHR Expresses Concern over Constitutional Reform in Colombia,
available at: <http://www.oas.org/en/iachr/media_center/PReleases/2013/004.asp>.
79
Organization of American States, IACHR Expresses Concern over Constitutional Reform in Colombia,
available at: <http://www.oas.org/en/iachr/media_center/PReleases/2013/004.asp>.
80
Sentencia No. 504, Supreme Court of Justice of Nicaragua, LA GACETA – DIARIO OFICIAL [OFFICIAL
GAZETTE], Jan. 18, 2011.
81
Id. (citing Law 192 of July 4, 1995, Partial Amendment Law to the Political Constitution of Nicaragua,
78
Current Constitutional Developments in Latin America 33
the original framers — that is, by restricting the “right” of only certain
government officials to run for reelection based on the aforementioned
grounds — the derivative constitutional power violated the principle of
sovereignty protected by the same Constitution, the Court said.
In another interesting turn of constitutional reasoning, the Court
held that the preamble to the Constitution prevails over any constitutional provisions that contradict the philosophical bases expressed in its
preamble, stemming from “the revolutionary conquests achieved by the
people”, whether in words or in spirit.
The second case involves Colombia, whose Constitutional Court
invalidated a law calling for a constitutional referendum on the question
of whether incumbent Presidents were allowed to run for a third term.82
The Court, following the same line of reasoning as the Nicaraguan court,
reiterated its precedents holding that the derivative constitutional power
may amend the Constitution but not substitute it with a new document.
The Court also found a series of irregularities related to the financing
of the campaign leading to the adoption of the law and concluded that
this violated the principles of transparency and political pluralism that
govern elections, according to the applicable election laws. Finally, the
Court pointed out procedural abuses in the legislative process leading
to enactment of the reelection bill. In sum, the sitting president was not
allowed to run for a third term.
7.1.2 Other Amendments Concerning the Executive Branch
Other reforms meriting attention are (1) the incorporation into the
Constitution of Mexico of the President’s obligation to render a written,
annual state of the nation report to Congress;83 and (2) Bolivia’s adoption
of constitutional provisions that allow the incumbent President to run
for a third term84 and subject the President to removal by Congress.85
art. 13).
Decision of February 26, 2010 invalidating Law 1354 of 2009, available at: <http://www.corteconstitucional.
gov.co/relatoria/2010/c-141-10.htm>.
83
CONST. OF MEXICO art. 69, para. 1, as amended by Amendment of August 15, 2008.
84
2009 CONST. OF BOLIVIA art. 168.
85
Id. arts. 161(7), 171.
82
34 Dante Figueroa
7.1.3 Constitutional Issues Concerning the Executive Branch
In 2012, Paraguay experienced difficult moments when President
Fernando Lugo was subject to a political trial (impeachment) under
Article 225 of the Paraguayan Constitution,86 which ended with President
Lugo been removed from its office. President Lugo was accused of several
charges, but the event that triggered the political trial against him was
the case known as “Killing in Curuguaty”, where a group of indigenous
land squatters ambushed — with firearms — the Paraguayan Police officers that were trying to evict them from the lands, resulting in eleven
people dead and one dozen injured.87 Following the removal of Lugo,
Paraguay’s Congress and new government were very criticized by several
Latin American presidents, whom argued that the political trial did not
have minimum standards of due process, and that the entire situation
was a cover coup d’état.88
In Venezuela the recent death of Hugo Chávez caused a constitutional dispute regarding who had to replace him until a new president
is elected. On the one hand, Article 231 of the Venezuelan Constitution
prescribes that in order to take office the elected president has to swear
before the National Assembly on January 10th of the first year of his term.
On the other hand, the first paragraph of Article 233 of the Venezuelan
Constitution establishes that death is considered an absolute absence
of the President, while its second paragraph prescribes that when the
Article 225 of the Paraguayan Constitution establishes that:
“The president of the Republic, the Vice President, cabinet ministers, justices of the Supreme Court of
Justice, the attorney general, the public defender, the comptroller and the deputy comptroller general
of the Republic, and members of the Superior Electoral Court may be forced to undergo impeachment
proceedings for malfeasance in office, for crimes committed in office, or for common crimes. The Chamber
of Deputies, by a two-thirds majority, will press the respective charges. The Senate, by a two-thirds absolute
majority, will conduct a public trial of those charged by the Chamber of Deputies and, if appropriate,
will declare them guilty for the sole purpose of removing them from office. In cases in which it appears
that common crimes have been committed, the files on the respective impeachment proceedings will be
referred to a competent court.” Translation available at: <http://www.servat.unibe.ch/icl/pa00000_.html>.
87
Allan R. Brewer-Carías, ON THE CONSTITUTIONALITY OF THE POLITICAL TRIAL AGAINST PARAGUAYAN
PRESIDENT FERNANDO LUGO, 2 available at: <http://iaba.org/blog/wp-content/uploads/2012/07/Opinionof-Prof.-Brewer-Car%C3%ADas-on-the-Constitutionality-of-the-Political-Impeachment-in-Paraguay.pdf>;
See also Nahem Reyes & Jorge Llano, La Destitución de Fernando Lugo y sus Repercusiones en el Hemisferio:
Algunas Reflexiones Iniciales [The Removal of Fernando Lugo and Its Repercussions in the Hmisphere: Some
Initial Reflections], Consejo Venezolano de Relaciones Internacionales, 3 (2012), available at: <http://www.
covri.org/resources/uploads/10-07-2012/4ffc86780fd61.pdf>.
88
See Fox News, Paraguay Faces Criticism in Latin America for Removing President Fernando Lugo, available
at: <http://latino.foxnews.com/latino/politics/2012/06/24/paraguay-faces-criticism-in-latin-america-forremoving-president-fernando-lugo/#ixzz2Pc14NfnS>.
86
Current Constitutional Developments in Latin America 35
absolute absence of the President occurs before he or she takes office,
there has to be new elections within the subsequent thirty days, and in
the meantime the President of the National Assembly shall assume as
President of the Republic.
President Chávez could not be sworn before the National Assembly
because he was treating his cancer in Cuba. On January 9, 2013 the
Venezuelan Supreme Tribunal of Justice established that President Chávez
did not have to take office again because he was the current president
— thus, there were no vacancy in the executive branch — and President
Chávez could be sworn in a posterior date established by the National
Assembly once the impediments disappear.89
Nevertheless, President Chávez was never sworn when he came back
to Venezuela on February 18, 2013, due to his serious health problems.
Later on, on March 5, 2013, Chávez passed away without been sworn in
before the National Assembly. Therefore, in accordance with the plain
language of the Constitution, the President of the Venezuelan National
Assembly, Mr. Diosdado Cabello should have replaced him as President
of the Republic. However, the Vice President of the Republic, Mr. Nicolas
Maduro is the current President of Venezuela until the elections (he is the
candidate of the official party and Chávez named him as his successor).
Maduro was appointed as interim President based on the decision
of the Supreme Tribunal of Justice of January 9, 2013-, which established
that despite the fact that the Chávez was not sworn in on January 10th,
2013, he continued to be in office. It was considered that in this situation
the second paragraph of Article 233 of the Constitution did not apply
(rule concerning the absolute absence of the president before he or she
takes office); instead, it was argued that since the Supreme Tribunal held
that Chávez was in office when he died, paragraph third of Article 233
was the one that had to be applied,90 which prescribes that if the absolute
Tribunal Supremo de Justicia Expediente Nº 12-1358, available at: <http://www.tsj.gov.ve/decisiones/scon/
enero/02-9113-2013-12-1358.html>. The Tribunal considered that under the “Principle of continuity of
the Public Authorities, “the Principle of Preservation of the Popular Will”, and “the Principle of Continuity
of the Administration”, the Venezuelan President was able to continue in his office.
90
Allan R. Brewer-Carías, CRÓNICA XIII. SOBRE LA CONSOLIDACIÓN, DE HECHO, DE UN GOBIERNO DE
SUCESIÓN DEL PRESIDENTE H. CHÁVEZ CON MOTIVO DEL ANUNCIO DEL FALLECIMIENTO DEL PRESIDENTE
CHÁVEZ EL 5 DE MARZO DE 2013 [Chronicle XIII About the Consolidation of Fact of a Government that
Succeed President H. Chávez, in Relation with the Announcement of the Death of President Chavez on
March 5, 2013] 7 (2013), available at: <http://www.allanbrewercarias.com/Content/449725d9-f1cb89
36 Dante Figueroa
absence of the President occurs within the first four years of his term,
the Vice President shall assume as President of the Republic.
7.2 Legislative Branch
Peru’s constitutional law has also touched the legislative branch
in important ways. A constitutional amendment approved in 2009,
which comes into force for the 2011 electoral process, provides that only
Peruvians by birth may run for Congress. The tenure of legislative office
is fixed at five years, and candidates for the Presidency of the Republic
cannot become candidates for Congress.91
Unlike Venezuela, where the legislative power resides in a unicamer­
al National Assembly92 in keeping with the French model,93 Bolivia still
adheres to the principle of a bicameral Congress.94 It has also removed
all types of immunity for members of Congress,95 following the pattern
established by Honduras in 2003.96
7.3 Judicial Branch
The judiciary has likewise been subject to significant changes in
recent times in Latin America. As stated in Section 6, above, Mexico
overhauled its criminal procedure system and created an integral justice
system for juveniles, which has yet to be implemented. In the case of
Bolivia, the Constitution has injected the appointment of members of
the Supreme Tribunal of Justice directly into the political process. In
474b-8ab2-41efb849fea3/Content/CR%C3%93NICAS%20CONSTITUCIONALES%20XIII.%208-3-2013%20
[1].%20Brewer.%20Sobre%20la%20conslidaci%C3%B3n%20de%20un%20gobierno%20de%20
sucesi%C3%B3n%20presidencial.pdf>.
91
Ley No. 29,402, El Peruano (official gazette), Sept. 8, 2009, available at: <http://www.congreso.gob.
pe/ntley/Imagenes/Leyes/29402.pdf> (amending article 90 of the 1993 Constitución Política del Perú
(hereinafter, Const. of Peru), available at: <www.tc.gob.pe/legconperu/constitucion.html> (includes
reforms through Oct. 2005)).
92
1999 CONST. OF VENEZUELA art. 186.
93
See CONSTITUTION OF FRANCE OF 1791, available at: <http://sourcebook.fsc.edu/history/
constitutionof1791.html>, Title III, “Of Public Powers”, para. 3 (unofficial source). See also J. Merryman et
al., “Sources of Law and the Judicial Process in Civil Law Systems”, in THE CIVIL LAW TRADITION: EUROPE,
LATIN AMERICA, AND EAST ASIA 208 (J. Merryman et al. eds., 1994) (stating that “a cardinal tenet of
the French was that all law-making power was to be vested in a representative assembly”). Costa Rica,
Nicaragua, and Peru also follow the French unicameral model.
94
2009 CONST. OF BOLIVIA art. 145.
95
Id. art. 152.
96
Decree No. 175-2003 of Oct. 28, 2008, art. 1, repealed art. 200 of the CONSTITUCION POLITICA DE LA
REPUBLICA DE HONDURAS of 1982, which had granted general immunity to the Deputies of the National
Congress.
Current Constitutional Developments in Latin America 37
fact, these magistrates are elected for only one six-year term by universal
suffrage in a process that includes a preselection of the candidates by the
legislative branch, which is called the “Plurinational Legislative Assembly”
(Asamblea Legislativa Plurinacional).97 Venezuela also possesses a judicial
appointment process that is mired in politics. In effect, the members of
the Supreme Tribunal of Justice are selected in a complex procedure that
requires the intervention of the Citizens’ Power, which prepares a roster
with the candidates for the final decision of the National Assembly.98
The National Assembly retains the power to remove the members of the
Supreme Tribunal of Justice at any time.99
On February 21, 2011, the Ecuadorian Government called for
Referendum and Popular Consultation that took place on May 7, 2011,
which had five questions that sought to amend the Constitution. Two
of these questions were related to the Judiciary: (i) whether substituting
the entire Judicature Council100 for a Transitional Judicature Council,
comprised of three members — one appointed by the President, one by
the National Assembly, and one by the Function of Transparency and
Social Control, — which would exercise the functions of the Judicature
Council and it would restructure the judiciary, within a 18 months dead­
line; (ii) whether to modify the composition of the Judicature Council,
by amending the Constitution and reforming the Organic Code of the
Judicial Function.101
A group of scholars criticized this bill because in their opinion it
would affect the separation of powers between the judicial branch and
2009 CONST. OF BOLIVIA art. 182.
1999 CONST. OF VENEZUELA arts. 264, 265.
99
Id.
100
Article 254 of the Ecuadorian Organic Code of the Judicial Function defines the Judicature Council as
“... the exclusive organism of government, administration and discipline of the Judicial Function [Judicial
Branch], which comprise: jurisdictional organisms, administrative organisms, auxiliary organisms, and
autonomous organisms”. In addition, under sections 3 and 6 of Article 264 of the same statute, the Council
is in charge of the “appointment and evaluation of the Justices of the National Court of Justice and judges
of the Provincial Courts, judges of first level, District Attorneys, Fiscal Agents and District Defenders”, and
of “establishing the politics for the selection, tenders of opposition and merits, permanency, discipline,
evaluation [,] and education and training of the officers of the Judicial Function, in accordance with the
general politics issued by the Advisory Council”.
101
Consejo Nacional Electoral de Ecuador, Resultados del Referéndum y Consulta Popular 2011 [Results of
the Refererndum and Popular Consultation 2011] 3-4, available at: <http://www.lexis.com.ec/webtools/
biblioteca_silec/documentos/noticias/RESULTADOS%20DEL%20REFERENDUM%20Y%20CONSULTA%20
POPULAR.pdf>.
97
98
38 Dante Figueroa
the executive branch.102 They based their opinion in the fact that the
Transitional Judicature Council was comprised of three members, two of
them appointed by the executive and legislative branches, which would
imply that “President Correa and his political movement would have an
absolute control over the Technical Commission that will be in charge
of restructuring all the judicial function in a deadline of 18 months”.103
They considered that the situation “... constitute a clear violation of the
obligations of ‘separation and independence of public powers’ under
article 3 and 7 of the Inter-American Democratic Charter”.104 For in­
stance, Section 3 of Article 181 of the Constitution, introduced by the
2011 amendment, prescribes that the Council is in charge of “leading
the procedures aimed to select judges and other officials of the Judicial
Function, and also for their evaluation, promotion, and sanction...”.105
Despite the criticism, both questions were approved by the people with
a 52, 02% and 52, 66%, respectively.106
8 Constitutional Emergencies
Latin America has a long history of being governed by autocratic
rulers pursuant to emergency provisions established or allowed by
their constitutions. Colombia, for example, was ruled under emergency
provisions for thirty years between 1958 and 1988.107 In tandem with
this approach, judicial interpretations of declarations of emergency
Letter of Douglas Cassel, Pier Paolo Pigozzi Sandoval, Hernán Salgado Pesantes, and Pablo Dávila Jaramillo,
to the Executive Secretary of the Inter-American Comission on Human Rights on January 28, 2011,
concerning the Referendum and Plebiscite in Ecuador, available at: <http://www3.nd.edu/~ndlaw/cchr/
news/Pier/2_LetterSPIACHR.pdf>.
103
Letter of Douglas Cassel, Pier Paolo Pigozzi Sandoval, Hernán Salgado Pesantes, and Pablo Dávila Jaramillo,
to the Executive Secretary of the Inter-American Comission on Human Rights on January 28, 2011,
concerning the Referendum and Plebiscite in Ecuador, 2 available at: <http://www3.nd.edu/~ndlaw/cchr/
news/Pier/2_LetterSPIACHR.pdf>.
104
Letter of Douglas Cassel, Pier Paolo Pigozzi Sandoval, Hernán Salgado Pesantes, and Pablo Dávila Jaramillo,
to the Executive Secretary of the Inter-American Comission on Human Rights on January 28, 2011,
concerning the Referendum and Plebiscite in Ecuador, 2 available at: <http://www3.nd.edu/~ndlaw/cchr/
news/Pier/2_LetterSPIACHR.pdf>.
105
Ecuadorian Constitution, Section 3 of Article 181.
106
Consejo Nacional Electoral de Ecuador, Resultados del Referéndum y Consulta Popular 2011 [Results of
the Referendum and Popular Consultation 2011] 4-9, available at: <http://www.lexis.com.ec/webtools/
biblioteca_silec/documentos/noticias/RESULTADOS%20DEL%20REFERENDUM%20Y%20CONSULTA%20
POPULAR.pdf>.
107
Gabriel L. Negretto et al., Liberalism and Emergency Powers in Latin America: Reflections on Carl Schmitt
and the Theory of Constitutional Dictatorship, 21 Cardozo L. Rev. 1797 (2000).
102
Current Constitutional Developments in Latin America 39
have consistently judged them as a “political question,” and therefore
nonjusticiable.108
Consequently, constitutional law in the region gives much attention to the declaration of constitutional emergencies. In Bolivia, this
power has been granted to the President subject to ratification by the
legislature.109 In Venezuela, the President may declare a constitutional
emergency based on political unrest for a period of up to ninety days,
renewable once for up to ninety days with the previous authorization
of the National Assembly.110 This Emergency Decree is subject to the
approval of the National Assembly within eight days after its promulgation and to constitutional review by the Constitutional Chamber of the
Supreme Tribunal of Justice.111
9 Economic Model
When it comes to the determination of their economic models
Latin American nations have oscillated between liberalism and central
planning since their inception as independent nations.
In this context, the case of Bolivia is striking. On the one hand,
the Bolivian Constitution contains strong provisions guaranteeing free
initiative and a free market. On the other hand, it greatly increases the
intervention of the government in the economy. Examples of the first
situation include multiple constitutional provisions on the recognition and protection of private initiative in the economy112 (referred to
else­where in the Constitution as “free enterprise and entrepreneurial
initiative”113), cooperatives,114 and the individual and collective ownership of land.115 Instances of a growing governmental intrusion into the
economy are reflected in a broad government mandate to administer
public services and utilities,116 and the outright declaration of natural
resources and hydrocarbons as the property of the Bolivian people, the
Id. at 5.
2009 CONST. OF BOLIVIA arts. 137-138.
110
1999 CONST. OF VENEZUELA art. 338, para. 3.
111
Id. art. 339.
112
2009 CONST. OF BOLIVIA art. 308.
113
Id. art. 311(5).
114
Id. arts. 55, 306(II), 330(II), 351(I), 369(I), 370(II), 378(II) & 406(II).
115
Id. art. 311(II)(2).
116
Id. art. 20(II).
108
109
40 Dante Figueroa
exclusive administration of which corresponds to the Bolivian government.117 The Constitution also prohibits the creation of latifundia.118 The
corollary to these provisions is the constitutional provision that punishes
anyone involved in a violation of the constitutional precepts regarding
the use and administration of natural resources as “guilty of treason to
the motherland”.119
The aforementioned provisions of the Bolivian Constitution fol­
lowed their equivalents in the Venezuelan Constitution of 1999 almost
verbatim, in both spirit and letter. Both constitutions, for example, contain a norm providing for the punishment of “economic illicit conduct,
speculation, entrapment, usury ... and other related crimes”.120 The
provisions on the recognition of private initiative and the prohibition
of latifundia are similar as well.121
10 Fight against Narcotrafficking and Organized Crime
The tragic reality of the twin social evils of narcotrafficking and
organized crime has lately mobilized two of the largest Latin American
countries, Mexico and Colombia, to take constitutional action. Through
a 2009 constitutional amendment, Mexico’s Constitution granted powers
to the federal legislature to issue a general law on kidnapping and to
establish punishments against organized crime.122
In the case of Colombia, a 2009 constitutional amendment prohib­
its the carrying and consumption of narcotics or psychotropic substances,
except when medically prescribed, and establishes the government’s
duty to help addicts recover.123 Another Colombian amendment of the
same year sets forth penalties for political entities that cover up actions
of their members convicted during office for crimes related to illegal
armed groups and narcotrafficking activities, crimes against democratic
participation mechanisms, or crimes against humanity.124 Finally, the same
Id. arts. 9(6), 349(I).
Id. art. 398.
119
Id. art. 124.
120
1999 CONST. OF VENEZUELA art. 114; 2009 CONST. OF BOLIVIA art. 325.
121
Id.
122
Decree of May 4, 2009 (amending CONST OF MEXICO art. 73(XXI), para. 1).
123
Constitutional Amendment of December 21, 2009, available at: <http://www.secretariasenado.gov.co/
senado/ basedoc/arbol/1001.html> (Colom.).
124
Constitutional Amendment of July 14, 2009, art. 107, available at: <http://www.secretariasenado.gov.
co/senado/ basedoc/cp/acto_legislativo_01_2009.html> (Colom.).
117
118
Current Constitutional Developments in Latin America 41
amendment forbids those convicted of crimes affecting the patrimony
of the State, crimes related to illegal armed groups and narcotrafficking
activities, crimes against democratic participation mechanisms, or crimes
against humanity from running for office, being appointed in government positions, and having contracts with the State.125
11 Fight against Government Corruption
Unfortunately, government corruption is intimately related to the
phenomena of narcotrafficking and organized crime in the region. Latin
American nations have reacted by strengthening their constitutional
frame­works to deal with these situations. Mexico is a good example of this
tendency. In 2009, that country approved a wide-ranging modification
of the constitutional provisions dealing with the salaries of government
employees. The amendment provides that these salaries may not be
reduced,126 or be higher than those of their hierarchical superiors, with
several exceptions,127 and are subject to an overall ceiling equal to the
remuneration accorded to the President of the Republic.128 Finally, the
amendment states that no social security benefits, credits, or loans may
be granted to government employees without prior budgetary allocations
by law, presidential decree, or pursuant to labor contracts.129 It leaves it to
Congress to establish punishments for the violation of these provisions.130
12 International Law and International Relations
The interaction between domestic law and international law has
been a particular subject of tension in Latin America, particularly after
World War II. The emergence of the Inter-American Human Rights
System has posed colossal challenges to the weak democracies of the
region, and these democracies have reacted in recent times by amending
their constitutions in order to accommodate the new realities created
Constitutional Amendment of July 14, 2009, art. 122, available at: <http://www.secretariasenado.gov.
co/senado/ basedoc/cp/acto_legislativo_01_2009.html> (Colom.).
126
CONST. OF MEXICO art. 123(IV), as amended by Decree of August 24, 2009 (amending and making
additions to arts. 75, 115, 116, 122, 123 and 127).
127
Id. art. 127(III).
128
Id. art. 127(II).
129
Id. art. 127(IV).
130
Id. art. 127(VI).
125
42 Dante Figueroa
by the increasing application of international treaties into the domestic
legal systems with regard to the protection of human rights.
Argentina first broke ground in 1994 when it granted constitutional
rank, a status superior to legislative enactments, to enumerated international human rights treaties. It also allowed Congress to give future
treaties such status.131 Venezuela’s 1999 Constitution was very prolific in
incorporating matters of international law into its text as well. In fact, it
established the government’s duty to guarantee human rights protected
by international treaties,132 and eliminated the statute of limitations and
the possibility of amnesty or pardon for serious human rights violations
and war crimes.133 In addition, the Venezuelan Constitution explicitly
creates a cause of action for damages in favor of victims of human
rights violations.134 Finally, in a turn away from international law, that
Constitution clarifies the “unique, sovereign, and indivisible concept
of the Venezuelan people”, denying “any effect of the international law
usage of the word ‘people’”.135
In 2009 Bolivia followed the path previously set by Argentina and
Venezuela but in rather cryptic language:
[T]he international treaties and conventions ratified by the Plurinational
Legislative Assembly [Bolivia’s unicameral Congress], that recognize human
rights, and that prohibit their limitation during Emergency Situations prevail
in the domestic order. The rights and duties established in this Constitution
shall be interpreted in accordance with the international human rights treaties
ratified by Bolivia.136
Also concerning matters related to international law, Bolivia’s
Constitution contains a novel provision stating that Bolivian citizenship
is not lost by the acquisition of citizenship in a foreign country.137 The
1994 CONSTITUCIÓN NACIONAL (hereafter 1994 CONST. OF ARGENTINA), ch. IV, “Powers of Congress,”
§75, No. 22, available at: <http://www.senado.gov.ar/web/interes/constitucion/cuerpo1.php>.
132
1999 CONST. OF VENEZUELA art. 19.
133
Id. art. 29, para. 2.
134
Id. art. 30.
135
Id. art. 126, para. 2. The Venezuelan Constitution does not specify what concept of “people” provided by
international law it is referring to. One possibility is the concept contained in the 1989 International Labour
Organization’s Convention No. 169 concerning Indigenous and Tribal Peoples in Independent Countries,
available at: <http://www.ilo.org/ilolex/cgi-lex/convde.pl?C169>. The matter remains, however, to be
determined in the current Venezuelan Constitution.
136
2009 CONST. OF BOLIVIA art. 13(IV).
137
Id. art. 143(I).
131
Current Constitutional Developments in Latin America 43
same country, which became landlocked in the late nineteenth century in
a war against Chile, included a provision in its Constitution enshrining
its maritime claims of access to the Pacific Ocean as “non-waivable”.138
In regard to the last constitutional provision, several steps have
been taken by Bolivia in order to achieve a sovereign access to the sea.
For instance, on April 5, 2011, a new public entity was created, named
Dirección Estratégica de Reivindicación Marítima (DIREMAR – Strategic
Directorate of Maritime Claim)139 whose main task is “to plan, develop,
and evaluate strategies for the maritime claim”.140 However, the most
significant measures taken by Bolivia are: (i) the enactment on March 23,
2013, of a statute that leaves without effect the reservation made by
Bolivia to Article VI of the American Treaty on Pacific Settlement of 1948,
also known as “Pact of Bogota”,141 which establishes that the procedures
contemplated by the treaty are not applicable to disputes that were solved
by the parties before the treaty took effect;142 and (ii) the announcement
made by President Evo Morales that his country is going to sue Chile
before the International Court of Justice.143
The goal of Bolivia is to challenge the Tratado de Paz y Amistad
(Treaty of Peace and Friendship) entered into by Bolivia and Chile in
1904, that is 44 years before the Pact of Bogotá. According to Chile’s
Secretary of State, the ratification of Article IV prevents Bolivia of filing
any claim regarding facts that occurred before the date of the aforementioned treaty.144 Nevertheless, Bolivia’s main argument for filing
Id. art. 267(I).
DIREMAR, Decreto Supremo Nº 0834 2011, available at: <http://www.diremar.gob.bo/sites/default/
files/D.S._834.pdf>.
140
DIREMAR, Principales Atribuciones [Main Attributions], available at: <http://www.diremar.gob.bo/node/4>.
141
Article VI of the “Pact of Bogotá” establishes that “the aforesaid procedures, furthermore, may not be
applied to matters already settled by arrangement between the parties, or by arbitral award or by decision
of an international court, or which are governed by agreements or treaties in force on the date of the
conclusion of the present Treaty”.
142
Bolivia ratified the treaty, with the reservation of Article VI, on April, 14, 2011. See OAS, Signatories and
Ratifications American Treaty on Pacific Settlement, available at: <http://www.oas.org/juridico/english/
sigs/a-42.html>.
143
Prensa Palacio de Gobierno Boliviano, Bolivia presentará a La Haya demanda internacional para retornar
al mar con soberanía [Bolivia will file an international lawsuit before the Hague to recover sovereign
acces to the sea], available at: <http://comunicacion.presidencia.gob.bo/noticias/noticiasprint.
php?idio=castellano&id=682>.
144
Diario La Segunda, Canciller Moreno: “Hace dos años que hemos perdido el tiempo con Bolivia” [Secretary
Moreno: “since two years ago that we had lost our time with Bolivia], availabe at: <http://www.lasegunda.
com/Noticias/Politica/2013/03/833312/Canciller-Moreno-Hace-dos-anos-que-hemos-perdido-el-tiempocon-Bolivia>.
138
139
44 Dante Figueroa
the lawsuit against Chile is that the Tratado de Paz y Amistad of 1904 was
not freely negotiated by the countries; on the contrary, that Treaty was
“imposed under duress and threat”145 by Chile.
Finally, in year 2011, there were important amendments to the
Mexican Constitution concerning international human rights.146 First,
there was a change in the nomenclature of the rights consecrated in
the Mexican Constitution, since they are no longer called “individual
guarantees”; instead the Constitution now talks about “human rights”,
which according to an author was intended to adopt the language used
by the main international treaties about the topic.147 Secondly, the first
paragraph of Article 1 of the Mexican Constitution now establishes that
“in the United States of Mexico all people are entitled to the human rights
recognized in this Constitution and in the international treaties to which
Mexico is a party [...]”. The second paragraph of the same provision,
states that “the rules concerning human rights will be construed according
with this Constitution and with the international treaties about the topic
[...]”. Accordingly, an author points that after the amendment, the human
rights pertaining to international treaties ratified by Mexico have the
same authority than the ones consecrated in the Mexican Constitution.148
13 Constitutional Amendment Procedures
The mechanism for reforming the fundamental charter of a country
is crucial to determining the allocation of political power in a society, the
distribution of wealth, and the overall well-being of its citizens. For that
reason, this is yet another area that has served as a scenario for heated
political fights and even violence in the region. Many experiments and
formulae concerning the amendment of the Constitution have been
Prensa Palacio de Gobierno Boliviano, Morales explica a sectores sociales fundamentos históricos y jurídicos
de demanda a La Haya [Morales explains to social actors the historical and legal grounds of the lawsuit
that will be filed before the Hague], available at: <http://comunicacion.presidencia.gob.bo/noticias/
noticiasprint.php?idio=castellano&id=715>.
146
Mexico’s Official Gazette of the Federation, available at: <http://dof.gob.mx/nota_detalle.php?codigo=
5194486&fecha=10/06/2011>.
147
Juan N. Silva Meza, El impacto de la reforma constitucional en materia de derechos humanos en la labor
jurisdiccional en México [The Impact of the Constitutional Amendment concerning Human Rights on the
Work of Judges in Mexico] Anuario de Derecho Constitucional Latinoamericano 2012 Konrad Adenauer
Stiftung, 154 (2012).
148
Silva, supra note at 147, 156 (2012).
145
Current Constitutional Developments in Latin America 45
tested during Latin American history, and no single system can be said
to have been foolproof. Accordingly, this area will most likely remain one
of recurrent interest for Latin American constitutionalism.
Given these considerations, it is worth mentioning several contemporary innovations concerning constitutional amendment procedures
in the region. In the case of Venezuela, initiatives to amend the constitution must have the support of at least 15 percent of those citizens
registered to vote, 30 percent of the deputies of the National Assembly,
and the President of the Republic.149 Bolivians, in turn, may convene a
Constitutional Assembly elected through a popular referendum called by
20 percent of the electorate, by an absolute majority of the Plurinational
Legislative Assembly, or by the President.150 In both countries, to enter
into effect, constitutional amendments are subject to ratification by means
of a popular referendum.151
14 Conclusion
This survey of recent constitutional developments in Latin America
illustrates a mix of tradition and innovation in several areas of society.
On the one hand, the most innovative constitutions maintain the concept
of family as it has been known since time immemorial in the West. On
the other hand, on a continent deeply shaped by the Catholic religion,
the trend to minimize its influence in the shaping of constitutional and
legal institutions is conspicuous. Equally, there is a new resort to an enlightened morality and to the recovery of the ethnic element, which lies
at the center of the most sweeping reforms concerning the distribution
of powers, and the structure of constitutional guarantees.
With respect to the separation of powers, on a continent where
strong presidential power has been the historic pattern the executive
branches of government have emerged overall even stronger after the
latest changes in constitutional law. The legislative branches, in turn,
have benefitted from cosmetic changes vis-à-vis the presidency, and remain, in general terms, as subordinated arms of the executive branch of
1999 CONST. OF VENEZUELA art. 341.
2009 CONST. OF BOLIVIA art. 411.
151
Id. art. 411; 1999 CONST. OF VENEZUELA art. 341(4).
149
150
46 Dante Figueroa
government. The judicial branches have been, to put it mildly, the less
favored of the three branches in this scheme of amendments. In fact,
where new individual rights have been spelled out through constitutional
reforms in the region, these rights have simply increased the docket of
the beleaguered Latin American judiciaries.
The real effects of novelties brought about by the new philosophical background of the constitutional movements shaping recent reforms
are yet to be seen. In most cases, such changes have thus far not been
implemented. That is the case, for example, for the aboriginal justice
system in Bolivia and for the new criminal procedure reform and juvenile
criminal system in Mexico.
In sum, Latin America is an area where changes occur often, and
sometimes abruptly. The region has also been characterized by the domino effects of reforms that take place in one jurisdiction and are then
quickly mirrored in other jurisdictions. In that sense, the effects of the
new trends embodied in recent constitutional activity in the region will
not likely occur in isolation, but will be evident throughout Latin America.
Acesso à informação e transparência
governamental – Situando o debate na
Administração Pública brasileira
Patrícia Lima Sousa
Advogada da União em exercício na CONJUR/MP. Coordenadora-Geral Jurídica de Atos Normativos. Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Ceará. Especialista em Direito Público
pela Universidade de Brasília.
Antonio Augusto Ignacio Amaral
Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental em exercício no Ministério do
Planejamento. Diretor de Planejamento das Estruturas e da Força de Trabalho da Secretaria de
Gestão Pública. Bacharel em Ciência Política pela Universidade de Brasília.
Resumo: O trabalho inicialmente apresenta de forma breve as formas
de organização administrativa que podem ser identificadas no Estado
Brasileiro desde a sua formação, buscando situar, em cada uma delas, as
conexões e desconexões com os temas do acesso às informações detidas
pelo Poder Público por parte dos cidadãos e da adoção de práticas de
transparência governamental. Posteriormente, procura identificar as
principais medidas adotadas nos últimos anos no âmbito da Administração
Pública federal para efetivar o direito constitucional de acesso à informação
e para divulgar as ações governamentais, culminando com o advento da
Lei de Acesso à Informação – LAI (Lei nº 12.527, de 2011). Na sequência, são apresentadas as linhas gerais da política de acesso à informação
no Brasil, instituída pela LAI, além de consignar alguns desafios para a
Administração Pública em face da sua implementação. Por fim, faz-se uma
tentativa de relacionar o acesso à informação com a noção de accountability
vertical, que se refere aos instrumentos à disposição da sociedade para
controlar a atuação dos administradores públicos.
Palavras-chave: Acesso à informação. Transparência. Accountability.
Administração Pública.
Sumário: Introdução – Patrimonialismo, burocracia e reformas gerenciais
na Administração Pública brasileira: situando a accountability nesses modelos – Transparência governamental no Brasil e o advento da Lei de Acesso
à Informação – Implementação da LAI e desafios para a Administração
Pública – Acesso à informação e accountability vertical – Considerações
finais – Referências
1 Introdução
A Administração Pública brasileira vem se transformando ao longo
dos anos, sendo possível destacar, desde a época colonial até os tempos
48 Patrícia Lima Sousa, Antonio Augusto Ignacio Amaral
atuais, três grandes fases, que não necessariamente se sucedem e em
certa medida coexistiram e ainda coexistem: patrimonialismo, modelo
burocrático e gerencialismo.
No presente trabalho, inicialmente é feito o exercício de apresentar
em poucas linhas essas formas de organização administrativa, buscando
situar, em cada uma delas, de forma sucinta, sem qualquer pretensão
de esgotar o tema, as conexões e desconexões com os temas do acesso
às informações detidas pelo Poder Público por parte dos cidadãos e da
adoção de práticas de transparência governamental.
Essa breve digressão objetiva demonstra que nem sempre o contexto administrativo-organizacional foi favorável ao fomento da garantia
de acesso à informação e à disseminação de medidas de transparência e
que, cotejando as três fases inicialmente mencionadas, o momento atual,
em que se consolidam alguns dos conceitos do gerencialismo no Brasil,
como accountability e participação, apresenta-se como o mais profícuo
para a inserção desses temas na pauta governamental.
Na sequência, procura-se identificar, a partir da Constituição
Federal de 1988, as principais medidas adotadas para efetivar o direito
constitucional de acesso à informação e para divulgar as ações governamentais, até o advento da Lei de Acesso à Informação – LAI (Lei nº
12.527, de 2011).
Em razão do papel da Lei de Acesso à Informação como responsável pela instauração de uma concreta política de acesso à informação no
Brasil, o presente estudo apresenta as linhas gerais dessa política, além
de consignar alguns desafios para a Administração Pública em face de
sua implementação.
Por fim, feito o delineamento do atual estágio do acesso à informação no Brasil, faz-se uma tentativa de relacionar esse tema com a noção
de accountability vertical, que se refere aos instrumentos à disposição da
sociedade para controlar a atuação dos administradores públicos.
2 Patrimonialismo, burocracia e reformas gerenciais na
Administração Pública brasileira: situando a accountability
nesses modelos
Vários autores, ao se debruçarem sobre a formação do Estado
Brasileiro, desde as raízes do Império Português, veem a política
Acesso à informação e transparência governamental – Situando o debate na Administração Pública brasileira 49
nacional como resultado de um processo histórico de fortes características patrimoniais.
O patrimonialismo é uma das formas da dominação tradicional
definida por Max Weber (1999). A dominação tradicional deriva da
autoridade e é sustentada pela existência de fidelidade. O governante
é o patriarca, ou senhor, que exerce dominância sobre os súditos, que o
servem. Assim, obediência deve ser prestada por respeito, em razão da
tradição e dos níveis de hierarquia (exemplo mais característico se dá
entre reis e súditos, ou entre senhores e vassalos).1
A dominação tradicional decorre de fatores como afetividade,
crença ou admiração. Essa ordem, baseada em uma relação rigidamente
hierárquica, é em geral pouco flexível a mudanças, visto que se fundamenta na tradição, nos costumes e em valores pessoais.
O uso do conceito do patrimonialismo é largamente utilizado
por pensadores brasileiros para associar a ideia do tratamento da coisa
pública pela autoridade política como se esta fosse privada, ou seja, da
não diferenciação entre as esferas pública e privada na vida política.
As origens e motivos dessa amalgamação entre o público e o privado
na política brasileira receberam diversas interpretações.
Oliveira Vianna desenvolve a ideia de clãs rurais, que se originam
na forma de colonização empreendida no Brasil (FERREIRA, 1996). A
população rural agrupa-se em torno dos chefes territoriais. A solidariedade de clã, muito localizada e preocupada com problemas particulares
de seus grupos, impede o surgimento de uma consciência ampla, de
caráter nacional. Para Vianna, o Estado seria o promotor da integração
nacional. Assim, conclui que somente sob a ação de um agente externo
à sociedade (Estado autoritário) seria possível haver mudanças sociais
mais profundas.
Sérgio Buarque de Holanda, assim como Vianna, dá ênfase ao peso
do ruralismo e do patriarcalismo na formação nacional, mas fundamenta
sua análise na herança ibérica (FERREIRA, 1996). Os sentimentos, para
os ibéricos, sobrepõem-se a escolhas racionais. O resultado disso são
1
Há outros dois tipos-ideias de dominação segundo Weber, 1999: a carismática — baseada na crença das
qualidades do líder, de seu caráter sagrado, de sua atuação heroica, do seu exemplo ou pelo dom de sua
palavra — e a racional-legal. Esta última será tratada neste trabalho mais adiante.
50 Patrícia Lima Sousa, Antonio Augusto Ignacio Amaral
sentimentos próprios à comunidade doméstica, particularista, mesclando
público e privado, assuntos familiares em assuntos de Estado. A colonização levada adiante pelo tipo aventureiro, que visa o ganho imediato,
em contraposição ao trabalhador, fortalece a ideia de aversão ao culto ao
trabalho e à reduzida capacidade de organização e racionalização da vida
social. O homem cordial, definido por Sérgio Buarque, que tinha como
uma de suas características a afabilidade, possui extrema dificuldade
em tratar seus pares com impessoalidade. Assim, projetam suas relações
familiares para a política, comprometendo a possibilidade de surgimento
de uma sociedade civil que oriente a formação de um Estado impessoal.
Gilberto Freyre (2001), por sua vez, apresenta a noção de plas­ti­
cidade (miscigenação, mobilidade social, adaptabilidade ao trópico). Esse
autor se aproxima de Vianna e de Buarque na avaliação da sociedade
brasileira no pós-colonização como agrária e escravocrata, formada por
núcleos dispersos e autossuficientes, dominada pela família patriarcal.
Mas, ao invés de focar sua análise nas origens dos “clãs rurais” ou na
“he­rança ibérica”, parte das ideias de “plasticidade” e “equilíbrio de an­
ta­go­nismos” para entender nossa sociedade colonial como fruto de uma
experiência de adaptação ao trópico.
Freyre (2001) considera a miscigenação (aqui entendida como
processo de interpenetração de etnias) como sintoma da plasticidade,
que surge ao mesmo tempo como fator de adaptabilidade ao trópico e
como fator de integração da sociedade, diminuindo as distâncias sociais
e culturais.
Esse autor procura demonstrar que, no processo de miscigenação,
a despeito de a cultura dos “vencedores” se sobrepor à dos “vencidos”,
existiam “zonas de confraternização” que permitiam a formação, no
Brasil, de uma civilização tropical, original e criativa. Daí a concepção da
formação nacional como um “processo de equilíbrio de antagonismos”.
Ao cotejar o pensamento dos três autores citados, é possível consignar que o Estado Brasileiro carrega o peso de uma história forjada
numa concepção patrimonialista, de coincidência ou no mínimo íntima
relação entre o público e o privado, concepção que orientou fortemente
a Administração Pública no Brasil até meados do século XX.
Segundo Pereira (1996), para substituir a administração patrimonialista, em que nepotismo, empreguismo e corrupção eram a regra,
Acesso à informação e transparência governamental – Situando o debate na Administração Pública brasileira 51
“tornou-se necessário desenvolver um tipo de administração que partisse
não apenas da clara distinção entre o público e o privado, mas também
da separação entre o político e o administrador público”. Nesse contexto,
nos idos de 1936, com a reforma administrativa promovida por Maurício
Nabuco e Luís Simões, inicia-se a implantação da Administração burocrática racional-legal no Brasil.
Na dominação do tipo racional-legal (conforme classificação proposta por Max Weber, 1999), a atuação estatal deve basear-se na aplicação
de regras e procedimentos racionalmente definidos, de modo a permitir
o predomínio da lei, da técnica, sobre o poder tradicional.
O modelo burocrático weberiano está calcado em bases racionais de
divisão do trabalho, relações hierárquicas e regras que separam de forma
clara a propriedade pessoal da pública. A seleção do corpo burocrático
também deve se dar com base em regras transparentes e com base em
qualificações técnicas, e não em decisões particulares ou visando privilegiar uma pessoa ou grupo. Assim, os grupos sociais e suas relações com
o Estado devem ser regidos por meio de regras, estatutos, formalidade
e impessoalidade.
Porém, no final do século XX, com a crise do Estado liberal e a
cres­cente demanda por um Estado capaz de atender os anseios dos cida­
dãos, o Estado precisou não apenas ampliar a prestação de serviços, mas
também a passar a atuar na economia. Nesse contexto, evidenciaramse as fragilidades do modelo burocrático, que, segundo os críticos, era
lento, autorreferido e pouco ou nada orientado para o atendimento das
demandas dos cidadãos, incapaz, portanto, de garantir rapidez, boa
qualidade e baixo custo para os serviços prestados ao público.
Assim, exacerbou-se a necessidade de uma administração pública
gerencial. O modelo do new public management (NPM), ou administração
pública gerencial, traz uma perspectiva pós-burocrática para a estruturação e gestão da Administração Pública, baseado em novos valores.
Alguns desses valores decorrem da prática de mercado, como eficiência,
eficácia, produtividade, orientação para o resultado, descentralização e
competitividade na prestação de serviços públicos.
Em um primeiro momento, o NPM visava adotar reformas que
combinassem a melhoria da eficiência do setor público com corte de
custos. São marcantes nessa fase as reformas levadas a cabo ao longo
52 Patrícia Lima Sousa, Antonio Augusto Ignacio Amaral
da década de 1980 no Reino Unido e nos Estados Unidos, durante os
governos de Margaret Thatcher e Ronald Regan. As principais políticas
adotadas foram voltadas ao ajuste fiscal, por meio do corte nos gastos
públicos, à implementação de reformas tributárias, à desregulamentação
de setores econômicos e privatizações.
Em um segundo momento, a discussão deixou de ser sobre o ta­ma­
nho do Estado, mas sobre a capacidade do governo de corresponder às
demandas sociais e ser permeável à accountability. Assim, desenvolveramse as ideias de consumerism, que tem como foco a flexibilidade da gestão
visando a melhor qualidade da prestação do serviço público ao seu
principal cliente, ou seja, o cidadão; e o Public Service Oriented, no qual
a Administração Pública deve estar orientada para ideais republicanos e
democráticos, por meio de conceitos como transparência, participação,
justiça, equidade e accountability.
Feito esse breve histórico acerca da Administração Pública brasileira, importa para este trabalho situar as temáticas do acesso à informação
e da transparência governamental em cada uma dessas fases do Estado
Brasileiro, as quais, necessário registrar, não se sucedem e, em diversos
momentos e situações, inclusive coexistem.
No tocante à “ética do patrimonialismo”, em que público e privado se confundem, é possível asseverar que o desenvolvimento de uma
cultura de transparência governamental, em que os cidadãos possuem
mecanismos de acesso a informações detidas pelo Poder Público, práticas
de privilégios, avessas à noção de interesse público, não se sustentam ou,
ao menos, são dificultadas.
Acerca do modelo burocrático, não se pode negar que a noção
de procedimentos estabelecidos e de impessoalidade, por exemplo,
coadunam-se com as noções de transparência governamental. Por outro
lado, as disfunções desse modelo, como, por exemplo, o insulamento dos
burocratas e a ausência de orientação para o atendimento das demandas
dos cidadãos, não guardam consonância com os valores que permeiam as
práticas de transparência governamental e empoderamento da sociedade
por meio do acesso à informação.
Quanto ao modelo gerencial, é inegável que a preocupação com
o alcance de resultados, o que exige a produção de metas e indicadores,
Acesso à informação e transparência governamental – Situando o debate na Administração Pública brasileira 53
contribui para o aumento da transparência e da participação da sociedade na gestão pública, já que ganha relevo a satisfação dos cidadãos
com as políticas públicas.
Feita essa digressão, é possível asseverar que o atual contexto
apresenta maior permeabilidade à participação da sociedade do que os
anteriores, sendo, portanto, profícuo para o debate sobre políticas que
garantam o acesso à informação e disseminem a prática da transparência.
3 Transparência governamental no Brasil e o advento da Lei de
Acesso à Informação
A institucionalização de mecanismos para o acesso a informações
detidas pelas autoridades públicas consiste em instrumento essencial
de garantia do princípio democrático, fazendo-se mister a aprovação e
efetiva implementação de leis que definam de forma detalhada os procedimentos e prazos para a busca e a divulgação de informações, assim
como meios de controle para assegurar o cumprimento das obrigações
pelos responsáveis pela sua disponibilização.
Somente por meio de um arcabouço institucional consistente,
aliado a um aparato burocrático capacitado para lidar com a temática
do acesso à informação pode-se garantir um regime de acesso à informação efetivo e operacional, capaz de fornecer informações autênticas
e simétricas.
No Brasil, apenas recentemente, com o advento da Lei nº 12.527,
de 18 de novembro de 2011, denominada “Lei de Acesso à Informação
– LAI”, o tema foi inserido como uma política de Estado, a ser implementada por todos os entes federativos e alcançando toda a Administração
Pública indireta, além de alcançar entidades privadas sem fins lucrativos
que recebam recursos públicos.
Mas é preciso evidenciar que a Constituição Federal de 1988 já
previa em seu bojo, como direito fundamental, o acesso a informações
sob custódia dos órgãos e entidades públicos:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,
garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade,
nos termos seguintes: [...]
54 Patrícia Lima Sousa, Antonio Augusto Ignacio Amaral
XXXIII - todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu
interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no
prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo
seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado;
Ainda, a Constituição, no capítulo destinado à Administração
Pública, assegurou que a lei disciplinaria as formas de participação do
cidadão na Administração Pública direta e indireta, devendo dispor sobre
o acesso a registros administrativos e a informações sobre atos de governo
(art. 37, §3º, inciso II). Ademais, estabeleceu competir à Administração
Pública, na forma da lei, a gestão da documentação governamental e
as providências para franquear sua consulta a quantos dela necessitem
(art. 216, §2º).
Tomando como marco temporal a promulgação da Constituição de
1988, em face do seu caráter democrático e dos contornos estabelecidos
para o direito à informação, é possível identificar, antes da LAI, legislações
e medidas esparsas no sentido de conceder transparência às ações
governamentais no âmbito da Administração Pública federal, podendose destacar: regras para a publicização de documentos custodiados por
Agências Reguladoras (ex.: art. 36 da Lei nº 9.472, de 1997 – ANATEL,
e art. 18 da Lei nº 9.478, de 1997 – ANP); Lei de Responsabilidade
Fiscal (LC nº 101, de 2000); Lei do Direito à Informação Ambiental (Lei
nº 10.650, de 2003), criação da Controladoria-Geral da União, por meio
da Lei nº 10.683, de 2003); lançamento do Portal da Transparência, em
2004; lançamento do Portal Brasil, em 2010.
Importante também mencionar que, em 2004, por meio da Medida
Provisória nº 228, convertida na Lei nº 11.111, de 2005, houve uma ten­
tativa de regulamentação do direito de acesso à informação. Todavia,
pode-se dizer que esse diploma legal passou longe de instituir uma política de acesso, tendo cuidado apenas de reafirmar a proteção formal
ou nominal ao direito à informação, tendo em vista que não concedeu
aparato concreto para a efetivação desse direito.
Conforme esclarece a Apostila da CGU (ANDI e ARTIGO 19, 2009),
a jurisprudência internacional preceitua que, para garantir os direitos
humanos fundamentais, entre os quais se inclui o direito à informação,
os Estados, além de abster-se de ações que impeçam o exercício desses
Acesso à informação e transparência governamental – Situando o debate na Administração Pública brasileira 55
direitos, têm a obrigação de tomar medidas concretas para a sua fruição,
aqui se inserindo o dever de adotar legislação adequada.
Como legislação adequada para a garantia do direito à informação a comunidade internacional compreende a que seja norteada pelos
seguintes princípios: (i) máxima divulgação; (ii) publicação proativa de
informações essenciais; (iii) promoção de um governo aberto, em que o
público seja informado sobre os seus direitos e haja a disseminação de
uma cultura de abertura no âmbito do governo; (iv) sigilo como exceção;
(v) instituição de mecanismos que permitam o processamento rápido e
imparcial das solicitações de informação, incluindo a previsão de instâncias recursais; (vi) previsão de custos, quando couber, em valor que
não impeça a solicitação de informações; (vii) previsão de publicidade
para reuniões de governança; (viii) adaptação do ordenamento jurídico
à primazia da máxima divulgação; e (ix) proteção dos denunciantes.
Ao cotejar a LAI (Lei nº 12.527, de 2011) com esses princípios,
observa-se que já no art. 3º a lei adota vários deles como diretrizes para
a política de acesso à informação no Brasil (publicidade como regra e
sigilo como exceção, divulgação proativa de informações e fomento da
cultura de transparência na Administração Pública). No art. 5º, estabelece o dever do Estado de garantir o direito de acesso à informação
“mediante procedimentos objetivos e ágeis, de forma transparente, clara
e em linguagem de fácil compreensão”, indo ao encontro do princípio
internacional de que as solicitações sejam processadas de forma rápida
e imparcial. No art. 8º, estabelece um rol de informações essenciais que
devem ser divulgadas independentemente de requerimentos, a denominada “transparência ativa”, passo fundamental para uma governança
aberta. No art. 9º, destaca-se a determinação para que todos os órgãos e
entidades do Poder Público criem unidades específicas de informações,
os chamados “Serviços de Informação ao Cidadão” (SICs), que devem
estar aptos para: a) atender e orientar o público quanto ao acesso a
informações; b) informar sobre a tramitação de documentos nas suas
respectivas unidades; c) protocolizar documentos e requerimentos de
acesso a informações.
No Capítulo III (arts. 10 a 20), a LAI institui o “Procedimento de
Acesso à Informação”, que consiste no conjunto de mecanismos que visam garantir o funcionamento da política de acesso: regras simplificadas
56 Patrícia Lima Sousa, Antonio Augusto Ignacio Amaral
para a apresentação dos pedidos; definição de forma e de prazo para
resposta e dinâmica recursal.
O Capítulo IV (arts. 21 a 31) aborda o tema da restrição de acesso,
estabelecendo as hipóteses de sigilo, os procedimentos para a classificação de uma informação como sigilosa (incluindo a possibilidade de
reclassificação ou de desclassificação), as situações em que o sigilo não
pode ser oponível ao solicitante da informação e o tratamento a ser
conferido às informações de cunho pessoal relativas à intimidade, vida
privada, honra e imagem.
O Capítulo V (arts. 32 a 34) trata das responsabilidades dos atores
envolvidos na implementação da política de acesso, estabelecendo hipóteses específicas de ilicitude quando o comportamento desses atores se
opuser de algum modo, ainda que parcialmente, à garantia do acesso
à informação.
Na parte final (Capítulo VI), destaca-se a adoção das seguintes
medidas: (i) criação da Comissão Mista de Reavaliação de Informações,
instância máxima de coordenação da LAI no âmbito da Administração
Pública federal; (ii) instituição, no âmbito do Gabinete de Segurança
Institucional da Presidência da República, do Núcleo de Segurança e
Credenciamento, competente para atuar no tratamento e garantia de
informações sigilosas; (iii) determinação de que o dirigente máximo de
todo órgão e entidade da Administração Pública federal designe autoridade que lhe seja diretamente subordinada para atuar como responsável
pela garantia da eficiência da política de acesso no âmbito do respectivo
órgão ou entidade; e (iv) determinação de que o Poder Executivo federal
designe órgão da Administração Pública federal responsável por fomentar
a cultura da transparência, treinar agentes públicos quanto a práticas de
transparência e monitorar a aplicação da LAI.
Diante dessa análise descritiva da LAI, e examinando as legislações
e medidas de transparência governamental adotadas na Administração
Pública federal entre a Constituição Federal de 1988 e o seu advento, é
possível afirmar que, embora sempre tenha havido iniciativas no sentido
de promover a divulgação de informações ou possibilitar o acesso dos
cidadãos a elas, somente com a entrada em vigor da Lei nº 12.527, de
2011, foi instituída no Brasil uma efetiva política de acesso à informação.
Acesso à informação e transparência governamental – Situando o debate na Administração Pública brasileira 57
Somente com a LAI foram estabelecidos de forma sistemática e
concatenada mecanismos para a garantia do direito constitucional de
acesso à informação detida pelo Poder Público, com a definição de regras
e procedimentos racionalmente definidos para possibilitar esse acesso
(prazos, hipóteses claras de cabimento de recurso, detalhamento minucioso do modo de elaborar um pedido e do tipo de resposta cabível para
diversas possíveis solicitações), sendo possível identificar, nesse aspecto
da lei, contornos positivos da burocracia weberiana. Também se verifica
aderência ao modelo burocrático na criação do Núcleo de Segurança e
Credenciamento, responsável por garantir a uniformidade dos procedimentos quanto à guarda e manuseio das informações sigilosas.
Também se observa na LAI a adoção de instrumentos que orientam
o alcance de resultados na política de acesso à informação, importante
elemento de uma administração gerencial: (i) estabelecimento de rol
mínimo de informações que devem ser publicadas proativamente pelo
Poder Público (transparência ativa); (ii) previsão de prazo de resposta
ao pedido de informação, sob pena de responsabilidade do agente que
descumpri-lo, e criação de sistema recursal que permite conferir coesão à política; (iii) determinação de publicação anual, por cada órgão
ou entidade, de relatório com a lista das informações classificadas e as
desclassificadas em algum grau de sigilo, bem como relatório estatístico
contendo dados sobre a execução da política.
Veja-se que a determinação legal de publicação de uma lista básica
de informações reputadas como essenciais para uma administração pública transparente objetiva garantir o alcance de um resultado mínimo
com a política de acesso à informação.
A previsão de prazo de resposta, acompanhada da instituição clara
das hipóteses de responsabilização do agente incumbido de prestar a
informação, visa assegurar que a informação será prestada em tempo
razoável, mecanismo que, por si só, já impacta na eficiência da política
de acesso. E aliado à estipulação de prazo de resposta, tem-se o sistema
recursal previsto na LAI para a Administração Pública federal como
importante instrumento de garantia da qualidade da informação, na
medida em que as instâncias recursais máximas (Controladoria-Geral da
União e Comissão Mista de Reavaliação de Informações) são comuns a
58 Patrícia Lima Sousa, Antonio Augusto Ignacio Amaral
todos os órgãos e entidades, permitindo uma aferição do “como” estão
sendo disponibilizadas as informações requeridas.
Ademais, o desenho instituído pela LAI para a macrocoordenação
da política de acesso à informação na Administração Pública federal
denota relevante preocupação com a qualidade da implementação da
política e com a coesão e coerência na prestação da informação, fatores
cruciais para o êxito dos resultados atingidos.
Importante destacar, nesse cenário, o papel da Controladoria-Geral
da União como o órgão do Poder Executivo federal responsável por
promover campanha nacional de conscientização para uma cultura de
transparência no Poder Público, pela capacitação dos agentes públicos
para lidar com a temática do acesso à informação e pelo monitoramento
da aplicação da lei no âmbito da Administração Pública federal, concentrando e consolidando a publicação de informações estatísticas.
A Controladoria-Geral da União, que também funciona como
instância recursal em determinadas hipóteses, tanto por meio desse seu
papel revisor quanto pela sua incumbência de monitorar a aplicação da
lei, possui condições de promover as necessárias concertações na execução da política de acesso, contribuindo de forma eficiente para o alcance
dos resultados pretendidos (informação prestada de forma célere, clara,
autêntica e simétrica).
Papel semelhante exerce a Comissão Mista de Reavaliação de
Informações, que também atua como instância recursal, podendo inclusive rever decisão da Controladoria no caso de negativa de acesso,
além de possuir competência decisiva em matéria de classificação de
informações sigilosas.
Por meio dessas atribuições, a Comissão, enquanto instância recursal, funciona como mais uma oportunidade para a garantia do acesso à
informação e correção de equívocos na execução da política, e no tocante
à classificação das informações, pode garantir que o sigilo seja realmente
utilizado como exceção, nos estritos termos da imprescindibilidade à
segurança da sociedade ou do Estado (art. 23 da LAI).
Acerca da Comissão, importa registrar ainda que, quando da
regulamentação da LAI, por meio do Decreto nº 7.724, de 16 de maio
de 2012, restou definido que ela seria integrada pelos titulares dos
seguintes órgãos (art. 46): I - Casa Civil da Presidência da República,
Acesso à informação e transparência governamental – Situando o debate na Administração Pública brasileira 59
que a presidirá; II - Ministério da Justiça; III - Ministério das Relações
Exteriores; IV - Ministério da Defesa; V - Ministério da Fazenda;
VI - Mi­nis­tério do Planejamento, Orçamento e Gestão; VII - Secretaria
de Di­rei­tos Hu­manos da Presidência da República; VIII - Gabinete de
Segu­rança Ins­ti­tu­cional da Presidência da República; IX - AdvocaciaGeral da União; e X - Controladoria-Geral da União.
De acordo com a importância estratégica dos Ministérios envolvidos
na mais alta instância de coordenação da política de acesso à informação
na Administração Pública federal, pode-se inferir que se trata de tema
que possui relevância na pauta governamental, o que concede ainda mais
possibilidade de êxito aos resultados da política.
Cabe ressaltar, por fim, que o mesmo decreto atribuiu à Comissão
a função de estabelecer orientações normativas de caráter geral a fim de
suprir eventuais lacunas na aplicação da LAI, competência que também
funciona como importante mecanismo para conceder coesão e coerência à política de acesso à informação, colaborando com o alcance dos
resultados previstos.
Em face dessa breve apresentação teórica da LAI, é possível consignar que o Estado Brasileiro, e, mais especificamente, a Administração
Pública federal, dispõe atualmente de importante arcabouço legal para a
ampliação do acesso às informações detidas pelo Poder Público, inegável
combustível para a transparência governamental.
4 Implementação da LAI e desafios para a Administração Pública
Conforme visto em tópicos anteriores, no período compreendido
entre a Constituição Federal de 1988 e o advento da LAI, houve a adoção
de diversas medidas para garantir o acesso à informação, principalmente
mediante iniciativas voltadas para a transparência governamental.
Todavia, não se discute que a LAI constitui o marco legal por exce­
lência do acesso à informação no Brasil. Todavia, é preciso ter em mente
que a LAI representa um ponto de partida, e não um fim em si mesma.
Esse é um diagnóstico que pode ser feito já de uma primeira leitura da
Lei nº 12.527, de 2011.
A LAI foi publicada em 18 de novembro de 2011, com vigência
iniciada 180 dias depois, em 16 de maio de 2012. Foram seis meses entre
a sua publicação e o início de seus efeitos, o que pode ser considerado
60 Patrícia Lima Sousa, Antonio Augusto Ignacio Amaral
um tempo curto para a implementação das diversas medidas decorrentes
da considerável mudança de paradigma por ela estabelecida.
O âmbito de abrangência da LAI (todos os entes federativos,
inclusive entidades da Administração indireta, e entidades sem fins lucrativos, em determinadas situações) já demonstra que os desafios para
a implementação da política de acesso à informação no Brasil atingem
todos os órgãos e entidades que lidem com recursos públicos, em todos
os níveis federativos, independentemente do seu nível de organização
ou das condições que tiveram ou tenham para se organizar.
E os desafios são inúmeros, podendo-se mencionar, como fruto da
concepção ideológica subjacente à política, a necessidade de fomento à
cultura de transparência por meio de campanhas e debates de alcance
nacional e de capacitação dos agentes públicos para lidar com o tema.
Também se coloca como ponto central para a efetividade dos pre­
ceitos da LAI investimentos em tecnologia da informação, tendo em
vista que, no contexto tecnológico do século XXI, tanto no que concerne
à gestão documental e aos mecanismos de comunicação intragoverno,
quanto no que diz respeito às interfaces entre governo e sociedade, o
apri­moramento dessa seara impõe-se como premente e essencial.
Outra medida que se impõe é a melhoria da gestão documental
no tocante ao tratamento da informação, de modo a garantir, conforme
determina a LAI, a autenticidade e a integridade da informação, além
da adequada proteção à informação classificada como sigilosa e à informação pessoal relativa à intimidade, vida privada, honra e imagem da
pessoa natural.
Igualmente se apresenta como crucial a profissionalização do atendimento às solicitações dos pedidos de acesso à informação, por meio de
investimentos na estruturação física e de recursos humanos dos Serviços
de Informação ao Cidadão.
Diante desse rol exemplificativo de barreiras a serem superadas
para a criação do cenário ideal para a adequada implementação da política de acesso à informação instaurada pela LAI, é indene de dúvidas que
o caminho a ser percorrido é árduo e exige investimentos consistentes.
Todavia, ao se avaliarem esses investimentos, não se pode esquecer o potencial transformador da garantia do acesso à informação, que
tanto provoca melhorias constantes na gestão das organizações quanto
Acesso à informação e transparência governamental – Situando o debate na Administração Pública brasileira 61
possui o condão de aprimorar as políticas públicas, por constituir-se em
condição indispensável ao controle social da gestão pública.
5 Acesso à informação e accountability vertical
Já no século XVII, o filósofo e político Francis Bacon (2006 apud
CANELA, 2009) asseverou a íntima relação entre conhecimento e poder, pensamento que, transportado para o presente trabalho, permite
a constatação de que o acesso à informação consiste em inegável instrumento de poder. Considerando essa premissa, não se pode conceber
a realização prática de um Estado democrático sem a disseminação de
informações que permitam aos cidadãos exercer um controle qualificado
sobre a atuação dos governantes.
Nessa perspectiva, após crescente debate internacional sobre a
abrangência do direito à informação, os Relatores para Liberdade de
Expressão da ONU, OEA e OSCE, em sua Declaração Conjunta de 2004
emitiram o entendimento de que “O direito de acessar informação detidas pelas autoridades públicas é um direito humano fundamental que
deve ser efetivado no nível nacional através de legislação abrangente
[...]” (MENDEL, 2009, p. 9).
É nesse contexto que o acesso à informação sobre as ações governamentais se insere como pressuposto para a accountability “vertical”, que
consiste na possibilidade de responsabilização por meio do controle dos
governantes (que têm a obrigação de prestar contas à sociedade) pelos
governados (controle social), fundada na noção da soberania popular
— todo poder emana do povo (CLAD, 2000).
Não há como conceber a ideia de controle social, inerente à noção
de democracia, sem que haja a garantia de que a participação social na
gestão pública será qualificada, pautada por informações autênticas,
claras e coerentes sobre a atuação estatal. Nessa linha, afirma Lopez:
[...] Cidadão sem informação sobre os processos decisórios e sobre a imple­
mentação de políticas não podem reivindicar, de forma satisfatória, mudanças
em seus procedimentos e objetivos. Publicizar o que se faz, como se faz e
criar canais de contestação integram uma dimensão indispensável para que
mecanismos de controle social da administração possam ser efetivos. (LOPEZ,
2010, p. 193)
62 Patrícia Lima Sousa, Antonio Augusto Ignacio Amaral
A publicização permanente das ações governamentais, aliada à
criação de espaços para a participação social, possibilita que a account­
ability vertical seja exercida não apenas no momento das eleições, mas,
cotidianamente, ao longo dos mandatos, agregando novos atores na definição e execução das políticas, fator que possui considerável potencial
para melhorar os resultados das policies.
Uma Administração atenta às necessidades efetivas dos cidadãos
não pode prescindir da avaliação dos destinatários das políticas sobre os
seus resultados, avaliação essa que possui como condição sine qua non a
transparência das ações governamentais, que deve ser garantida tanto
por meio da divulgação proativa de informações como pela criação de
mecanismos que possibilitem a entrega de dados e documentos mediante
a provocação de qualquer solicitante.
A instituição de mecanismos que garantam o acesso a informações
sobre a atuação dos administradores públicos, estabelecendo-se, por
consequência, uma cultura de transparência governamental, possibilita
que, por meio da accountability vertical, as preferências e interesses dos
grupos afetados funcionem como importante contrapeso na formulação e
implementação das políticas e que o seu êxito seja mensurado não apenas
por meio de controles formais dos resultados, mas também levando em
conta as demandas dos stakeholders (LOPEZ, 2010).
Nessa perspectiva, é possível asseverar que um controle social baseado em informações regulares, simétricas, disponíveis em linguagem de
fácil compreensão pela sociedade em geral possui o condão de redimensionar a noção histórica de accountability, que, para além da preocupação
com as temáticas da probidade e do abuso de poder, passa a orientar-se
pela responsabilização dos administradores quanto ao desempenho das
políticas em cotejo com as demandas da sociedade (CLAD, 2000).
Não se pode olvidar, entretanto, que o papel da accountability
vertical, potencializada e qualificada pelo acesso à informação, impõe o
desafio de conciliar o papel da burocracia e o dos stakeholders, de modo
que se encontre um ponto ótimo entre as escolhas dos especialistas e as
demandas sociais.
De todo modo, a par da necessidade de equilíbrio entre as forças
que devem estar envolvidas nos processos decisórios de um Estado democrático, ganha relevo o acesso à informação como condição inafastável
Acesso à informação e transparência governamental – Situando o debate na Administração Pública brasileira 63
para o exercício dos demais direitos fundamentais do cidadão, na medida
em que somente cidadãos bem informados podem interferir de forma
qualificada nas escolhas estatais, responsáveis em grande medida pela
garantia dos direitos em tela.
6 Considerações finais
Os desafios que se apresentam aos Estados Nacionais no século
XXI, em especial aos países em desenvolvimento, como o Brasil, impõem
a redefinição do seu papel e do seu modo de atuação. Ao tempo em que
se faz premente o aprimoramento de mecanismos que tornem o Estado
mais eficiente, a noção de eficiência precisa ser redimensionada para
lidar com o atendimento efetivo das demandas dos cidadãos.
É nesse cenário que se insere a discussão sobre como ampliar os
espaços de participação democrática na gestão pública, de modo que os
destinatários das policies sejam incorporados a um processo dialógico de
definição e/ou redefinição das prioridades da agenda governamental.
Por entender-se que não há como falar em participação social
qualificada sem que os cidadãos tenham acesso a informações autênticas, claras e simétricas sobre as ações governamentais, ganha relevo a
necessidade de se instituir mecanismos que garantam a efetividade do
direito constitucional de obter informações do Poder Público e o fomento
a medidas de transparência governamental.
Nessa perspectiva, a recente entrada em vigor da Lei de Acesso
à Informação, em 16 de maio de 2012, apresenta-se como indiscutível
instrumento de estímulo à participação democrática no Brasil, na medida
em que institui uma concreta política de acesso à informação no Estado
Brasileiro, com a criação de aparato legal e institucional consistente para
o tratamento do tema.
Access to Information and Open Government – Framing the Debate in
the Brazilian Public Administration
Abstract: The paper briefly presents the forms of administrative organization which can be identified in Brazil since its formation, trying to
place in each, connections and disconnections with the themes of access
to information held by public authorities by the citizens and the adoption of practices of government transparency. Subsequently, attempts to
identify the main measures adopted in recent years in the federal Public
Administration to enforce the constitutional right of access to information
64 Patrícia Lima Sousa, Antonio Augusto Ignacio Amaral
and to publicize government’s actions, culminating with the advent of the
Law on Access to Information – LAI (Law n. 12.527, 2011). Following are
presented the broad lines of the policy of access to information in Brazil,
instituted by LAI, and consigned some challenges for public administration to face to its implementation. Finally, it is made an attempt to relate
access to information with the notion of vertical accountability, which
refers to the instruments at the disposal of society to control the actions
of public officials.
Key words: Access to information. Open government. Accountability.
Public Administration.
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WEBER, Max. Economia e sociedade: fundamentos de sociologia compreensiva. Brasília:
UnB, 1999. 2. v.
Reflexões sobre controle, legalidade e
discricionariedade
Eugenio Müller Lins de Albuquerque
Advogado da União em exercício na Procuradoria-Regional da União da 2ª Região (Coordenação de Patrimônio, Probidade e Meio Ambiente). Mestre em Direito pela Universidade
Candido Mendes. Especialista em Direito Público pela Universidade de Brasília. Membro efetivo
do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB). Membro da Comissão Permanente de Direito
Administrativo do IAB. Membro da Comissão Permanente de Direito Agrário do IAB. Membro
da Comissão de Direito Administrativo da OAB/RJ.
Resumo: Celebram-se, neste ano, vinte e cinco anos de existência constitucional da Advocacia-Geral da União. Há muito para comemorar.
Não, contudo, em termos de controle de legalidade da Administração
Pública, em especial em termos dos denominados atos discricionários. O
presente texto objetiva examinar como as últimas alterações no Direito
Administrativo influenciam tal tipo de controle.
Palavras-chave: Administração Pública. Brasil. Controle. Advocacia-Geral
da União.
Sumário: Introdução – 1 Controle da Administração Pública – 2 Trans­
formações no Direito Administrativo – 3 Controle do ato administrativo
pelo Advogado Público – Conclusões – Referências
Introdução
A experiência em atividades de consultoria e assessoramento
demonstra que o administrador público tende a restringir o controle de
legalidade conferido aos Advogados Públicos. Estão presos à noção
de legalidade como vinculação ao texto legal. E, dentro dessa visão,
encaram a questão da discricionariedade administrativa como um campo
de atuação imune a qualquer forma de controle jurídico. Dessa forma,
qualquer modo de estreitamento das decisões discricionárias excederia
a com­pe­tência do órgão jurídico e invadiria a seara do gestor.
A visão desses gestores está relacionada com uma leitura tradicional
(dogmática) do Direito Administrativo, calcada numa absoluta distinção
entre atos vinculados e discricionários, sendo forte a crença na sindicabilidade dos últimos.
Por outro lado, a doutrina é tímida na análise do controle interno
de legalidade da Administração Pública, mas pródiga em lições sobre
o controle jurisdicional. No que toca ao controle interno, limita-se, no
66 Eugenio Müller Lins de Albuquerque
mais das vezes, a afirmar que é aquele desempenhado pelo próprio órgão. Silencia, no entanto, sobre quem dentro do órgão está incumbido
de realizá-lo. Também existem poucas referências ao controle desempenhado pelos Advogados Públicos.
Esse vácuo lança algumas incertezas quanto ao conteúdo desse tipo
de controle. Envolveria apenas o controle da aplicação da norma dentro
de sua concepção positivista? O que dizer da interpretação constitucional e da incidência dos princípios fundamentais? E os regulamentos?
Além disso, torna-se necessário examinar se o Advogado Público está
autorizado a adentrar o chamado mérito do ato administrativo. Ou seja,
precisar se este profissional pode examinar os atos discricionários ou se
tal atribuição estaria acometida, por exemplo, apenas aos integrantes do
Poder Judiciário. Com efeito, o estudo das hipóteses de controle judicial
dos atos da Administração avançou muito, principalmente a partir do
manejo do princípio da razoabilidade. Infelizmente, tal avanço não foi
verificado na seara do controle dos Advogados Públicos. Surge, então,
o desafio de transportá-lo para esse campo.
O Direito Administrativo passa por mudanças, questionamento de
dogmas, reflexo, talvez, de um processo de constitucionalização tardia.
É fundamental sintonizar o trabalho do Advogado Público consultor, que também exerce função essencial à justiça, com as transformações
vivenciadas por esta área do Direito que é a sua principal ferramenta de
atuação. Importa harmonizar, ainda, este controle com o paradigma do
Estado Democrático de Direito vigente no Brasil, que adota, ao menos
formalmente, o modelo de administração gerencial ou de governança
corporativa. É dizer: deverá superar o legalismo e buscar a eficiência.
Cumpre destacar alguns vetores que devem informar as atividades
de aconselhamento conferidas pela Constituição aos integrantes da
Advocacia Pública. São: a busca do aperfeiçoamento do ordenamento
jurídico, a produção de atos administrativos em conformidade com o
ordenamento (sem vícios) e a prevenção de litígios judiciais insustentáveis
para o Estado.
As mutações do Direito Administrativo provocam reflexo no desenrolar das atividades consultivas próprias dos Advogados Públicos.
Interessa ao desenvolvimento do presente artigo determinar de que
Reflexões sobre controle, legalidade e discricionariedade 67
forma ditas alterações influenciam ou devem influenciar o objeto e os
limites das atribuições afetas a esta espécie de Advogados.
A melhor forma de iniciar a abordagem parece estar no estudo
inicial das noções tradicionais de controle da Administração.
1 Controle da Administração Pública
A existência de mecanismos de controle da Administração é inerente ao Estado de Direito, conforme sublinha Celso Antônio Bandeira
de Mello.1 O controle recebe inúmeras classificações. Porém, somente
as mais diretamente relacionadas ao tema principal serão abordadas.
O controle referido ao longo da presente exposição é o administrativo, não o político. Enquanto o controle administrativo tem por alvo
a função administrativa exercida pelos órgãos estatais, o político guarda
relação com as instituições políticas e o equilíbrio entre os Poderes.2
Poucos doutrinadores mencionam as atividades de assessora­men­to
e consultoria afetas aos Advogados Públicos como representando autêntica função de controle. A bem da verdade, dedicam-se a um exame
muito ligeiro do controle interno, preferindo concentrar-se no controle
externo, notadamente o parlamentar e o jurisdicional.
1.1 Controle de legalidade e de mérito. Atos vinculados e
discricionários
A classificação dos atos administrativos com base no critério da
liberdade de ação é tradicional. De um lado estariam os atos vinculados.
Do outro, os discricionários. Vinculados, em síntese, são aqueles cujos
elementos encontram-se dispostos previamente na lei. José dos Santos
Carvalho Filho assim os define:
Atos vinculados, como o próprio adjetivo demonstra, são aqueles que o agente
pratica reproduzindo os elementos que a lei previamente estabelece. Ao
agente, nesses casos, não é dada liberdade de apreciação da conduta, porque
se limita, na verdade, a repassar para o ato o comando estatuído na lei. Isso
indica que nesse tipo de atos não há qualquer subjetivismo ou valoração, mas
apenas a averiguação de conformidade entre o ato e a lei.3
BANDEIRA DE MELLO. Curso de direito administrativo, p. 889.
CARVALHO FILHO. Manual de direito administrativo, p. 779-780.
3
Ibid., p. 116-117.
1
2
68 Eugenio Müller Lins de Albuquerque
O controle dos atos vinculados não provoca maiores dúvidas, apesar
de os contornos do que venha a ser a legalidade que demanda controle
não sejam tão evidentes quanto parecem.
Noutra direção, os atos discricionários são apontados como aqueles
que comportam certa margem de liberdade de apreciação do administrador na aplicação. Nas palavras do mesmo Carvalho Filho:
Diversamente sucede nos atos discricionários. Nestes é a própria lei que
autoriza o agente a proceder a uma avaliação de conduta, obviamente to­
mando em consideração a inafastável finalidade do ato. A valoração incidirá
sobre o motivo e o objeto do ato, de modo que este, na atividade discricionária,
resulta essencialmente da liberdade de escolha entre alternativas igualmente
justas, traduzindo, portanto, um certo grau de subjetivismo.4
Sobre a discricionariedade, Marcello Caetano traz a seguinte
contribuição:
A legalidade cinge a actividade jurídica da Administração condicionando os
poderes a exercer e a forma de seu exercício, o objecto e o fim dos actos. Na
medida em que as normas gerais pautam a actividade administrativa, diz-se
que esta é vinculada. Todavia, as necessidades da iniciativa da Administração,
o facto desta ter com freqüência que decidir, isto é, de escolher uma atitude,
um comportamento, um procedimento entre vários possíveis em face de
circunstâncias muito variáveis e quantas vezes inesperadas, impõem que a
lei deixe nessas ocasiões certa liberdade de actuação aos órgãos.
Tal liberdade de apreciação tanto pode incidir sobre a oportunidade de agir,
como sobre o objecto ou a forma do acto. Desde que seja respeitado o fim de
interesse público fixado por lei como fundamento da atribuição dos poderes,
e que passa a ser o valor jurídico em função do qual se apreciará o acto, o
órgão poderá escolher, naqueles domínios que a lei deixa ao seu critério,
qualquer das atitudes ou dos comportamentos possíveis. A este domínio da
liberdade de escolha ou de apreciação, relegada para o plano da técnica, se
chama discricionariedade administrativa, que se opõe, assim, à vinculação.5
Merece atenção o destaque dado pelo autor ao plano da técnica,
noção relevante para o exame dos limites ao controle dos atos considerados discricionários.
4
5
Ibid., p. 117.
CAETANO. Manual de direito administrativo, p. 31.
Reflexões sobre controle, legalidade e discricionariedade 69
A seu turno, Celso Antônio Bandeira de Mello assim define a
dis­cri­cionariedade:
Discricionariedade é a margem de “liberdade” que remanesça ao admi­
nistrador para eleger, segundo critérios consistentes de razoabilidade, um,
dentre pelo menos dois comportamentos, cabíveis perante cada caso concreto,
a fim de cumprir o dever de adotar a solução mais adequada à satisfação
da fi­na­lidade legal, quando, por força da fluidez das expressões da lei ou da
liber­dade conferida no mandamento, dela não se possa extrair objetivamente
uma solução unívoca para a situação vertente.
Para o autor, a discricionariedade deve ser pesquisada em cada caso
concreto, sendo inadequado afirmar sua existência em tese. Maria Sylvia
Di Pietro associa a ideia de discricionariedade a um poder jurídico, nos
termos abaixo transcritos:
Estudando-se a evolução da Administração Pública a partir do Estado de
Polícia, verifica-se que se partiu de uma ideia de discricionariedade ampla
— sinônimo de arbítrio e própria das monarquias absolutas, em que os atos
da Administração não eram sindicáveis perante o Judiciário — para passarse a uma fase, já no Estado de Direito, em que a discricionariedade, assim
entendida, ficou reduzida a certo tipo de atos; e chegou-se a uma terceira
fase em que praticamente desapareceu essa ideia de discricionariedade e esta
surgiu como poder jurídico, ou seja, limitado pela lei.6 7
Diz-se do ato discricionário que comporta juízo de conveniência
e oportunidade, e que estes formam o mérito administrativo. Nesse
sentido, a seguinte lição de José dos Santos Carvalho Filho:
Vimos, ao estudar o poder discricionário da Administração que, em certos atos
a lei permite ao agente proceder a uma avaliação de conduta, ponderando
os aspectos relativos à conveniência e à oportunidade da prática do ato.
Esses aspectos que suscitam tal ponderação é que constituem o mérito admi­
nistrativo.8
O controle dos atos discricionários (especialmente o jurisdicional)
tem contornos complexos. Hoje, contudo, não há quem sustente que tais
BANDEIRA DE MELLO, op. cit., p. 926.
DI PIETRO. Discricionariedade administrativa na Constituição de 1988, p. 14.
8
CARVALHO FILHO, op. cit., p. 111.
6
7
70 Eugenio Müller Lins de Albuquerque
tipos de atos sejam imunes ao controle pelo Poder Judiciário. Discute-se
apenas a intensidade e os limites do controle.
Não há confundir-se discricionariedade com arbitrariedade. É
fundamental ter em vista que discricionariedade, mérito, oportunidade e
conveniência não podem servir como rótulos que cubram atos administrativos com o manto da imunidade de controle ou mesmo da impunidade.
1.2 Controle interno. Controle externo
Com relação ao controle interno, é tema que não desperta maior
cuidado nos manuais e cursos de Direito Administrativo, que são bastante econômicos a respeito. Limitam-se, em sua maioria (ao menos
as referências consultadas), a estabelecer que é o desempenhado pelos
próprios órgãos.
Quanto ao controle externo, é alvo de maior destaque, sobretudo a
modalidade jurisdicional. Talvez pela razão singelamente apontada por
Celso Antônio Bandeira de Mello, para quem: “dentre todos os controles
o mais importante, evidentemente, é o que se efetua, a pedido dos interessados, por meio do Poder Judiciário”.9 Em sentido oposto, porém,
Hely Lopes Meirelles defendia a precedência e a maior abrangência do
controle exercido pela própria Administração (Poder Executivo):
Assim, temos a considerar com precedência sobre os demais, por sua per­
ma­nência e amplitude, o controle da própria Administração sobre seus atos
e agentes (controle administrativo ou executivo) e, a seguir, o do Legislativo
sobre determinados atos e agentes do Executivo (controle legislativo ou
parlamentar) e, finalmente, a correção dos atos ilegais de qualquer dos
Poderes pelo Judiciário, quando lesivos de direito individual ou do patrimônio
público (controle judiciário ou judicial), como veremos nos itens seguintes
deste capítulo (itens II, III e IV).10
Referido autor considerava o controle interno mais amplo do que o
judicial por contemplar o primeiro juízo de legalidade e de mérito.11 Não
discrepa de tal posicionamento a lição de Diogo de Figueiredo Moreira
Neto, segundo a qual o controle interno (ou autocontrole): “tem a maior
MELLO, op. cit., p. 890.
MEIRELLES. Direito administrativo brasileiro, p. 571.
11
Ibid., p. 574-575.
9
10
Reflexões sobre controle, legalidade e discricionariedade 71
abrangência possível; transborda do campo da estrita legalidade para
envolver o interesse público (controle de mérito)”.12
Interessa ao desenvolvimento do presente trabalho identificar que
a primazia do controle interno pertence aos Advogados Públicos. Num
passo seguinte, precisar os contornos desse controle, isto é, definir se
contempla apenas a legalidade isoladamente considerada ou se alberga outros fatores. E, finalmente, estudar a relação entre os Advogados
Públicos e o exame da discricionariedade administrativa. Faz-se necessário, porém, tratar inicialmente do chamado controle judicial ou
jurisdicional da Administração Pública.
1.3 Controle jurisdicional
Como antes referido, a doutrina dedicada ao Direito Administra­
tivo é muito mais farta no tratamento do tema do controle jurisdicional
da Administração Pública. Em outras palavras, o estudo dos limites do
controle jurisdicional sobre a atividade discricionária evoluiu consideravelmente, ao passo que o controle interno restou relegado a segundo
plano.
De fato, o tema pode ser dividido nos seguintes estágios ou fases:
(i) insindicabilidade: (ii) apreciação dos elementos vinculantes (desvio
de poder, desvio de finalidade, aplicação da teoria dos motivos determinantes); (iii) valoração dos conceitos jurídicos indeterminados;
(iv) controle pela aplicação de princípios como a moralidade administrativa e a razoabilidade. A tais fórmulas, acrescenta-se a teoria de Gustavo
Binenbojm sobre os graus de vinculação à juridicidade administrativa,
que será abordada em espaço próprio.
À exceção da construção em torno da insindicabilidade do mérito
pelo juiz, as demais permanecem válidas, representando verdadeiras
técnicas de estreitamento ou controle do mérito pelo juiz.
No que diz respeito aos limites do controle sobre os atos que ensejam apreciação discricionária pelo administrador, é de grande valia
o alerta de Celso Antônio Bandeira de Mello, que entende existir um
cerne que não pode ser penetrado pelo juiz, qual seja, o da conveniência
12
MOREIRA NETO. Curso de direito administrativo, p. 164.
72 Eugenio Müller Lins de Albuquerque
e da oportunidade do ato. Significa dizer que a discricionariedade do
administrador não pode ser simplesmente substituída pela apreciação
do órgão julgador, sob pena de invasão de poderes. Pelo menos não o
núcleo de subjetividade. Veja-se:13
O campo de apreciação meramente subjetiva — seja por conter-se no
interior das significações efetivamente possíveis de um conceito legal fluido
e impreciso, seja por dizer com a simples conveniência ou oportunidade de
um ato — permanece exclusivo do administrador e inde­vassável pelo juiz, sem
o quê haveria substituição de um pelo outro, a dizer, invasão de funções que
se poria às testilhas com o próprio princípio da independência dos Poderes,
consagrado no art. 2º da Lei Maior.
Aliás, o autor fornece outros elementos de suma importância para
a identificação dos limites da discricionariedade.14 Em primeiro lugar, a
noção de que a discricionariedade reside onde for impossível reconhecer
de maneira pacífica e incontrovertível a solução idônea para cumprir de
forma excelente a finalidade legal. Além disso, observa que a discricionariedade remanesce mesmo após decorrido o processo interpretativo. E,
por fim, a constatação de que haverá discricionariedade fora das zonas
de certeza negativa e de certeza positiva.
A seu turno, José dos Santos Carvalho Filho afirma:
O que é vedado ao Judiciário, como corretamente têm decidido os Tribunais,
é apreciar o que se denomina normalmente de mérito administrativo, vale
dizer, a ele é interditado o poder de reavaliar critérios de conveniência e
opor­tunidade de destacar que, a se admitir essa reavaliação, estar-se-ia
possi­bilitando que o juiz exercesse também função administrativa, o que
não corresponde obviamente à sua competência. Além do mais, a invasão
de atri­buições é vedada na Constituição em face do sistema da tripartição
de Poderes (art. 2º).15
A jurisprudência fornece diversos casos de limitação da discricionariedade pelo órgão jurisdicional, em especial em decorrência aplicação
do princípio da proporcionalidade ou razoabilidade. São exemplos: a
Ibid., p. 946.
Ibid., p. 918, 925, 929.
15
CARVALHO FILHO, op. cit., p. 842.
13
14
Reflexões sobre controle, legalidade e discricionariedade 73
aplicação da razoabilidade em sede de fixação de sanção disciplinar e
de estipulação de critérios de idade em concurso público.
1.4 Considerações sobre a Advocacia Pública e Controle
A Advocacia Pública abrange, além da Advocacia-Geral da União, as
Procuradorias dos Estados e dos Municípios (que possuam Procuradoria
organizada), mas o foco principal do presente trabalho é AGU.
A atuação consultiva da AGU se dá por meio da consultoria e do
assessoramento jurídicos aos diversos órgãos do Poder Executivo Federal,
garantindo segurança jurídica aos atos administrativos que serão praticados, notadamente quanto à materialização das políticas públicas, à
viabilização jurídica das licitações e dos contratos e, ainda, à proposição
e análise de medidas legislativas (projetos de lei, medidas provisórias,
decretos e resoluções, entre outros) necessárias ao desenvolvimento e
aprimoramento do Estado Brasileiro.
A Constituição de 1988, ao tratar da Advocacia-Geral da União, não
utiliza a expressão controle, consoante se verifica da leitura do artigo 131:
Art. 131. A Advocacia-Geral da União é a instituição que, diretamente ou
através de órgão vinculado, representa a União, judicial e extrajudicialmente,
cabendo-lhe, nos termos da lei complementar que dispuser sobre sua orga­
ni­za­ção e funcionamento, as atividades de consultoria e assessoramento
jurí­dico do Poder Executivo.
A doutrina também costuma reservar o estudo do controle à
Controladoria-Geral da União, ao Ministério Público, ao Judiciário e
ao Tribunal de Contas (ou Tribunais de Contas).
José dos Santos Carvalho Filho aponta que a revisão e fiscalização
são os elementos básicos do controle.16 Nada obstante, é possível enxergar
nas atividades de consultoria e assessoramento a natureza de controle, se
compreendido o seu sentido a partir das lições de Marçal Justen Filho.
Marçal distingue o controle em duas modalidades, ou tipos: o controlefiscalização e o controle-orientação. Nas palavras do administrativista:
16
Ibid., p. 781.
74 Eugenio Müller Lins de Albuquerque
Há o controle-fiscalização, que indica o acompanhamento e a fiscalização.
É nesse sentido que o art. 71, I, da CF/88 estabelece que o controle externo
exercitado pelo TCU abrange a apreciação das contas prestadas anualmente
pelo Presidente da República. Mas também existe o controle-orientação,
consistente na determinação da conduta alheia. É nessa acepção que o TCU
determina que o órgão administrativo adote providências indicadas ou assine
prazo para adoção de providências necessárias ao cumprimento da lei (CF/88,
art. 71, VIII e IX).17
O sentido de orientação já podia ser encontrado no ensinamento
de Hely Lopes Meirelles, ainda que de forma mais discreta: “controle, em
tema de administração pública, é a faculdade de vigilância, orientação
e correção que um Poder, órgão ou autoridade exerce sobre a conduta
funcional do outro”.18
É nessa segunda categoria de controle, a de orientação, que as
atividades consultivas desempenhadas pelos integrantes da Advocacia
Pública podem ser enquadradas. Os pareceres dos Membros da AGU,
em regra, não são vinculantes, de acordo com a legislação em vigor.
Porém, embora lhes falte poder para determinar a conduta alheia, tal
circunstância não afasta seu caráter de controle-orientação.
Carlos Figueiredo Mourão19 destaca que o controle interno de legalidade da Administração compete exclusivamente à Advocacia Pública:
O Estado de Direito impõe à Administração Pública que seus atos estejam
vinculados à lei, e, para tanto, foram criados sistemas de controle desses atos.
Assim, a execução de suas obrigações constitucionais se dá por intermédio de
entes de direito público de caráter permanente, cujos membros ingressaram
na carreira mediante concurso. Dentre eles, os procuradores públicos, que
têm a obrigação legal e exclusiva de analisar atos administrativos à luz do
princípio da legalidade.
Note-se que a obrigação mencionada pelo autor não é apenas legal,
mas decorre da própria Constituição. Também Rommel Macedo enxerga
no assessoramento e na consultoria verdadeiras funções de controle, nos
termos da lição abaixo transcrita:
JUSTEN FILHO. Curso de direito administrativo.
MEIRELLES, op. cit., p. 570.
19
MOURÃO. A Advocacia Pública como instituição de controle interno da Administração. In: GUEDES; SOUZA
(Coord.). Advocacia de Estado: questões institucionais para a construção de um Estado de Justiça: estudos
em homenagem a Diogo de Figueiredo Moreira Neto e José Antonio Dias Toffoli, p. 136.
17
18
Reflexões sobre controle, legalidade e discricionariedade 75
Percebe-se que a advocacia do Estado, ao consistir no controle de legalidade
e de legitimidade, pode sim se caracterizar, sob o prisma funcional material,
como um verdadeiro integrity branch (ACKERMAN, 2000, p. 694-696) ou
poder de fiscalização, o que, no sistema presidencialista de governo, mostra-se
imprescindível para que a politização da Administração Pública não ponha
em risco o Estado Democrático de Direito. Promovendo a responsabilização
dos agentes públicos, seja preventivamente — por meio da consultoria
e do assessoramento jurí­dicos — seja na via postulatória — mediante as
ações cabíveis — a advocacia do Estado acaba por consistir uma função de
controle (MOREIRA NETO, 1994, p. 34) — policy control, na terminologia
de Lowenstein (1970, p. 71).20
A faceta de orientação ora defendida não discrepa das orientações
de Diogo de Figueiredo Moreira Neto, que vai mais além e visualiza na
missão consultiva da Advocacia de Estado um dever de aperfeiçoamento
da ordem jurídica:
Compete, ainda, ao Advogado de Estado, no desempenho apropriado desse
dever constitucional de aperfeiçoamento da ordem jurídica, aconselhar, per­
suadir e induzir os agentes políticos no sentido de adotarem, invariavelmente,
todas as providências, normativas ou concretas, que se destinem à afirmação
do primado dos valores jurídicos e democráticos, sempre que se apresentem
as ocasiões concretas de fazê-lo, dentro ou fora de processo judicial ou
administrativo sob seus cuidados.21 (grifos nossos)
A orientação consistirá em indicar ao administrador os parâmetros
que seus atos, decisões e procedimentos deverão seguir para preservar a
harmonia com o ordenamento jurídico. Há nisso um aspecto preventivo
(evitar-se a prática de atos juridicamente defeituosos) e mesmo corretivo
(no sentido de revogação ou anulação).
Voltando um pouco à teoria da separação dos Poderes, vê-se que
a tradicional tripartição vem recebendo novos influxos. Marçal Justen
Filho identifica no Tribunal de Contas da União e no Ministério Público
verdadeiros Poderes, nada mencionando, entretanto, em relação à
Advocacia Pública.
20
21
MACEDO. Advocacia-Geral da União na Constituição de 1988, p. 161.
MOREIRA NETO. A Advocacia de Estado revisitada: essencialidade ao Estado Democrático de Direito.
Debates em Direito Público – Revista de Direito dos Advogados da União, p. 58.
76 Eugenio Müller Lins de Albuquerque
Não pode ser negligenciada, entretanto, a lição de Diogo de Figueiredo
Moreira Neto, que apregoa a existência de órgãos que não se incluem
na tradicional teoria da tripartição. O autor situa a Advocacia-Geral da
União como um desses órgãos, conforme se observa:
Segundo, porque proliferam nos Estados contemporâneos inúmeros órgãos que
não se incluem em qualquer dos três conjuntos de poderes clássicos, desempenhando,
com independência política, uma vasta gama de atri­buições setoriais im­
portantes, como é o caso dos bancos centrais e dos tribunais constitucionais
em vários países, e, no Brasil, dos órgãos encar­regados do exercício das funções
essenciais à justiça (Ministério Público, Advocacia Pública e Defensoria Pública)
e, ainda, dos Tribunais de Contas.22 (grifos no original)
Embora a AGU integre o Capítulo das Funções Essenciais à Justiça,
o arcabouço constitucional vigente não lhe reservou qualquer grau de
autonomia que permita asseverar que tal instituição não integra, pelo
menos do ponto de vista formal, o Poder Executivo.
Estabelecidas as premissas acima, resta consignar que a atuação
consultiva dos Advogados Públicos não deve permanecer indiferente às
transformações sofridas pelo Direito Administrativo que serão tratadas ao
longo deste texto. Ao contrário, pois, como alerta Diogo de Figueiredo,
“cada novo instituto de Direito Administrativo que surge abre sempre
um novo desafio à Advocacia de Estado”.23 Cabe examinar, destarte, de
que forma isso se dará.
2 Transformações no Direito Administrativo
O Direito Administrativo é usualmente descrito como tendo surgido
para limitar o poder estatal perante os cidadãos. É uma visão tradicional
que não desperta maior dissenso. Mas Gustavo Binenbojm aponta uma
origem diferente. Segundo o autor, o Direito Administrativo teve função
justamente oposta, que corresponderia à manutenção dos privilégios do
Antigo Regime:
22
23
MOREIRA NETO. Direito regulatório, p. 152.
BINENBOJM. Uma teoria do direito administrativo: direitos fundamentais, democracia e constitucionalização,
p. 63.
Reflexões sobre controle, legalidade e discricionariedade 77
O surgimento do direito administrativo, e de suas categorias jurídicas pecu­
liares (supremacia do interesse público, prerrogativas da Administração, dis­
cri­cio­nariedade, insindicabilidade do mérito administrativo, dentre outras)
representou antes uma forma de reprodução e sobrevivência das práticas
administrativas do Antigo Regime que a sua superação.24
A origem do Direito Administrativo cria situações contraditórias
com o atual estágio de evolução do restante do Direito. Não por outros
motivos, Binenbojm propõe a revisão de certos paradigmas do Direito
Administrativo.
Das alterações sofridas pelo Direito Administrativo, interessam mais
ao tema do controle de legalidade afeto aos integrantes da Advocacia
Pública: a crise da lei formal; a constitucionalização do Direito Adminis­
trativo e a ascensão dos princípios constitucionais, além do fim da dico­
tomia entre atos discricionários e vinculados.
2.1 Crise da lei formal
A ambição de racionalidade pura dos iluministas não alcançou os
resultados esperados. Testemunha-se o declínio da lei. A lei perdeu seu
posto de representação da vontade popular. Em parte, isso se passa como
decorrência da lentidão do processo legislativo tradicional. O Estado
contemporâneo acumula competências sucessivamente complexas e
específicas, em virtude do avanço tecnológico e da complexidade do próprio grupo social. O Parlamento não dispõe de conhecimentos técnicos
para acompanhar a velocidade das demandas crescentes da sociedade.
Outro fator que levou à erosão da lei formal foi o fenômeno da
inflação legislativa. O excesso de leis pode ser atribuído à noção positivista de completude do ordenamento jurídico (ideal de racionalidade
exacerbada própria da modernidade), somado ao aumento das funções
do chamado Estado Social. Legislou-se tanto e sobre tantas matérias que
o efeito foi o contrário: a lei ficou banalizada.
Gustavo Binenbojm aponta outras causas menos óbvias que conduziram à crise da lei. Cita como corresponsáveis pelo processo:25 a
constatação histórica de que a lei pode veicular a injustiça e fundamentar
24
25
Ibid.
Ibid., p. 128-135.
78 Eugenio Müller Lins de Albuquerque
a barbárie; a vitória do constitucionalismo sobre o legalismo; a criação
de uma série de atos normativos infraconstitucionais pelo Executivo; o
controle do processo legislativo pelo Executivo.
Quando se cogita da utilização da lei como fundamento da barbárie, vem à tona a questão da ascensão do nazismo e do fascismo como
episódios que colocaram em xeque o ideal positivista. Bem sintetiza o
tema o seguinte comentário de Luís Roberto Barroso:
O fetiche da lei e o legalismo acrítico, subprodutos do positivismo jurídico,
serviram de disfarce para autoritarismos de matizes variados. A ideia de que
o debate jurídico se encerrava quando da positivação da norma tinha um
caráter legitimador da ordem estabelecida. Qualquer ordem. Sem embargo da
resistência filosófica de outros movimentos influentes nas primeiras décadas
do século, a decadência do positivismo é emblematicamente associada à
derrota do fascismo na Itália e do nazismo na Alemanha. Esses movimentos
políticos e militares ascenderam ao poder dentro do quadro de legalidade
vigente e promoveram barbárie em nome da lei.26
Quanto ao último aspecto, isto é, a captura do processo legislativo
pelo Executivo, assume especial relevo no Brasil, notadamente em razão
das medidas provisórias de competência do Presidente da República.
2.2 Constitucionalização do Direito Administrativo
Por mais paradoxal que pareça, enquanto a lei perdeu parte de
sua relevância, a Constituição passou a ocupar um lugar central nos
ordenamentos jurídicos. É possível identificar o fenômeno deslegalizaçãoconstitucionalização. E constatar que, no Brasil, a Constituição assumiu
posição outrora reservada ao Código Civil.27
Com a constitucionalização, assumem maior relevo os princípios
constitucionais fundamentais, que irradiam sobre toda a pirâmide jurídica e incidem mesmo sobre a relação entre particulares (administrados).
Dá-se, então, aquilo que Luís Roberto Barroso denomina de filtragem
constitucional:
BARROSO. A nova interpretação constitucional: ponderação, direitos fundamentais e relações privadas,
p. 26.
27
Ibid., p. 43.
26
Reflexões sobre controle, legalidade e discricionariedade 79
A Constituição passa a ser, assim, não apenas um sistema em si — com a sua
ordem, unidade e harmonia — mas também um modo de olhar e interpretar
todos os demais ramos do Direito. Este fenômeno, identificado por alguns
autores como filtragem constitucional, consiste em que toda a ordem jurídica
deve ser lida e apreendida sob a lente da Constituição, de modo a realizar os
valores nela consagrados. A constitucionalização do direito infraconstitucional
não identifica apenas a inclusão na Lei Maior de normas próprias de outros
domínios, mas, sobretudo, a reinterpretação de seus institutos sob uma ótica
constitucional.28
Gustavo Binenbojm assinala que a burocracia provocou relativo
atraso na constitucionalização do Direito Administrativo:
Com efeito, embora criado sob o signo do Estado de direito, para solucionar os
conflitos entre autoridade (poder) e liberdade (direitos individuais), o direito
administrativo experimentou, ao longo de seu percurso histórico, um processo
de descolamento do direito constitucional. A própria descontinuidade das
constituições, em contraste com a continuidade da burocracia, contribuiu para
que o direito administrativo se nutrisse de categorias, institutos, princípios e
regras próprios, mantendo-se de certa forma alheio às sucessivas mutações
constitucionais.29
Com ou sem atraso, é indubitável que a constitucionalização veio
para alterar as relações travadas no âmbito do Direito Administrativo.
Como resultado, o administrador passou a poder sustentar seus atos
diretamente da Constituição — ou mesmo ser compelido a assim proceder — sem o intermédio da lei. Para Binenbojm, a ligação direta da
Administração aos princípios constitucionais é o aspecto mais importante
da constitucionalização do Direito Administrativo.30
Já Marçal Justen Filho relaciona constitucionalização e atividade
interpretativa:
O enfoque constitucionalizante preconizado consiste em submeter a inter­pre­
tação jurídica de todas as instituições do direito administrativo a uma com­
preensão fundada concreta e pragmaticamente nos valores constitu­cionais.31
30
31
28
29
Ibid., p. 44.
Ibid., p. 18-19.
Ibid., p. 143.
JUSTEN FILHO. Curso de direito administrativo, p. 16.
80 Eugenio Müller Lins de Albuquerque
Outras consequências da constitucionalização deste ramo jurídico
são, segundo Luís Roberto Barroso, a redefinição da ideia de supremacia do interesse público e a possibilidade de controle judicial do mérito
administrativo.32 É o segundo aspecto que mais interessa ao estudo ora
empreendido, pois caberá examinar se esta possibilidade deve ser estendida aos integrantes da Advocacia Pública.
2.3 Pós-positivismo. Normatividade dos princípios
Como reação ao positivismo jurídico, surgiu o movimento chamado
pós-positivismo.
O pós-positivismo está associado à constitucionalização do Direito,
que trouxe para o centro do debate o papel dos princípios constitucionais
fundamentais. Os princípios, antes vistos como meras declarações de intenções do legislador, passaram a ser considerados normas efetivas, que
ora veiculam comportamentos negativos e que ora impõem ao Estado
certas prestações positivas.
Alexandre Santos de Aragão assim sintetiza o que chama de concepção pós-positivista da legalidade:
Com efeito, evoluiu-se para se considerar a Administração Pública vin­culada
não apenas à lei, mas a todo um bloco de legalidade, que incor­pora os valores,
princípios e objetivos maiores da sociedade, com diversas Constituições (por
exemplo, a alemã e a espanhola) passando a submeter a Administração Pública
expressamente à “lei e ao Direito”, o que também se infere implicitamente da
nossa Constituição e expressamente da Lei do Processo Administrativo Federal
(art. 2º, parágrafo único, I). A esta formulação dá-se o nome de princípio da
juridicidade ou da legalidade em sentido amplo.33
Já Luís Roberto Barroso assim resume o que compreende por póspositivismo:
O pós-positivismo identifica um conjunto de idéias difusas, que ultra­pas­sam
o legalismo estrito do positivismo normativista, sem recorrer às categorias
da razão subjetiva do jusnaturalismo. Sua marca é a ascensão dos valores,
BARROSO. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do direito (o triunfo tardio do direito constitucional
no Brasil). Interesse Público – IP, p. 13-54.
33
ARAGÃO. A concepção pós-positivista do princípio da legalidade. BDA – Boletim de Direito Administrativo,
p. 776.
32
Reflexões sobre controle, legalidade e discricionariedade 81
o reconhecimento da normatividade dos princípios e a essencialidade dos
direitos fundamentais. Com ele, a discussão ética volta ao Direito. O plura­
lismo político e jurídico, a nova hermenêutica e a ponderação de interesses
são componentes dessa reelaboração teórica, filosófica e prática que fez a
travessia de um milênio para o outro.34
Ou seja, se antes era possível cogitar-se da existência de um uni­
verso jurídico povoado apenas por regras, o enfoque evoluiu para a
convivência entre regras e princípios. Os princípios deixam de ser
declarações políticas e tornam-se material de trabalho dos operadores
do Direito, no caso os Advogados Públicos. Portanto, o manuseio dos
princípios não extrapola os limites do controle de legalidade.
Outra questão não pode ser negligenciada. O jogo de princípios
e regras torna mais complexa a atuação do Advogado Público. Os princípios possuem densidade maior do que as regras, mas, por outro lado,
propiciam menor objetividade. Assim, a aplicação dos princípios oferece
menos segurança jurídica, conquanto amplie os horizontes de atuação
desses profissionais.
Nesse sentido, é oportuno sublinhar a posição de Maria Sylvia
Di Pietro, ainda que direcionada ao controle judicial dos atos da
Admi­nistração:
Quando, porém, à lei formal se acrescentam considerações axiológicas,
amplia-se a possibilidade de controle judicial, porque, por essa via, poderão
ser corri­gidos os atos administrativos praticados com inobservância de certos
valores ado­tados como dogmas em cada ordenamento jurídico.
O controle fica mais difícil porque, em se tratando de valores, são delimitados
com muito menos clareza os confins da atuação discricionária. A tarefa do
juiz fica muito mais complexa, uma vez que ele passará a perquirir zonas de
maior incerteza. Além da maior dificuldade, sua tarefa aumenta, à medida
que novos limites se impõem à discricionariedade administrativa.35
Resta nítida, pois, a relação entre o controle da Administração
Pú­blica e a ascensão dos princípios jurídicos. Corrobora tal afirmativa a
lição de Gustavo Binenbojm ora transcrita:
BARROSO. A nova interpretação constitucional: ponderação, direitos fundamentais e relações privadas,
p. 47.
35
DI PIETRO, op. cit., p. 14.
34
82 Eugenio Müller Lins de Albuquerque
A constitucionalização do direito ensejou uma incidência direta dos princípios
constitucionais sobre os atos administrativos não diretamente vinculados
pela lei. Assim, não há espaço decisório da Administração que seja externo
ao direito, nem tampouco nenhuma margem decisória totalmente imune à
incidência dos princípios constitucionais.36
Vale assentar ainda que, assim como a noção de legalidade sofreu
alteração, algo semelhante ocorreu com a discricionariedade, a qual,
como esclarece Maria Sylvia Di Pietro, “não é mais a liberdade de atuação
limitada pela lei, mas a liberdade de atuação limitada pelo Direito”.37
2.4 Fim da dicotomia atos vinculados versus discricionários.
Graus de vinculação dos atos administrativos à juridicidade.
Sistematização dos parâmetros de controle judicial dos atos
administrativos
Gustavo Binenbojm, conforme será esmiuçado em tópico reservado, defende uma concepção ampla do princípio da legalidade, à qual
se refere como juridicidade. Para o autor, além disso, não há, na essência, distinção entre os atos vinculados e os atos discricionários. Chega
mesmo o autor a propor uma mudança de paradigma neste sentido (da
dicotomia ato vinculado versus ato discricionário à teoria dos graus de
vinculação à juridicidade). Confira-se:
Como se vê, essa principialização do direito brasileiro acabou por aumentar
a margem de vinculação dos atos discricionários à juridicidade. Em outras
palavras, essa nova concepção de discricionariedade vinculada à ordem jurí­
dica como um todo trouxe a percepção de que não há diferença de natu­reza
entre o “ato administrativo vinculado” e o “ato administrativo discri­cionário”,
sendo a diferença o grau de vinculação.38
A ascensão dos princípios no Direito Administrativo tem reflexo
direto no controle dos atos administrativos. Assim, Binenbojm cuida de
esboçar um esquema para sistematização do grau de controle judicial
dos atos administrativos a partir da sua maior ou menor vinculação à
juridicidade. Embora a sua proposta seja direcionada ao controle judicial,
BINENBOJM, op. cit., p. 308.
DI PIETRO, op. cit., p. 233.
38
BINENBOJM, op. cit., p. 210.
36
37
Reflexões sobre controle, legalidade e discricionariedade 83
é válido abordá-la para posterior exame da adequação do seu uso para o
controle interno de legalidade a cargo dos membros da Advocacia Pública.
Binenbojm rejeita a predefinição estática da controlabilidade a
partir das categorias binárias atos vinculados e atos discricionários. Para
ele, o maior grau de vinculação estaria impregnado nos atos vinculados
por regras. Nestes casos, decorre como dever imediato para o administrador o de adotar a conduta descrita no relato normativo.
Em seguida, viriam os conceitos jurídicos indeterminados. São
exemplos desse tipo de ato as noções de notório saber jurídico e reputação ilibada. Diante de conceitos indeterminados, o controle seria
eminente negativo, devendo o magistrado cingir-se a afastar soluções
manifestamente incorretas.
E, por último na escala de vinculação, restariam os atos vinculados
por princípios (que, segundo o autor, podem ser constitucionais, legais
ou regulamentares). Quanto a estes, que considera indevidamente denominados discricionários, Binenbojm sugere o seguinte roteiro:
Assim, após o exame dos elementos vinculados (competência, forma, finali­
dade e motivos determinantes), deverá o Judiciário averiguar se o administra­
dor, na aplicação de uma norma que lhe permite atuar com certa liberdade de
de­cisão, observou os princípios constitucionais gerais e os princípios setoriais
da Admi­nistração Pública (como publicidade, impessoalidade, igualdade,
morali­dade, eficiência, confiança legítima).39
Além de traçar os degraus de vinculação dos atos administrativos
à juridicidade, afirma Binenbojm que a intensidade do controle jurisdicional dependerá da presença maior ou menor de alguns parâmetros
nos atos submetidos a controle. A reprodução integral do esquema do
autor seria incompatível com a dimensão deste trabalho, mas é possível
alinhavar suas diretrizes fundamentais da seguinte maneira:40
1.Quanto maior o grau de restrição imposto a direitos fundamentais, mais intenso deve ser o grau de controle judicial;
2.Quanto maior o grau de objetividade extraível dos relatos normativos aplicáveis à hipótese em exame, mais intenso deve ser
o grau de controle;
39
40
Ibid., p. 229.
Ibid., p. 235-237.
84 Eugenio Müller Lins de Albuquerque
3.Quanto maior o grau de tecnicidade da matéria, menos intenso
será o controle;
4.Quanto maior o grau de politicidade da matéria, objeto de
decisão por agente eleitoralmente legitimado, menos intenso
deverá ser o controle; e
5.Quanto maior o grau de efetiva participação social no processo
de deliberação que resultou no ato, menos intenso deve ser o
grau de controle.
3 Controle do ato administrativo pelo Advogado Público
Marçal Justen Filho atesta que o instrumental teórico do Direito
Administrativo se reporta ao século XIX, como, por exemplo, os conceitos
de legalidade e discricionariedade administrativa.41
No campo da atuação consultiva dos Advogados Públicos, observase que as noções cunhadas naquele século encontram-se bastante
enraizadas. Ocorre fenômeno que foi detectado pelo autor acima citado
nos seguintes termos:
Em alguns temas, o conteúdo e as interpretações do direito admi­nistra­tivo
per­ma­nec­em vinculados e referidos a uma realidade sociopolítica que há
muito dei­xou de existir. O instrumental do direito admi­nistrativo é, na sua
essência, o mesmo de um século atrás.42
No que toca à legalidade e à discricionariedade, a forte vinculação a visões ultrapassadas pode ser atribuída, também, à postura dos
gestores públicos, que pretendem ver reduzido o poder de controle dos
pareceristas e ampliada a sua esfera de atuação. Detecta-se, ainda, algum
grau de confusão entre Advocacia de Estado e Advocacia de Governo.
Nota-se que as transformações tratadas nos tópicos anteriores
ainda não fazem parte do dia a dia dos integrantes do ramo consultivo
da Advocacia Pública. Ou seja, resta aos seus membros implementá-las
nos processos administrativos em que funcionam. Dada a multiplicidade
de temas em que são chamados a opinar, é fácil imaginar o efeito multiplicador envolvido. Em sentido oposto, a negação das transfor­mações
41
42
JUSTEN FILHO. Curso de direito administrativo, p. 15.
Idem.
Reflexões sobre controle, legalidade e discricionariedade 85
implicará na estagnação do Direito Administrativo, com todos os prejuízos inerentes.
Gerson dos Santos Sicca, em artigo destinado ao estudo da discricionariedade e dos conceitos jurídicos indeterminados, bem sintetizou
a relação entre estes temas, a atuação dos gestores públicos, a Advocacia
Pública e o controle jurisdicional da Administração:
A redefinição da noção de vinculação não prejudica em nada a Administra­
ção. Apenas deixa claro ao administrador público que a interpretação/apli­
cação dos preceitos jurídicos, por mais vagos que sejam, deve ser feita com
organização e rigor metodológicos. E os órgãos jurídicos têm papel funda­
mental nessa tarefa, pois são os principais responsáveis pela indicação dos
caminhos corretos a ser seguidos. A melhora na aplicação do Direito pelo
administrador garante uma boa Administração e impede que os tribunais
alimentem desconfianças, decorrentes do desconhecimento sobre os reais
fun­damentos que causaram a edição dos atos administrativos.43
O estudo do controle atribuído aos integrantes da Advocacia Pú­
blica deve ser contextualizado com o paradigma de Estado vigente e com
o modelo de administração adotado.
3.1 Estado Democrático de Direito. Administração gerencial
É comum fazer referência a três paradigmas de Estado: Estado
Liberal, Estado Social de Direito e Estado Democrático de Direito.
O Estado Liberal tem em sua essência a seguinte característica:
igualdade meramente formal. A autonomia privada prepondera, não
cabendo ao Estado agir positivamente para interferir nos desníveis
sociais. É o Estado que, em suma, existiu no século XIX para garantir
a liberdade individual de seus cidadãos, em especial os detentores de
posse. Figura o Estado como mero aplicador de leis.
O Estado Social ou Estado de Bem-Estar tem premissas distintas.
A igualdade pregada é a igualdade material. O Estado deve atuar de
forma positiva para compensar os desníveis sociais. Fala-se, assim, em
Estado Provedor. A autonomia pública prepondera de tal forma que os
cidadãos são vistos como clientes, isto é, não há estímulo à participação.
43
SICCA. Conceitos indeterminados no direito administrativo e discricionariedade: limites da vinculação do
administrador no estado democrático de direito. Revista da AGU, p. 32-33.
86 Eugenio Müller Lins de Albuquerque
A crítica ao modelo é a de que não conseguiu produzir cidadania.
Além disso, o Estado Social assumiu tantas funções que não conseguiu
desempenhá-las a contento, demandando um custoso aparato burocrático. Assim, entrou em declínio na década de 70.
Já o Estado Democrático de Direito surge como resposta às deficiências dos tipos antecedentes. Seu traço marcante é a busca de maior
equilíbrio entre a autonomia privada e a autonomia pública. Surge maior
preocupação com a participação da sociedade na gestão das políticas
públicas (saúde, educação, trabalho etc.). Aquele que é afetado pela decisão da Administração Pública deverá tomar parte nessa mesma decisão.
O surgimento de um modelo não extingue automaticamente os
outros. Assim, hoje, no Brasil, embora haja predominância do Estado
Democrático de Direito, resistem traços do Estado Liberal e do Social.
Quanto aos modelos de administração, podem ser apontados dois
principais, o burocrático e o de governança. Vale frisar que, no Estado
Liberal, sendo as funções do Estado restritas, não se chegou a cunhar
um modelo de administração.
O modelo burocrático weberiano coincide com o Estado Social. No
que interessa à presente exposição, tem como marco principal a presença
de um corpo de funcionários chamado corpo burocrático. Esses funcionários devem possuir certas características que tornariam o modelo, em
tese, perfeito, como: (i) rigorosa disciplina e vigilância administrativas;
(ii) perspectiva de uma carreira; (iii) seleção por provas; (iv) trabalha em
cargos cujos meios de administração não estão dispostos como se fossem
uma propriedade pessoal.
No modelo weberiano, a legalidade é colocada no seu sentido
restrito. Há rígido controle de procedimento e hierarquia, com pouca
concentração nos resultados da ação administrativa. Vigora a máxima
segundo a qual somente é dado atuar conforme expressamente autorizada em lei formal e material. Existe forte divisão entre público e privado.
O modelo entrou em declínio com a crise do Estado Social.
Por seu turno, no modelo de governança, a legalidade não é abandonada, mas deve ser compreendida sob o vetor do chamado princípio
da eficiência (introduzido formalmente no ordenamento nacional com a
Emenda Constitucional nº 19). Ou seja, há menos ênfase no controle da
Reflexões sobre controle, legalidade e discricionariedade 87
formalidade do procedimento e maior preocupação com a obtenção dos
resultados traçados pela Administração. O rigor formal cede espaço ao
cumprimento de metas. O instrumento que contém as metas de desem­
penho é o contrato de gestão, elemento chave nesse modelo. Além disso,
a dicotomia público-privado do modelo anterior é abrandada.
Outra peça fundamental do modelo é a introdução das agências
reguladoras. Sua criação altera a visão tradicional da legalidade porque,
a despeito de sua natureza autárquica, possuem função normativa. A atividade de regulação embaralha a noção tradicional de legalidade, pois os
regulamentos expedidos pela agência criam direitos e obrigações. Isto é,
não possuem o alcance limitado dos chamados decretos regulamentares
do Presidente da República, mas também não podem ser equiparados
com perfeição às leis emanadas do processo legislativo “normal”.
Dois aspectos merecem relevo. O primeiro é a sobreposição de modelos. Com efeito, embora o modelo gerencial tenha sido introduzido em
grande parte pela EC nº 19, o Estado brasileiro ainda segue, em parte,
as linhas mestras do modelo burocrático weberiano. Sobre a sobreposição
de modelos e as incongruências geradas, merecem comentário as considerações de Maria Sylvia Di Pietro. A autora alerta para a omissão do
legislador federal em baixar as normas legais hábeis à implantação de
uma verdadeira administração gerencial. Critica, ainda, a manutenção
de leis que considera excessivamente formais, citando a Lei de Licitações
e a Lei de Responsabilidade Fiscal. Ao final, assevera:
Todos esses fatos, que revelam grande contradição de objetivos do próprio
Governo, alguns voltados para o gerenciamento, outros voltados para a ma­
nutenção e até o aumento da burocracia em determinados setores, certamente
contribuem para um distanciamento entre o discurso e a prática, entre a lei
e os fatos, entre o Direito posto e o Direito aplicado, em franco desprestígio
do princípio da legalidade e da própria Constituição que o consagra.44
Outro ponto a destacar é que o modelo burocrático não é inteiramente ruim, apesar do sentido pejorativo que a palavra burocracia
tomou. Se examinado o modelo burocrático na sua concepção original,
44
DI PIETRO, op. cit., p. 61-62.
88 Eugenio Müller Lins de Albuquerque
verifica-se que seu pecado é a legalidade estrita. Tal pecado não deve
ser reproduzido pela Advocacia Pública.
Extrai-se do estudo acerca do Estado Democrático de Direito e do
modelo de administração gerencial que o controle de legalidade deve ser
coerente com o modelo gerencial, em especial no que toca à questão da
eficiência. Ou seja, não há como conjugar as características de tais modelos com um controle de legalidade em sentido restrito, isto é, limitado
à letra fria da lei. Os integrantes da Advocacia Pública não podem se
limitar a uma atuação meramente burocrática e formal. Da mesma maneira, mostra-se inaceitável defender que os atos discricionários estejam
imunes a qualquer tipo de controle por parte dos Advogados Públicos.
3.2 Controle de legalidade. Evolução. Controle de juridicidade
O controle de legalidade, como é natural, deve ser congruente com
a noção de princípio de legalidade em vigor. Em decorrência da crise
da lei formal, da constitucionalização do Direito Administrativo e do
afloramento dos princípios, a legalidade não mais pode ser enquadrada como vinculação positiva à lei. Recorre-se, uma vez mais, a Gustavo
Binenbojm, que assim relaciona os fatores:
Contudo, pelas razões já estudadas acima, atinentes à crise da lei formal,
assim como em virtude da emergência do neoconstitucionalismo, não mais
se pode pretender explicar as relações da Administração Pública com o
ordenamento jurídico à base de uma estrita vinculação positiva à lei. Com
efeito, a vinculação da atividade administrativa ao direito não obedece a um
esquema único, nem se reduz a um tipo específico de norma jurídica — a lei
formal. Essa vinculação, ao revés, dá-se em relação ao ordenamento jurídico
como uma unidade (Constituição, leis, regulamentos gerais, regulamentos
setoriais), expressando-se em diferentes graus e distintos tipos de normas,
conforme a disciplina estabelecida na matriz constitucional.45
Não se olvide que, sendo a Constituição a fonte maior do ordenamento, o controle de legalidade passa pelo controle de constitucionalidade.
Diante das mutações sofridas pelo Direito Administrativo, tornouse insuficiente admitir o controle meramente formal e distante de lega­
lidade. Daí ser preferível falar em termos de controle de juridicidade,
locução empregada por Gustavo Binenbojm, que assim a aborda:
45
BINENBOJM, op. cit., p. 142.
Reflexões sobre controle, legalidade e discricionariedade 89
A ideia de juridicidade administrativa traduz-se, assim, na vinculação da
Administração Pública ao ordenamento jurídico como um todo, a partir do
sistema de princípios e regras delineados na Constituição.46
Em resumo, a juridicidade significa a compatibilidade do ato administrativo com o ordenamento jurídico (considerado na sua integridade).
Esse sentido também está presente na doutrina de Maria Sylvia Zanella Di
Pietro, que propugna que o princípio da legalidade, em acepção ampla,
exige a conformidade da Administração não apenas com a lei, em seu
aspecto formal, mas com o Direito, incluídos aí os princípios inerentes
ao ordenamento jurídico.47 É fundamental esclarecer que a juridicidade
não exclui a legalidade. Na realidade, convivem. Gustavo Binenbojm
trata desta relação nos termos seguintes:
Isso significa que a atividade administrativa continua a realizar-se, via de regra,
(i) segundo a lei, quando esta for constitucional (atividade secundum legem),
(ii) mas pode encontrar fundamento direto na Consti­tuição, independente ou
para além da lei (atividade praeter legem), ou, eventualmente, (iii) legitimar-se
perante o direito, ainda que contra a lei, porém com fulcro numa ponderação
da legalidade com outros prin­cípios constitucionais (atividade contra legem,
mas com fundamento numa otimizada aplicação da Constituição).48
Também os Advogados Públicos devem exercitar o controle de
juri­­dicidade, ou melhor, estão obrigados a fazê-lo. Tal controle deverá
abarcar, conforme o caso concreto: o exame da legalidade, da constitucionalidade, a aplicação dos princípios, a ponderação da razoa­bilidade
e da proporcionalidade. E deverá estender-se também sobre os atos
classi­ficados tradicionalmente como discricionários.
Cabe assentar que, assim como a noção de legalidade sofreu alteração, algo semelhante ocorreu com a discricionariedade, a qual, como
esclarece Maria Sylvia Di Pietro, “não é mais a liberdade de atuação
limitada pela lei, mas a liberdade de atuação limitada pelo Direito”.49
Ibidem, p. 144.
Ibidem, p. 137.
48
Ibidem, p. 143.
49
Ibidem, p. 233.
46
47
90 Eugenio Müller Lins de Albuquerque
3.3 Controle de juridicidade dos atos discricionários e Advocacia
Pública
Houve um momento em que cogitar da sindicabilidade dos atos
discricionários era dogma, o que dava ensejo a constantes abusos e arbitrariedades em nome do mérito administrativo, da conveniência e da
oportunidade. Posteriormente, a doutrina evoluiu, fosse através da possibilidade de controle dos elementos vinculados do ato, ou da teoria dos
motivos determinantes e, mais recentemente, da invocação dos princípios
da moralidade administrativa, da razoabilidade e da proporcionalidade.
Infelizmente, porém, tais avanços ainda não parecem ter atingido
o controle desempenhado pelos Advogados Públicos, pelo menos no
plano teórico. Identifica-se, pois, um espaço a ser preenchido por esses
profissionais integrantes das funções essenciais à justiça.
Registre-se, aliás, o posicionamento de Angélica Moreira Dresch da
Silveira que relaciona o grau de discricionariedade com a vulnerabilidade
das licitações e contratações públicas à corrupção.50 A autora destaca,
ainda, o papel dos Advogados Públicos que analisam editais de licitação
e minutas de contratos administrativos na prevenção da corrupção. É
possível afirmar, portanto, que o exame dos atos discricionários está
intimamente ligado à citada prevenção. Em palavras diferentes, negar
a possibilidade desse controle seria deixar uma porta aberta para atividades lesivas ao interesse público.
Não deve ser olvidado o ponto de vista de Celso Antônio Bandeira
de Mello, para quem a ilegalidade revestida de aparente discricionariedade é mais grave do que a ofensa aberta à lei:
Esta forma de ilegalidade não é menos grave que a anterior. Pelo contrário.
Revela maior grau de periculosidade para o sistema normativo e para a ga­
rantia da legalidade, justamente porque, não sendo tão perceptível, pode, às
vezes, escapar das peias da lei, propiciando à Administração subtrair-se inde­
vi­damente ao crivo do Poder Judiciário, se este se mostrar menos atento às
pecu­liaridades do Direito Administrativo ou cauteloso demais na investigação
dos atos administrativos.51
SILVEIRA. A função consultiva da Advocacia-Geral da União na prevenção da corrupção nas licitações e
contratações públicas. Debates em Direito Público – Revista de Direito dos Advogados da União, p. 59-91.
51
BANDEIRA DE MELLO, op. cit., p. 944.
50
Reflexões sobre controle, legalidade e discricionariedade 91
Também cumpre destacar que Maria Sylvia Zanella Di Pietro traz
conceito de discricionariedade coerente com a noção de controle de
legalidade em sentido amplo aqui defendida (controle de juridicidade).
Afirma a autora:
Hoje, pode-se definir a discricionariedade administrativa como a faculdade
que a lei confere à Administração para apreciar os casos concretos, segundo
critérios de oportunidade e conveniência, e escolher uma dentre duas ou
mais soluções, todas válidas perante o Direito.52
Se todas as soluções devem ser válidas perante o Direito, a discri­
cionariedade está aberta ao controle de juridicidade desempenhado
pelos Advogados Públicos. Além disso, também as ferramentas de estreitamento ou limitação da discricionariedade possuem natureza jurídica,
como, dentre outros, a proporcionalidade. Se a proporcionalidade é um
princípio jurídico (e, portanto, norma) e um mecanismo de controle da
discricionariedade administrativa, não existe razão que impeça a sua
aplicação pelo Advogado Público no exercício de sua função de controle
de juridicidade.
Ademais, o número de atos discricionários é crescente, fato que só
aumenta a necessidade do respectivo controle. Ou seja, negar a incidência
do controle sobre os atos discricionários significaria deixar uma grande
parcela livre dessa relevantíssima atuação.
Destaque-se que o controle interno desempenhado pela Advocacia
Pública é muito mais apropriado para o controle dos atos discricionários do que o controle externo. Isto se passa porque o Advogado pode
ser chamado a opinar sobre a viabilidade jurídica do ato desde o seu
nascedouro. E, também, pela proximidade com os gestores e técnicos
envolvidos.
Note-se, a propósito, que Maria Sylvia Di Pietro cita a dificuldade
que o Judiciário enfrenta na delimitação entre legalidade e discricionariedade, nos termos abaixo:
Por outro lado, as dificuldades em entender onde termina a legalidade e
co­meça a discricionariedade administrativa levam o Poder Judiciário, até
52
DI PIETRO, op. cit., p. 233.
92 Eugenio Müller Lins de Albuquerque
por como­dismo, a deter-se diante do mal definido “mérito” da atuação
administrativa, permitindo que prevaleça o arbítrio administrativo onde
deveria haver discricionariedade exercida nos limites estabelecidos em lei.53
3.4 Missão do Advogado Público e controle jurisdicional. Princípio da
eficiência. Prevenção da improbidade. Controle de juridicidade e
resgate do processo administrativo
Além das razões acima expostas, é importante ressaltar que a possibilidade de controle do Advogado Público sobre os atos ditos discricionários, nos termos propostos pelo presente trabalho, está intimamente
relacionada com o princípio da eficiência, consagrado no artigo 37, caput,
da Constituição da República de 1988 (Emenda Constitucional nº 19/98).
Consoante aduz José dos Santos Carvalho Filho, o princípio da eficiência não alcança apenas os serviços públicos prestados à coletividade,
mas também os serviços administrativos internos das pessoas federativas
e das pessoas a ela vinculadas.54
Diogo de Figueiredo Moreira Neto alude ao dever de a Advocacia
Pública buscar o constante aperfeiçoamento da ordem jurídica. Tal ângulo
de análise nada mais é do que relacionar o controle de juridicidade com
a eficiência. A passagem abaixo reproduzida bem ilustra sua posição:
É, pois, nesse sentido qualitativo, que passa a ter especial significado a espe­
cialíssima busca da eficiência de desempenho por parte dos agentes das
funções essenciais à justiça: uma qualidade sempre estimável, embora nem
sempre mensurável, por critérios que espelhem fielmente a efetividade social
re­sultante da atuação das Procuraturas, enquanto órgãos dispostos pela Cons­
tituição, tanto para a sustentação, como para o aperfeiçoamento da justiça
na ordem jurídica.55
Analisando o problema sob a ótica da eficiência, resulta que pouco
adiantaria o Advogado Público silenciar sobre aspectos dos atos administrativos que mais tarde poderão ser objeto de ampla análise pelo
Judiciário. Ou seja, o controle de juridicidade teria pouco ou nenhum
Ibidem, p. 38.
CARVALHO FILHO, op. cit., p. 20.
55
MOREIRA NETO. A Advocacia de Estado revisitada: essencialidade ao Estado Democrático de Direito.
Debates em Direito Público – Revista de Direito dos Advogados da União, p. 53.
53
54
Reflexões sobre controle, legalidade e discricionariedade 93
resultado, o que redundaria na anulação ou revogação de atos que poderiam ser preservados, acaso seguidas as orientações do parecerista.
Também não deve ser negligenciado que, consoante expõe Diogo
de Figueiredo Moreira Neto, em outra obra,56 o controle judicial é um
controle de correção por excelência. Quer dizer: em regra, o Judiciário
só vai agir diante de uma ilegalidade subjetiva. Decorre daí que, ainda
em razão da eficiência, o Advogado Público deve, de forma preventiva,
alertar a Administração para que afaste eventual ilegalidade (objetiva
ou subjetiva).
Há certa similitude entre a atividade do consultor e a do juiz, pois
ambos interpretam a lei na busca da solução correta e imparcial. Como
apregoa Maria Sylvia Zanella Di Pietro, o consultor não atua como representante da parte, mas sim na qualidade de defensor do interesse
público primário:
O papel do advogado público que exerce função de consultoria não é o de
re­presentante da parte. O consultor, da mesma forma que o juiz, tem de
inter­pretar a lei para apontar a solução correta; ele tem de ser imparcial,
por­que pro­tege a legalidade e a moralidade do ato administrativo; ele atua
na de­fesa do interesse público primário, de que é titular a coletividade, e
não na defesa do interesse público secundário, de que é titular a autoridade
admi­nistrativa.57
Já Fábio Medina Osório faz importante alerta sobre a necessidade
do controle preventivo eficiente da improbidade administrativa:
A crise da Lei Geral de Improbidade Administrativa tem múltiplas facetas e
expressa, em última análise, uma crise global das instituições fiscalizadoras.
Há que se resgatar uma hermenêutica geral em torno ao fenômeno da im­
probidade e bem assim fomentar postura comprometida com a eficiência e
resultados por parte das instituições de controle. Adotar critérios razoáveis,
seguros e previsíveis, na compreensão dos atos ímprobos, equivale a percorrer
o caminho institucional do controle eficiente sobre a má gestão pública, sem
descurar dos mecanismos preventivos, tão ou mais importantes.58
MOREIRA NETO. Curso de direito administrativo, p. 168.
DI PIETRO. Parecer sobre a exclusividade das atribuições da carreira de Advogado da União. Debates em
Direito Público – Revista de Direito dos Advogados da União, p. 20.
58
OSÓRIO. Teoria da Improbidade Administrativa: má gestão pública: corrupção: ineficiência, p. 383.
56
57
94 Eugenio Müller Lins de Albuquerque
Noutro giro, a advocacia consultiva assume importante papel na
prevenção de litígios desnecessários. De fato, a submissão de pleitos
administrativos a parecer jurídico fornece às autoridades fundamento
seguro para o reconhecimento de direitos ainda na fase não litigiosa
dos respectivos processos. Sem embargo, eventuais decisões contrárias
aos requerentes, desde que solidamente fundadas, reduzem o ímpeto
de recurso ao processo judicial. E, mesmo que o administrado venha a
fazer uso da via judicial, maiores serão as chances de êxito da pessoa
jurídica assessorada.
Numa visão otimista, haveria verdadeiro resgate ou construção de
um efetivo processo administrativo, o que contribuiria para a redução
da enorme massa de processos que assola o Judiciário, roubando-lhe a
eficiência. A excessiva judicialização também é prejudicial para os administrados e acaba por acometer o próprio Executivo, que passa a ter que
administrar uma massa enorme de processos judiciais que apresentam
custos onerados pela incidência de juros e honorários. É dizer: quanto
mais amplo e melhor o controle de juridicidade a cargo dos Advogados
Públicos, menor o risco de demandas que não podem ser sustentadas
pelo Estado.
3.5 Limites ao controle dos atos discricionários pelo Advogado Público
Cuidou-se, até o momento, de defender que a atividade discricionária da Administração não pode ficar livre da atuação dos integrantes
da Advocacia Pública. Resta, agora, tecer algumas considerações sobre
a intensidade do controle e dos seus limites.
Com relação ao grau de intensidade, parece possível, diante da
ausência de parâmetros específicos, aproveitar os ensinamentos que
Gustavo Binenbojm direcionou ao controle jurisdicional (explicitados
no Capítulo II). Isto é, a intensidade do controle a cargo dos Advogados
Públicos variará de acordo com os seguintes critérios: grau de restrição
a direitos fundamentais; grau de objetividade extraível do relato normativo; grau de tecnicidade da matéria; grau de politicidade da matéria
e grau de participação efetiva e consenso obtido em torno da decisão
administrativa.
Descaberia cogitar daquilo que Afonso Rodrigues Queiró, citado
por Maria Sylvia Di Pietro, chama de dupla gestão quando se refere aos
Reflexões sobre controle, legalidade e discricionariedade 95
limites também do controle judicial da Administração.59 O controle é de
juridicidade, não pode ensejar usurpação de competência naquilo que
comportar análises técnicas outras que não relacionadas com a ciência
do Direito.
Ronaldo Jorge Araujo Vieira Junior,60 ao tratar da participação da
Advocacia-Geral da União na formulação de políticas públicas, também
cuidou de delinear os limites de sua atuação, merecendo reprodução o
trecho abaixo:
Essencial, contudo, que se demarque, desde logo, o campo de atuação da
Advocacia-Geral da União e de seus órgãos, quando se trata de políticas
públicas.
Essa atuação pauta-se na busca da conformação, da higidez e da sustenta­bi­li­
dade jurídico-constitucional dessas políticas, ou seja, cuida-se de, constante­
mente e em todas as etapas, aferir sua compatibilidade e adequação com as
balizas constitucionais e do ordenamento jurídico infraconstitucional.
O mérito dessas políticas públicas, de outra parte, há de ser fixado por aqueles
legítima e constitucionalmente designados a exercer a direção superior da
administração federal, ex vi do art. 84, II, da Constituição Federal: o Presidente
da República e os Ministros de Estado.
Em palavras outras, o Advogado Público não formula políticas nem
administra os órgãos e entidades do Poder Executivo. Não se olvide, pois,
que objetivo do controle deve ser o de evitar abusos. Não pode haver
atuação substitutiva. Competirá ao Advogado Público registrar o abuso
travestido de discricionariedade e recomendar ao gestor que se abstenha
da prática do ato. Diante de uma verdadeira situação que comporte juízo
discricionário, não poderá ocorrer a substituição da discricionariedade
do gestor pela discricionariedade do Advogado Público. Em especial se
a matéria sob exame comportar alta complexidade técnica, hipótese em
que deverá prevalecer a expertise dos gestores. Tal assertiva deflui da
seguinte observação de Gustavo Binenbojm acerca de casos que desafiam
a atuação segura do Judiciário sobre atos do Executivo:
DI PIETRO, op. cit., p. 75.
VIEIRA JUNIOR. A advocacia pública consultiva federal e a sustentabilidade jurídico constitucional das polí­ticas
públicas: dimensões, obstáculos e oportunidades na atuação da Advocacia-Geral da União. In: GUEDES;
SOUZA (Coord.). Advocacia de Estado: questões institucionais para a construção de um Estado de Jus­tiça:
estudos em homenagem a Diogo de Figueiredo Moreira Neto e José Antonio Dias Toffoli, p. 442.
59
60
96 Eugenio Müller Lins de Albuquerque
Com efeito, naqueles campos em que, por sua alta complexidade técnica e
dinâmica específica, falecem parâmetros objetivos para uma atuação segura
do Poder Judiciário, a intensidade do controle deverá ser tendencialmente
menor. Nestes casos, a expertise e a experiência dos órgãos e entidades da
Administração em determinada matéria poderão ser decisivas na definição
da espessura do controle.61
A limitação ora examinada pode ser estendida ao controle interno
de juridicidade reservado aos Advogados Públicos, isto é, este deverá
ceder espaço ao conhecimento técnico dos gestores, em assuntos que
assim o demandem. Em casos tais, o controle limitar-se-á à verificação
da sustentabilidade dos argumentos apontados pelo administrador.
Em resumo, se, após o exame de juridicidade o ato administrativo
ainda estiver situado numa zona cinzenta em que não há como apontar
a melhor solução, deverá prevalecer a decisão do gestor, e não a do
Advogado Público, porque administrar é uma atribuição conferida ao
primeiro e não ao segundo.
Conclusões
Os Advogados Públicos exercem controle dos atos da Administração.
Cuida-se de controle-orientação. Tal controle engloba e transcende a legalidade. Não há como cogitar-se, hoje, de mero controle de legalidade
formal, ainda mais se considerado o resultado do somatório crise da lei,
constitucionalização do Direito e ascensão dos princípios ao nível de
normas jurídicas.
Impossível imaginar controle de legalidade sem a influência da
constitucionalização e do pós-positivismo do Direito Administrativo.
O controle interno tradicionalmente referido como de legalidade, de
competência exclusiva dos integrantes da Advocacia de Estado, não pode
ser dissociado da feição que a própria legalidade e mesmo a discricionariedade assumem dentro do paradigma do Estado Democrático de
Direito e do modelo de gestão Gerencial.
Os Advogados Públicos possuem um arsenal de controle mais
abrangente, que pode ser melhor qualificado como controle de juridicidade, que traduz a compatibilidade com o ordenamento jurídico concebido
61
BINENBOJM, op. cit., p. 225.
Reflexões sobre controle, legalidade e discricionariedade 97
na sua integridade. Os responsáveis pelo controle de juridicidade transitam num mundo mais complexo, habitados por regras e princípios.
O controle de juridicidade não se limita aos atos tidos por vinculados, mas também aos discricionários. Tal dicotomia absoluta, de resto,
mostra-se questionável. É mais apropriado falar-se em diferentes graus de
vinculação à juridicidade. Como demonstrado ao longo da exposição, as
ferramentas utilizáveis para o controle desta espécie de atos pertencem
ao campo da ciência jurídica e a sua utilização em nada deve melindrar
os administradores públicos. Muito pelo contrário.
Se não há espaço discricionário da Administração exterior ao
Direito e se compete ao Advogado Público, com exclusividade, exercer
o controle interno de juridicidade da Administração, é natural que esta
atividade inclua os denominados atos discricionários, guardados os
devidos limites.
O grau do controle sob atribuição do Advogado Público não deve
ser colocado num patamar inferior ao que é tradicionalmente reservado
ao Poder Judiciário. Imaginar-se o contrário seria preconizar um controle
inócuo e, pois, incompatível com o princípio constitucional da eficiência
administrativa.
Quanto maior a vinculação do ato à juridicidade, mais intenso será
o nível de controle a serviço do Advogado Público e vice-versa.
Se, por um lado, não há instâncias imunes a controle, é induvidoso que ao Advogado Público não é dado substituir-se ao Gestor ou
Administrador Público. Isto é, o objetivo em vista deve ser o de coibir
abusos, não de trocá-los pela vontade ou opinião pessoal do parecerista.
Uma sociedade cada vez mais complexa exige a construção de
uma Administração igualmente complexa. E, a seu turno, mecanismos
de controle mais complexos e completos. Tais desafios só aumentam a
responsabilidade dos Advogados do Estado (independentemente das
esferas federativas), que devem ocupar todos os espaços de atuação e
laborar para a formação de um autêntico Estado Democrático de Direito.
Naturalmente, as ideias tratadas neste estudo não poderiam alimentar a pretensão de esgotamento dos temas enfrentados. Mas, ao
menos, buscou-se provocar o debate e a reflexão em torno de assuntos
que possam conduzir ao aperfeiçoamento da Advocacia Pública.
98 Eugenio Müller Lins de Albuquerque
Reflections on Control, Legality and Discrecionarity
Abstract: This year, The Office of the Attorney General of the Union
completes twenty five years of constitutional existence. There is so much
to celebrate in many areas. Not, however, in terms of legal control of the
Public Administration, especially the so called discretionary acts. This
text aims to study how the last changes in Administrative Law impact this
kind of control.
Key words: Public Administration. Brazil. Control. General Attorney of
the Union.
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Tombamento de bens públicos e
abrangência de interesses – É possível a
aplicação da regra contida no artigo 2º,
§2º do Decreto-Lei nº 3.365/1941?
Márcio Fernando Bouças Laranjeira
Advogado da União em exercício na Procuradoria-Regional da União – 2ª Região/RJ. Gra­
duado em Direito pela UFRJ. Pós-Graduado em Direito (especialização) pela UnB. Mestrando
em Direito pela UNIRIO.
Resumo: A proteção do patrimônio histórico e cultural é medida indispensável para a preservação da identidade nacional, sendo o tombamento
um dos instrumentos destinados a tal fim. A imposição de restrições ao
uso e disposição dos bens de relevância histórica e cultural reflete o que
se convencionou chamar “domínio eminente”, poder este decorrente da
própria soberania do Estado. Assim, todos os bens, móveis ou imóveis,
públicos e privados estão sujeitos ao tombamento, sem que se fale em
mácula ao direito de propriedade. No entanto, surge divergência quanto
à possibilidade de tombamento de bens públicos pertencentes à União
por Estados-Membros, Distrito Federal e Municípios, assim como bens
dos Estados-Membros serem declarados tombados por Municípios. Apesar
de a preservação do patrimônio histórico, artístico e cultural competir a
todos os entes públicos (competência comum), impende considerar que
os interesses tutelados pelos entes de maior abrangência não poderão
se submeter à satisfação de interesses dos entes de menor extensão,
sob pena de se colocar em risco o equilíbrio que marca a federação. O
presente estudo buscará analisar tal questão, confrontando os possíveis
argumentos contrários e favoráveis à aplicação por analogia da regra da
“abrangência de interesses” que fundamenta o artigo 2º, §2º, do DecretoLei nº 3.365/1941.
Palavras-chave: Direito administrativo. Proteção do patrimônio cultural.
Tombamento. Bens públicos. Abrangência de interesses.
Sumário: 1 Introdução – 2 Do tombamento segundo a legislação pátria
– 3 Da abrangência de interesses e o tombamento de bens públicos –
4 Con­clusão – Referências
1 Introdução
A imposição de restrições à propriedade de bens pertencentes aos
entes da federação é matéria pouco citada pelos administrativistas. Em
regra, limita-se o estudioso a analisar as modalidades de intervenção na
102 Márcio Fernando Bouças Laranjeira
propriedade de forma genérica. Quando muito, destaca-se a regra do
artigo 2º, §2º do Decreto-Lei nº 3.365/1941 que, ao tratar da desapropriação, estabelece que os Estados-Membros só podem desapropriar bens
dos Municípios e nunca da União (cujos bens não podem ser desapropriados por qualquer outro ente), enquanto os Municípios não podem
desapropriar bens públicos que não sejam de sua propriedade.
A norma em questão tem por fundamento não a hierarquia —
inexistente entre os entes da federação, já que todos são dotados de
competências próprias, encontrando-se em idêntico patamar hierárquiconormativo —, mas a abrangência ou preponderância de interesses.
Em outras palavras, quando se permite que a União desaproprie
bens dos Estados-Membros, do Distrito Federal e dos Municípios, assegura-se que o interesse nacional seja alcançado; já os Estados-Membros,
porque defendem interesses de âmbito regional, apenas podem desapropriar bens dos Municípios, garantindo-se que bens da União não sejam
destinados à satisfação de interesses de menor extensão. Por fim, aos
Municípios, titulares de interesses locais, só restaria a desapropriação
de bens particulares.
Neste sentido, assevera José dos Santos Carvalho Filho (2011,
p. 755):
Embora seja possível, a desapropriação de bens públicos encontra limites e
condições na lei geral de desapropriações. A possibilidade expropriatória
pressupõe a direção vertical das entidades federativas: a União pode desa­
propriar bens dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, e os Estados
podem desapropriar bens do Município. Assim sendo, chega-se à conclusão
de que os bens da União são inexpropriáveis e que os Municípios não têm
poder expropriatório sobre os bens das pessoas federativas maiores.
A despeito de não ser reconhecido qualquer nível de hierarquia entre os entes federativos, dotados todos de competências próprias alinhadas no texto
constitucional, a doutrina admite a possibilidade de desapropriação pelos
entes maiores ante o fundamento da preponderância do interesse, no qual
está no grau mais elevado o interesse nacional, protegido pela União, depois
o regional, atribuído aos Estados e Distrito Federal, e por fim o interesse local, próprio dos Municípios. Aliás, esse fundamento foi reconhecido expressamente em decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal em litígio que
envolvia a União e Estado-membro.
No entanto, quanto às demais modalidades de intervenção na propriedade não há qualquer dispositivo de igual jaez. Assim, na ausência de
Tombamento de bens públicos e abrangência de interesses – É possível a aplicação da regra... 103
regramento legal expresso, caberá ao intérprete encontrar a adequada
solução, recorrendo à analogia e aos princípios gerais de direito, realizando uma interpretação sistemática do ordenamento jurídico. A questão,
portanto, não se resolverá pela mera subsunção do fato a uma norma.
Para fins deste breve estudo, será analisada especificamente a
possibilidade de tombamento de bens públicos por qualquer ente da
federação, independentemente do interesse tutelado (nacional, regional
ou local). O que se buscará, ao cabo, é definir se a restrição prevista no
Decreto-Lei nº 3.365/1941 pode ser aplicada também para o tombamento, de modo a evitar que Estados-Membros e Distrito Federal declarem
tombados bens da União e que Municípios declarem tombados bens da
União e dos Estados-Membros.1
2 Do tombamento segundo a legislação pátria
Nos termos da doutrina administrativista, o Poder Público tem a seu
dispor duas modalidades de intervenção na propriedade: (i) intervenção
supressiva e (ii) intervenção restritiva. Na primeira, como a denominação
já deixar antever, o Poder Público intervém na propriedade alheia suprimindo-a, com a transferência coercitiva ao seu patrimônio de um bem
de terceiro. Tal modalidade de intervenção configura desapropriação.
A segunda modalidade, dita restritiva, não retira a propriedade, apenas
impõe ao seu titular obrigações para o exercício regular de tal direito
real. Estão incluídas nesta categoria a limitação administrativa, a servidão
administrativa, a requisição, a ocupação temporária e o tombamento.
Neste sentido, ensina José dos Santos Carvalho Filho (2011, p. 717):
A intervenção restritiva é aquela em que o Estado impõe restrições e con­
dicionamentos ao uso da propriedade, sem, no entanto, retirá-la de seu dono.
Este não poderá utilizá-la a seu exclusivo critério e conforme seus próprios
padrões, devendo subordinar-se às imposições emanadas pelo Poder Público,
mas, em compensação, conservará a propriedade em sua esfera jurídica. [...]
Intervenção supressiva, a seu turno, é aquela em que o Estado, valendo-se da
supremacia que possui em relação aos indivíduos, transfere coercitivamente
para si a propriedade de terceiro, em virtude de algum interesse público
previsto na lei. O efeito, pois, dessa forma interventiva é a própria supressão
da propriedade das mãos de seu antigo titular.
1
Não se discute o tombamento de bens do Distrito Federal por Municípios, por estes não existirem no
território daquele, nos termos do artigo 32, caput, da Constituição da República.
104 Márcio Fernando Bouças Laranjeira
Observe-se, portanto, que o tombamento — modalidade de inter­
venção restritiva — não leva à perda da propriedade, impondo simplesmente obrigações destinadas a manter a integridade dos bens que
apresentem relevância histórica, arquitetônica, paisagística, urbanística
ou cultural. Todavia, a limitação imposta ao proprietário claramente
interfere na liberdade de uso, gozo e disposição do bem, como destaca
Maria Sylvia Zanella di Pietro (2009, p. 124):
O tombamento implica limitação perpétua ao direito de propriedade
em benefício do interesse coletivo; afeta o caráter absoluto do direito de
propriedade; acarreta ônus maior do que as limitações administrativas, porque
incide sobre imóvel determinado.
Na mesma vertente, assevera com maestria Diogo de Figueiredo
Moreira Neto (2009, p. 421-422):
O tombamento, previsto no art. 216, §1º, da Constituição Federal, pode ser
conceituado como a espécie de intervenção ordinária e concreta do Estado
na propriedade privada, limitativa de exercício de direitos de utilização e de
disposição, gratuita, permanente e indelegável, destinada à preservação, sob
regime especial, dos bens de valor cultural, histórico, arqueológico, artístico,
turístico ou paisagístico.
Ao definir o instituto do tombamento, ensina José Afonso da Silva
que por tal instrumento é constituído um regime jurídico especial, no
qual o bem, sem que alterada sua titularidade, transforma-se em bem
de interesse público (2007, p. 813):
O tombamento é que constitui o bem tombado em patrimônio cultural nacional,
estadual, municipal ou do Distrito Federal. Ele produz efeitos sobre a esfera
jurídica dos proprietários, privados ou públicos, dos bens tombados, impondo
restrições ao direito de propriedade, e cria para eles um regime jurídico
especial, transformando-os em bens de interesse público (situação diversa de
domínio público e de domínio privado), sujeitos a vínculos de várias espécies.
Tudo isso inova a situação jurídica dos bens tombados, transforma sua posição
jurídica e impõe a seus proprietários condutas jurídicas, ob rem, que antes
não eram exigidas — demonstrando que o tombamento, em qualquer caso,
é ato constitutivo. (grifos no original)
Com o tombamento, i.e., com a inscrição no livro próprio, o bem
não poderá ser destruído, descaracterizado, deteriorado ou demolido,
Tombamento de bens públicos e abrangência de interesses – É possível a aplicação da regra... 105
pois passou a integrar o acervo cultural brasileiro, sem que, no entanto,
tenha ocorrido a perda da propriedade. O titular do domínio fica obrigado, ainda, a não realizar qualquer obra no imóvel tombado, da qual possa
resultar obstrução ou redução de sua visibilidade,2 nem afixar anúncios
ou cartazes sem a autorização do Serviço de Patrimônio competente.
Dispõe claramente o Decreto-Lei nº 25/1937:
Art. 14. A. coisa tombada não poderá sair do país, senão por curto prazo,
sem transferência de domínio e para fim de intercâmbio cultural, a juízo do
Conselho Consultivo do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.
Art. 17. As coisas tombadas não poderão, em caso nenhum ser destruídas,
demolidas ou mutiladas, nem, sem prévia autorização especial do Serviço
do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, ser reparadas, pintadas ou
restauradas, sob pena de multa de cincoenta por cento do dano causado.
Art. 18. Sem prévia autorização do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional, não se poderá, na vizinhança da coisa tombada, fazer construção
que lhe impeça ou reduza a visibilidade, nem nela colocar anúncios ou cartazes, sob pena de ser mandada destruir a obra ou retirar o objeto, impondo-se
nêste caso a multa de cincoenta por cento do valor do mesmo objeto.
Assim como as demais espécies de intervenção estatal na propriedade, as restrições impostas ao proprietário pelo Poder Público têm por
fundamento o domínio eminente sobre todos os bens localizados no
território nacional.
Tal domínio decorre do poder de império inerente à soberania do
Estado que, como tal, é capaz de se reger por governo autônomo e de
instituir um regime jurídico próprio, aplicável a todos que se encontram
em seu território, independentemente da interferência externa.
Neste sentido, pondera acertadamente José dos Santos Carvalho
Filho (2011, p. 713):
A intervenção, como é óbvio, revela um poder jurídico do Estado, calcado
em sua própria soberania. É verdadeiro poder de império (ius imperii), a ele
devendo sujeição os particulares. Sem dúvida, as necessidades individuais e
gerais, como bem afirma Gabino Fraga, se satisfazem pela ação do Estado e
dos particulares, e, sempre que se amplia a ação relativa a uma dessas neces­
sidades, o efeito recai necessariamente sobre a outra.
2
A preservação da visibilidade do imóvel é imposta também aos vizinhos, como bem ressaltam José dos
Santos Carvalho Filho (2011, p. 743) e Maria Sylvia Zanella Di Pietro (2009, p. 144).
106 Márcio Fernando Bouças Laranjeira
Já Diogo de Figueiredo Moreira Neto deixa consignado (2009,
p. 381-382):
O domínio eminente é um aspecto da soberania incidente sobre todos os
bens que constituem o território do Estado ou que a ele se integrem ou se lhe
adiram, mas se manifesta diferentemente sobre cada uma das três referidas
categorias de bens: os bens públicos, os bens privados e os bens de ninguém,
ou res nullius.
Sobre os bens públicos, que constituem o domínio público patrimonial, o
domínio eminente se patenteia pelo estabelecimento de um regime público
dominial especial, de competência de cada entidade política.
Sobre os bens privados, que constituem o domínio privado, o domínio eminente se revela pelas regras de Polícia, que limitam o exercício de direitos
inerentes à propriedade privada, ou pelas do Ordenamento Econômico, que
alteram a disposição e a destinação utilitária desses bens.
Em ambos os casos, qualquer intervenção do Estado sobre a propriedade
privada (que poderá ser exercida em amplíssimo espectro, que vai desde a
ocupação temporária à desapropriação), só se justificará em estrita submissão
ao binômio: lei — interesse público. [...]
O domínio eminente, que, na lição de Hely Lopes Meirelles, é o desdobramento político do conceito de domínio público, por ser uma expressão da
soberania, está compartilhado entre todas as entidades políticas — União,
Estados, Distrito Federal e Municípios (art. 18 da Constituição) — que o
exercem na medida de suas respectivas competências constitucionais.
Pelo exposto, em virtude da submissão ao ius imperii, a propriedade
não mais se apresenta como direito absoluto, sendo os correspondentes
poderes de uso, gozo e disposição necessariamente determinados de
acordo com os parâmetros legais. As restrições ao domínio, quando
fixadas por critérios razoáveis (ou seja, quando não forem arbitrárias),
são coativamente impostas a todos que, em território nacional, exerçam
tal direito real, sem que se fale em desrespeito à autonomia individual.
Adotando o mesmo entendimento, pontifica Marçal Justen Filho
(2009, p. 511-512):
A propriedade, no passado, foi conceituada como o poder de dispor de uma
coisa de modo absoluto e insuscetível de limitação ou questionamento.
Presentemente, reconhece-se a função social da propriedade, que
é a vinculação das faculdades inerentes ao domínio à realização das necessidades coletivas, segundo a proporcionalidade.
Tombamento de bens públicos e abrangência de interesses – É possível a aplicação da regra... 107
A propriedade deve ser exercida segundo sua função social, impedindo-se
que o proprietário exercite as faculdades do domínio de modo abusivo, o que
se verifica quando o uso e a fruição são inadequados, excessivos ou inúteis e
produzem lesão a interesse protegido juridicamente. [...]
Tal como exposto acima, as liberdades e os direitos devem ser fruídos pelos
particulares segundo o princípio da proporcionalidade. E as limitações estatais
impostas ao gozo pelos particulares de suas liberdades também se orientam
pelo mesmo princípio.
Logo, a função social da propriedade não gera efeitos despropositados ou
absurdos, mas a adoção das providências estritamente adequadas e necessárias
a evitar a infração aos interesses protegidos, respeitada a substância econômica
da propriedade privada.
Também Diogenes Gasparini reconhece o caráter relativo da pro­
prie­dade, como se pode observar na seguinte passagem de sua obra (2005,
p. 670):
A propriedade privada não é mais absoluta. Seu uso, gozo, fruição e disposição
não podem opor-se aos interesses gerais. Mesmo em países como o nosso,
em que a Constituição assegura a inviolabilidade dos direitos concernentes à
vida, à liberdade, à segurança e à propriedade, ela está condicionada a uma
função social (CF, art. 170, III).
Aquela propriedade privada, oponível contra todos e contra o próprio Estado,
já não existe, e para realizar o bem comum pode o Estado nela intervir,
valendo-se dos institutos da limitação administrativa, da servidão administrativa
— em que se inclui o tombamento —, da ocupação temporária, da requisição, da
desapropriação, do parcelamento e edificação compulsórios.
No amplo espectro de interesses públicos a serem satisfeitos pelo
titular do domínio para que se confira à propriedade a sua função
social, está a preservação do patrimônio histórico e artístico nacional,
como expressamente dispõe o artigo 1228, §1º, do Código Civil (Lei
nº 10.406/2002), in verbis:
Art. 1.228. O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa,
e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua
ou detenha.
§1º O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas
finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de con­
formidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas
naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como
evitada a poluição do ar e das águas.
108 Márcio Fernando Bouças Laranjeira
É neste contexto que se revela indispensável o tombamento, como
medida destinada à eficaz preservação do patrimônio histórico e cultural.
Trata-se, portanto, de legítimo instrumento de intervenção do Poder
Público na propriedade, por intermédio do qual o exercício do citado
direito real adquire novos contornos, deixando o proprietário de ter o
livre e incondicionado uso e disposição do bem.
A partir do instante em que é verificada a relevância cultural (com
a inscrição no livro do tombo), o titular do domínio fica obrigado a preservar o bem tombado, em deferência ao interesse difuso previsto no
artigo 216 da Constituição da República. Assim pondera José dos Santos
Carvalho Filho (2011, p. 736):
Sem dúvida que a defesa do patrimônio cultural é matéria de interesse
geral da coletividade. Para que a propriedade privada atenda a essa função
social, necessário se torna que os proprietários se sujeitem a algumas normas
restritivas concernentes ao uso de seus bens, impostas pelo Poder Público.
Sob essa proteção, a propriedade estará cumprindo o papel para o qual a
destinou a Constituição.
Desse modo, podemos considerar que o tombamento é fundado
na necessidade de adequação da propriedade à correspondente função
social. E a função social, na hipótese, é estampada pela necessidade de
proteção ao patrimônio cultural, histórico, artístico etc.
Por sua vez, ao analisar o conceito de patrimônio histórico, assevera
Hely Lopes Meirelles (1998, p. 464):
O conceito de patrimônio histórico e artístico nacional abrange todos os
bens, móveis e imóveis, existentes no País, cuja conservação seja de interesse
público, por sua vinculação a fatos memoráveis da História pátria, ou por
seu excepcional valor artístico, arqueológico, etnográfico, bibliográfico ou
ambiental. Tais bens tanto podem ser realizações humanas como obras
da Natureza; tanto podem ser preciosidades do passado como criações
contemporâneas. A proteção de todos esses bens é realizada por meio do
tombamento, ou seja, da inscrição da coisa em livros especiais — Livros do
Tombo — na repartição competente, para que sua utilização e conservação
se façam de acordo com o prescrito na respectiva lei.
De igual modo, ensina Lucas Rocha Furtado (2007, p. 797-798):
O tombamento corresponde a uma das diversas opções de que dispõe o
Estado para intervir na propriedade privada. Ele afeta bens móveis ou imóveis
Tombamento de bens públicos e abrangência de interesses – É possível a aplicação da regra... 109
tendo em vista a realização de fim específico: a proteção do patrimônio histórico
e cultural nacional. [...]
Constitui sujeição da propriedade privada à função social na medida em
que o uso do bem fica condicionado à preservação de aspectos históricos ou
culturais relevantes.
Vale lembrar, ainda, que não só o Poder Público, mas também a
coletividade está obrigada a proteger o patrimônio cultural brasileiro. O
tombamento não representa violação alguma ao direito de propriedade,
sendo o interesse público na conservação do bem tombado oponível a
quem detenha o seu domínio.
Observe-se, nesta oportunidade, que a proteção do patrimônio
histórico e artístico nacional, atualmente consignado no artigo 216 da
Constituição da República, já se encontrava prevista na Constituição de
1934, dispondo o seu artigo 10, inciso III, competir à União proteger
as belezas naturais e os monumentos de valor histórico ou artístico, podendo inclusive obstar a evasão de obras de arte.
A subsequente Constituição de 1937 previu igualmente a proteção
dos monumentos históricos, artísticos e naturais, atribuindo não só à
União, mas também aos Estados-Membros e aos Municípios o dever de
tutelá-los (artigo 134).3 Com amparo em tal dispositivo constitucional, foi
publicado o Decreto-Lei nº 25, de 30 de novembro de 1937, sendo este
o diploma que, até os dias atuais, disciplina o instituto do tombamento
na esfera federal.
Segundo o Decreto-Lei nº 25/1937, qualquer bem localizado em
território nacional, seja ele móvel ou imóvel, pode ser objeto de tombamento. Assim, tanto um edifício como um acervo de museu são passíveis
de sofrer tal medida restritiva. Também os bens públicos — federais,
estaduais, distritais e municipais — podem ser tombados, como claramente determinam os artigos 1º e 2º do citado Decreto-Lei nº 25/1937:
Art. 1º Constitue o patrimônio histórico e artístico nacional o conjunto dos
bens móveis e imóveis existentes no país e cuja conservação seja de interêsse
público, quer por sua vinculação a fatos memoráveis da história do Brasil,
3
Disposição mantida na Constituição de 1946 (artigo 175), na Constituição de 1967 (artigo 172, parágrafo
único) e na Emenda Constitucional nº 1/1969 (artigo 180, parágrafo único).
110 Márcio Fernando Bouças Laranjeira
quer por seu excepcional valor arqueológico ou etnográfico, bibliográfico
ou artístico.
§1º Os bens a que se refere o presente artigo só serão considerados parte
integrante do patrimônio histórico o artístico nacional, depois de inscritos
separada ou agrupadamente num dos quatro Livros do Tombo, de que trata
o art. 4º desta lei.
§2º Equiparam-se aos bens a que se refere o presente artigo e são também
su­jeitos a tombamento os monumentos naturais, bem como os sítios e paisagens que importe conservar e proteger pela feição notável com que tenham
sido dotados pela natureza ou agenciados pelo indústria humana.
Art. 2º A presente lei se aplica às coisas pertencentes às pessôas naturais, bem
como às pessôas jurídicas de direito privado e de direito público interno.
O tombamento impõe ao proprietário a obrigação de conservação
do bem e restrições para a sua alienação, possibilitando-se, no caso de
descumprimento, a aplicação das sanções previstas nos artigos 15 a 21
do Decreto-Lei nº 25/1937.
Considerando, entretanto, que tal medida restritiva poderá inter­
ferir na destinação pública que lhe dá o seu proprietário, pergunta-se:
pode o ente de maior abrangência sofrer restrições no uso de seus bens
por ato de outro ente de menor abrangência? Em outras palavras: podem
os bens da União ser tombados por Estados-Membros, Distrito Federal
e Municípios, e os bens estaduais pelos Municípios localizados em seu
território?
3 Da abrangência de interesses e o tombamento de bens públicos
Tendo em vista a natureza do tombamento e os efeitos jurídicos
dele decorrentes, aí incluída a possibilidade de sanções administrativas no caso de descumprimento dos deveres impostos ao proprietário,
deve-se ponderar acerca da aplicação, por analogia, da norma restritiva
do artigo 2º, §2º do Decreto-Lei nº 3.365/1941, com o fito de se evitar
desnecessário e inconveniente conflito federativo.
Ressalte-se que a discussão a ser travada neste estudo não se refere ao tombamento de bens públicos, o que, nos termos do artigo 5º do
Decreto-Lei nº 25/1937,4 é perfeitamente possível. O questionamento ora
4
Dispõe o artigo 5º do Decreto-Lei nº 25/1937: “O tombamento dos bens pertencentes à União, aos
Estados e aos Municípios se fará de ofício, por ordem do diretor do Serviço do Patrimônio Histórico e
Tombamento de bens públicos e abrangência de interesses – É possível a aplicação da regra... 111
em tela cuida da específica adoção de tal instrumento por certos entes
da federação sobre bens públicos que não lhes pertençam. A pergunta
é: que bens públicos poderão os Estados-Membros, o Distrito Federal e
os Municípios declarar tombados?
A tese normalmente referida pela doutrina, de que os bens públicos podem ser tombados por qualquer ente federativo, ampara-se na
inexistência de vedação expressa no Decreto-Lei nº 25/1937.5 Sob tal
enfoque, se o ordenamento não proíbe o tombamento, não caberia ao
operador do Direito impor qualquer restrição.
Seguindo tal entendimento, apenas não seriam passíveis de tombamento as obras de origem estrangeira pertencentes às representações
diplomáticas ou consulares acreditadas no país, aquelas que adornam
veículos pertencentes a empresas estrangeiras, os bens enumerados no
artigo 10 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (DecretoLei nº 4.657/1942), os bens pertencentes a casas de comércio de objetos
históricos ou artísticos, que sejam trazidos para exposições comemorativas, educativas ou comerciais e, finalmente, os bens importados por
empresas estrangeiras expressamente para adorno dos respectivos estabelecimentos, como consignado no artigo 3º do Decreto-Lei nº 25/1937.
Quaisquer outros bens, ainda que pertencentes aos entes públicos de
maior abrangência, poderão ser tombados licitamente por quaisquer
entes da federação.
A questão, entretanto, não se apresenta tão simples. Afirmar que,
por não haver proibição legal para o tombamento de bens públicos,
todos os entes da federação poderão adotar tal medida constritiva, independentemente de quem exerça a propriedade, parte da equivocada
premissa de que a omissão do Decreto-Lei nº 25/1937 configuraria silêncio eloquente, não podendo o intérprete restringir o que a lei não o fez.
Tal concepção não há de prosperar. Em respeito à autonomia de
que gozam os entes da federação brasileira, calha afastar a possibilidade
Artístico Nacional, mas deverá ser notificado à entidade a quem pertencer, ou sob cuja guarda estiver a
coisa tombada, a fim de produzir os necessários efeitos”.
5
Neste sentido, já se manifestou o Superior Tribunal de Justiça, nos autos do RMS nº 18952-RJ. Segunda
Turma, Ministra Eliana Calmon, julg. 26.04.2005, DJ, 30 maio 2005, p. 266. Disponível em: <http://www.
stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/toc.jsp?tipo_visualizacao=null&livre=%28%22ELIANA+CALMON%22%29.
min.&processo=18952&b=ACOR&thesaurus=JURIDICO>. Acesso em: 22.07.2013.
112 Márcio Fernando Bouças Laranjeira
de bens da União serem tombados pelos Estados-Membros, Distrito
Federal e Municípios, assim como bens dos Estados-Membros serem
tombados por Municípios, evitando-se, deste modo, indevida interferência na destinação e uso dos bens públicos pertencentes aos entes de
maior abrangência.
Assim se sustenta em virtude da necessidade de se harmonizar
os diversos interesses públicos que norteiam a atuação de cada um dos
membros da federação. Assim, se é certo que a União representa interesse
de maior extensão (i.e., de âmbito nacional), não se revela congruente
admitir-se que interesses de menor extensão (regionais ou locais) se
sobreponham àquele. Por tal razão, não caberá o tombamento de bens da
União, assim como não será possível que Municípios declarem tombados
quaisquer bens públicos que não sejam de sua propriedade.
Ainda que a preservação do patrimônio histórico, artístico e cultural
esteja incluída na competência comum dos entes da federação (artigo
23, inciso II, da Constituição da República), os Estados-Membros e o
Distrito Federal não podem atuar em desconformidade com a União
e os Municípios com esta e com os respectivos Estados. A competência
comum é de colaboração, não devendo servir como mecanismo de litígio
entre os entes públicos.
Neste sentido, observe-se que a própria Constituição da República
deixa antever a necessária compatibilização entre os atos de preservação
do patrimônio público oriundos dos entes políticos, ao dispor em seu
artigo 30, inciso IX, que os Municípios deverão promover a proteção
do patrimônio histórico-cultural local, com a observância da ação fiscalizadora federal e estadual.
Assim está redigido o citado dispositivo constitucional:
Art. 30. Compete aos Municípios: [...]
IX - promover a proteção do patrimônio histórico-cultural local, observada
a legislação e a ação fiscalizadora federal e estadual.
Ora, se os Municípios devem observar a ação fiscalizadora federal e
estadual, é evidente que estes entes mais abrangentes têm prioridade na
preservação dos bens que lhes pertençam. Aos Municípios, por tutelarem
interesse local, não caberá limitar o uso e disposição de bens federais
Tombamento de bens públicos e abrangência de interesses – É possível a aplicação da regra... 113
e estaduais, já que estes poderão ser destinados a satisfazer interesses
que ultrapassem os lindes municipais. Destarte, se no exercício de suas
respectivas ações fiscalizadoras a União e os Estados-Membros decidem
por priorizar outros interesses públicos, deixando de tombar seus próprios bens, não poderão os Municípios atuar de forma divergente, sob
pena de impor àqueles o seu interesse local.
Ainda que não haja idêntica previsão constitucional para os EstadosMembros e Distrito Federal, não se pode negar que a atuação destes
tam­bém deve se dar em harmonia com o ente de maior abrangência
(União), por ser inerente à própria manutenção do Estado federal.6
Tanto é isso ver­dade que o artigo 23, parágrafo único, da Constituição
da Repú­blica, clara­mente dispõe que caberá à lei complementar fixar
normas de cooperação entre os membros da federação no exercício de
suas compe­tências concorrentes.
Consta no artigo 23, parágrafo único, da Constituição da República:
Parágrafo único. Leis complementares fixarão normas para a cooperação entre
a União e os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, tendo em vista o
equilíbrio do desenvolvimento e do bem-estar em âmbito nacional.
Analisando o referido dispositivo, Pedro Lenza bem destaca o fim
almejado pelo Constituinte (2009, p. 303-304):
O objetivo é claro: como se trata de competência comum a todos, ou seja,
concorrente no sentido de todos os entes federativos poderem atuar, o objetivo
de referida lei complementar é evitar não só conflitos como a dispersão de
recursos, procurando-se estabelecer mecanismos de otimização de esforços.
E se ocorrer o conflito entre os entes federativos? Nesse caso, observam
Mendes, Coelho e Branco que “se o critério da colaboração não vingar, há de
se cogitar do critério da preponderância de interesses. Mesmo não havendo
hierarquia entre os entes que compõem a Federação, pode-se falar em hie­
rarquia de interesses, em que os mais amplos (da União) devem preferir aos
mais restritos (dos Estados)”.
6
Como bem observa Dircêo Torrecillas Ramos, dentre os elementos que integram o conceito de Estado
Federal encontra-se “o federalismo como uma base de Associação Política: compromisso de associar e
cooperar ativamente, penetrar no espírito federalista, negociação compartilhada, mútua abstenção e
autorrestrição na perseguição de metas, unidade e alta autonomia” (RAMOS, 2010, p. 722).
114 Márcio Fernando Bouças Laranjeira
Seguindo tal mandamento, a Lei Complementar nº 140/2011,
ao dispor sobre a “cooperação entre a União, os Estados-Membros, o
Distrito Federal e os Municípios nas ações administrativas decorrentes
do exercício da competência comum relativas à proteção das paisagens
naturais notáveis, à proteção do meio ambiente, ao combate à poluição
em qualquer de suas formas e à preservação das florestas, da fauna e
da flora”, claramente estabelece como objetivo fundamental da União,
dos Estados-Membros, do Distrito Federal e dos Municípios a harmonização das políticas e ações administrativas, com vistas a evitar conflitos
de atribuições.
Encontra-se assim redigido o artigo 3º, inciso III, da Lei Comple­
mentar nº 140/2011:
Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da União, dos Estados, do Distrito
Federal e dos Municípios, no exercício da competência comum a que se refere
esta Lei Complementar: [...]
III - harmonizar as políticas e ações administrativas para evitar a sobreposição
de atuação entre os entes federativos, de forma a evitar conflitos de atribuições
e garantir uma atuação administrativa eficiente;
A compatibilização entre os interesses nacionais, regionais e locais
faz-se necessária, portanto, para evitar o inconveniente conflito federativo. Esclareça-se: como do tombamento decorrem obrigações, restrições
e até sanções, caso admitida tal intervenção na propriedade, os entes de
menor abrangência acabariam por condicionar a utilização de bens dos
entes maiores, o que representaria, ao cabo, priorizar o interesse local
ou regional em detrimento do interesse nacional.
Traga-se, como exemplo, o tombamento de imóveis nos quais são
instaladas unidades militares da União. Não se nega que, caso tenham
eles alguma valia histórica ou arquitetônica, poderá o referido ente
público tombá-los, nos termos do Decreto-Lei nº 25/1937. Todavia, na
hipótese de, posteriormente, verificar-se a necessidade de adaptá-los
para novas funções, para atender a interesses de segurança nacional,
nada impede que se proceda ao seu destombamento, permitindo-se a
intervenção física necessária.7
7
O destombamento está expressamente previsto no Decreto-Lei nº 3.866/1941.
Tombamento de bens públicos e abrangência de interesses – É possível a aplicação da regra... 115
Na hipótese, como o tombamento do bem federal foi realizado
pela própria União, tal ente estará habilitado a ponderar os interesses
em confronto, decidindo pela medida mais adequada ao caso concreto,
exercendo autonomamente a competência administrativa que lhe é
própria. Em tal caso, o interesse nacional estará tutelado, seja com a
manutenção do tombamento (preservação do patrimônio cultural), seja
pelo destombamento (priorizando-se o interesse público da segurança
nacional).
Tal ponderação de interesses, ambos de extensão nacional, não
será possível, entretanto, se o bem federal estiver tombado pelo Estado
ou pelo Município em que se encontrar. Em tal situação, se os referidos
entes não compartilharem o entendimento de que a adaptação do bem se
faz necessária para fins de segurança nacional, estará a União impedida
de realizar qualquer intervenção.
O interesse prevalente, então, será o regional (do Estado) ou local
(do Município), aos quais ficará submetido o nacional (da União). A preservação do patrimônio cultural atenderá ao interesse do Estado-Membro
ou do Município, mas não da União. Esta, ao entender prevalente o
interesse na segurança nacional, afastou a possibilidade de se sustentar a
subsistência do interesse, também de expressão nacional, na preservação
do bem público, não sendo razoável que tal manifestação de vontade
deixe de produzir qualquer efeito prático em virtude de óbice imposto
por outro ente federativo.
Observe-se que o tombamento acabou por servir como instrumento
de submissão do interesse público de extensão nacional ao interesse público regional ou local. Criar-se-á, portanto, inequívoco conflito federativo
pelo exercício de competências concorrentes, não obstante estas devam
servir para concatenar ações públicas e não para torná-las incompatíveis.
Vale ressaltar que o apontado inconveniente ocorrerá não só quando o imóvel público estiver afetado para uso especial (como na hipótese
acima), mas também nos casos de bens de uso comum do povo e bens
dominicais. Com efeito, uma vez tombado o bem público, a posterior
modificação de seu uso (afetação) poderá ser obstada pelo dever de
conservação decorrente daquela intervenção restritiva.
Imagine-se um imóvel dominical federal que passe a ser destina­
do para a instalação de um órgão público, necessitando, para tal, de
116 Márcio Fernando Bouças Laranjeira
adequações físicas tanto internas quanto externas. Nessa situação, a
mani­fes­tação de vontade da União (que, ponderando suas necessidades
e a impo­sitiva satisfação do interesse público, decidiu por dar destinação
específica a um bem dominical, transformando-lhe em bem de uso
especial) estará inevitavelmente condicionada à anuência do ente
responsável pelo tombamento. O interesse do ente de maior extensão
estará, portanto, submetido ao interesse regional ou local.
Por tal razão, deve ser admitida a aplicação da regra da abrangência
de interesses contida no artigo 2º, §2º, do Decreto-Lei nº 3.365/1941,
evitando-se que Estados-Membros e Distrito Federal declarem tombados bens da União e que Municípios tombem bens dos demais entes da
federação.
Defendendo a tese ora sustentada, pela aplicação por analogia do
artigo 2º, §2º, do Decreto-Lei nº 3.365/1941, encontra-se José dos Santos
Carvalho Filho (2011, p. 741):
Quanto aos bens públicos, entendemos que, por interpretação analógica ao
art. 2º, §2º, do Decr.-lei nº 3.365/41, que regula as desapropriações, a União
pode tombar bens estaduais, distritais e municipais, e os Estados podem fazêlo em relação aos bens do Município. Entretanto, em observância também
à natureza dos interesses tutelados pelos entes federativos das diversas
esferas, parece-nos não possam as entidades menores instituir, manu militari,
tombamento sobre bens pertencentes aos entes maiores, isto é, o Município
não pode fazê-lo sobre bens estaduais e federais, nem os Estados sobre bens
da União. Nestes casos, a entidade menor interessada deve obter autorização
do ente público maior a quem pertencer o bem a ser tombado; só assim nos
parece compatível a interpretação do art. 23, III, da CF, que confere a todas
as pessoas federativas competência comum para proteger bens de valor
histórico, artístico e cultural.
Também Sabino Lamego de Camargo, então Procurador do Estado
do Rio de Janeiro, já se manifestou pela impossibilidade de entes de
menor abrangência tombarem bens dos demais entes políticos. Assim
consta no Parecer nº 2/80-SLC (1979, p. 348-352):
Certo é que as limitações não dizem respeito à subsistência do direito de
propriedade, mas, sim, ao uso do bem. Mas, de qualquer forma, as limitações
que decorrem do tombamento podem afetar substancialmente a finalidade
ou o destino do bem sobre o qual incidem.
Tombamento de bens públicos e abrangência de interesses – É possível a aplicação da regra... 117
Reconhecer, portanto, às entidades políticas menores o direito de
impor ônus ao direito ao uso de bens do domínio de entidades políticas
maiores importa igualmente em reconhecer àqueles a possibilidade de
criarem contra estas, por ato próprio, direitos que eventualmente podem
tolher os objetivos de interesse coletivo a que haviam sido destinados
ditos bens.
Em vista do exposto, os Estados-Membros e o Distrito Federal não
poderão tombar bens federais, enquanto os Municípios não poderão
tombar quaisquer bens públicos (salvo os seus próprios), evitando-se o
indesejável conflito federativo que exsurgirá nos casos em que os interesses nacional, regional e local não se compatibilizarem.
Interpretando-se sistematicamente o ordenamento jurídico — a
partir do qual se defende a adoção do critério da abrangência de interesses —, há de se concluir, então, que aos Estados e Distrito Federal não
foi conferida a competência para realizar especificamente o tombamento
de bens da União e aos Municípios não foi conferida a competência para
tombar bens públicos dos demais entes da federação.8
Vale dizer, como a competência nada mais é que “a expressão
funcional qualitativa e quantitativa do poder estatal, que a lei atribui às
entidades, órgãos ou agentes públicos, para executar a sua vontade”,9
e tendo em vista que o tombamento de bens públicos por entes de menor abrangência não se compatibiliza com o exercício harmônico das
competências administrativas comuns (como sustentado neste trabalho),
faltará aos governadores o poder jurídico de tombar bens federais e aos
prefeitos o poder de tombar bens públicos da União e dos Estados.
Apesar dos bens públicos serem passíveis de tombamento (logo o
objeto do tombamento de bem público não é juridicamente vedado10),
os Estados-Membros e o Distrito Federal não terão competência para
impor tal restrição a bens federais, enquanto os Municípios não poderão
Celso Antônio Bandeira de Melo, referindo-se ao sujeito como pressuposto subjetivo de validade do ato
administrativo, assevera que, dentre os aspectos a considerar, está a “capacidade da pessoa jurídica que
o praticou” (2006, p. 377). Como se defende neste estudo, os Estados-membros e Distrito Federal não
têm capacidade jurídica de tombarem bens federais, enquanto os Municípios não a possuir em relação a
bens públicos de outros entes da federação.
9
MOREIRA NETO, 2009, p. 154.
10
Tanto é isto verdade que bens dos Estados e Distrito Federal podem ser tombados pela União e bens
municipais, pela União, pelos Estados e pelo próprio Município proprietário.
8
118 Márcio Fernando Bouças Laranjeira
utilizar tal modalidade de intervenção em face de bens públicos que não
lhes pertençam.
O desrespeito à regra da abrangência de interesses implicará,
portanto, a nulidade do ato administrativo por vício de competência.
Assim, porque não satisfeito um dos requisitos de validade do ato de tombamento, caberá ao ente atingido pela intervenção em sua propriedade
pleitear em juízo a declaração de nulidade do ato em questão.
Em outras palavras, tratando-se de ato inválido, mas eficaz enquanto não reconhecido o vício que o macula,11 não restará ao ente atingido
pelo tombamento outra medida senão valer-se do Judiciário para obter a
anulação e afastar as restrições impostas ao bem indevidamente tombado.
Vale ressaltar que a impossibilidade de Estados-Membros e Dis­trito
Federal tombarem bens da União e Municípios tombarem quaisquer
bens públicos além dos seus próprios não viola a autonomia de tais
entes da federação, já que suas competências administrativas não são
exercidas de modo absoluto. Aos Estados-Membros, ao Distrito Federal
e aos Municípios compete exercer suas atribuições constitucionais em
harmonia entre si e com a União, porque assim necessário para a estabilidade da federação.
Observe-se, ainda, que a aplicação da regra contida no artigo 2º,
§2º, do Decreto-Lei nº 3.365/1941, não significa interpretar extensivamente uma norma restritiva. Trata-se, simplesmente, de aplicar o mesmo
fundamento jurídico que, amparado na interpretação sistemática do
ordenamento jurídico — a qual nos leva a concluir que as competências
comuns devem ser exercidas em cooperação, não podendo servir para
abalar a necessária harmonia que deve existir entre os entes políticos
—, justifica a impossibilidade de desapropriação de bens públicos por
entes de menor extensão.
Com efeito, se tanto na desapropriação quanto no tombamento há
a possibilidade de se criar um conflito federativo, pela intervenção na
11
Ensina Celso Antônio Bandeira de Mello que “os atos inválidos, inexistentes, nulos ou anuláveis não
deveriam ser produzidos. Por isso não deveriam produzir efeitos. Mas o fato é que são editados atos
inválidos (inexistentes, nulos e anuláveis) e que produzem efeitos jurídicos. Podem produzi-los até mesmo
per omnia secula, se o vício não for descoberto ou se ninguém o impugnar. É errado, portanto, dizer-se que
os atos nulos não produzem efeitos. Aliás, ninguém cogitaria da anulação deles ou de declará-los nulos
se não fora para fulminar os efeitos que já produziram ou que podem ainda vir a produzir” (BANDEIRA
DE MELLO, 2009, p. 471).
Tombamento de bens públicos e abrangência de interesses – É possível a aplicação da regra... 119
propriedade de outro ente público para satisfazer interesses de menor
extensão, deverá o operador do Direito aplicar o mesmo raciocínio para
ambas as hipóteses, em respeito à máxima ubi eadem ratio ibi idem jus.
Assim, o critério da abrangência de interesses incide também nos casos
de tombamento.
Finalmente, a impossibilidade de Estados-Membros e Distrito
Federal tombarem bens da União e de os Municípios tombarem bens
públicos dos demais entes políticos não causa prejuízo algum à preservação do patrimônio cultural, seja porque mantida a possibilidade de
tombamento de bens públicos pelos entes de maior abrangência, seja
porque nada impede aos entes de menor abrangência pleitear junto aos
demais o tombamento dos bens que lhes pertencem.12
4 Conclusão
Ao longo deste breve estudo buscou-se analisar o instituto do tombamento, reconhecendo-o como instrumento que tem o Poder Público
para preservar o patrimônio histórico, artístico e cultural. Impondo
restrições ao proprietário, que não mais poderá modificar ou destruir
o bem tombado, o Estado assegura a subsistência do bem declarado de
relevância para o patrimônio nacional.
Verificou-se que o tombamento é realizado sobre quaisquer
bens, inclusive públicos, como disposto no artigo 5º do Decreto-Lei
nº 25/1937. No entanto, ao contrário do Decreto-Lei nº 3.365/1941, a
Lei de Tombamento não contém expressa proibição para os EstadosMembros e Distrito Federal declararem tombados bens da União e para
os Municípios tombarem bens desta e dos Estados-Membros em cujo
território se encontram.
Em decorrência da referida omissão legislativa, duas correntes se
firmaram quanto ao tombamento de bens públicos. De um lado, estão os
defensores da possibilidade de tombamento de quaisquer bens públicos,
independentemente de quem os possua, já que não poderá o intérprete
criar restrição alguma no exercício de tal competência, se assim a lei não
12
Além de José dos Santos Carvalho Filho (2011, p. 741), também Sabino Lamego de Camargo faz consignar
que: “Deverão as entidades menores, se o quiserem, manifestar seu interesse no tombamento às entidades
maiores e solicitar aos respectivos órgãos competentes que o promovam” (p. 352).
120 Márcio Fernando Bouças Laranjeira
dispôs. Por conseguinte, não havendo ressalva no Decreto-Lei nº 25/1937,
os bens da União poderão ser tombados pelos demais entes e os bens
dos Estados-Membros, pelos Municípios localizados em seus territórios.
De outro modo, sustentam alguns doutrinadores que o tombamento
de bens públicos deve igualmente observar a regra da abrangência de in­
te­resse, com base na qual se fundamenta a norma restritiva do artigo 2º,
§2º, do Decreto-Lei nº 3.365/1941, assegurando-se que a União dê plena
destinação aos seus bens (satisfazendo interesse nacional), sem que os
de­mais entes possam tombá-los, enquanto os Estados-Membros só po­
derão sofrer limitação na sua propriedade em deferência ao interesse
na­cio­nal, não se admitindo que os Municípios lhes imponham quaisquer
res­tri­ções, hipótese na qual o interesse regional restaria subordinado ao
inte­resse local.13
Buscou-se demonstrar que a lacuna do Decreto-Lei nº 25/1937
deverá ser suprida pela interpretação sistemática do ordenamento jurídico, de modo que o exercício da competência comum dos entes da
federação, relativa à preservação dos bens de valor histórico, artístico e
cultural (artigo 23, inciso III, da Constituição da República), não acarrete
indesejável conflito federativo.
Admitindo-se que a competência comum dos entes públicos não
pode servir como fonte de dissídio federativo, é forçoso concluir que o
tombamento de bens públicos deve se dar de forma restritiva, ou seja,
seguindo a ordem de precedência dos interesses nacional, regional e local
(tutelados pela União, Estados-Membros/Distrito Federal e Municípios,
respectivamente), como já ocorre com a desapropriação.
Quando os interesses de cada ente público não se apresenta­rem
compatíveis, há de se dar prioridade ao de maior extensão, evitandose que entes menores, por ato próprio, criem obrigações e restrições
oponíveis aos entes de maior abrangência. Logo, não poderá a União ser
proibida de modificar as características físicas de seus bens, adaptandoos à nova destinação pública, em virtude de tombamento realizado por
Estado-Membro, Distrito Federal ou Municípios.
13
Lembre-se, uma vez mais, que o Distrito Federal, porque não dividido em municípios, não sofre qualquer
restrição na sua propriedade, senão por ato do ente mais abrangente (União).
Tombamento de bens públicos e abrangência de interesses – É possível a aplicação da regra... 121
Apenas ao ente federal caberá ponderar os interesses nacionais
em jogo, decidindo pela preservação do patrimônio histórico ou pela
satisfação de outra necessidade pública mais premente. O mesmo deverá
ocorrer com os Estados-Membros quanto aos interesses regionais, não
podendo ser os seus bens tombados pelos Municípios, mas apenas pela
União (em deferência ao interesse nacional).
A observância da regra de abrangência de interesses, já prevista
no artigo 2º, §2º, do Decreto-Lei nº 3.365/1941, para o tombamento,
antes de violar a autonomia dos entes de menor abrangência, assegura
o equilíbrio e a harmonia da federação brasileira, ao garantir que a
atuação destes não ocorra de forma irrestrita, mas sim em cooperação
com os demais, como exige o artigo 23, parágrafo único, da própria
Constituição da República.
Restou demonstrado, ainda, que a atuação coordenada dos entes
da federação, evitando conflitos e contribuindo para a eficiência que
se espera da Administração, é objetivo a ser alcançado pela União,
Estados-Membros, Distrito Federal e Municípios, no exercício de suas
competências comuns, como recentemente consignado no artigo 3º,
inciso III, da Lei Complementar nº 140/2011.
Adotando-se o raciocínio ora proposto, o eventual tombamento de
bens públicos pelos entes de menor abrangência haverá de ser reconhecido nulo por vício de competência. Deveras, apesar de bens públicos
serem passíveis de tombamento, os Estados e o Distrito Federal não terão
competência especificamente para tombar bens da União, enquanto os
Municípios carecerão de competência para tombar quaisquer bens públicos que não lhes pertençam. Em tal situação, restará ao ente prejudicado
pleitear em juízo a sua invalidação.
Por fim, considerando que a preservação do patrimônio histó­
rico, artístico e cultural está garantida, em relação aos bens públicos,
com o tombamento levado a efeito pelos entes de maior abrangência
(os quais poderão ser instados pelos de menor abrangência a tombar os
seus respectivos bens), a aplicação da regra contida no artigo 2º, §2º, do
Decreto-Lei nº 3.365/1941, é medida que se impõe, em deferência ao
equi­líbrio e à harmonia que caracterizam o sistema federativo.
122 Márcio Fernando Bouças Laranjeira
Administrative Constraints Over Real Estate Property of Political
Entities and “Extent of Interests” – Is it Possible to Apply the Rule of
the Article 2º, §2, of Decree-Law nº 3.365/1941?
Abstract: Considering that the protection of historic and cultural heritage
is indispensable to the preservation of national identity, the administrative
constraints imposed by the government represents one of the legal instruments useful for this purpose. The restrictions on the use of all properties
that have cultural and historical significance reflect the so-called “eminent
domain”, a politic power resulting from the state sovereignty. Thus, all
property, movable or immovable, public and private, is submitted to administrative limitations, maintaining intact, at the same time, the individual
property rights. However, there is disagreement as to the possibility of imposing administrative constraints to public goods belonging to the Union
by the Federal States, Federal District and Municipalities, as well as property of the Federal States being equally affected by municipalities. Although
the preservation of historical, artistic and cultural goods is attributed to all
public entities (common competence), it is important to consider that the
interests protected by the ones with wider coverage may not be submitted
to the satisfaction of the interests of less extent entities, under penalty of
endangering the balance which marks the federation. This study will seek
to examine this question, comparing the possible arguments in favor and
against the application by analogy of the rule of “extent of interests” that
underlies Article 2, §2, of Decree-Law nº 3.365/1941.
Key words: Administrative Law. Protection of cultural heritage. Adminis­
trative constraints. Public goods. Extent of interests.
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31 dez. 1941. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto-Lei/
1937-1946/Del3866.htm>. Acesso em: 22 jul. 2013.
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termos dos incisos III, VI e VII do caput e do parágrafo único do art. 23 da Constituição
Federal, para a cooperação entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios
nas ações administrativas decorrentes do exercício da competência comum relativas à
proteção das paisagens naturais notáveis, à proteção do meio ambiente, ao combate à
poluição em qualquer de suas formas e à preservação das florestas, da fauna e da flora;
e altera a Lei nº 6.938, de 31 de agosto de 1981. Diário Oficial da União, 08 dez. 2011.
Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/CCIVIL_03 /LEIS/LCP/Lcp140.htm>.
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Autorização Ambiental de
Funcionamento e lavras ilegais de
minério
Valkiria Silva Santos Martins
Advogada da União. Integrante do Grupo Permanente de Combate à Corrupção. Pós-Graduanda
em Advocacia Pública pelo IDDE em parceria com o Centro de Direitos Humanos da Faculdade
de Direito da Universidade de Coimbra. Especializada em Direito Civil e Processual Civil pela
UNICOC e em Direito Público pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Graduada
em Direito pela Fundação Educacional Monsenhor Messias.
Resumo: Na contramão da sustentabilidade, o Estado de Minas Gerais
criou a Autorização Ambiental de Funcionamento (AAF), obtida mediante procedimento simplificado, objetivando regularizar determinadas
atividades de mineração. Apresenta-se aqui um estudo sobre os aspectos
da AAF, discorrendo sobre a sua inaplicabilidade aos empreendimentos
minerários e as consequências jurídicas da utilização das AAFs para os fins
de obtenção de títulos de lavra, qual seja, a própria nulidade da Guia de
Utilização ou da Portaria de Lavra.
Palavras-chave: Sustentabilidade. Licenciamento. Mineração. Nulidade.
Lavra.
Sumário: 1 Introdução – 2 Sustentabilidade – Mineração para esta
ge­ração e as futuras – 3 Legislação minerária pertinente ao tema – 4 Licen­
ciamento ambiental para lavra de minério – 5 Autorização Ambiental de
Funcionamento como instituto diferenciado do licenciamento ambien­tal
– 6 Procedimento simplificado na contramão do desenvolvimento sus­
tentável – 7 AAF em atividades minerárias – Lavra ilegal por nulidade –
8 Con­clusão – Referências
1 Introdução
Neste artigo faremos uma crítica à expedição de Autorização
Ambiental de Funcionamento (AAF) para os fins de regularizar ambientalmente as atividades de mineração. Apresentamos um estudo que conclui
pela inconstitucionalidade e ilegalidade desse instituto, para os fins de
viabilizar ambientalmente empreendimentos destinados à mineração,
que geram grandes impactos ao meio ambiente.
Nossa problemática consiste no fato de que a lavra de minérios,
cujo potencial degradador sobre o ambiente foi reconhecido até mesmo
pela própria Constituição Federal (art. 225, §2º), foi objeto de exigência
126 Valkiria Silva Santos Martins
expressa do licenciamento ambiental clássico na legislação. O tratamento
específico é dado pelas Leis nºs 6.938/81 e 7.805/89, Decreto nº 98.812/90
e Resoluções CONAMA1 nºs 01/86, 09/90 10/90 e 237/97.
Entretanto, na contramão da sustentabilidade, no Estado de Minas
Gerais não se exige licenciamento ambiental para muitas atividades minerárias, entendidas como de não significativo impacto ambiental. A DN
Copam nº 74/2004 possibilita a regularização ambiental de uma série de
atividades, com base em mera Autorização Ambiental de Funcionamento,
violando frontalmente o ordenamento jurídico vigente.
A AAF permite a mineração, sem qualquer estudo ambiental prévio, publicidade, anuência do município explorado ou monitoramento
subsequente dos impactos, considerando tal atividade como sendo de
pequeno potencial degradador.
Essa permissividade ambiental, flagrantemente ilícita, tem ocasionado sérios danos ao meio ambiente, natural e cultural, de Minas Gerais,
motivo pelo qual, neste trabalho, nos posicionamos contra a expedição de
AAF, para os fins de regularização ambiental de atividades mineradoras.
Com efeito, tendo em conta a apresentação ao DNPM de AAFs
para os fins de expedição de títulos minerários — Guia de Utilização e
Portaria de Lavra —, necessário se faz que o Judiciário ou a Administração
entendam como nulos os referidos títulos, haja vista que não foi atendido
requisito legal, essencial ao desenvolvimento sustentável, qual seja, a
apresentação de licença ambiental.
2 Sustentabilidade – Mineração para esta geração e as futuras
Para satisfazer às variadas necessidades da humanidade, a atividade
mineral se encontra em plena expansão no mundo.2 Desde os campos da
alimentação ou da construção civil — com enormes prédios ou humildes
CONAMA, Conselho Nacional de Meio Ambiente, é um colegiado representativo dos diversos atores
sociais envolvidos com a questão ambiental. É composto pelo plenário de pouco mais de 100 membros
(valor que varia segundo o número de Ministérios, Secretarias da Presidência da República e Comandos
Militares do Ministério da Defesa), 11 câmaras técnicas, com sete membros cada, e grupos de trabalho
tempo­rários, entre outros. A função consultiva e deliberativa dos conselheiros, que tem caráter voluntário,
não se con­funde com a atribuição executiva, remunerada, a cargo do IBAMA. Essa estrutura, composta
por órgão cole­giado e órgão executivo, repete-se, com adaptações, nos Estados, no Distrito Federal e em
alguns Municípios.
2
Até 2006, em Minas Gerais, 78% das Licenças Prévias emitidas eram referentes às atividades minerárias
e, atualmente, mil licenças são concedidas por ano (VIANA, 2007).
1
Autorização Ambiental de Funcionamento e lavras ilegais de minério 127
casas —, a mineração está presente na vida em coletividade. Nos primórdios do nosso tempo, o homem já começou a converter pedras em
ferramentas e armas, deixando de ser caça para ser caçador e:
Desde então, foi cada vez mais imprescindível à sobrevivência e ao desenvolvimento da Humanidade. Sem a mineração é impossível, por exemplo, a
produção de alimentos. Dela provêm os corretivos de solos e os fertilizantes,
que tornam produtivos terrenos impróprios a essa produção ou solos que
perderam a fertilidade em função de sua utilização continuada.
Mas, não basta preparar o solo. Somente seria viável a produção de alimentos na escala de sua demanda mediante a utilização de equipamentos e
máquinas fabricadas com matérias primas minerais. São elas que preparam
a terra para receber as sementes, que as semeam, que irrigam a terra, que
eliminam as ervas daninhas da terra cultivada, que colhem e beneficiam a
produção e, finalmente, que a distribuem por todos os recantos em que é
demandada. Sequer as embalagens que acondicionam os alimentos existiriam
sema mineração.
Raras são as atividades humanas que não dependem da mineração, e estas
geralmente não são importantes ou indispensáveis. Ex vero, máquinas, equipamento e ferramentas ou quaisquer utilidade ou objetos, desde dimensões
microscópicas até gigantescas, necessários ao exercício de esmagadora maioria
destas atividades são parcial ou totalmente constituídos de matéria prima
mineral ou são fabricados com a utilização daquelas máquinas, ferramentas
e equipamentos constituídos da mesma.3
A procura por esses recursos naturais é, então, cada vez mais
agressiva e, noutra banda, o resultado, muitas vezes, são restrições indesejáveis à qualidade de vida da coletividade, mediante a degradação
e/ou poluição do meio ambiente.4
Conforme Fiorillo:5
Atento a esses fatos, o legislador constituinte de 1988 verificou que o cres­
ci­mento das atividades econômicas merecia um novo tratamento. Não
mais poderíamos permitir que elas se desenvolvessem alheias aos fatos
RIBEIRO, 2005.
Segundo Carlos Luiz Ribeiro (2005), meio ambiente é o conjunto de condições, leis, influências e interações
de ordem física, química e biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas, entendendose como degradação ambiental a alteração adversa dessas condições.
Poluição é a degradação ambiental resultante de atividades que prejudiquem a saúde, a segurança e o
bem-estar da população, ou que criem condições adversas às atividades sociais e econômicas ou à biota,
ou às condições estéticas e sanitárias do meio ambiente, ou, ainda, que lancem matérias ou energia em
desacordo com os padrões estabelecidos.
5
FIORILLO, 2004, p. 24.
3
4
128 Valkiria Silva Santos Martins
contemporâneos. A preservação do meio ambiente passou a ser a palavra de
ordem, porquanto sua contínua degradação implicará diminuição da capa­
cidade econômica do País, e não será possível à nossa geração e principal­
mente às futuras desfrutar uma vida com qualidade.
Entrementes,
Não existe incompatibilidade absoluta entre a prática da Mineração e pre­
ser­vação do Meio Ambiente, a despeito das atividades minerárias serem
geralmente degradadoras do Meio Ambiente e, às vezes, localmente polui­
doras. Contudo, poderão coexistir, tratando-se, por óbvio, da mineração
racional e responsavelmente conduzida, que respeita as normas técnicas
regula­mentadas.6
Resta-nos, então, a bem desta e das futuras gerações, optar, inteligentemente, por um processo econômico que venha dar continuidade
ao desenvolvimento. Viabilizar o aproveitamento contínuo7 da utilização
dos recursos naturais.
Não significa dizer que, com a opção pelo aproveitamento contínuo,
os recursos minerais são intocáveis, mas, sim, que deverão ser utilizados
de maneira racional e equilibrada. Nesse sentido, a necessidade de harmo­
nização entre o desenvolvimento econômico e a proteção ambiental encontra-se
expressamente consagrada no art. 170, inciso VI, da CF/88.8
Entende-se, assim, que a sociedade possui padrões de desenvolvimento
juridicamente desejados,9 que são aqueles que atentam para o ideal mútuo
de conservação do patrimônio ambiental da coletividade. Afinal:
O direito à integridade do meio ambiente — típico direito de terceira geração
— constitui prerrogativa jurídica de titularidade coletiva, refletindo, dentro
do processo de afirmação dos direitos humanos, a expressão significativa de
um poder atribuído, não ao indivíduo identificado em sua singularidade,
mas, num sentido verdadeiramente mais abrangente, à própria coletividade
social. Enquanto os direitos de primeira geração (direitos civis e políticos)
— que compreendem as liberdades clássicas, negativas ou formais —
realçam o princípio da liberdade e os direitos de segunda geração (direitos
econômicos, sociais e culturais) — que se identificam com as liberdades
RIBEIRO, 2005.
SOUZA; CARNEIRO. 2009.
8
Idem.
9
Idem.
6
7
Autorização Ambiental de Funcionamento e lavras ilegais de minério 129
positivas, reais ou concretas — acentuam o princípio da igualdade, os
direitos de terceira geração, que materializam poderes de titularidade cole­
tiva atribuídos genericamente a todas as formações sociais, consagram o
princípio da solidariedade e constituem um momento importante no processo
de desenvolvimento, expansão e reconhecimento dos direitos humanos,
caracterizados, enquanto valores fundamentais indisponíveis, pela nota de
uma essencial inexauribilidade. (MS nº 22.164, Rel. Min. Celso de Mello,
julgamento em 30.10.1995, Plenário, DJ, 17 nov. 1995. No mesmo sentido, RE
nº 134.297, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 13.06.1995, Primeira
Turma, DJ, 22 set. 1995).
É o que se depreende do estatuído no art. 225 da Carta Magna,10
que estabelece que todos tivessem direito ao meio ambiente ecologicamente
equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida,
incumbindo ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo
para as presentes e futuras gerações.11
Maurício Boratto Viana (2007) externa que não é sem razão a preocupação normativa com a atividade
minerária, uma vez que são inúmeros impactos ambientais, em maior ou menor grau, que ela pode provocar
com a extração de minerais da crosta terrestre e o seu posterior beneficiamento e transformação. Como
complementa, citando o Departamento Nacional de Produção Mineral, um aspecto determinante desse
processo é o fato de esses depósitos se localizarem onde as condições geológicas foram favoráveis à sua
formação — a chamada “rigidez locacional da jazida” (DNPM, 2005).
11
Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo
e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo
e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.
§1º Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público:
I - preservar e restaurar os processos ecológicos essenciais e prover o manejo ecológico das espécies e
ecossistemas; (Regulamento)
II - preservar a diversidade e a integridade do patrimônio genético do País e fiscalizar as entidades dedicadas
à pesquisa e manipulação de material genético; (Regulamento) (Regulamento)
III - definir, em todas as unidades da Federação, espaços territoriais e seus componentes a serem
especialmente protegidos, sendo a alteração e a supressão permitidas somente através de lei, vedada
qualquer utilização que comprometa a integridade dos atributos que justifiquem sua proteção;
(Regulamento)
IV - exigir, na forma da lei, para instalação de obra ou atividade potencialmente causadora de significativa
degradação do meio ambiente, estudo prévio de impacto ambiental, a que se dará publicidade;
(Regulamento)
V - controlar a produção, a comercialização e o emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem
risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente; (Regulamento)
VI - promover a educação ambiental em todos os níveis de ensino e a conscientização pública para a
preservação do meio ambiente;
VII - proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função
ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade. (Regulamento)
§2º Aquele que explorar recursos minerais fica obrigado a recuperar o meio ambiente degradado, de
acordo com solução técnica exigida pelo órgão público competente, na forma da lei.
§3º As condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas
físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os
danos causados.
§4º A Floresta Amazônica brasileira, a Mata Atlântica, a Serra do Mar, o Pantanal Mato-Grossense e a
Zona Costeira são patrimônio nacional, e sua utilização far-se-á, na forma da lei, dentro de condições que
assegurem a preservação do meio ambiente, inclusive quanto ao uso dos recursos naturais.
10
130 Valkiria Silva Santos Martins
Assim, tão significativos podem ser os impactos ambientais gerados
pela atividade minerária, que a Lei Maior resolveu dar-lhe tratamento
diferenciado, ao estatuir, no §2º do art. 225, que “aquele que explorar
recursos minerais fica obrigado a recuperar o meio ambiente degradado,
de acordo com solução técnica exigida pelo órgão público competente,
na forma da lei”. Quanto às atividades potencialmente causadoras de
significativa degradação — incluindo a mineração —, a CF exige para
a sua instalação, no inciso IV do §1º, o EIA.12
Com efeito, o Estado deve estabelecer um conjunto de políticas e
regras que devem balizar a proteção do meio ambiente. Atitude positiva,
exigida pelo caput do art. 225, que resulta no dever de obediência do
minerador. Sobre o tema, citem-se, mais uma vez, Marcelo Gomes de
Souza e Ricardo Carneiro:13
Ora, desses balizamentos não se pode desviar a atividade de exploração
mineral, sendo induvidoso que os recurso minerais in situ, antes mesmo de
serem inseridos nas cadeias de beneficiamento e transformação, constituem
elementos integrantes da natureza, pertencendo, por tal modo, ao patrimônio
ambiental da coletividade. Logo seu aproveitamento deve ser efetuado con­
forme as diretrizes estabelecidas para o uso dos demais recursos naturais.
Enfim, minério é algo que se produz a partir de substâncias minerais, que nada mais são do que elementos da natureza. A mineração, em
si, já afeta negativamente o meio ambiente,14 imaginem-na sem controle?
§5º São indisponíveis as terras devolutas ou arrecadadas pelos Estados, por ações discriminatórias,
necessárias à proteção dos ecossistemas naturais.
§6º As usinas que operem com reator nuclear deverão ter sua localização definida em lei federal, sem o
que não poderão ser instaladas.
12
VIANA, 2007.
13
SOUZA; CARNEIRO. 2009, p. 334.
14
Neste ponto existe excelente trabalho de Maurício Boratto Viana (2007), que, ao destinar um tópico aos
“Principais impactos socioambientais”, explana, e comprova com pesquisas sérias, os vários os impactos
da mineração. Vale aqui citar o inteiro teor do seguinte trecho:
A citada entidade (DNPM) registra que o método de lavra, o tipo de minério e as características naturais
e humanas da área da jazida podem influir de forma positiva ou negativa na extração econômica dessa
riqueza, levando à sua maior ou menor aceitação. Tais características naturais e humanas incluem, entre
outros, a densidade da população, a topografia, o clima e os aspectos socioeconômicos.
Quanto à densidade da população, verifica-se que a percepção do impacto ambiental está diretamente
relacionada ao número de pessoas por ele afetadas. Desta forma, em áreas rurais ou de baixa densidade
populacional, a mineração é mais prontamente aceita do que numa área mais densamente povoada.
Um exemplo típico é a mineração de agregados utilizados diretamente na indústria da construção civil
(os denominados ‘minerais da Classe II’), tais como brita, cascalho, areia, argila etc. Eles, normalmente,
são explorados junto às grandes cidades, o que pode acarretar transtornos e custos adicionais à sua
atividade operacional, em função dos ruídos e vibrações gerados pelas detonações e pelos diversos graus
de interferência nas áreas periurbanas.
Autorização Ambiental de Funcionamento e lavras ilegais de minério 131
Acrescente-se, como resultado da mineração desenfreada, o esgo­
tamento, efetivo, do recurso mineral lavrado e do recurso, mineral e
ambiental, a que é agregado o produto da lavra. Este se torna rejeito,
por escolha do minerador, ou é afetado, desastrosamente, pelos efeitos
da atividade.
Segundo Maurício Boratto Viana15 os recursos minerais apresentam
uma peculiaridade que os diferencia dos demais, a rigidez locacional, que significa
que eles só ocorrem onde os processos geológicos assim o permitiram. E reforça
o autor que:
[...] ao contrário da maioria dos recursos naturais, que apresentam como
carac­terística a renovabilidade, outro aspecto que tipifica as substâncias
minerais é que elas, com raríssimas exceções (água mineral, areia de aluvião
etc.), “dão apenas uma safra” e tendem, portanto, à exaustão. Por fim, um
com­plicador adicional é o facilmente perceptível impacto visual produzido
pela atividade extrativa mineral, o que gera um sentimento de aversão por
parte da maioria da população.
Com relação à topografia, se a ocorrência mineral encontra-se em regiões montanhosas, é importante a
posição dela na paisagem. Quando a mineração se localiza em altas encostas, como costuma ocorrer com o
minério de ferro e o quartzito, por exemplo, provoca impacto visual, além de ruídos e poeiras, que podem
percorrer grandes distâncias. Além disso, nessas áreas, a capacidade de carreamento de sedimentos pelo
sistema de drenagem é elevada, gerando assoreamento nas porções mais aplainadas situadas à jusante.
Já em regiões de vales, os elementos da mineração são visíveis somente a curtas distâncias, sendo que
as altas encostas adjacentes podem oferecer uma efetiva barreira para ruídos e poeiras. Convém lembrar
que, nessas áreas, os cursos d’água fluem mais lentamente, gerando uma baixa capacidade para carrear
sólidos em suspensão.
Normalmente, a oposição à mineração é mais intensa em regiões de alto valor cênico, nas várzeas e em
locais de ocorrência de espécies raras da flora e da fauna.
No que diz respeito ao clima, o mecanismo de transporte para o meio ambiente da poluição originária da
mina está diretamente relacionado ao regime pluviométrico, temperatura, umidade e direção dos ventos,
entre outros. Sua principal influência é, portanto, sobre a amplitude da poluição, considerando a distância
em que é perceptível o impacto da mineração. É de ressaltar que, enquanto os efeitos atmosféricos
controlam a transmissão de efluentes gasosos, ruídos e poeiras, a precipitação pluviométrica é fator
determinante na disseminação dos efluentes líquidos.
Quanto aos aspectos socioeconômicos, a atitude do público quanto à atividade mineradora é parcialmente
condicionada pela situação econômica da região e pela natureza das comunidades existentes no entorno.
Destacam-se, nesse quesito, a criação de empregos, a circulação de riquezas, o incremento do comércio
e serviços e o fortalecimento do setor público mediante a arrecadação de impostos, entre outros fatores,
bem como as alternativas econômicas (ou, mais comumente, a falta delas) após a exaustão das jazidas.
No que tange ao método de lavra utilizado, trata-se de um dos principais fatores determinantes da
natureza e extensão do impacto ambiental. A maioria dos bens minerais é lavrada por métodos tradicionais
a céu aberto (em superfície), mas alguns o são em lavras subterrâneas (em subsuperfície). Os impactos
mais significativos costumam ocorrer na lavra a céu aberto, em que se tem maior aproveitamento do
corpo mineral, gerando grande quantidade de estéril (material sem minério, ou com teor deste abaixo
do economicamente viável, mas que precisa ser retirado para permitir o acesso ao minério), poeira em
suspensão, vibrações e poluição das águas, caso não sejam adotadas técnicas de controle adequadas.
15
VIANA, 2007.
132 Valkiria Silva Santos Martins
Destarte, o minerador não pode perder de vista a sustentabilidade
da sua atividade, cumprindo todos os preceitos necessários ao aproveitamento dos recursos naturais que movimenta.
Vê-se, pois, que o desenvolvimento sustentável deve ser sempre o
foco dos empreendedores. A atividade minerária, aqui em análise, deve
ter como norte o Princípio Constitucional da Sustentabilidade, que estatui: (i) o reconhecimento da titularidade de direitos desta e das futuras
gerações; (ii) a imposição de assumirmos a ligação de todos os seres, acima
das coisas, e inter-relação de tudo;16 e, por fim, (iii) o dever de sopesar os be­
nefícios, os custos diretos e as externalidades, ao lado dos custos de oportunidade,
antes de cada empreendimento.17
Reforça Freitas18 que do princípio constitucional em análise nasce:
A obrigação de sopesar, de maneira fundada, os custos e benefícios, diretos e
indiretos (as externalidades) de todos os projetos e, finalmente, a obrigação de
intervir, sem a costumeira omissão desproporcional, no sentido de promover
a justiça ambiental, protegendo, com igual seriedade, as gerações presentes
e futuras, ambas titulares de direitos fundamenta.
E nos dá um conceito do princípio:
Trata-se do princípio constitucional que determina, com eficácia direta e
imediata, a responsabilidade do Estado e da sociedade pela concretização
solidária do desenvolvimento material e imaterial, socialmente inclusivo,
durável e equânime, ambientalmente limpo, inovador, ético e eficiente, no
intuito de assegurar, preferencialmente, de modo preventivo de precavido,
no presente e no futuro, o direito ao bem-estar.
Afinal, as gerações, presentes e futuras, possuem o direito fundamental, oponível ao Estado e a terceiros, de usufruir de um ambiente
limpo e de uma vida digna.
Sustentabilidade é, pois, o que se propõe ao minerador. Não como
um princípio abstrato ou de observância protelável. Mas como um dever que
vincula o minerador plenamente e se mostra inconciliável com o reiterado
descumprimento da função socioambiental de bens e serviços.19
FREITAS, 2012.
Idem.
18
Idem.
19
Idem.
16
17
Autorização Ambiental de Funcionamento e lavras ilegais de minério 133
3 Legislação minerária pertinente ao tema
Antes de adentramos propriamente ao tema deste artigo, é mister
uma breve explanação sobre a legislação minerária em conexão com a
temática do licenciamento ambiental.
De início, esclarecemos que o Direito Minerário visa o estudo das
normas e procedimentos destinados a permitir a transformação do recurso mineral em riqueza e conciliar os direitos e deveres do minerador,
do Estado e os do superficiário (proprietário do solo) com os princípios
do desenvolvimento sustentável.
Segundo William Freire,20 a matéria possui princípios próprios que
direcionam toda a exegese desse Direito Positivo Especial:
a) Princípio do uso prioritário; b) Princípio do desenvolvimento no interesse
nacional; c) Princípio do interesse público na transformação do recurso
mineral em riqueza; e) Princípio da predominância do interesse público sobre
o particular; f) Princípio da compatibilização da exploração mineral com
os direitos dos superficiário; g) Princípio da compatibilização da atividade
mineral com desenvolvimento socioambiental.
Em verdade, os recursos minerais, por princípio constitucional,
são propriedade distinta do solo e pertencem à União, devendo a sua
exploração prejudicar minimamente o meio ambiente.
A Constituição da República de 1988 trouxe à luz todo um arcabouço jurídico inovador sobre a matéria, privilegiando o Direito Minerário
e o Ambiental, que devem ser interpretados interligados, como se faz
com os seguintes artigos: art. 20, IX; 21, XXIII, §1º; 22, XII; 24, VI,
VII e VIII; 170, VI; 176, §1º; 225, §1º, I, II, III, IV, V, VI e VII e §§2º,
3º, 4º, 5º e 6º.
Entrementes, atendendo ao disposto no art. 22, XII, da CF/88,
existe uma extensa legislação específica, minerária e ambiental, com diversas leis federais esparsas. A previsão de reparação do dano ambiental
decorrente de atividades de mineração está prevista na Lei nº 7.805/89.
Já a Lei nº 8.876/94 concede ao Departamento Nacional de Produção
Mineral (DNPM) a atribuição de fiscalizar, em conjunto com as autoridades ambientais, o controle ambiental dessas atividades.
20
FREIRE, 2005.
134 Valkiria Silva Santos Martins
A legislação infraconstitucional, neste ponto, estabelece diversos
requisitos e exigências prévias a serem cumpridas pelo minerador, como,
por exemplo, licença ambiental e demonstrações de capacidade técnica
e econômica. Tudo isso para que a potencial mina atenda à sua função
social, no interesse público.
O primeiro passo a ser dado pelo minerador, de acordo com o
art. 11 do Código Mineral, é fazer o pedido da área por meio de requerimento protocolizado junto ao DNPM, o que lhe outorga, se deferido,
o “direito de prioridade”. Segue-se uma série de atos administrativos
sucessivos, relacionados e dependentes entre si, objetivando uma finalidade única, que é possibilitar a transformação do recurso mineral em
riqueza, trazendo para a sociedade todos os benefícios consequentes.
Tais atos administrativos ensejam a publicação do Alvará de Pes­
quisa, instrumento que autoriza a mineradora a realizar trabalhos de
pesquisa. Trata-se de um título intermediário que autoriza o empreendedor a pesquisar determinada substância mineral, de modo a definir
sua quantidade, qualidade e distribuição espacial.
Depois de aprovado o Relatório Final de Pesquisa, pode o minerador requerer a expedição de Guia de Utilização, que o autoriza a extrair,
em caráter excepcional, determinada quantidade de minério, nos termos
do art. 22, §2º, do Código de Minas.21
Uma vez procedida a análise do aproveitamento da jazida, ou seja,
submetido o minerador ao regime de autorização, deve a parte interessada submeter-se às regras do regime de concessão de lavra, previstas no
art. 2º do atual Código de Minas, obtendo, por fim, a Portaria de Lavra.
Noutra banda, a legislação minerária está em conexão com a
ambiental. Após aprovação do Relatório Final de Pesquisa pelo DNPM,
deverá o minerador obter a LP, que não autoriza a instalação de equipamentos e, muito menos, a operação do empreendimento potencialmente
poluidor. Sucessivamente, tendo o Plano de Aproveitamento Econômico
aprovado, pela autarquia, em mãos, deverá requerer a LI, que também
21
Art. 22. A autorização de pesquisa será conferida nas seguintes condições, além das demais constantes
deste Código: [...]
§2º É admitida, em caráter excepcional, a extração de substâncias minerais em área titulada, antes da
outorga da concessão de lavra, mediante prévia autorização do DNPM, observada a legislação ambiental
pertinente (Redação dada pela Lei nº 9.314, de 1996).
Autorização Ambiental de Funcionamento e lavras ilegais de minério 135
não autoriza a extração de minério. Por fim, somente com a Portaria de
Lavra em mãos, poderá o minerador obter junto ao órgão ambiental a
LO e, assim, extrair.
4 Licenciamento ambiental para lavra de minério
A Constituição Federal, ao outorgar especial proteção ao meio
ambiente, institui como obrigação do Poder Público a normatização e
fiscalização, e, daqueles que exploram os recursos minerais, a observação
fiel do regramento sobre a matéria.
Neste passo, o art. 24 da CF/88 estabeleceu a competência legislativa concorrente da União, dos Estados e do Distrito Federal (municípios excluídos, a princípio) para, entre outros temas, “proteção do meio
ambiente e controle da poluição” (inciso VI, in fine). Já nos parágrafos
desse artigo, estatuiu que a competência da União para expedir normas
gerais, o que não exclui a competência suplementar (se houver norma
federal) ou plena (na ausência dessa norma) dos Estados e, ainda, que a
superveniência de lei federal sobre normas gerais suspende no que lhe
for contrário a eficácia da lei estadual.
Os instrumentos normativos federais, que passamos a declinar, têm
supedâneo nas normas constitucionais que tratam da matéria. Como
exposto, a Carta Magna vigente sublinha o dever imposto aos poderes
públicos e à coletividade de defesa e preservação do meio ambiente e a
obrigação de recuperar o meio ambiente daquele que o degradar.
Com efeito, houve por bem a União em criar a Política Nacional
do Meio Ambiente, por meio da Lei nº 6.938/81, materializando o prin­
cípio da avaliação de impactos ambientais por meio do licencia­mento
ambiental. O art. 10 da referida Lei Federal,22 levando aqui em consi­
deração as modificações trazidas pela Lei Complementar nº 140/2011,
preceitua que todas as atividades, que podem causar danos ao meio
22
Art. 10. A construção, instalação, ampliação e funcionamento de estabelecimentos e atividades utilizadores
de recursos ambientais, efetiva ou potencialmente poluidores ou capazes, sob qualquer forma, de
causar degradação ambiental dependerão de prévio licenciamento ambiental. (Redação dada pela Lei
Complementar nº 140, de 2011)
§1º Os pedidos de licenciamento, sua renovação e a respectiva concessão serão publicados no jornal oficial,
bem como em periódico regional ou local de grande circulação, ou em meio eletrônico de comu­ni­cação
mantido pelo órgão ambiental competente. (Redação dada pela Lei Complementar nº 140, de 2011)
§2º, §3º e §4º revogados pela Lei Complementar nº 140, de 2011.
136 Valkiria Silva Santos Martins
ambiente, independentemente de seu potencial poluidor e de seu porte,
dependerão de prévio licenciamento ambiental, instrumento capaz de
iden­tificar possíveis impactos e determinar as restrições e medidas
de con­trole ambiental necessárias.
Acrescente-se, da simples leitura do art. 3º, incisos II e III, alíneas,23
da Lei nº 6.938/81, combinada com leigos conhecimentos sobre a atividade minerária, que é clarividente a degradação da qualidade ambiental
e poluição do meio ambiente decorrentes, direta e/ou indiretamente, da
extração de minério.
Nessa linha, a concessão/autorização para a lavra de recursos minerais, cumpre registrar, encontra-se intimamente ligada à preservação
do meio ambiente.
Acrescente-se, como já ilustrado no tópico anterior, que a permissão
ou concessão de lavra, nos termos da Lei nº 7.805/89, deve ser outorgada
pelo Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM), e, ademais,
dependerá de prévio licenciamento ambiental, a ser concedido pelos
órgãos ambientais, estadual e municipal, competentes (arts. 3º e 16).24
Assim, restou ao Conselho Nacional de Meio Ambiente (CONAMA),
órgão criado pela Política Nacional de Meio Ambiente, normatizar temas referentes ao licenciamento ambiental, da Avaliação de Impacto
Ambiental (AIA) e do Estudo de Impacto Ambiental (EIA) e seu relatório
(RIMA). Tratam da matéria, entre outras, as Resoluções nºs 001, de 1986,
e 237, de 1997, ambas do CONAMA.25
Art. 3º Para os fins previstos nesta Lei, entende-se por:
I - meio ambiente, o conjunto de condições, leis, influências e interações de ordem física, química e
biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas;
II - degradação da qualidade ambiental, a alteração adversa das características do meio ambiente;
III - poluição, a degradação da qualidade ambiental resultante de atividades que direta ou indiretamente:
a) prejudiquem a saúde, a segurança e o bem-estar da população;
b) criem condições adversas às atividades sociais e econômicas;
c) afetem desfavoravelmente a biota;
d) afetem as condições estéticas ou sanitárias do meio ambiente;
e) lancem matérias ou energia em desacordo com os padrões ambientais estabelecidos;
IV - poluidor, a pessoa física ou jurídica, de direito público ou privado, responsável, direta ou indiretamente,
por atividade causadora de degradação ambiental;
V - recursos ambientais: a atmosfera, as águas interiores, superficiais e subterrâneas, os estuários, o mar
territorial, o solo, o subsolo, os elementos da biosfera, a fauna e a flora. (Redação dada pela Lei nº 7.804,
de 1989).
24
Art. 3º A outorga da permissão de lavra garimpeira depende de prévio licenciamento ambiental concedido
pelo órgão ambiental competente. [...]
Art. 16. A concessão de lavras depende de prévio licenciamento do órgão ambiental competente.
25
Além das Resoluções citadas no corpo deste trabalho, sobre mineração, podemos destacar:
- Resolução nº 08/88, que explicita a necessidade de licenciamento ambiental para certas atividades de
extração mineral;
23
Autorização Ambiental de Funcionamento e lavras ilegais de minério 137
A Resolução nº 001/86,26 além de definir o que deve ser considerado
impacto ambiental, estipulou o rol de atividades modificadoras do meio
ambiente,27 sujeitas ao licenciamento pelo órgão estadual integrante do
SISNAMA, mediante a elaboração de EIA/RIMA, mas sem fazer referência expressa à significância do impacto.
Já o Decreto nº 99.274, de 1990, em seu art. 19,28 com teor
repetido no art. 8º da Resolução CONAMA nº 237/97, define que, para
- Resolução nº 09/90, que trata do licenciamento ambiental de extração mineral de todas as classes,
exceto a II, e exige, entre outros pontos, a apresentação de Plano de Controle Ambiental (PCA) no ato
de requerimento da LI;
- Resolução nº 10/90, que dispõe sobre o licenciamento ambiental de extração mineral da classe II (materiais
de uso na construção civil), também exigindo o PCA;
- Resolução nº 378/06, que define os empreendimentos potencialmente causadores de impacto ambiental
nacional ou regional para fins do disposto no inciso III, §1º, art. 19 da Lei nº 4.771/65 (Código Florestal).
26
Art. 1º Para efeito desta Resolução, considera-se impacto ambiental qualquer alteração das propriedades
físicas, químicas e biológicas do meio ambiente, causada por qualquer forma de matéria ou energia
resultante das atividades humanas que, direta ou indiretamente, afetam:
I - a saúde, a segurança e o bem-estar da população;
II - as atividades sociais e econômicas;
III - a biota;
IV - as condições estéticas e sanitárias do meio ambiente;
V - a qualidade dos recursos ambientais.
Art. 2º Dependerá de elaboração de estudo de impacto ambiental e respectivo relatório de impacto
ambiental – RIMA, a serem submetidos à aprovação do órgão estadual competente, e do IBAMA e1n
caráter supletivo, o licenciamento de atividades modificadoras do meio ambiente, tais como: [...]
VIII - Extração de combustível fóssil (petróleo, xisto, carvão);
IX - Extração de minério, inclusive os da classe II, definidas no Código de Mineração; [...].
27
Maurício Boratto Viana (2007) complementa que parte da doutrina entende que todas as atividades e
empreendimentos listados nas Resoluções CONAMA nºs 001/86 (art. 2º) e 237/97 (art. 2º, §1º e Anexo 1)
estão sujeitos, respectivamente, a EIA/RIMA e a licenciamento ambiental, podendo outros ser acrescidos.
Em outras palavras, as listagens seriam obrigatórias, embora não exaustivas.
Outra parte da doutrina, minoritária, acredita que as listagens são só exemplificativas, ou seja, algumas
atividades ou empreendimentos poderiam ser delas excluídos, desde que assim definido pelo órgão
ambiental. O próprio §2º do art. 2º da Resolução nº 237/97 estatui que “caberá ao órgão ambiental
competente definir os critérios de exigibilidade, o detalhamento e a complementação do Anexo 1,
levando em consideração as especificidades, os riscos ambientais, o porte e outras características do
empreendimento ou atividade”.
28
Art. 19. O Poder Público, no exercício de sua competência de controle, expedirá as seguintes licenças:
I - Licença Prévia (LP), na fase preliminar do planejamento de atividade, contendo requisitos básicos a serem
atendidos nas fases de localização, instalação e operação, observados os planos municipais, estaduais
ou federais de uso do solo;
II - Licença de Instalação (LI), autorizando o início da implantação, de acordo com as especificações
constantes do Projeto Executivo aprovado; e
III - Licença de Operação (LO), autorizando, após as verificações necessárias, o início da atividade licenciada
e o funcionamento de seus equipamentos de controle de poluição, de acordo com o previsto nas Licenças
Prévia e de Instalação.
1º Os prazos para a concessão das licenças serão fixados pelo Conama, observada a natureza técnica
da atividade.
2º Nos casos previstos em resolução do Conama, o licenciamento de que trata este artigo dependerá de
homologação do Ibama.
3º Iniciadas as atividades de implantação e operação, antes da expedição das respectivas licenças, os
dirigentes dos Órgãos Setoriais do Ibama deverão, sob pena de responsabilidade funcional, comunicar
o fato às entidades financiadoras dessas atividades, sem prejuízo da imposição de penalidades, medidas
administrativas de interdição, judiciais, de embargo, e outras providências cautelares.
4º O licenciamento dos estabelecimentos destinados a produzir materiais nucleares ou a utilizar a energia
nuclear e suas aplicações, competirá à Comissão Nacional de Energia Nuclear (CENEN), mediante parecer
do Ibama, ouvidos os órgãos de controle ambiental estaduais ou municipais.
138 Valkiria Silva Santos Martins
ser titular de concessão de lavra, deverá o minerador obter, junto aos
órgãos ambientais competentes, três espécies de licenças: a Licença Am­
bien­­tal Prévia (LP), a Licença Ambiental de Instalação (LI) e a Licença
Ambiental de Operação (LO).
Desta feita, tendo em conta as normas federais, os Estados poderiam ser mais exigentes — estabelecendo outras condicionantes, por
exemplo —, mas não poderiam exigir menos.
Nos últimos anos, contudo, vários Estados brasileiros criaram a
modalidade da autorização ambiental, geralmente para atividades não
sujeitas a LP/LI/LO ou a EIA/RIMA, ou ainda para atividades temporárias, de pequeno porte ou de impacto ambiental reduzido. Isso também
ocorreu em Minas Gerais, em 2004, através da Deliberação Normativa
COPAM nº 74/2004, com a criação da Autorização Ambiental de
Funcionamento (AAF), como resposta ao contínuo aumento da demanda
por licenciamento.
5 Autorização Ambiental de Funcionamento como instituto
diferenciado do licenciamento ambiental
Após citar os vários conflitos existentes entre as legislações estaduais
e as normas federais supracitadas, Viana29 opina:
Quanto à existência de autorização ambiental em diversas normas estaduais,
a discussão é mais complexa. A despeito de entendimentos contrários, o ins­
trumento do licenciamento ambiental, no Brasil, foi direcionado à outorga de
licenças, ou seja, atos administrativos vinculados e definitivos, declaratórios
de direito preexistente e geradores de direito subjetivo, no âmbito do seu
prazo de validade. É o que consta, implícita ou expressamente, nas principais
normas federais sobre licenciamento ambiental (Lei 6.938/81, Decreto
99.274/90 e Resoluções CONAMA 001/86 e 237/97). [...]
A despeito disso, vários estados (AP, BA, DF, ES, MS, MG, PA, PE, RR, SE)
criaram a modalidade da autorização ambiental, com caráter discricionário
e precário, constitutivo de direitos e não gerador de direitos subjetivos, para
atividades não sujeitas a LP/LI/LO ou a EIA/RIMA, ou ainda para atividades
temporárias, de pequeno porte ou de impacto ambiental reduzido. Tal
autorização tem, em geral, natureza declaratória, e às vezes independe de
fiscalização por parte do órgão ambiental.
29
SOUZA; CARNEIRO, 2009, p. 334.
Autorização Ambiental de Funcionamento e lavras ilegais de minério 139
Em síntese, para os fins de cumprir as normas federais, qualquer
empreendimento potencialmente poluidor ou degradador do meio ambiente sujeitar-se-ia, em tese, a licenciamento ambiental, com a obtenção
sucessiva de LP, LI e LO. Mesmo aquele que não cause impacto ambiental
significativo estaria sujeito a licenciamento, embora dispensasse a elaboração de EIA/RIMA, substituído por outro estudo mais simplificado
ou específico.
Entretanto, como dito, em Minas Gerais, com a Deliberação Nor­
mativa30 COPAM nº 74/2004, há uma flexibilização até mesmo da necessi­
dade de licenciamento ambiental, mediante a introdução da moda­lidade
de autorização ambiental.
A DN COPAM nº 74/2004 é a norma que regulamenta o licenciamento ambiental no Estado de Minas Gerais e estabelece critérios para
classificação dos empreendimentos e atividade em conformidade com
o porte e potencial poluidor.
Segundo a norma — por nós aqui questionada quanto a aspectos
de constitucionalidade e legalidade de alguns de seus pontos —, a regularidade ambiental de empreendimentos enquadrados nas classes 1
e 2,31 perfaz-se com a obtenção da denominada Autorização Ambiental
de Funcionamento (AAF).
Esclarecemos que as Deliberações Normativas do COPAM são normas jurídicas regulamentares emanadas
do Conselho Estadual de Política Ambiental, órgão a quem, em Minas Gerais, compete determinar os
conteúdos da política de proteção ao meio ambiente, nos termos do art. 3º da Lei Estadual nº 12.585/97.
31
Art. 2º Os empreendimentos e atividades listados no Anexo Único desta Deliberação Normativa,
enquadrados nas classes 1 e 2, considerados de impacto ambiental não significativo, ficam dispensados
do processo de licenciamento ambiental no nível estadual, mas sujeitos obrigatoriamente à Autorização
Ambiental de Funcionamento – AAF, pelo órgão ambiental estadual competente, mediante cadastro
iniciado pelo requerente junto à Superintendência Regional de Meio Ambiente e Desenvolvimento
Sustentável – SUPRAM competente, acompanhado de Termo de Responsabilidade, assinado pelo titular do
empreendimento e de Anotação de Responsabilidade Técnica ou equivalente do profissional responsável.
§1º A autorização ambiental de funcionamento somente será efetivada se comprovada a regularidade
face às exigências de autorização para intervenção ambiental/florestal, através da emissão do Documento
Autorizativo para Intervenção Ambiental – DAIA, e de Outorga de Direito de Uso de Recursos Hídricos,
através da emissão da outorga.
§2º As Autorizações Ambientais de Funcionamento dos empreendimentos constituídos através do
Programa Minas Fácil, regulamentado pelo Decreto 44.106, de 14 de setembro de 2005 localizados em
áreas urbanas e que não importem em supressão de vegetação, intervenção em área de preservação
permanente, regularização de reserva legal ou que não dependam de intervenção em recurso hídrico,
poderão ser emitidas por autenticação eletrônica, na forma definida pelo COPAM.
§3º A validade das Autorizações Ambientais de Funcionamento de que trata o parágrafo anterior estará
condicionada à apresentação e validação, pelo titular do empreendimento ou seu representante legal,
do termo de responsabilidade e anotação de responsabilidade técnica no prazo de 30 dias à SUPRAM de
atuação do empreendimento, mediante protocolo e recibo de entrega.
§4º A não apresentação do termo de responsabilidade e da anotação de responsabilidade técnica no prazo
do parágrafo anterior acarretará o imediato cancelamento da AAF expedida eletronicamente e sujeitará
o responsável às sanções cabíveis.
§5º Os órgãos ambientais competentes procederão à verificação de conformidade legal nos empre­en­
dimentos a que se refere o caput deste artigo, conforme critérios definidos pelo COPAM.
30
140 Valkiria Silva Santos Martins
A DN nº 74/2004 — violando até mesmo a própria normatização
estadual,32 de hierarquia imediatamente superior, mas, mormente, colocando por terra a legislação federal já citada — exigiu para a concessão da
AAF, tão somente: a) cadastro iniciado através de Formulário Integrado
de Caracterização do Empreendimento, preenchido pelo requerente;
b) Termo de Responsabilidade, assinado pelo titular do empreendimento,
e Anotação de Responsabilidade Técnica, ou equivalente, do profissional
responsável; e c) Autorização Ambiental para Exploração Florestal (APEF)
e de Outorga de Direito de Uso de Recursos Hídricos.
Trata-se, a Autorização Ambiental de Funcionamento (AAF), de
novo sistema de controle ambiental,33 podendo ser entendida como um
ato administrativo que autoriza o funcionamento de atividades cujos
impactos ambientais não são, por definição, significativos para pôr em
marcha processos de licenciamento junto aos órgãos estaduais. Exige-se
que o responsável legal pelo empreendimento assuma, formalmente, a
responsabilidade por eventuais danos ao meio ambiente (via Termo de
Responsabilidade) e que o profissional legalmente habilitado, às expensas desse empreendedor, promova prévia avaliação ambiental e defina o
sistema de controle adequado, atestando a regularidade do empreendimento com as normas ambientais, tudo formalizado pela Anotação de
Responsabilidade Técnica (ART).
Se os impactos ambientais não são significativos, assim qualificados
pelos integrantes do SISNAMA por meio de seus respectivos atos
§6º O termo de responsabilidade de que trata o caput deste artigo deverá expressar apenas as questões
da legislação ambiental pertinente à autorização de funcionamento em foco.
§7º O órgão ambiental fará a convocação do empreendedor nos casos em que considerar necessário o
licenciamento ambiental de empreendimentos e atividades enquadrados nas classes 1 e 2.
§8º Os prazos de vigência da AAF de que trata o caput deste artigo serão definidos pelo COPAM.
32
Em Minas Gerais, a Lei Estadual nº 7.772/80, em seu art. 8º, prevê os instrumentos do Licenciamento
Ambiental e da Autorização Ambiental de Funcionamento como ferramentas para a prevenção e controle
de degradações ambientais.
Por seu turno, o Decreto nº 44.844/2008 estabelece que compete ao COPAM estabelecer, por meio de
Deliberação Normativa, os critérios para classificação dos empreendimentos ou atividades efetiva ou
potencialmente poluidores ou degradadores do meio ambiente, especificando quais serão passíveis de
Licenciamento Ambiental ou de Autorização Ambiental de Funcionamento – AAF (art. 3º).
Ainda de acordo com o mesmo Decreto, entende-se por formalização do processo de Licenciamento
Ambiental e de AAF a apresentação do respectivo requerimento, acompanhado dos documentos, projetos
e estudos ambientais exigidos pelo órgão ambiental competente (art. 8º).
33
Segundo o Parecer AAF DINOP-MG, da lavra do Dr. Augusto Henrique Lio Horta – DINOP/SEMAD, a AAF
surgiu da “ponderação dos princípios constitucionais da proporcionalidade e da avaliação de impactos
ambientais, veio de ser a mudança estrutural de que necessitava o sistema ambiental mineiro para manterse credível e funcional, duas condições sine qua o controle das fontes de poluição promovidas pelo Estado
não pode ser exercido eficiente”.
Autorização Ambiental de Funcionamento e lavras ilegais de minério 141
normativos, não há obrigatoriedade de licenciamento ambiental e, via
de consequência, de exigência de licença ambiental a que se refere o
art. 12 da Lei Federal nº 6.938/81. O que se há de exigir, em Minas Gerais,
é a comprovação da regularidade ambiental, o que se faz com a apre­sen­
tação da Autorização Ambiental de Funcionamento, único ato exigível
nessa hipótese (evidentemente, se o município exigir o licenciamento
am­biental, os dois atos autorizativos serão necessários e suficientes à
com­provação da regularidade).
Com efeito, a AAF não pode ser considerada uma forma de licen­
ciamento ambiental, o que resta ainda mais evidente nos casos de empreendimentos minerários, eis que não possibilita a avaliação do status quo
ante e a posteriori pela Administração, razão pela qual não se faz possível
a regular recuperação ambiental.
6 Procedimento simplificado na contramão do desenvolvimento
sustentável
O processo de licenciamento ambiental, apesar de moroso e trabalhoso, sempre permitiu uma discussão em alto nível sobre o controle
ambiental das atividades produtivas, com transparência, participação
dos diversos setores interessados e o devido controle social.
No caso de licenciamento ambiental, a análise técnica do processo é realizada
pelo exame da documentação (RCA/PCA ou EIA/RIMA, seguido do PCA)
pela equipe técnica e pela vistoria ao empreendimento. Em algumas situações
previstas em norma, são realizadas audiências públicas para conhecimento e
participação das comunidades, bem como solicitadas informações complementares aos documentos apresentados.
Depois de vistoriado o empreendimento e analisadas todas as informações
do processo, é emitido parecer técnico, composto pelos seguintes itens: resumo, introdução, discussão dos estudos apresentados pelo empreendedor,
contemplando a caracterização do empreendimento, avaliação do diagnóstico
ambiental, impactos identificados e medidas mitigadoras, conclusões e propostas de condicionantes para a concessão da licença. Esse parecer é revisto
e aprovado pelo gerente e diretor da área técnica e encaminhado para a
Procuradoria Jurídica. Nessa etapa, com o parecer jurídico, o processo de
licen­cia­mento é concluído e encaminhado para julgamento pelas câmaras
técnicas do COPAM.34
34
VIANA, 2007.
142 Valkiria Silva Santos Martins
Noutro passo, não há no procedimento simplificado de emissão
da AAF a apresentação, pelo empreendedor, de qualquer Avaliação
de Impacto Ambiental (AIA),35 pelo que não será possível averiguar a
extensão dos danos causados. Paira-nos, assim, algumas dúvidas:
Mas como explorar os recursos minerais e preservar o meio ambiente ao
mesmo tempo?
Considerando-se que a exploração de uma jazida de minério provoca impacto ambiental, extrair matéria básica do meio ambiente para produção
de bens e serviços, implica estabelecer qual é o limite para o crescimento e
o desenvolvimento sustentável, e a partir de então considerar essa atividade
como não abusiva e o dano como reparável.36
Ocorre que o limite para o crescimento é estabelecido pelos estudos
prévios, necessários ao licenciamento ambiental,37 que representa um
importante avanço para o desenvolvimento sustentável e constitui um bom
A “AIA, em tese, pode ocorrer dentro ou fora do processo administrativo de licenciamento ambiental,
a que todas as atividades efetiva ou potencialmente degradadoras estão sujeitas, enquanto que o EIA/
RIMA só ocorre no âmbito dele. Todavia, como o Decreto 88.351/83, que regulamentou a Lei 6.938/81 e
foi posteriormente revogado pelo Decreto 99.247/90, vinculou a AIA ao procedimento de licenciamento
ambiental, ela acabou, na prática, se tornando uma etapa deste, uma ferramenta que fornece subsídios
técnicos para a concessão ou não da licença. Mas nos casos de significativa degradação ambiental, a teor
do art. 225, §2º, inciso IV, da CF, é exigido EIA/RIMA por ocasião do licenciamento ambiental.
Como conclusão, o licenciamento ambiental é, no âmbito do SISNAMA, o principal instrumento de
controle ambiental de empreendimentos e atividades potencialmente poluidores ou degradadores do meio
ambiente. Já a AIA, além de constituir um instrumento do processo de tomada de decisão, dentro ou fora
do processo de licenciamento, acaba sendo mais utilizada como etapa deste, sendo o EIA/RIMA apenas um
de seus elementos, talvez o mais importante, exigido nos casos de impacto significativo” (VIANA, 2007).
36
SOARES, 2011.
37
“Ação Direta de Inconstitucionalidade. Art. 182, §3º, da Constituição do Estado de Santa Catarina. Estudo
de im­pacto ambiental. Contrariedade ao art. 225, §1º, IV, da Carta da República. A norma impugnada,
ao dis­pen­sar a elaboração de estudo prévio de impacto ambiental no caso de áreas de florestamento
ou re­flo­res­tamento para fins empresariais, cria exceção incompatível com o disposto no mencionado
inciso IV do §1º do art. 225 da CF” (ADI nº 1.086, Rel. Min. Ilmar Galvão, j. 07.06.2001, Plenário, DJ,
10 ago. 2001).
“Projeto de Integração do Rio São Francisco com as Bacias Hidrográficas do Nordeste Setentrional. Periculum
in mora não evidenciado. [...] A licença de instalação levou em conta o fato de que as condicionantes
para a licença prévia estão sendo cumpridas, tendo o Ibama apresentado programas e planos relevantes
para o sucesso da obra, dos quais resultaram novas condicionantes para a validade da referida licença de
instalação. A correta execução do projeto depende, primordialmente, da efetiva fiscalização e empenho
do Estado para proteger o meio ambiente e as sociedades próximas. Havendo, tão somente, a construção
de canal passando dentro de terra indígena, sem evidência maior de que recursos naturais hídricos serão
utilizados, não há necessidade da autorização do Congresso Nacional. O meio ambiente não é incompatível
com projetos de desenvolvimento econômico e social que cuidem de preservá-lo como patrimônio da
humanidade. Com isso, pode-se afirmar que o meio ambiente pode ser palco para a promoção do
homem todo e de todos os homens. Se não é possível considerar o projeto como inviável do ponto de
vista ambiental, ausente nesta fase processual qualquer violação de norma constitucional ou legal, potente
para o deferimento da cautela pretendida, a opção por esse projeto escapa inteiramente do âmbito desta
Suprema Corte. Dizer sim ou não à transposição não compete ao Juiz, que se limita a examinar os aspectos
normativos, no caso, para proteger o meio ambiente” (ACO nº 876-MC-AgR, Rel. Min. Menezes Direito,
j. 19.12.2007, Plenário, DJE, 1º ago. 2008).
35
Autorização Ambiental de Funcionamento e lavras ilegais de minério 143
exemplo a ser seguido pelos países em desenvolvimento. Carneiro apud
Soares (2011)38 acrescenta:
[...] a utilização de recursos naturais por parte das atividades humanas
implica necessariamente um interferência, em graus e formas variadas, no
equilíbrio ecológico do meio ambiente, enquanto bem de uso comum da
inteira coletividade.
Ocorre, portanto, uma apropriação privada de um bem de titularidade difusa,
sem que a sociedade seja por isso devidamente compensada em razão dos
custos sócias (extenalidade negativas) [...].
Mas como a coletividade será compensada se, com a AAF, não
exis­tiu uma avaliação prévia in locu para prevenir quais os impactos ambientais da atividade? Para realização da atividade mineraria é impres­
cindível o estudo de impacto ambiental.39
É o princípio da prevenção que fundamenta a realização do plano
de recuperação anteriormente ao exercício da atividade, abrindo ensejo
para que o Poder Público determine as medidas possíveis de mitigação e
compensação dos impactos a serem gerados, ao mesmo tempo que permite que a reabilitação da área faça parte de todo o processo produtivo,
38
39
SOARES, 2011.
CONSTITUCIONAL. AÇÃO CIVIL PUBLICA. MEIO AMBIENTE. 1. A elaboração de estudo com relatório de
impacto ambiental constituem exigência constitucional para licenciamento de atividades potencialmente
causadoras de significativa degradação do meio-ambiente. 2. A Resolução 001/86 do Conama apenas
prescinde do eia/rima com relação a projetos urbanísticos de área inferior a 100 há. 3. O relatório de
viabilidade ambiental não é idôneo e suficiente para substituir o estudo de impacto ambiental e respectivo
relatório (TRF 5ª R.; AC nº 50495; Proc. 9405173820; CE; Segunda Turma; Rel. Juiz José Delgado; j.
02.08.1994; DJU, 23 set. 1994). No mesmo sentido o TJMG tem reconhecido a nulidade das autorizações
ambientais concedidas de tal forma. Ex.: Agravo nº 1.0092.07.011326-8/001.
RECURSO DE AGRAVO DE INSTRUMENTO. ATIVIDADE DE EXPLORAÇÃO DE MINERAÇÃO. POSSIBILIDADE
DE CAUSAR DANOS AO MEIO AMBIENTE. NECESSIDADE DE LICENCIAMENTO AMBIENTAL. PRINCÍPIO DA
PROTEÇÃO OU DA CAUTELA.
Tratando-se de exploração de atividade de mineração revelando-se passível de causar danos ao meio
ambiente deve-se obter licenciamento ambiental para seu exercício atendendo-se ao princípio da proteção
ou da cautela (TJMT; RAI 15646/2007; Alta Floresta; Segunda Câmara Cível; Rel. Des. Maria Helena
Gargaglione Póvoas; j. 12.12.2007; DJMT, 16.01.2008; p. 17).
AÇÃO CIVIL PÚBLICA. IRREGULARIDADE EM ATIVIDADE DE MINERAÇÃO. LICENCIAMENTO AMBIENTAL.
OBRIGATORIEDADE DE APRESENTAÇÃO DE ESTUDO DE IMPACTO AMBIENTAL E RELATÓRIO DE IMPACTO
SOBRE O MEIO AMBIENTE. Obrigatoriedade de apresentação de Estudo de Impacto Ambiental – EIA e
Relatório de Impacto sobre o Meio Ambiente – RIMA, para as atividades consideradas efetiva ou poten­
cialmente causadoras de significativa degradação ambiental (artigo 3º da Resolução CONAMA 237/97).
Os pedidos de licença ambiental de empreendimentos minerários devem ser protocolizados na CETESB
(artigo 4º, Resolução SMA nº 4/99) (TRF 3ª R.; AC nº 1062702; Proc. 2003.61.04.001816-9; SP; Rel. Juíza
Federal Conv. Mônica Nobre; DEJF, 25.03.2009; p. 929).
AGRAVO DE INSTRUMENTO. DECISÃO QUE LIBERA AS ATIVIDADES DE MINERAÇÃO POR 120 DIAS.
IMPOSSIBILIDADE. PRINCÍPIO DA PRECAUÇÃO. Perícia judicial não equivale ao eia/rima. procedimentos
diversos. agravo de instrumento desprovido (TRF 4ª R.; AI nº 2008.04.00.028193-0; SC; Terceira Turma;
Rel. Des. Federal Carlos Eduardo Thompson Flores Lenz; j. 21.10.2008; DEJF, 05.11.2008; p. 333).
144 Valkiria Silva Santos Martins
criando, para o agente econômico, a preocupação em produzir o menor
grau de prejuízo ao meio ambiente.
No caso das atividades minerárias, a AAF, embora contribua para
a regularização formal de empreendimentos de menor porte e potencial
poluidor, retirando-os da clandestinidade, promove, simultaneamente,
por não vir acompanhada de estudos de impactos e, mormente, de fiscalização, um retrocesso no controle ambiental efetivo dessas atividades.
Este é o entendimento da melhor doutrina:40
De fato, a AAF imprime maior agilidade na regularização ambiental do empreendedor por parte do órgão ambiental, mas ela exclui os estudos ambientais e a AIA. Assim, na ausência de maiores informações socioambientais, o
órgão ambiental corre o risco de autorizar empreendimentos, mesmo que de
menor porte e potencial poluidor, em locais ou condições inadequadas. Além
disso, ela não permite o estabelecimento de condicionantes, uma vez que,
entre outros documentos de natureza formal, a AAF compõe-se somente de
um termo de responsabilidade de que a empresa x, assessorada tecnicamente
pela consultoria y, está cumprindo as leis ambientais. Com isso, perde-se um
importante instrumento para resguardar tanto o meio ambiente local quanto
os interesses das comunidades vizinhas. [...]
Adicionalmente, a AAF não se encaixa no procedimento integrado estabelecido há anos pelos órgãos mineral (DNPM) e ambiental (FEAM/COPAM)
para os casos de licenciamento de atividades minerárias, a saber: de posse
do alvará ou do relatório de pesquisa mineral, a empresa efetua os estudos
ambientais (RCA/PCA ou EIA/RIMA) e pleiteia a LP junto ao órgão ambiental;
obtida esta, o DNPM manifesta-se dizendo que o Plano de Aproveitamento
Econômico – PAE é considerado satisfatório; com essa declaração, a empresa
obtém a LI junto ao órgão ambiental, se cumpridas as condicionantes estabelecidas na LP; de posse da LI, a empresa volta ao DNPM para requerer a
portaria de lavra; e só aí, após obtê-la, a empresa retorna ao órgão ambiental
para solicitar a LO.
Inexiste um procedimento que viabilize a fiscalização efetiva do
Estado, diferente do constatado no licenciamento ambiental. Durante
a etapa de licenciamento, há uma atuação constante do órgão ambiental junto
ao empreendedor, orientando-o, da mesma forma que a consultoria por ele contratada, quanto às medidas necessárias à adequação ambiental da atividade.41
40
41
VIANA, 2007.
Idem.
Autorização Ambiental de Funcionamento e lavras ilegais de minério 145
A “procedimentalização” da avaliação dos impactos ambientais
funciona como eficiente mecanismo da Administração para tutela preventiva da atividade, na medida em que propicia visibilidade ao processo
de formação da vontade administrativa e também há, nessa ocasião, certo
controle pela sociedade civil.
É comum entenderem como alcançada justiça somente quando for
eficiente, rápida e acessível. Entretanto, deve-se ter a preocupação em
não se incorrer em abusos de autoridade, de modo a submeter o cidadão
a decisões antidemocráticas.42 Afinal, a efetividade da cidadania, e do
próprio Estado Democrático de Direito, decorre do aceso ao processo,
instituição capaz de garantir o controle e fiscalização.
O discurso neoliberal de produtividade e rapidez afeta o fluxo
processual, com decisões que não primam pela adequação constitucional. Não há uma busca pela legitimidade que, por sua vez, ocorrerá,
somente, com o provimento partindo da análise das especificidades do
caso concreto.43
O que se deve defender é a existência de um tempo razoável para o
acertamento das questões controvertidas e para a atuação dos sujeitos de
maneira comparticipativa para formação dos provimentos, a significar que
devem ser evitadas dilações indevidas do processo. Estas, em sua maioria,
se referem a períodos prolongados de paralisia procedimental, nos quais não
se praticam atos no processo ou o são fora da previsão legal do tempo em que
devem ser realizados — etapas mortas do processo.44
A defesa cega da celeridade45 está indo de encontro ao Estado
Democrático de Direito, que exige decisões com qualidade e, quanto melhor o espaço de diálogo entre as partes, existindo maiores oportunidades
Dispensar ou restringir qualquer das garantias processuais constitucionais não é simplificar, deformalizar,
agilizar o procedimento, privilegiando a efetividade da tutela, sim favorecer o arbítrio em benefício do
desafogo dos juízes e tribunais (PASSOS apud DIAS, 2010). Os provimentos jamais poderão ser atos
isolados do órgão julgador, ditando ou criando direitos ao seu talante (DIAS, 2010, p. 38).
43
Aqui, citamos Menelick Carvalho Neto (1998): “no paradigma do Estado Democrático de Direito, é preciso
requerer do Judiciário que tome decisões que, ao retrabalharem construtivamente os princípios e as regras
do direito vigente, satisfaçam, a um só tempo, a exigência de dar curso e reforçar a crença tanto na lega­
lidade, entendida como segurança jurídica, como certeza do direito, quanto no sentimento de justiça
realizada, que deflui da adequabilidade da decisão às particularidades do caso concreto”.
44
DIAS, 2010, p. 158.
45
Não se pode, como preleciona Baracho (1999, p. 97-98), buscar a simplicidade e eficácia processuais
com sacrifício das garantias fundamentais do processo, com procura de sistema jurídico menos opressivo
e menos gravoso economicamente.
42
146 Valkiria Silva Santos Martins
de participação, melhores serão as decisões judiciais. Afinal, a decisão não
se qualifica como justa pelo critério da rapidez, e se a justiça não se apresentar
no processo não se poderá, também, na sentença.46
Em verdade, a busca pela celeridade nos processos de tomada de
decisão é uma tendência da sociedade moderna. Ocorre, contudo, que
a etapa anterior à obtenção da LP, quando são definidas a viabilidade
ambiental do empreendimento e sua alternativa técnica e locacional mais
adequada, é extremamente importante ao desenvolvimento sustentável.
O objetivo dos estudos ambientais, quaisquer que sejam eles, é subsidiar
a tomada de decisão quanto à viabilidade ambiental do empreendimento
e suas alternativas técnicas e locacionais.
Contrariando a busca atual pelo procedimento simplificado, Juarez
Freitas explica que é nítido que as estratégias sustentáveis são necessariamente aquelas de longa duração, não as governadas por impulsos reptilianos
ou pela compulsão da obsolescência programada.47 E, na linha de se frear
abusos ambientais na busca pelo desenvolvimento, o autor acrescenta
que a irracionalidade conducente à catástrofe nada mais é do que a resultante
dos desejos dilapidadores e da ilusão cheia de sofismas do crescimento material
ilimitado como solução.
Entrementes, independentemente de o procedimento simplificado
ir ou não de encontro ao crescimento econômico de uma atividade — a
mineração — pagadora de um volume alto de tributos, deve ser considerado insustentável o desenvolvimento que se tornar, em longo prazo,
negador da dignidade dos seres vivos em geral.48
Afinal, a sustentabilidade é que deve adjetivar, condicionar e infundir
as suas características ao desenvolvimento, nunca o contrário.49
7 AAF em atividades minerárias – Lavra ilegal por nulidade
Dito isso, conclui-se que a AAF não pode ser entendida como
instru­mento, legítimo, a autorizar ambientalmente o funcionamento de
ativi­dades minerárias.
GONÇALVES, 1992.
FREITAS, 2012.
48
Idem.
49
Idem.
46
47
Autorização Ambiental de Funcionamento e lavras ilegais de minério 147
Ao definir as classes de aplicação do instituto da AAF, o Estado de
Minas Gerais parte da premissa, equivocada, de que todas as atividades
minerárias definidas nas classes 1 e 2 não se enquadrariam na expressão
“efetiva e potencialmente poluidores”, bem como não seriam capazes,
sob qualquer forma, de causar “degradação ambiental”.
Ora, somente para se ter uma ideia, em Minas Gerais é possível
obter AAFs para autorizar extração de granito ornamental. A jazida é
constituída de blocos e blocos retirados das mais variadas camadas da terra, gerando um grande buraco e rejeito no entorno. Como pode esse empreendimento ser considerado de impacto ambiental não significativo?
Acrescente-se, a isso, o fato de que a classificação do empreendimento se baseia nas informações prestadas pelo minerador, ou seja, é
o empreendedor que classifica o porte de sua atividade. O minerador
preenche o Formulário de Caracterização do Empreendimento (FCE) e,
a partir dele, o órgão ambiental gera o Formulário de Orientação Básica
(FOB), no qual são listados os documentos necessários ao empreendedor
para formalização do processo simplificado de emissão da AAF.
Ademais, se não houve vistoria prévia, como pode o Estado garantir
que o local do empreendimento não se encontra em Área de Preservação
Permanente, por exemplo? Por que o minerador assim o garantiu?
Corroborando os motivos para não aceitarmos a AAF para atividades minerárias, mais uma vez, citamos informações colhidas no trabalho
de Viana:50
Outra prática corriqueiramente observada nos últimos anos, embora não
admitida oficialmente, é o falseamento da declaração, por parte do empre­
endedor, das corretas dimensões do empreendimento, com o objetivo de
que ele seja enquadrado em classe inferior à real, portanto com menores
exi­gências, se possível encaixando-se no âmbito da AAF e livrando-se do processo de licenciamento ambiental. Virou motivo de zombaria, por exemplo, o
fato de uma conhecida mineradora ter procurado ampliar uma das maiores
minas do estado mediante o requerimento de 19 AAFs em áreas contíguas,
com o deliberado objetivo de burlar as normas vigentes, o que foi denegado
pelo órgão ambiental. [...]
Outro exemplo de tentativa de burla à legislação, à qual o órgão ambiental
também deve estar atento, é a declaração por parte da empresa de que “só
50
SOUZA; CARNEIRO, 2009, p. 334.
148 Valkiria Silva Santos Martins
haverá lavra”, ou seja, de que não será implantada unidade de beneficiamento, o que levaria o empreendimento ao enquadramento numa classe
inferior. Acontece que o beneficiamento por vezes é efetuado em outro local, o que, é evidente, também deve ser considerado para a classificação do
empreendimento.
Álvaro Luiz Valery Mirra51 ensina:
Assim, o que se conclui é que as normas federais que disciplinam o estudo de
impacto ambiental — Lei nº 6938/1981, Decreto nº 99.274/1990 e Resolução
CONAMA 001/1986 do CONAMA — são, efetivamente, em sua integralidade
e em todos os seus aspectos, normas gerais e, por se mostrarem compatíveis
com a previsão constitucional do art. 24, §1º da Constituição de 1988, não
podem ser contrariadas pelas normas dos Estados e Municípios para o fim
de reduzir o grau de proteção do meio ambiente.
Desta feita, tendo as Resoluções CONAMA nºs 01/86, 09/90, 10/90
e 237/97 exigido, expressamente, o licenciamento ambiental clássico,
não pode o Estado de Minas Gerais se afastar do comando.
Afinal, o princípio da legalidade52 se impõe aos atos administrativos. Se a norma federal impõe a realização de Avaliação e/ou Estudo
Prévio de Impactos Ambientais, não é lícito ao Poder Público estadual
ou municipal, direta ou indiretamente, dispensá-los.
Exigir ou não a licença ambiental às atividades minerárias, longe
de ser mera faculdade do administrador, constitui dever inafastável53 para
regularização ambiental das atividades modificadoras do meio ambiente.
MIRRA, 2008.
Antônio Herman Benjamin diz que o princípio da legalidade, na órbita do licenciamento ambiental, significa
que o administrador, em hipótese alguma, pode se desviar da lei ou dos princípios especiais que regem a
matéria. É, na palavra de Renato Alessi, a “conformità allá legge”, ou seja, à lei ambiental. Consubstanciase na exigência de que o ato sirva à fieldade o objetivo legal. E esse objetivo legal é a proteção do meio
ambiente.
O princípio da obrigatoriedade reza que o EIA não se encontra, essencialmente, no âmbito do poder
discricionário da Administração. Ou seja, a aprovação do EIA é pressuposto indeclinável para o licenciamento
da atividade. A regra é a elaboração do EIA, a exceção sua dispensa.
53
Machado (2001) ressalta que não invade a autonomia dos Estados o estabelecimento dessas normas e
critérios pelo CONAMA, pois a proteção do meio ambiente é de competência concorrente da União e dos
Estados (art. 24, VI, da CF) e à União está reservado o estabelecimento de normas gerais (art. 24, §1º, da
CF). Citando Odete Medauar, o Prof. Paulo Affonso Leme Machado destaca que se a Constituição Federal
atribui competência à União para editar normas gerais sobre certa matéria, determina, em decorrência,
que tais disposições fixadas em lei federal hão de ser observadas pelos Estados e Municípios, sem que se
cogite, no caso, de qualquer interferência ou desrespeito à autonomia dos Estados-membros ou Municípios.
A intervenção do Poder Público estadual está integrada na matéria da Administração estadual. Entretanto,
a legislação federal — no que concerne às normas gerais — é obrigatória para todos os Estados...
Desconhecer ou não aplicar integralmente ou somente aplicar de forma parcial a legislação federal implica
para os Estados o dever de eles mesmos anularem a autorização concedida ou de pedir a tutela do Poder
Judiciário para decretar a anulação.
51
52
Autorização Ambiental de Funcionamento e lavras ilegais de minério 149
Assim, a DN COPAM nº 74/2004 não deve ser entendida como
válida. Afinal, considerando que a Administração Pública deverá ficar restrita
aos limites da lei, rigorosamente atrelada ao princípio da legalidade, um ato
administrativo normativo contrário à lei não terá validade.54
Ademais disso, em verdade, a inconstitucionalidade de tal diploma
transparece evidente, sendo de se destacar que sobre matéria símile já
decidiu o Supremo Tribunal Federal:
CONSTITUCIONAL. MEIO AMBIENTE. ESTUDO DE IMPACTO AM­
BIEN­TAL. EIA. CF art. 225, §1º, IV. Cabe ao Poder Público exigir, na forma
da lei, para instalação de obra ou atividade potencialmente causadora de significativa degradação do meio ambiente, estudo de impacto ambiental, a que
se dará publicidade. Considerando-se a importância do EIA como poderoso
instrumento preventivo ao dano ecológico e a consagração, pelo consti­tuinte,
da preservação do meio ambiente como valor e princípio, conclui-se que a
competência conferida ao Município para legislar em relação a esse valor
só será legítima se, no exercício dessa prerrogativa, esse ente estabe­lecer
normas capazes de aperfeiçoar a proteção à ecologia,nunca, de flexibilizá-la
ou abrandá-la. (STF, AgRg no RE nº 396.541-7/RS, Rel. Min. Carlos Veloso,
j. 14.06.2005)
AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. ARTIGO 182, §3º,
DA CONSTITUIÇÃO DO ESTADO DE SANTA CATARINA. ESTUDO DE
IMPACTO AMBIENTAL. CONTRAIEDADE AO ARTIGO 225, §1º, IV, DA
CARTA DA REPÚBLICA. A norma impugnada, ao dispensar a elaboração
de estudo prévio de impacto ambiental no caso de áreas de florestamento
ou reflorestamento para fins empresariais, cria exceção incompatível com
o disposto no mencionado inciso IV do §1º do artigo 225 da Constituição
Federal. Ação julgada procedente, para declarar a inconstitucionalidade do
dispositivo constitucional catarinense sob enfoque. (STF, ADI nº 1.086/SC,
Rel. Min. Ilmar Galvão, j. 10.08.2001)
Com efeito, urge a propositura de uma Ação Direta de Inconstitu­
cionalidade, em face do art. 2º da DN COPAM nº 74/2004, com pedido
de exclusão do anexo, não somente da extração de ferro,55 mas de todas
as atividades minerárias.
54
55
RIBEIRO, 2005.
O Ministério Público Estadual obteve o deferimento liminar na Ação Direta de Inconstitucionalidade, que,
sob o nº 0024.10.244.073-2, está em trâmite no Tribunal de Justiça de Minas Gerais, 2ª Fazenda Pública e
Autarquias de Belo Horizonte, e, ao julgar o recurso de Embargos de Declaração apresentado pelo Estado
de Minas Gerais contra a decisão liminar, o juízo esclareceu que a suspensão da DN COPAM nº 74/2004,
mormente seu artigo 2º, somente diz respeito às atividades de extração de beneficiamento de minério de
ferro, como pedido pelo MPMG.
150 Valkiria Silva Santos Martins
Destarte, não se entende como legítima a exigência de, somente,
AAF para regularização de atividades minerárias, pelo que o ato administrativo que concedeu o título de lavra, seja a Guia de Utilização ou a
Portaria de Lavra, deve, via de consequência, ser entendido como nulo.
É que, na exata determinação dos arts. 3º e 16 da Lei nº 7.805/89,
o licenciamento ambiental prévio é elemento essencial do ato administrativo de concessão de lavra. Com efeito, não há no ato de deferimento do
título de lavra o necessário pressuposto de validade, qual seja, a licença
ambiental prévia. Assim, nulo deve ser entendido o ato que expediu a
Guia de Utilização e/ou a Portaria de Lavra.
É que, de acordo com a melhor doutrina administrativista, o ato
administrativo deve ser compreendido a partir de toda emanação unilateral de vontade, juízo ou conhecimento, predisposta à produção de
efeitos jurídicos, expedida pelo Estado, no exercício de suas prerrogativas
e como parte interessada numa relação, estabelecida na conformidade ou
na compatibilidade da lei, sob o fundamento de cumprir as finalidades
assinaladas no sistema normativo (GASPARINI, 2004).
Presentes os elementos indispensáveis à formação dos atos administrativos e estando plenamente ajustados às exigências legais, temos
o ato perfeito e válido. O ato administrativo perfeito e válido é aquele
que reúne elementos essenciais para a sua formação, tem que possuir
todos os elementos que a lei exige, e dessa maneira se aperfeiçoa e passa
a existir no mundo jurídico.
Carvalho Filho (2009) afirma que para o ato administrativo ser
considerado válido ele deve ser legal, deve observar os requisitos de
validade para que possa produzir normalmente seus efeitos. E que sem
eles o ato não poderia ter a eficácia desejada pela Administração, sendo,
portanto, um ato nulo.56
Com efeito, não sendo a Autorização Ambiental de Funcionamento
um licenciamento ambiental e, ainda, devido à inexistência de estudos
de impactos, não sendo, inclusive, um instrumento constitucional para
56
Este tipo de ato teria que ter o vício de legalidade. Vício aqui pode ser no elemento competência, que
quer dizer a inadequação entre a conduta e as atribuições do agente. Pode ser no elemento finalidade,
que consiste na prática de ato diferenciado a interesses privados e não ao interesse público e também no
elemento vício, de forma que não atende o procedimento, o meio de exteriorização previsto em lei para
a apresentação do ato administrativo.
Autorização Ambiental de Funcionamento e lavras ilegais de minério 151
os fins de regularizar atividades ambientais, entendemos que não foi
cumprido pressuposto de validade do ato administrativo de expedição
do título de lavra.
Desta feita, devido à nulidade latente do título de lavra deferido
mediante apresentação de AAFs, existe doutrina57 suficiente a respaldar
como ilegais as lavras decorrentes do ato nulo. Há quem diga, inclusive,
que são inexistentes esses atos administrativos, quais sejam, os títulos
de lavra.
Entretanto, a bem da razoabilidade, como em Minas Gerais foram
expedidos centenas ou milhares de AAFs, para os fins de não causar um
caos econômico no setor, a nulidade deverá ser declarada. Para tanto,
urge ao DNPM publicar ato com esse fim, chamando os feitos à ordem,
e exigindo a regularização ambiental legítima.
Pode-se, também, ser declarada a nulidade do título de lavra mediante procedimentos judiciais, propostos por, por exemplo, Ministério
Público Federal, IBAMA, União ou qualquer pessoa prejudicada pela
lavra ilegal.
Nessa linha, as lavras amparadas com títulos precedidos de AAFs
podem e devem ser entendidas,58 judicialmente ou mediante declaração
de nulidade da autarquia, como lavras ilegais, por nulidade do título de
lavra expedido.
8 Conclusão
Finalizando este trabalho, é clarividente que os recursos naturais
são extremamente utilizados pelos atores do modelo industrial capitalista, que depende, sobremaneira, da utilização de produtos oriundos
da mineração.
Entretanto, sob o viés de uma cidadania ativista, concluímos pela
necessidade de se exigir o bom desenvolvimento das atividades minerárias. A significar que se faz mister o crescimento do setor aliado à justiça
ambiental.
Segundo Mello (2006), não há acordo doutrinário quanto à existência e caracterização dessas várias
figuras. Para alguns, no Direito Administrativo todo ato ilegítimo é nulo. Para outros, a distinção entre
nulos e anuláveis, usual no Direito Privado, aplica-se, com as devidas adaptações, ao Direito Administrativo.
Outros, ainda, acrescentam aos atos nulos e anuláveis os simplesmente irregulares, e há também quem
reconheça a categoria dos atos “inexistentes”.
58
O comando de nulidade, a bem da proporcionalidade e razoabilidade, deve ser constitutivo a nulidade
do Título de Lavra, pelo que eventuais extrações posteriores serão ilegais.
57
152 Valkiria Silva Santos Martins
É que, em verdade, praticamente toda atividade minerária é potencialmente poluidora, sendo frequente a ocorrência de modificações
significativas na qualidade do solo e na topografia da superfície local,
bem como a deposição de rejeitos sobre a vegetação. Logo, impactos
ambientais são inerentes a sua existência, o que exige, do Poder Público,
uma legislação eficiente e uma fiscalização rigorosa, objetivando fazer
cumprir os regramentos balizadores da proteção do meio ambiente.
Nessa linha, existe amplo normativo federal, com fundamento
cons­titucional, que define como necessários os estudos de impacto ambiental para atividades potencialmente poluidoras. Entretanto, a DN
COPAM nº 74/2004 possibilita o funcionamento, com base em mera AAF,
de uma série de atividades para as quais a normatização federal exige,
expressamente, a elaboração de EIA/RIMA e a sujeição ao processo de
licenciamento ambiental clássico.
A AAF objetivaria, assim, regularizar, ambientalmente, empreendimentos cujos portes impliquem impactos não significativos, a ponto de
exigirem a condução, pelo Estado, do já citado processo de tripartição
das licenças.
A filosofia, equivocada, de atuação em Minas Gerais é conceder
uma autorização, com base em análise de documentos administrativos e
declaração de compromisso do empreendedor e do responsável técnico
quanto à adequação ambiental da sua atividade. Não são realizadas, previamente, vistoria e, muito menos, uma avaliação ambiental, tampouco
são estabelecidas condicionantes, efetuando-se, em tese, somente fiscalizações a posteriori, para a verificação da conformidade legal da atividade.
A normatização estadual deve ser revista. Urge a adequação da
DN nº 74/2004 ao princípio da prevenção e sua compatibilização com as
normativas federais sobre a matéria são, sem dúvida, medidas essenciais
e impostergáveis para a correção e reparação desses sérios equívocos.
Entrementes, devem, também, ser declarados nulos os títulos de
lavra expedidos mediante apresentação de AAFs, uma vez que não foi
cumprido requisito essencial do ato, qual seja, a apresentação da licença
ambiental.
Afinal, a realidade de produção sem sustentabilidade das mineradoras não deve balizar a atuação dos órgãos competentes. Somente
a fiscalização eficiente e o incremento de ações judiciais impulsionarão
Autorização Ambiental de Funcionamento e lavras ilegais de minério 153
a busca pelo cumprimento da legislação e escolha por tecnologias desenvolvidas, que respeitem o meio ambiente e o patrimônio público.
Environmental Authorization of Operation and Lavras Illegal Ore
Abstract: Against the sustainability, the State of Minas Gerais created the
Environmental Authorization of Operation (AAF), obtained by simplified
procedure, aiming to regularize certain mining activities. Here we present
a study on aspects of the AAF, discussing its inapplicability to mining
ventures and legal consequence of the use of AAFs for the purpose of
obtaining securities mining, which is the very void of Usage Guide or
Ordinance Mining.
Key words: Sustainability. Licensing. Mining. Nullity. Lavra.
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Suspensão de liminar – Instrumento
político ou jurídico?
Marco Aurélio Ventura Peixoto
Advogado da União. Consultor Jurídico do Ministério da Previdência Social. Especialista em
Direito Público pela UnB. Mestre em Direito Público pela UFPE. Membro do Instituto Brasileiro
de Direito Processual (IBDP). Sócio-Fundador da Associação Norte e Nordeste de Professores
de Processo (ANNEP). Professor Honorário da Escola Superior de Advocacia Ruy Antunes (ESAOAB/PE). Professor de Direito Processual Civil da Faculdade Marista do Recife e da Faculdade
Estácio do Recife.
Resumo: O presente trabalho tem por objeto o instituto da suspensão
de liminar, da tutela antecipada e de segurança e as polêmicas que dele
decorrem. Desenvolve-se um estudo, a partir do contexto histórico, de
sua natureza jurídica, legitimidade, requisitos, competência, efeitos e outros aspectos referentes ao seu procedimento, procedendo-se inclusive à
análise da constitucionalidade e dos riscos de uso político do instrumento.
Palavras-chave: Suspensão. Liminar. Tutela antecipada. Segurança.
Sumário: 1 Introdução – 2 Contextualização histórica e previsões legais
– 3 Natureza jurídica – 4 Legitimidade e competência – 5 Requisitos
para a utilização do instituto – 6 A discutível possibilidade de utilização
concomitante da suspensão e do agravo – 7 Efeitos da decisão que defere
a suspensão – 8 O agravo interno/regimental como via recursal – 9 A
possi­bilidade de renovação do pedido junto às instâncias superiores –
10 Sus­pensão coletiva – 11 Questionamentos quanto à constitucionalidade
e o pe­rigo do uso político – 12 Conclusão – Referências
1 Introdução
Muitas críticas já foram lidas e ouvidas às prerrogativas processuais
que são estabelecidas na Constituição Federal ou na legislação infraconstitucional à atuação em juízo da Fazenda Pública e do Ministério Público.
Sempre que o tema é discutido, logo se fala dos prazos diferenciados, visto
por muitos como violador da isonomia processual, ou mesmo do pagamento dos débitos judiciais dos entes públicos pela via dos precatórios.
A temática objeto do presente estudo, não obstante não revele
tanto debate quanto os prazos ou os precatórios, insere-se dentre essas
prerrogativas. A figura da suspensão de liminar, de tutela antecipada
ou de segurança, apesar de não representar experiência recente no
ordenamento jurídico brasileiro, até hoje desperta a ira daqueles que
se encontram litigando em campo oposto ao da Fazenda Pública ou do
Ministério Público.
158 Marco Aurélio Ventura Peixoto
Buscar-se-á, para tanto, analisar os principais aspectos atinentes ao
instituto da suspensão, a partir da contextualização histórica e de suas
previsões legais, passando pela natureza jurídica, estudo da legitimidade, requisitos, competência, efeitos e demais aspectos procedimentais,
bem como as discussões afetas à constitucionalidade e ao uso político
do pedido de suspensão.
2 Contextualização histórica e previsões legais
Antes de serem estudados os aspectos práticos e procedimentais
do instituto da suspensão de liminar, faz-se relevante proceder a uma
contextualização histórica, a fim de identificar como se deu a introdução
de tal figura na ordem jurídica pátria.
Nos dizeres de Araken de Assis, a suspensão surgiu inicialmente
com o objetivo de suprir a ausência de um recurso hábil contra as liminares eventualmente concedidas nos mandados de segurança, vindo a
se generalizar posteriormente.1
Tal instituto, cuja finalidade essencial é a de sustar a eficácia de
decisão proferida contra o Poder Público, ficou tradicionalmente conhecida pelo nome de Suspensão de Segurança, e referida nomenclatura
restou legitimada exatamente pelo fato de que o surgimento dessa figura
impugnativa se deu com o advento do primeiro diploma infraconstitucional a regular o procedimento do Mandado de Segurança, no longínquo
ano de 1936.2
Como dito, o primeiro registro da suspensão no ordenamento
pátrio adveio com a Lei nº 191, de 16 de janeiro de 1936, a qual previu no art. 13 que caberia ao Presidente da Corte Suprema — se fosse
ato da Justiça Federal —, ou da Corte de Apelação — se o ato fosse da
Justiça Ordinária—, a requerimento da pessoa jurídica de direito público
interessada, manter a execução da liminar ou da sentença concessiva
de segurança, para evitar lesão grave à ordem, à saúde ou à segurança
pública. Desde aqueles tempos, a suspensão não representava o único
instrumento capaz de combater a decisão concessiva de liminar ou da
segurança, já que havia — e existe até hoje — o agravo e a apelação.
1
2
ASSIS. Manual dos recursos, p. 902.
KLIPPEL; BASTOS. Manual de processo civil, p. 1047.
Suspensão de liminar – Instrumento político ou jurídico? 159
Nascia assim a suspensão como uma nova via impugnativa, portadora de requisitos e finalidade distintos dos recursos, já que o intuito
não era o de obter para o Poder Público a reforma ou a anulação da
decisão judicial, mas tão somente suspender a sua eficácia. Visava-se
apenas impedir o potencial lesivo da decisão judicial.3
Não foi longa a vigência da Lei nº 191/36, tendo em conta que o
art. 328 do já revogado Código de Processo Civil de 1939, ao regular o
mandado de segurança, apresentou similar regra em relação ao instituto
da suspensão.
Mais adiante, com o surgimento de uma nova Constituição (1946),
e diante do restabelecimento do mandado de segurança como garantia lá contida, foi editada a Lei nº 1.533/1951, que regeu tal remédio
constitucional por quase sessenta anos. Em tal norma infraconstitucional, por incrível que pareça, a redação era pior, se comparada com os
diplomas de 1936 e 1939, já que não se estabelecera, por exemplo, os
requisitos de utilização da suspensão. Previa-se tão somente, no art. 13,
que o Presidente do Supremo Tribunal Federal, do Tribunal Federal de
Recursos ou do Tribunal de Justiça poderiam ordenar ao juiz a suspensão
da execução da sentença, cabendo dessa decisão agravo de petição ao
Tribunal. Restava a discussão, àquela altura, se a omissão teria sido ou
não proposital, como bem ressalta Marcelo Abelha Rodrigues.4
Alguns anos após, já em 1964, com a edição da Lei nº 4.348, o
tal art. 13 foi revogado pelo art. 4º da nova Lei, que estabeleceu que,
quando a requerimento de pessoa jurídica de direito público interessada
e para evitar grave lesão à ordem, à saúde, à segurança e à economia
públicas, o presidente do tribunal, ao qual coubesse o conhecimento do
recurso, poderia suspender, em despacho fundamentado, a execução da
liminar e da sentença, cabendo agravo dessa decisão em dez dias, sem
efeito suspensivo.
Como se depreende, não apenas foram previstos novamente os
requisitos que haviam sido ignorados pela Lei de 1951, como também
se ampliou o elenco que havia sido inicialmente indicado pela Lei de
1936, já que se incluiu a possibilidade de lesão à economia pública.
3
4
KLIPPEL; BASTOS. Manual de processo civil, p. 1048.
RODRIGUES. Suspensão de segurança, p. 80.
160 Marco Aurélio Ventura Peixoto
A Lei nº 8.038/1990, que instituiu normas procedimentais para os
processos perante o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de
Justiça, apresentou previsão, no seu art. 25, de que o Presidente do STJ,
mediante requerimento do Procurador-Geral da República ou de pessoa
jurídica de direito público, poderia suspender a execução de liminar ou
de segurança que tivessem sido proferidas pelos Tribunais Regionais
Federais ou pelos Tribunais de Justiça dos Estados. Revelou-se aí um embrião da possibilidade de utilização do instituto pelo Ministério Público.
Por seu turno, já em 1992, com a Lei nº 8.437, estendeu-se claramente a legitimidade ativa, antes restrita aos entes componentes da
Fazenda Pública, aos demais órgãos do Ministério Público, não obstante
a diminuta eficácia prática, dada a raríssima utilização por este órgão.
Cumpre transcrever o disposto no art. 4º dessa Lei, com as alterações
introduzidas pela Medida Provisória nº 2.180-35/2001:
Art. 4º Compete ao presidente do tribunal, ao qual couber o conhecimento
do respectivo recurso, suspender, em despacho fundamentado, a execução da
liminar nas ações movidas contra o Poder Público ou seus agentes, a reque­
rimento do Ministério Público ou da pessoa jurídica de direito público interessada, em caso de manifesto interesse público ou de flagrante ilegiti­midade, e
para evitar grave lesão à ordem, à saúde, à segurança e à economia públicas.
§1º Aplica-se o disposto neste artigo à sentença proferida em processo de
ação cautelar inominada, no processo de ação popular e na ação civil pública,
enquanto não transitada em julgado.
§2o O Presidente do Tribunal poderá ouvir o autor e o Ministério Público,
em setenta e duas horas.
3o Do despacho que conceder ou negar a suspensão, caberá agravo, no
prazo de cinco dias, que será levado a julgamento na sessão seguinte a sua
inter­­posição.
§4o Se do julgamento do agravo de que trata o §3o resultar a manutenção
ou o restabelecimento da decisão que se pretende suspender, caberá novo
pedido de suspensão ao Presidente do Tribunal competente para conhecer
de eventual recurso especial ou extraordinário.
§5o É cabível também o pedido de suspensão a que se refere o §4o, quando
negado provimento a agravo de instrumento interposto contra a liminar a
que se refere este artigo.
§6o A interposição do agravo de instrumento contra liminar concedida nas
ações movidas contra o Poder Público e seus agentes não prejudica nem
condiciona o julgamento do pedido de suspensão a que se refere este artigo.
Suspensão de liminar – Instrumento político ou jurídico? 161
§7o O Presidente do Tribunal poderá conferir ao pedido efeito suspensivo
liminar, se constatar, em juízo prévio, a plausibilidade do direito invocado e
a urgência na concessão da medida.
§8o As liminares cujo objeto seja idêntico poderão ser suspensas em uma única
decisão, podendo o Presidente do Tribunal estender os efeitos da suspensão a
liminares supervenientes, mediante simples aditamento do pedido original.
§9o A suspensão deferida pelo Presidente do Tribunal vigorará até o trânsito
em julgado da decisão de mérito na ação principal.
Recentemente, já no ano de 2009, veio a ser editada a Lei nº 12.016,
que passou a reger o mandado de segurança individual e coletivo, e que
revogou integralmente as Leis nºs 1.533/51 e 4.348/64. Manteve-se, no
entanto, prevista a figura da suspensão de liminar e da execução da
sentença, conforme o disposto no art. 15, abaixo transcrito:
Art. 15. Quando, a requerimento de pessoa jurídica de direito público interessada ou do Ministério Público e para evitar grave lesão à ordem, à saúde, à
segurança e à economia públicas, o presidente do tribunal ao qual couber o
conhecimento do respectivo recurso suspender, em decisão fundamentada,
a execução da liminar e da sentença, dessa decisão caberá agravo, sem efeito
suspensivo, no prazo de 5 (cinco) dias, que será levado a julgamento na sessão
seguinte à sua interposição.
§1o Indeferido o pedido de suspensão ou provido o agravo a que se refere o
caput deste artigo, caberá novo pedido de suspensão ao presidente do tribunal
competente para conhecer de eventual recurso especial ou extraordinário.
§2o É cabível também o pedido de suspensão a que se refere o §1o deste artigo, quando negado provimento a agravo de instrumento interposto contra
a liminar a que se refere este artigo.
§3o A interposição de agravo de instrumento contra liminar concedida nas
ações movidas contra o poder público e seus agentes não prejudica nem
condi­ciona o julgamento do pedido de suspensão a que se refere este artigo.
§4o O presidente do tribunal poderá conferir ao pedido efeito suspensivo
liminar se constatar, em juízo prévio, a plausibilidade do direito invocado e
a urgência na concessão da medida.
§5o As liminares cujo objeto seja idêntico poderão ser suspensas em uma única
decisão, podendo o presidente do tribunal estender os efeitos da suspensão a
liminares supervenientes, mediante simples aditamento do pedido original.
Se a origem do instituto remete, segundo verificado, ao remédio
do mandado de segurança, aos poucos a suspensão foi sendo incluída em
outros procedimentos, sempre no intuito de proteger a Fazenda Pública
diante de decisões contrárias e lesivas.
162 Marco Aurélio Ventura Peixoto
Segundo bem analisa Leonardo Carneiro da Cunha, o pedido de
suspensão atualmente cabe em todas as hipóteses em que se concede
provimento de urgência contra a Fazenda Pública ou quando a sentença
contém efeitos imediato, por ser impugnada por recurso desprovido de
efeito suspensivo, podendo se dizer que há a suspensão de liminar, a
suspensão de segurança, a suspensão de sentença, a suspensão de acórdão, a suspensão de cautelar, a suspensão de tutela antecipada e assim
por diante.5
Resumidamente, como apontam Rodrigo Klippel e Antonio
Adonias Bastos, encontra-se a suspensão, presentemente, no procedimento do Mandado de Segurança (art. 15 da Lei nº 12.016/2009 e art. 25
da Lei nº 8.038/90), da Ação Popular (art. 4º da Lei nº 8.437/92), da Ação
Civil Pública (art. 12, §1º, da Lei nº 7.437/85, e art. 4º da Lei nº 8.437/92),
da Ação Cautelar (art. 4º da Lei nº 8.437/92), da Tutela Ante­ci­pada
(art. 4º da Lei nº 8.437/92 e art. 1º da Lei nº 9.494/97), e do Habeas Data
(art. 4º da Lei nº 8.437/92 e art. 16 da Lei nº 9.507/97).6
Como se depreende, apesar da existência de previsões específicas
para a suspensão, como verificado, por exemplo, nas leis que regem o
mandado de segurança, o habeas data e a ação civil pública, o art. 4º da
Lei nº 8.437/92 é norma de caráter genérico aplicável à maioria dos
casos, desde que não haja conflito com tais normas específicas.
3 Natureza jurídica
No estudo da suspensão, um dos aspectos que mais desperta polêmica reside na identificação de sua natureza jurídica, havendo quem
defenda que é recurso, outros que sustentam ser sucedâneo recursal,
outros que defendem ser ato administrativo e outros que sustentam ser
incidente processual.
Para alguns, como ocorre com Araken de Assis, resta evidente a
colocação da suspensão como sucedâneo recursal, tendo em conta que há
o reexame dos pressupostos de concessão de liminar e do acolhimento do
pedido pela sentença de quaisquer ações movidas contra o Poder Público.
5
6
CUNHA. A Fazenda Pública em juízo, p. 404.
KLIPPEL; BASTOS. Manual de processo civil, p. 1050.
Suspensão de liminar – Instrumento político ou jurídico? 163
Para ele, o instituto evoluiu no sentido de se sobrepor aos recursos de
apelação e de agravo, assumindo, de vez, funções recursais.7
Consoante leciona José Henrique Mouta, por várias razões o
pedido de suspensão não pode ser caracterizado como recurso. Em
primeiro lugar, porque falta previsão legal envolvendo prazo, preparo e
distribuição. Em segundo, porque o seu móvel inicial não é o de reformar
ou anular a decisão. Em terceiro, porque a legitimidade é tão somente
da pessoa jurídica de direito público, bem como porque a autoridade
competente para apreciá-lo é o presidente do respectivo tribunal.8 Se
recurso o fosse, a suspensão teria o condão de reverter a decisão atacada,
o que não é o caso. Em tese, a decisão permanece válida, de modo que
o que ocorre é apenas a suspensão dos seus feitos, em função do risco à
saúde, segurança, economia ou segurança pública.
Há entendimento no Superior Tribunal de Justiça,9 no sentido
de que o juízo exercido no julgamento do pedido de suspensão possui
feição política, inviabilizando o recurso especial. Dita posição é sustentada também na doutrina, como defende Ellen Gracie Northfleet.10 Da
mesma forma, o Supremo Tribunal Federal entende não caber recurso
extraordinário contras as decisões eventualmente proferidas no pedido
de suspensão.
Não parece, entretanto, que o pedido de suspensão deva ser encarado como atividade administrativa do Presidente do Tribunal, o qual
não exerce, em seu exame, juízo político. Aliás, é de se lembrar de que
se atividade administrativa o fosse, o Presidente do Tribunal poderia
agir de ofício, sem necessidade de requerimento da pessoa jurídica de
direito público.11
Mais razoável é, desse modo, o entendimento de que a natureza do
pedido de suspensão não é de atividade político-administrativa, mas sim
nitidamente judicial, em cujo âmbito é analisada a violação a interesses
públicos relevantes. A vedação da utilização dos recursos excepcionais
ASSIS. Manual dos recursos, p. 905.
MOUTA ARAÚJO. Mandado de segurança, p. 150.
9
RESP nº 786.480/RJ, Rel. Min. José Delgado, julgado em 17.11.2005. DJU, 05. dez. 2005.
10
NORTHFLEET. Suspensão de sentença e de liminar. Revista de Processo, p. 184.
11
BRANDÃO. A suspensão das medidas de urgência nas ações contra o poder público à luz do devido
processo legal. Revista Dialética de Direito Processual, p. 31.
7
8
164 Marco Aurélio Ventura Peixoto
não decorre, assim, da natureza jurídico-administrativa, mas da impossibilidade de rediscussão do contexto fático contido na demanda.12
Pode-se dizer, nesses termos, que o pedido de suspensão, detentor
de natureza judicial, revela-se como incidente processual, com fins de
contracautela, visando à sustação dos efeitos de decisões lesivas ao inte­
resse público. Não é, portanto, seguindo a linha bem sustentada por
Marcelo Abelha Rodrigues, ação e nem recurso, figurando como típico
instituto representante dos incidentes processuais, que se manifesta por
intermédio de uma questão incidente, por sua vez provocada por uma
defesa impeditiva arguida por parte da Fazenda Pública.13
4 Legitimidade e competência
De acordo com o que já foi realçado linhas atrás, na sua criação, a
legitimidade ativa da suspensão era atribuída apenas às pessoas jurídicas
componentes da Fazenda Pública, quais fossem, a União, os Estados, o
Distrito Federal, as autarquias e as fundações públicas.
Com as Leis nºs 8.038/90 e 8.437/92, estendeu-se a legitimidade
ativa ao Ministério Público. Questiona-se, no entanto, se o Ministério
Pú­blico teria legitimidade restrita aos casos indicados por estas duas
leis, ou se poderia se interpretar sua legitimidade de modo ampliado
para as demais situações, como no caso de ações civis públicas ou habeas
data. Prevalece, na doutrina, o entendimento, bem defendido por Cássio
Scarpinella Bueno, de que o Ministério Público é legítimo para pleitear
a suspensão em todos os procedimentos nos quais for cabível.14
Há entendimento ampliativo na doutrina e na jurisprudência,
inclu­sive, no sentido de que todo aquele que possa ser réu no mandado
de segurança, venha a ser detentor de legitimidade para pedir a suspensão da liminar ou da execução, de modo a abranger, por exemplo,
empresas públicas, sociedades de economia mista, concessionárias de
serviço público, dentre outros.15
DIDIER JR.; CUNHA. Curso de direito processual civil: meios de impugnação às decisões judiciais e processo
nos tribunais, p. 463.
13
RODRIGUES. Suspensão de segurança, p. 95.
14
BUENO. Mandado de segurança, p. 183.
15
Neste sentido, o Supremo Tribunal Federal decidiu na SS nº 2702 AgR-MG, Plenário, Rel. Min. Ellen Gracie,
julg. 07.02.2007, reconhecendo legitimidade à Assembleia Legislativa. Já o Superior Tribunal de Justiça
possui precedente reconhecendo legitimidade a entidade de previdência privada complementar, nos autos
do AgRg na SLS nº 222-DF, Corte Especial, Rel. Min. Edson Vidigal, julg. 20.03.2006.
12
Suspensão de liminar – Instrumento político ou jurídico? 165
Cumpre ressaltar, ainda, que não se exige, na aferição da legitimidade para o pedido de suspensão, que o requerente esteja a figurar como
parte na demanda em que se deu a decisão lesiva. Basta a demonstração
da suposta lesão à ordem, economia, saúde ou segurança, na condição
de terceiro prejudicado, para que se reconheça a possibilidade de uso
do pedido de suspensão. Assim, em eventual demanda que a União não
figure como parte ré, numa demanda cautelar, por exemplo, e sim uma
autarquia federal, caso venha a identificar algum tipo de lesão que venha
a lhe afetar, no deferimento de uma liminar, terá plena legitimidade para,
junto ao Presidente do respectivo Tribunal Regional Federal, buscar a
suspensão daquela decisão.
No tocante à competência, em regra, quem aprecia o pedido de
sus­pensão é o Presidente do Tribunal que teria competência para julgar
o recurso contra a decisão a ser atacada. Tal competência para julgar o
pedido de suspensão é de natureza funcional. Se é funcional, revela-se
de caráter absoluto, de modo que não comporta derrogação ou prorrogação por vontade das partes.
Desse modo, quando a decisão contra a qual se insurge foi profe­rida
por juiz estadual, cabe ao Presidente do Tribunal de Justiça do referido
Estado analisar o pedido de suspensão. Se a decisão tiver sido dada por
juiz federal, dita atribuição pertence ao Presidente do Tribunal Regional
Federal da respectiva região. Há que se atentar, por outro lado, que na
eventual hipótese de o juiz estadual atuar investido de competência federal, em cumprimento ao mandamento do art. 109, §3º, da Constituição
Federal de 1988, o pedido de suspensão não será dirigido ao Presidente
do TJ, mas sim do TRF, a exemplo do que ocorre com os recursos.
Quando a decisão liminar ou antecipatória vier a ser deferida,
de modo originário e colegiado, por um Tribunal de Justiça ou por um
Tribunal Regional Federal, caberá ao Presidente do Superior Tribunal
de Justiça ou do Supremo Tribunal Federal, a depender do caso ser de
natureza infraconstitucional ou constitucional.
É de se ressalvar, no entanto, que se a decisão, em um tribu­
nal inferior, houver sido monocrática, e dessa decisão couber agravo
interno/regimental, o pedido de suspensão não poderá ser dirigido ao
tri­bunal superior, mas sim ao Presidente do Tribunal a qual pertence
166 Marco Aurélio Ventura Peixoto
o Relator.16 De todo modo, como desde as inovações trazidas pela Lei
nº 11.187/2005, não cabe mais agravo interno/regimental contra a decisão
concessiva de efeito suspensivo em agravo de instrumento, caso esta seja
a decisão lesiva, o pedido de suspensão deve ser diretamente dirigido
ao Presidente do STF ou STJ.
Dúvidas restam sempre quando se vislumbra a hipótese de a
questão dizer respeito à matéria constitucional e infraconstitucional, ao
mesmo tempo. Cássio Scarpinella Bueno defende que, numa situação
dessas, conveniente seria aplicar por analogia o art. 543, dirigindo-se o
pedido ao STJ. Caso lá se entendesse que a matéria era constitucional,
remeter-se-ia ao STF, que poderia devolver se não concordasse.17
Diferentemente, pensam Fredie Didier Jr. e Leonardo Carneiro da
Cunha. Para eles, havendo matéria constitucional, a competência será
sempre do Presidente do STF, mesmo que venha cumulada ou imbricada
com outra matéria de índole infraconstitucional, já que aquela acabaria
absorvendo esta.18
Parece ser a posição sustentada por Cássio Scarpinella Bueno mais
coerente. Pense-se no entendimento das Cortes Superiores acerca da
utilização dos recursos excepcionais quando a decisão recorrida versar
questão constitucional e infraconstitucional. Por acaso há entendimento
de que a interposição do recurso extraordinário supre a ausência do
recurso especial? A resposta é negativa. Do contrário, cada vez mais se
veri­fica o filtro no recebimento dos recursos extraordinários, quando se
identifica que a questão constitucional discutida seria ventilada apenas
de modo reflexo. Assim, situação mais lógica é se dirigir o pedido ao STJ,
o qual teria a possibilidade de enviar ao STF tão somente se concluísse
que a questão seria de cunho estritamente constitucional.
5 Requisitos para a utilização do instituto
Alguns requisitos devem ser apontados para que se utilize, quer
pelo poder público, quer pelo Ministério Público, o pedido de suspensão de liminar, tutela antecipada ou de segurança. Em primeiro lugar,
RODRIGUES. Suspensão de segurança, p. 113.
BUENO. Mandado de segurança, p. 194.
18
DIDIER JR.; CUNHA. Curso de direito processual civil: meios de impugnação às decisões judiciais e processo
nos tribunais, p. 467.
16
17
Suspensão de liminar – Instrumento político ou jurídico? 167
afigura-se indispensável o requerimento. Não se defere suspensão de
ofício sem que o interessado a pleiteie. Prevalece, em relação a esse inci­
dente processual, o princípio dispositivo, de sorte que o Presidente do
Tribunal, por mais lesivo que seja o ato, somente pode agir mediante
provocação.
Dado o caráter acessório de tal incidente, revela-se indispensável
que exista um procedimento principal em andamento, de modo que
se não mais existir o procedimento principal, perde a razão de ser a
suspensão.
Importante também ressaltar que é necessário que o processo prin­
cipal esteja em sua fase de conhecimento, já que a suspensão não se utiliza
para evitar a eficácia de decisões definitivas, transitadas em julgado, mas
sim para atacar decisões que ainda comportem reforma ou anulação.
Não se pode, ademais, buscar, por meio da suspensão, o que se con­
venciona chamar de efeito suspensivo ativo, isto é, não pode o requerente
pretender, pela via da suspensão, o que se indeferiu em seu desfavor no
primeiro grau. Esse efeito suspensivo ativo é possível de se obter pela
via recursal, como ocorre no agravo de instrumento, mas não pela via
do pedido de suspensão, que como o próprio nome denota, demanda
suspender a eficácia de uma decisão lesiva.
Não há como se ignorar também que constitui requisito do pedido de suspensão a demonstração do manifesto interesse público, isto é,
da grave lesão à ordem, à saúde, à segurança ou à economia públicas.
Neste aspecto, como bem lembram Rodrigo Klippel e Antonio Adonias
Bastos, difícil tarefa é atribuída ao Presidente do Tribunal, qual seja, que
interesse privilegiar, o do particular, que foi considerado plausível pelo
magistrado prolator da decisão que se quer suspender, ou o do Poder
Público?19
Inegavelmente, falar em grave lesão à ordem, à saúde, à segurança
ou à economia pública significa falar em conceitos jurídicos indeterminados. Não há como se objetivar ou precisar a extensão e o alcance dessas
expressões, para indicar quando e em que caso o Presidente irá ou não
suspender uma dada decisão.
19
KLIPPEL; BASTOS. Manual de processo civil, p. 1061.
168 Marco Aurélio Ventura Peixoto
Evidente que não pode haver uma banalização do Instituto, de
modo que, por se tratar de conceitos jurídicos indeterminados, estaria a
Fazenda autorizada a formular pedido de suspensão de toda e qualquer
liminar, tutela antecipada ou sentença concessiva de segurança que lhe
fosse desfavorável. Do contrário, deve haver ponderação no uso e, acima
de tudo, a demonstração concreta de que há verdadeiramente interesse
público sendo lesionado. Não se pode peticionar com base em expectativas, em suposições, mas sim com fulcro em situações concretas, que
mostrem como e por que a lesão se afigura grave.
A interpretação, nesse caso, caberá ao Presidente do respectivo
tribunal, no caso concreto, em identificar, até mesmo em respeito ao
princípio da proporcionalidade, que interesse privilegiar, a fim de deferir
ou não o pedido de suspensão.
6 A discutível possibilidade de utilização concomitante da suspensão
e do agravo
Se o pedido de suspensão de liminar ou de tutela não é possuidor
de natureza recursal, muito se debate acerca da possibilidade de utilização concomitante do recurso de agravo e do pedido de suspensão, já
que, a priori, não se violaria o princípio da unicidade recursal. Poderse-ia imaginar que a utilização de ambas as ferramentas, pela Fazenda
Pública ou pelo Ministério Público representaria uma quebra da isonomia
processual, razão pela qual muitos magistrados, e até mesmo tribunais,
defendem o estabelecimento de restrições ao uso concomitante.
O Tribunal Regional Federal da 5ª Região, por exemplo, possui
entendimento, absolutamente contra legem, fixado por sua composição
plenária, em sessão de 21 de agosto de 2002, que as decisões do Relator,
da Turma ou do Pleno, por serem judiciais, devem sempre prevalecer
sobre as decisões do Presidente em Suspensão de Segurança, que são de
natureza administrativa ou política.
Ocorre que o próprio art. 4º, §6º, da Lei nº 8.437/92 indica que a
interposição do agravo de instrumento contra decisão liminar concedida
nas ações movidas contra o Poder Público e seus agentes não prejudica
e nem condiciona o julgamento do pedido de suspensão. Idêntica previsão está contida no art. 15, §3º, da Lei nº 12.016/2009, que cuida do
mandado de segurança.
Suspensão de liminar – Instrumento político ou jurídico? 169
Os institutos são nitidamente distintos, e não apenas pelo fato de a
suspensão não ter natureza recursal. O agravo tem por objeto a modificação da decisão interlocutória, em razão de um error in judicando ou de
um error in procedendo, ao passo em que o pedido de suspensão se destina
a obter a sustação dos efeitos da decisão, sem reformá-la ou anulá-la,
diante da grave lesão à ordem, economia, saúde ou segurança públicas.20
Ademais, o agravo se submete a prazo para interposição, enquanto que não há prazo legal para a utilização do pedido de suspensão. O
agravo é julgado, regra geral, de modo colegiado, e o órgão julgador
fracionário, como seu relator, são escolhidos de modo aleatório e equitativo, por distribuição. Já o pedido de suspensão, como se sabe, demanda
decisão monocrática, e a distribuição se dá sempre ao Presidente do
Tribunal respectivo.
É de se compreender, pois, como plenamente possível que o Poder
Público, de modo simultâneo, interponha agravo de instrumento contra
a decisão interlocutória que defira liminar ou antecipação de tutela e
que, por fundamentos diversos, apresente ao Presidente do Tribunal de
Justiça ou do Tribunal Regional Federal o pedido de suspensão.21
Por igual, não há que se falar em prejuízo ao agravo de instru­men­to,
na hipótese de vir a ser suspensa a decisão liminar ou antecipatória de
tutela pelo Presidente do Tribunal. Não perde o agravo de instrumento
o objeto, porque o que se alcançou foi tão somente a cessação da eficácia da decisão, prejudicando — aí sim — o eventual pedido de efeito
suspensivo no agravo. Não deve, para tanto, o Relator do Agravo de
Ins­trumento, na hipótese de ter notícia da suspensão deferida, entender
por prejudicado e negar seguimento ao recurso, mas sim deve dar a ele
pleno seguimento, julgando, com seus pares, o mérito recursal.
Desse modo, as tentativas de restrição ao uso concomitante do agravo de instrumento e do pedido de suspensão devem se dar pela esfera
estritamente legal, já que é da competência privativa da União legislar
sobre processo, não cabendo aos magistrados ou aos tribunais restringir
aquilo que não pretendeu o legislador. Pelo contrário, dada a recente
edição da nova Lei do Mandado de Segurança (Lei nº 12.016/2009),
20
21
CUNHA. A Fazenda Pública em juízo, p. 404.
KLIPPEL; BASTOS. Manual de processo civil, p. 1070.
170 Marco Aurélio Ventura Peixoto
como já acima apontado, confirmou o legislador a intenção de facultar
à Fazenda Pública e ao Ministério Público, quando for o caso, o uso dos
dois instrumentos ao mesmo tempo, sem reservas.
Cumpre aos advogados públicos e aos membros do Ministério
Pú­blico agirem com ponderação e proporcionalidade. Não se deve banalizar o instituto da suspensão. Se inexistem limitações legais ao uso
concomitante com o agravo de instrumento, nem por isso deve se sugerir a utilização indiscriminada do pedido de suspensão, sob pena de se
perder a credibilidade junto aos respectivos Presidentes dos Tribunais.
É preciso que a via da suspensão seja opção excepcional, a fim de que os
responsáveis por deferi-la saibam que, ao se depararem com o pedido,
estão verdadeiramente diante de algo que a Fazenda ou o Ministério
Público reputam como lesivo ao interesse público.
7 Efeitos da decisão que defere a suspensão
Não há previsão legal acerca de maiores formalidades para o pedido
de suspensão a ser elaborado pela Fazenda Pública ou pelo Ministério
Público. Trata-se de simples petição, direcionada, como sabido, ao Pre­
sid­ente do respectivo tribunal competente para conhecer do eventual
recurso, com a narrativa fática e a exposição dos fundamentos jurídicos
que jus­tifiquem a suspensão daquela liminar, tutela ou segurança.
Evidentemente que o profissional que a estiver por elaborar deve
atentar que, acima de tudo, deve demonstrar com argumentos consistentes a ocorrência da grave lesão à ordem, à saúde, à economia ou à
segurança pública. Ademais, apesar de não se exigir a formação de um
instrumento, como ocorre com o agravo, é bom alvitre que se anexe cópia
da decisão que se busca suspender e das principais peças processuais,
como, por exemplo, a petição inicial da ação em tela.
Algumas atitudes são possíveis ao Presidente do Tribunal, em
seu contato inicial com o pedido de suspensão. Pode ele determinar a
emenda da petição, na hipótese de faltar, por exemplo, algum documento importante à análise. Pode indeferir, desde logo, o pedido, por
não com­preender presentes os requisitos. Pode mandar intimar o adver­
sário, para se manifestar, e o Ministério Público, para emitir parecer, no
prazo de setenta e duas horas. Pode, finalmente, caso já se convença dos
Suspensão de liminar – Instrumento político ou jurídico? 171
requisitos, conceder o pedido, suspendendo assim o cumprimento da
decisão liminar ou antecipatória.
Na medida em que o julgamento da suspensão emitir provimento
de sinal contrário à liminar ou à sentença, inibirá seus efeitos e desconstituirá os atos executivos eventualmente realizados, a teor do que aponta o
art. 4º, §9º, da Lei nº 8.437/92. Assim, como bem aponta Araken de Assis,
vigorará, a depender da situação, até o trânsito em julgado da decisão
de mérito na ação principal, de modo que as partes ficam amarradas,
até o indefinido final da causa principal, à resolução tomada quanto à
suspensão.22
Consagra-se, portanto, a ideia do efeito ultra-ativo da decisão to­
mada na suspensão de liminar ou tutela, de modo que a suspensão não
será atingida sequer pela superveniência de sentença que confirme a
liminar ou a tutela anteriormente concedida. Dito posicionamento não é
pacífico na doutrina. Cássio Scarpinella Bueno, por exemplo, manifestase contrariamente a essa ultra-atividade, por entender que a sentença
que eventualmente confirmar a liminar ou tutela deveria preponderar
sobre a decisão monocrática do Presidente do respectivo Tribunal que
houve por suspender a eficácia da decisão.23
Ainda na vigência da Lei nº 4.348/64, que tratava do mandado de
segurança, e já revogada pela Lei nº 12.016/2009, o Supremo Tribunal
Federal, diante das divergências acerca do efeito ultra-ativo em relação
a tal remédio constitucional, editou a Súmula nº 626, em que expressava que a suspensão da liminar em mandado de segurança, feita por
Presidente de Tribunal Superior, salvo determinação em contrário, vigoraria até o trânsito em julgado da decisão definitiva da concessão da
segurança, ou em havendo recurso, até a sua manutenção pelo Supremo
Tribunal Federal, desde que o objeto da liminar coincidisse, total ou
parcialmente, com o da impetração.
Não obstante a Lei nº 12.016/2009 não tenha estabelecido, de
modo expresso, a ideia da ultra-atividade da suspensão de segurança,
como contido na Lei nº 8.437/92, é essa ainda a posição que prevalece
no STF, de modo que dita interpretação extensiva desenvolvida pela
22
23
ASSIS. Manual dos recursos, p. 907.
BUENO. O poder público em juízo, p. 77.
172 Marco Aurélio Ventura Peixoto
corte máxima do país afigura-se razoável, até mesmo como forma de
preservar a hierarquia entre os órgãos jurisdicionais.
Há de se ressalvar, por fim, que há distinção em relação à extensão
da ultra-atividade se a suspensão tiver sido deferida por Presidente de
tribunal inferior ou por Presidente de Tribunal Superior. Caso determinada por presidente de tribunal inferior, seus efeitos persistirão mesmo na
superveniência da sentença, mas não na superveniência de acórdão que
confirme aquela liminar ou tutela. Por outro lado, se a suspensão se deu
por ato do Presidente do STJ ou do STF, os efeitos vigorarão até mesmo
na superveniência de acórdão, de modo que perdurem até o trânsito em
julgado da decisão definitiva da concessão da segurança, ou em havendo
recurso, até a sua manutenção pelo Supremo Tribunal Federal.
8 O agravo interno/regimental como via recursal
Como se sabe, o agravo previsto nos regimentos internos dos tribunais, conhecido também como agravinho, é o sucedâneo para a falta
de recurso próprio contra as decisões do relator.24 E é essa a ferramenta
a ser utilizada para se atacar as decisões que houverem por deferir os
pedidos de suspensão.
Nos termos do que dispõem o art. 4º, §3º, da Lei nº 8.437/92, e o
art. 15, caput, da Lei nº 12.016/2009, cabe agravo interno/regimental da
decisão do Presidente do Tribunal nos pedidos de suspensão da liminar,
tutela ou segurança.
Esse agravo tem prazo de cinco dias para sua interposição, conforme previsão dos dispositivos acima já indicados. A Lei nº 12.016/2009,
aliás, resolveu questão acerca do prazo que intrigava os operadores do
direito. Isto porque, ao passo em que a Lei nº 8.437/92 previa prazo de
cinco dias, a Lei nº 4.348/64, que cuidava do mandado de segurança,
previa prazo de dez dias, o que gerava a dúvida quanto ao prazo a ser
aplicado, a depender da ação em análise. Com a nova lei do mandado
de segurança, o prazo foi fixado em cinco dias, uniformizando-o em
relação ao que já estava prescrito na Lei nº 8.437/92.
Devem atentar ainda em relação ao prazo os advogados públicos
e os membros do Ministério Público, pois o prazo de cinco dias para
24
ASSIS. Manual dos recursos, p. 908.
Suspensão de liminar – Instrumento político ou jurídico? 173
interposição do agravo, nesses casos, é tido como prazo específico fixado
em lei, que não se submete à contagem em dobro estatuída pelo art. 188
do Código de Processo Civil.25 Não são poucos os casos de agravos que
deixam de ser conhecidos, por intempestividade, por absoluta falta de
atenção quanto a esse aspecto.
Outro ponto interessante em relação ao agravo reside no seu cabimento contra a decisão que indefere o pedido de suspensão. Por muito
tempo, acreditava-se que o cabimento restringia-se às situações em que
a suspensão houvesse por ser deferida, de modo que restaria irrecorrível a decisão que indeferisse o pedido de suspensão. Havia inclusive
Súmulas no STF (nº 506) e no STJ (nº 217), afirmando categoricamente
que o agravo não caberia contra as decisões que indeferissem o pedido
de suspensão.26
Já de algum tempo, no entanto, as cortes superiores firmaram
entendimento na linha de que cabe, da mesma forma, para a Fazenda
ou para o Ministério Público, agravo interno contra a decisão que indeferiu o pedido de suspensão, até mesmo como forma de preservar a
isonomia processual.27
9 A possibilidade de renovação do pedido junto às instâncias
superiores
Quando a liminar ou tutela é concedida por juiz de primeiro grau,
como é cediço, o pedido de suspensão é direcionado ao Presidente do
Tribunal de Justiça ou do Tribunal Regional Federal, a quem compete
deferir ou indeferir o pleito.
Se a suspensão é deferida pelo Presidente do tribunal inferior, cabe
à parte adversa, segundo exposto linhas atrás, interpor agravo interno/
regimental, a fim de que o Plenário ou a Corte Especial possam, se for
o caso, rever a decisão. Se a decisão for mantida no julgamento do agravo, não há a possibilidade de interposição de recurso extraordinário ou
O STF consagrou esse entendimento no julgamento da SS nº 2.198 AgR-AgR/PE, Pleno, Rel. Min. Maurício
Corrêa, julg. 03.03.2004, DJU, 02 abr. 2004.
26
Essas súmulas foram canceladas, respectivamente, na SS nº 1.945/AL e na SS nº 1.166/SP.
27
A respeito, vide a SS nº 2222 AgR-ED0AgR/PE, Pleno, Rel. Min. Maurício Corrêa, julg. 13.11.2003, DJU,
12. mar. 2004, que modificou entendimento anterior contido na SS nº 275 AgR/PB, Pleno, Rel. Min. Néri
da Silveira, julg. 14.02.1990, DJU, 25 out. 1991.
25
174 Marco Aurélio Ventura Peixoto
especial, mantendo-se a suspensão até que haja o trânsito em julgado
da decisão proferida na ação principal.
Quando a suspensão for indeferida, cabe agravo interno/regimental, pela Fazenda Pública ou pelo Ministério Público. Se o agravo for
provido, dá-se a suspensão da liminar ou tutela, com a decisão sendo
mantida até o trânsito em julgado do mérito na ação principal.
Muda-se o cenário, por outro lado, em duas outras situações, quais
sejam, nas hipóteses de, em sendo concedida a suspensão, o agravo vir
a ser provido pelo Tribunal, ou quando, sendo indeferida a suspensão,
a decisão vier a ser mantida pelo respectivo tribunal, no julgamento do
agravo.
Em ambas as hipóteses, não é dado à Fazenda Pública e nem ao
Ministério Público o direito de utilizar recursos excepcionais ao STF ou
ao STJ, razão pela qual se faculta a esses entes a renovação do pedido de
suspensão, ao Presidente do STF ou ao Presidente do STJ, a depender
do fundamento da decisão ser constitucional ou infraconstitucional. Tal
garantia está estabelecida no art. 4º, §3º, da Lei nº 8.437/92.
Dita renovação é criticada por alguns, por se tratar, segundo tal
linha de raciocínio, de recurso, já que repete pedido que foi negado, ao
passo em que recursos para os tribunais superiores somente poderiam
ser criados pela via de Emenda à Constituição, de modo a ferir o princípio da igualdade.28
De todo modo, tal renovação somente é de ser admitida, no caso
das suspensões de liminares ou tutelas antecipadas, regidas pela Lei
nº 8.437/92, depois que houver o julgamento do agravo interno/regimental. Mesmo diante da rejeição do pedido de suspensão, a Fazenda
ou o Ministério Público não podem formular diretamente o pedido ao
tribunal superior, sob pena de rejeição imediata.
Não custa ressaltar, por fim, que em se tratando de suspensão
de segurança, aplica-se regra distinta. Isto porque o art. 15, §1º da Lei
nº 12.016/2009 indica que sendo indeferido o pedido de suspensão,
cabe novo pedido de suspensão ao presidente do Tribunal competente
para conhecer do eventual recurso especial ou extraordinário. Assim,
28
BUENO. Mandado de segurança, p. 193.
Suspensão de liminar – Instrumento político ou jurídico? 175
nos procedimentos de mandado de segurança, não cabe a interposição
de agravo interno/regimental contra a decisão que indeferir o pedido
de suspensão, fazendo-se possível, assim, que o advogado público ou o
membro do Ministério Público renovem diretamente o pedido ao respectivo tribunal superior.
10 Suspensão coletiva
Em nome da economia processual, a legislação permite a suspensão coletiva, isto é, a suspensão de várias decisões idênticas, a partir de
um único pedido. Já assim previa o art. 4º, §8º da Lei nº 8.437/92, que
as liminares cujo objeto seja idêntico poderão ser suspensas em uma
única decisão, podendo o Presidente do Tribunal estender os efeitos da
suspensão a liminares supervenientes, mediante simples aditamento do
pedido original. Idêntica previsão está expressa no art. 15, §5º da Lei
nº 12.016/2009, que versa sobre o mandado de segurança.
Tal previsão, além do efeito prático de gerar economia processual,
como acima dito, também elimina, segundo lembram Fredie Didier Jr. e
Leonardo Carneiro da Cunha, uma das maiores mazelas do processo civil
moderno, que é a divergência jurisprudencial, preservando a isonomia.29
Nesses casos, o efeito multiplicador é preponderante para que
a Fazenda Pública consiga gerar a suspensão coletiva. Muitas vezes, se
analisado o caso isoladamente, poderia se afigurar difícil a demonstração
da lesão ao interesse público. De outra sorte, quando se vislumbra uma
situação aplicável a um universo de pessoas, restará mais evidente o risco,
proporcionando maior segurança à decisão do Presidente do Tribunal.
Como bem lembram Rodrigo Klippel e Antonio Adonias Bastos,
cuida-se de técnica de tutela coletiva, favorável ao Poder Público, que
apresenta contornos semelhantes aos do direito americano e à ideia de
representação adequada, quando se permite que uma demanda individual ganhe contornos coletivos.30
Dessa forma, em resumo, a suspensão coletiva apresenta-se sob
duas maneiras. A primeira e mais comum é a formulação de um único
DIDIER JR; CUNHA. Curso de direito processual civil: meios de impugnação às decisões judiciais e processo
nos tribunais, p. 476.
30
KLIPPEL; BASTOS. Manual de processo civil, p. 1068.
29
176 Marco Aurélio Ventura Peixoto
pedido, diante da existência de várias liminares ou tutelas idênticas que
causem lesão ao interesse público, como no exemplo de vários candidatos
alcançando liminares individuais que resultassem na anulação de questões
de um concurso público. Por outro lado, a outra possibilidade reside no
aditamento da petição inicial da suspensão, requerendo a expansão dos
efeitos a decisões supervenientes à suspensão já concedida.
11 Questionamentos quanto à constitucionalidade e o perigo do
uso político
Ainda que a primeira previsão acerca do pedido de suspensão remonte ao longínquo ano de 1936, até os dias atuais há questionamentos
quanto à constitucionalidade do referido incidente.
Uma das mais ácidas visões acerca da suposta inconstitucionali­
dade da suspensão é apresentada por Hélio do Valle Pereira, que se revela
intrigado com o fato de o Estado estabelecer um arcabouço norma­tivo,
conceder direitos e deferir mecanismos processuais de proteção para,
em momento subsequente, permitir que sejam olvidadas as facul­dades
concedidas aos particulares. Segundo ele, não mais se justifica que o
poder público utilize do procedimento, se existem soluções proces­suais
que o tornaram obsoleto e dispensável.31
Argumenta-se, assim, entre alguns na doutrina, a inconstitucionalidade do pedido de suspensão, sob o argumento de que quebraria a
isonomia processual. A insatisfação, demonstrada por esse entendimento
tem fruto em alguns fatores, quais sejam: a) a inexistência de prazo para
a utilização do incidente; b) a impossibilidade de aqueles que litigam
contra a Fazenda Pública ou contra o Ministério Público dele se valerem;
c) os requisitos para utilização, interpretados como conceitos jurídicos
indeterminados; d) o fato de a decisão ser monocrática e sempre do
Presidente do Tribunal respectivo.
Não parecem consistentes tais argumentos. Primeiramente porque
o fato de não haver prazo decorre da própria natureza do incidente, colocado à disposição para situações extremas de lesão ao interesse público.
Adiante, não se pode imaginar quebra da isonomia processual
pelo fato de ser prerrogativa colocada à disposição apenas da Fazenda
31
PEREIRA. Manual da Fazenda Pública em juízo, p. 315.
Suspensão de liminar – Instrumento político ou jurídico? 177
Pública e do Ministério Público, visto que compete a estes, e não aos
particulares, a defesa do interesse público. Se se for pensar que toda e
qualquer prerrogativa conferida a esses entes revela uma quebra da isonomia processual, ter-se-á que supor que os prazos e as citações pessoais,
por exemplo, também o são.
Quanto aos requisitos para utilização, não obstante se reconheça
que são verdadeiramente conceitos jurídicos indeterminados, não se
pode ignorar que caberá ao Presidente do Tribunal, em seu prudente
juízo de convencimento, ponderar em cada caso concreto se a situação
representa ou não uma grave lesão à ordem, à saúde, à economia ou à
segurança pública.
Finalmente, a decisão é monocrática e sempre do Presidente do
Tribunal competente para o conhecimento do respectivo recurso porque o caráter de urgência da medida assim o impõe. Se o procedimento
determinasse, como ocorre nos recursos, a distribuição a um relator
sorteado e o julgamento por um órgão colegiado, o incidente ganharia
ares recursais e perderia sua própria razão de ser.
Não há, portanto, que se falar em inconstitucionalidade da suspensão, não apenas pelas razões acima expostas, mas também tendo em conta
que o Supremo Tribunal Federal, guardião máximo da Constituição, já
se deparou com tal incidente em diversas previsões legislativas, e sempre
ratificou a sua constitucionalidade, quer do ponto de vista formal, quer
no plano material.
As críticas ao instituto também residem na possibilidade de interferências políticas em relação ao pedido de suspensão de liminar, tutela ou
segurança. Argumenta-se, com certa razão, que há riscos de deferimento
de pedidos desprovidos de qualquer fundamento, na hipótese de haver
estreito relacionamento entre os Chefes do Executivo e do Judiciário,
bem como, na situação invertida, de se indeferir pedidos que apresentem graves lesões, quando o relacionamento for distante ou quando o
Judiciário pretender retaliar algum ato do Executivo.
Não há dúvidas de que, em verdade, esse risco de uso político do
pedido de suspensão existe. No entanto, existe também no julgamento
dos recursos, em maior extensão, logicamente, por se tratar de análise
colegiada. Mas existe. Não se deve pretender abolir da ordem jurídica
178 Marco Aurélio Ventura Peixoto
um instituto de tamanha importância para que a consequência ou a
aplicação possam ser objeto de manobra ou interferência política.
A história recente do país demonstra que o Judiciário cada vez
menos se submete a esses fatores externos e às pressões eventualmente
advindas do Executivo. O próprio Supremo Tribunal Federal, cuja composição se dá por escolha inicial do Chefe do Poder Executivo — levando
em conta, por que não dizer, critérios até mesmo políticos —, tem dado
mostras de que, em casos relevantes, ainda que se desagrade o Executivo,
decide de acordo com a Constituição e o livre juízo de convencimento
de seus Ministros.
Tornando a realçar o que antes já foi dito, o pedido de suspensão
de liminar, tutela ou segurança se revela como incidente processual, com
feição jurídica e não política, fundamentada na análise da preponderância do interesse público em detrimento de decisões que possam gerar a
este lesões graves.
12 Conclusão
Previsto na legislação brasileira desde 1936, o pedido de suspensão
de liminar, tutela ou segurança é, até hoje, objeto do estudo de muitos,
e de larga utilização, notadamente pelos entes que compõem a Fazenda
Pública.
Não obstante os questionamentos em relação à sua constitucionalidade ou mesmo aos riscos de interferência política, trata-se, como visto,
de instituto com natureza de incidente processual, de caráter judicial e
não administrativo, por meio do qual o Presidente do Tribunal competente, para conhecer do eventual recurso, pode suspender decisões
liminares, antecipatórias de tutela ou a execução de sentença, sempre que
identificar lesão à ordem, à economia, à saúde ou à segurança pública.
Revela-se inegável a importância prática de tal instrumento, posto
à disposição exclusivamente da Fazenda Pública e do Ministério Público,
para aquelas situações em que se impõe, em nome do interesse público,
sustar a eficácia da decisão lesiva. Não se destina, como se esposou, a
substituir o recurso ou a reformar a decisão, mas tão somente a suspender
os efeitos da decisão que está por gerar a lesão apontada pelo requerente.
Apesar da possibilidade de utilização concomitante do pedido de
suspensão e do eventual recurso cabível contra a decisão, é de se ponderar
Suspensão de liminar – Instrumento político ou jurídico? 179
que os advogados públicos e membros do Ministério Público ajam com
moderação, a fim de que tais pedidos somente sejam formulados em
situações verdadeiramente excepcionais, de modo a não comprometer
a credibilidade da instituição e do próprio incidente processual.
Assim, é de se imaginar que, apesar de tantas críticas, o instrumento
da suspensão de liminar, tutela ou segurança por muito ainda perdurará
na ordem jurídica pátria, revelando-se ferramenta das mais relevantes a
serem utilizadas na defesa do interesse público e, por que não dizer, da
própria segurança jurídica.
Is the Suspension of the Preliminary Injuction a Political or a Legal
Instrument?
Abstract: The present work has as purpose the institute of injunction
suspension, injunctive relief suspension and security suspension, and the
controversies arising from it. Develops a study from the historical context
of its legal nature, legitimacy, requirements, powers, effects and other
aspects pertaining to your procedure, proceeding including the analysis
of the constitutionality and political risks of use of the instrument.
Key words: Suspension. Injunction. Injunctive relief. Security.
Referências
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Desmilitarização da polícia – A Proposta
de Emenda à Constituição nº 102/2011,
do Senado Federal, é constitucional?
Daniel Pinheiro de Carvalho
Advogado da União lotado no MPOG. Pós-Graduado em Direito Público.
Resumo: As manifestações sociais ocorridas a partir de junho de 2013 no
Brasil reacenderam o debate acerca da desmilitarização da polícia ostensiva. Uma das possíveis soluções aventadas foi a aprovação da Proposta de
Emenda à Constituição – PEC nº 102/2011, do Senado Federal, que unifica
as polícias civil e militar em uma instituição de natureza civil. Todavia,
embora a desmilitarização da polícia ostensiva seja juridicamente viável,
a referida proposta apresenta vícios de constitucionalidade, por ofender
cláusulas pétreas.
Palavras-chave: Manifestação social. Desmilitarização da polícia. PEC
nº 102/2011.
Sumário: Introdução – 1 Breve histórico sobre as polícias militares no Brasil
– 2 Teor da PEC nº 102/2011 – 3 Exclusividade da investigação criminal
pela polícia unificada e fim do controle externo exercido pelo Ministério
Público – 4 Provimento dos cargos das carreiras policiais unificadas – 5 Da
inconstitucionalidade da cláusula que assegura aos inativos e pensionistas
das carreiras policiais as garantias da paridade e da integralidade, por
ofensa ao direito à igualdade – 6 Da desmilitarização da polícia ostensiva
e unificação das polícias – Conclusão – Referências
Introdução
O método de resposta utilizado pelas polícias militares em várias
das recentes manifestações sociais realizadas no Brasil a partir de junho
de 2013, considerado excessivamente violento pelos manifestantes e
pelos meios de comunicação em geral, reacendeu o debate acerca da
des­mi­litarização do policiamento ostensivo em nosso país.
Em determinadas manifestações, como as realizadas no Espírito
Santo, em São Paulo1 e em Minas Gerais,2 a desmilitarização da polícia
ostensiva foi um dos itens centrais da pauta de reinvindicações.
Em 1º de julho de 2013, por exemplo, foi organizada pelo grupo “Ocupa Sampa”, no vão do Museu de
Artes de São Paulo (MASP), uma aula pública sobre o tema, com a participação de manifestantes e espe­
cialistas.
Fonte: CANOFRE. “Sem violência”: desmilitarização da polícia em debate no Brasil.
2
Fonte: FRANCESCHINI. Desmilitarização da Polícia estará na pauta dos protestos no Mineirão na quarta.
Uol.
1
182 Daniel Pinheiro de Carvalho
O argumento central dos defensores da desmilitarização reside no
fato de que a formação, a hierarquia e a disciplina militares não contribuem para a adequada resposta a protestos civis e para as demais situações cotidianas do policiamento ostensivo não relacionadas diretamente
a confrontos armados com agentes de alta periculosidade.
Entre as soluções de mais célere implementação aventadas nas
manifestações sociais e pelos meios de comunicação em geral3 está a
aprovação da Proposta de Emenda à Constituição – PEC nº 102/2011,
de autoria do Senador Blairo Maggi e em tramitação no Senado Federal,
que prevê a possibilidade de unificação das polícias militar e civil em
uma instituição civil.
Nesse contexto, o presente artigo tem por objetivo analisar a constitucionalidade da PEC nº 102/2011, a fim de verificar se tal proposta, da
forma como está redigida, realmente pode ser considerada uma solução
juridicamente viável para a desmilitarização da polícia ostensiva.
1 Breve histórico sobre as polícias militares no Brasil
A utilização de militares para a segurança pública em nosso país
remonta ao período imperial, em que diversos Corpos de Polícia eram
constituídos por militares e submetidos ao Conselho Supremo Militar
do Império. A título exemplificativo, citem-se os Corpos de Polícia da
Bahia (Decreto de 17 de fevereiro de 1825)4 e do Recife (Decreto de
11 de junho de 1825),5 que tinham o mesmo tratamento e usavam os
Vide, por exemplo: ROUSSELET. Túlio Vianna: “A militarização não é boa para o policial e é péssima para
o cidadão”. Revista Forum. Confira-se, igualmente: NABUCO FILHO. Passou da hora de desmilitarizar a
polícia. DCM.
4
“Sendo muito necessario, para a tranquilidade e segurança publica da cidade da Bahia, a organização de
um corpo, que sendo-lhe incumbidos aquelles deveres responda immediatamente pela sua conservação
e estabilidade: Hei por bem Mandar organizar na cidade da Bahia um corpo de Policia, pelo plano, que
com este baixa, assignado por João Vieira de Carvalho, do meu Conselho, Ministro e Secretario de Estado
dos Negocios da Guerra. O Conselho Supremo Militar o tenha assim entendido e o faça executar.
Paço em 17 de Fevereiro de 1825, 4º da Independencia e do Imperio.
Com a rubrica de Sua Magestade Imperial
João Vieira de Carvalho” (Fonte: <http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret_sn/1824-1899/decreto38417-17-fevereiro-1825-566730-publicacaooriginal-90241-pe.html>. Acesso em: 22 jul. 2013).
5
“Manda organizar provisoriamente um Corpo de Policia, na cidade do Recife, provincia de Pernambuco.
Convindo para a tranquilidade e segurança publica da cidade de Recife, da Provincia de Pernambuco, a
organização de um Corpo, que sendo-lhe incumbidos aquelles deveres, responda immediatamente pela
sua conservação e estabilidade: Hei por bem Mandar, se organize provisoriamente na sobredita cidade
do Recife, um Corpo de Policia, na conformidade do plano, que com este baixa, assignado por João
Vieira de Carvalho, do Meu Conselho, Ministro e Secretario de Estado dos Negocios da Guerra; entrando
para a mencionada do Corpo de Cavalaria de 1ª Linha da mesma Provincia, que por este fica extincto. O
Conselho Supremo Militar o tenha assim entendido e o faça executar. Paço em 11 de Junho de 1825, 4º
da Independencia e do Imperio.
3
Desmilitarização da polícia – A Proposta de Emenda à Constituição nº 102/2011... 183
mesmos uniformes da Imperial Guarda de Polícia6 (Decreto de 25 de
julho de 1825).
Ao lado desses Corpos de Polícia, as províncias começaram a formar suas denominadas forças públicas, também inspiradas no modelo
militar. De acordo com Mateus Afonso Medeiros,
As forças públicas tinham como principal função atuar nesse conflito entre
elites nacionais e locais, ou entre diferentes grupos das elites locais. Apesar
de serem forças aquarteladas e de terem no Exército o seu modelo de orga­
nização, as forças públicas não eram, a rigor, polícias militares, já que não
possuíam vinculação jurídica com as forças armadas. Eram verdadeiros
exér­citos estaduais, instrumentos à disposição do governador para que este
fizesse frente a seus inimigos: movimentos populares, elites armadas em seus
pró­prios estados (“coronéis” e seus “jagunços”), outras províncias ou até o
poder central.
Na década de 20, o efetivo da força pública de São Paulo era dez vezes maior
que o efetivo do Exército estacionado em São Paulo. A “força aérea” de São
Paulo era maior que toda a força aérea brasileira. Esse poderio era necessário
para que São Paulo pudesse manter sua colocação hegemônica, evitando
as tão freqüentes intervenções federais que os estados mais fracos sofriam.
Também significativas em poderio bélico eram as forças públicas de Minas
Gerais e do Rio Grande do Sul (Cf. FERNANDES, 1971; TORRES, 1961,
p. 233-240).7
Com a rubrica de Sua Magestade Imperial.
João Vieira de Carvalho” (Fonte: <http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret_sn/1824-1899/decreto38509-11-junho-1825-566974-publicacaooriginal-90445-pe.html>. Acesso em: 22 jul. 2013).
6
A origem da Imperial Guarda de Polícia decorre da Guarda Real da Polícia da Corte, por sua vez instituída
em 1809 pelo então príncipe regente D. João, por meio do decreto de 13 de maio de 1809, in verbis:
“Crêa a divisão militar da Guarda Real da Policia no Rio de Janeiro.
Sendo de absoluta necessidade prover á segurança e tranquilidade publica desta Cidade, cuja população
e trafico têm crescido consideravelmente, e se augmentará todos os dias pela affluencia de negocios
inseparavel das grandes Capitaes; e havendo mostrado a experiencia, que o estabelecimento de uma Guarda
Militar de Policia é o mais proprio não só para aquelle desejado fim da boa ordem e socego publico, mas
ainda para obter ás damnosas especulações do contrabando, que nenhuma outra providencia, nem a mais
rigorosas leis prohibitivas tem podido cohibir: sou servido crear uma Divisão Militar da Guarda Real da
Policia desta Corte, com a possivel semelhança daquella que com tão reconhecidas vantagens estabeleci
em Lisboa, a qual se organizará na conformidade do plano, que com este baixa, assignado pelo Conde
de Linhares, do meu Conselho de Estado Ministro e Secretario de Estado dos Negocios Estrangeiros e da
Guerra. O Conselho Supremo Militar o tenha assim entendido e o faça executar na parte que lhe toca.
Palacio do Rio de Janeiro em 13 de Maio de 1809.
Com a rubrica do Principe Regente Nosso Senhor” (Fonte: <http://www2.camara.leg.br/legin/fed/
decret_sn/anterioresa1824/decreto-40054-13-maio-1809-571685-publicacaooriginal-94831-pe.html>.
Acesso em: 22 jul. 2013).
7
MEDEIROS. A desmilitarização das polícias e a legislação ordinária. Revista de Informação Legislativa,
p. 239-253.
184 Daniel Pinheiro de Carvalho
Após a Revolução Constitucionalista, de 1932, na qual a força
pública de São Paulo lutou contra o Exército Nacional, afirma Medeiros
que adveio “a ideia de que era necessário estabelecer um maior controle
do poder central sobre as forças públicas”, de modo que, “em 1934, a
nova Constituição Federal declarou as polícias militares ‘reservas do
Exército’ (art. 167, CF/34) e garantiu a competência privativa da União
para legislar sobre ‘organização, instrução, justiça e garantias das forças
policiais dos estados e condições gerais da sua utilização em caso de
mobilização ou de guerra’ (art. 5º, XIX, l, CF/34)”.8
Já a Constituição de 1946 explicitamente relacionou a polícia
militar com a segurança interna e a manutenção da ordem nos Estadosmembros em seu art. 183, que prevê o seguinte: “as polícias militares
instituídas para a segurança interna e a manutenção da ordem dos
Estados, nos Territórios e no Distrito Federal, são consideradas, como
forças auxiliares, reservas do Exército”.
Por fim, a Constituição de 1988 reafirmou a atribuição da Polícia
Militar de promover o policiamento ostensivo, reservando às polícias
civis, em regra, as atividades de investigação criminal e de polícia judiciária (art. 144, §§4º e 5º).9
2 Teor da PEC nº 102/2011
Para melhor compreensão da proposta de emenda à constituição
que será a seguir analisada, entende-se útil sua transcrição integral neste
momento, ao invés de apenas se reportar a artigos específicos posteriormente, a fim de que o leitor possa desde logo compreender a proposta
em sua completude:
Ressalte-se que, apesar de ter sido alçada a nível constitucional em 1934, a possibilidade de utilização
das forças públicas enquanto forças auxiliares do exército já existia na legislação infraconstitucional,
embora não fosse de caráter cogente, ficando a critério de cada Estado-membro e na dependência de
cumprimento de determinadas condições. Apenas a título exemplificativo, cite-se o Decreto nº 11.497,
de 23 de fevereiro de 1915, e a Lei nº 3.216, de 03 de janeiro de 1917.
9
“Art. 144. A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a
preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes
órgãos: [...]
§4º Às polícias civis, dirigidas por delegados de polícia de carreira, incumbem, ressalvada a competência
da União, as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares.
§5º Às polícias militares cabem a polícia ostensiva e a preservação da ordem pública; aos corpos de bom­
beiros militares, além das atribuições definidas em lei, incumbe a execução de atividades de defesa civil. [...]”.
8
Desmilitarização da polícia – A Proposta de Emenda à Constituição nº 102/2011... 185
PEC nº 102/2011
Art. 1º O artigo 144 da Constituição Federal passa a vigorar com a seguinte
redação:
“Art. 144. [...]
§9º A remuneração dos agentes públicos integrantes dos órgãos relacionados
neste artigo será fixada na forma do §4º do art. 39, assegurado piso nacional
a ser fixado em lei federal, que disciplinará fundo nacional, com participação
da União, dos Estados e dos municípios, visando a sua suplementação, bem
como a vinculação de percentuais do orçamento.
§10. É facultado à União, no Distrito Federal e Territórios, e aos estados a
adoção de polícia única, no seu respectivo âmbito, cujas atribuições congregam
as funções de polícia judiciária, a apuração de infrações penais, de polícia
ostensiva, administrativa e a preservação da ordem pública.
§11. O Conselho Nacional de Polícia, cuja competência e organização são
definidas em lei complementar, presidido por Ministro do Superior Tribunal
de Justiça e composto por membros do Poder Judiciário, do Ministério
Público, das polícias estaduais, federal e do Distrito Federal e Territórios, por
representantes da Ordem dos Advogados do Brasil e membros da sociedade
civil indicados pelo Senado e pela Câmara dos Deputados, nomeados pelo
Presidente da República, depois de aprovada a escolha pela maioria absoluta
do Senado Federal, para mandato de dois anos, admitida uma recondução.”
(NR)
Art. 2º O artigo 167 da Constituição Federal passa a vigorar com a seguinte
redação:
“Art. 167. [...]
IV - a vinculação de receita de impostos a órgão, fundo ou despesa, ressalvadas a repartição do produto da arrecadação dos impostos a que se referem
os arts. 158 e 159, a destinação de recursos para as ações e serviços públicos
de saúde, para a manutenção e desenvolvimento do ensino, para as ações
de segurança pública e para a realização de atividades da administração
tri­bu­tária, como determinado, respectivamente, pelos arts. 198, §2º, 212,
144, §9º e 37, XXII, e a prestação de garantias às operações de crédito por
ante­cipação de receita, previstas no art. 165, §8º, bem como o disposto no
§4º deste artigo; [...] (NR)”
Art. 3º A opção pelo modelo de que trata o §10 do art. 144 da Constituição
Federal, deverá observar o disposto nesta emenda constitucional.
Art. 4º A polícia de que trata o artigo anterior, instituição de natureza civil,
instituída por lei como órgão permanente e único em cada ente federativo,
essencial à Justiça, subordinada diretamente ao respectivo Governador, de
atividade integrada de prevenção e repressão à infração penal, dirigida por
membro da própria instituição, organizada com base na hierarquia e disci­
plina e estruturada em carreiras, ressalvada a competência da polícia federal,
destina-se:
186 Daniel Pinheiro de Carvalho
I - à preservação da ordem pública;
II - à polícia ostensiva, administrativa e preventiva; e
III - ao exercício privativo da investigação criminal e da atividade de polícia
judiciária.
§1º O ingresso como delegado de polícia, carreira jurídica da polícia dos
Estados e do Distrito Federal e Territórios, far-se-á mediante concurso público
de provas e títulos, assegurada a participação da Ordem dos Advogados do
Brasil em sua realização, exigindo-se do candidato, bacharelado em direito
e aprovação prévia em curso de formação profissional nas áreas preventivas
e repressivas da infração penal, ministrado em Academia de Polícia.
§2º O quadro da Polícia terá em sua composição básica, além da carreira de
delegado de polícia, as de analista de polícia da área cartorária, ostensiva e
investigativa e de perito de polícia, cujo ingresso é condicionado à aprovação
em concurso público de provas ou de provas e títulos e aprovação prévia em
curso de formação técnico-profissional nas áreas preventivas e repressivas da
infração penal, ministrado em Academia de Polícia, na forma da lei.
§3º Nos concursos públicos para provimento dos cargos das carreiras de
delegado de polícia e de perito de polícia, será permitida a ascensão funcional
em percentual das vagas, a ser fixado em lei aos integrantes das carreiras de
analista de polícia, que preencherem os requisitos legais.
Art. 5º O regime previdenciário dos integrantes dos órgãos de segurança
pública obedece ao disposto no §4º, do art. 40, garantida a integralidade e
a paridade de remuneração entre ativos, inativos e pensionistas.
Art. 6º Na unificação das polícias, os oficiais oriundos da polícia militar e os
delegados de polícia dos Estados e do Distrito Federal ficam transpostos para
membro da carreira de delegado de polícia, na forma da Lei.
§1º No período de transição, em que houver integrante remanescente da
estrutura policial anterior, o cargo de Delegado Geral da Polícia dos Estados
e a do Distrito Federal e Territórios será exercido por mandato de dois anos,
alternadamente, por delegado oriundo da Polícia Judiciária Civil e delegado
da Polícia Militar, escolhido pelo respectivo Governador, dentre os integrantes
da última categoria funcional, até que um delegado de polícia, formado pelo
novo sistema previsto nesta emenda, reúna condições para assumir e exercer
a direção da nova entidade.
§2º Ocupado o cargo de Delegado Geral da Polícia por Delegado oriundo
da extinta policia civil, o cargo de Delegado Geral Adjunto será ocupado por
delegado oriundo da extinta polícia militar, revezamento que será observado
na alternância prevista.
§3º Ocorrendo unificação das polícias, os cargos das carreiras das polícias
civis e militares dos Estados e do Distrito Federal serão transformados, por lei
do respectivo ente, em cargos do novo quadro, mantendo a correspondência
entre a situação funcional anterior e a nova, garantida, em qualquer caso, para
ativos, inativos e pensionistas, a irredutibilidade de vencimentos ou subsídios.
Desmilitarização da polícia – A Proposta de Emenda à Constituição nº 102/2011... 187
§4º Lei federal, de iniciativa do Presidente da República, disporá sobre regras
gerais das Polícias, em especial sobre ingresso, estrutura organizacional básica,
direito de greve e outras situações especiais, consideradas as peculiaridades
de suas atividades, assegurada a independência no exercício da atividade
pericial e na investigação criminal, que devem ser uniformemente observadas
pelas leis dos respectivos entes federativos.
Art. 7º Leis da União e dos Estados criarão ouvidorias, competentes para
receber reclamações e denúncias de qualquer interessado contra integrantes
das polícias, inclusive contra seus serviços auxiliares, representando diretamente ao Conselho Nacional de Polícia.
Art. 8º As guardas dos Municípios cujos Estados adotarem o modelo previsto no §10 do art. 144, conforme dispuser a lei, poderão exercer atividade
complementar de policiamento ostensivo e preventivo, mediante convênio
com o Estado.
Art. 9º A União poderá mobilizar efetivo das polícias unificadas dos Estados
e do Distrito Federal e Territórios para emprego em local e tempo determinado nos seguintes casos:
I - de decretação de Estado de Defesa, de Sítio ou de intervenção federal;
II - por solicitação do governo do Estado ou do Distrito Federal e Territórios.
Art. 10. Fica revogado o inciso VII do art. 129 da Constituição Federal.
Art. 11. Esta Emenda entra em vigor na data da sua publicação.
A seguir, passa-se à análise pontual dos dispositivos considerados
como mais prováveis de terem sua constitucionalidade questionada e,
ao fim, abordar-se-á especificamente a possibilidade de desmilitarizar
a polícia ostensiva.
Vale recordar que, embora a emenda constitucional possa alterar
a Constituição, deve necessariamente respeitar as cláusulas pétreas
(art. 60, §4º), além de observar os procedimentos formais delineados
na Constituição.
A fim de propiciar melhor entendimento sobre o que se há de tratar,
importa destacar lição doutrinária de Gilmar Ferreira Mendes e Paulo
Gustavo Gonet Branco que explicita o alcance da proteção conferida
pelas cláusulas pétreas:
A garantia de permanência em que consiste a cláusula pétrea, em suma, imu­
niza o sentido dessas categorias constitucionais protegidas contra alte­rações
que aligeirem o seu núcleo básico ou debilitem a proteção que forne­cem.
Nesse sentido se deve compreender o art. 60, §4º, da CF, como proi­bição à deliberação de proposta tendente a abolir, isto é, a mitigar, a reduzir, o significado
188 Daniel Pinheiro de Carvalho
e a eficácia da forma federativa do Estado, do voto direto, secreto, universal
e periódico, a separação dos Poderes e os direitos e garantias individuais.10
Ressalte-se, outrossim, que os precedentes do Supremo Tribunal
Federal que serão utilizados adiante, embora não tenham sido proferidos
em sede de controle de constitucionalidade de emendas à Constituição
Federal, foram selecionados por trazerem a) reflexões jurídicas relevantes
sobre dispositivos constitucionais que se reputam pertinentes ao exame
que se pretende realizar e b) teses que auxiliam no delineamento e na
determinação do alcance das cláusulas pétreas que serão estudadas.
Seu valor, portanto, é precipuamente argumentativo, mas, ainda
assim, de importância ímpar, por refletirem entendimentos já exarados
pelo tribunal guardião da Constituição e que certamente serão ponderados, senão seguidos, por seus ministros em futuros julgamentos.
3 Exclusividade da investigação criminal pela polícia unificada e fim
do controle externo exercido pelo Ministério Público
Considerando que o exercício privativo da investigação criminal
pelas autoridades policiais também foi um dos temas centrais das recen­
tes manifestações populares, que ensejaram, inclusive, a rejeição da
PEC nº 37/2011 na Câmara dos Deputados,11 o primeiro dispositivo
da PEC nº 102/2011 a ser analisado será o inciso III de seu art. 4º, que
também objetiva atribuir à polícia “o exercício privativo da investigação
criminal”.
Atualmente, discute-se na doutrina e na jurisprudência acerca dos
poderes investigativos do Ministério Público, prevalecendo, não obstante
a existência de sólidos argumentos contrários,12 o entendimento de que,
MENDES; BRANCO. Curso de direito constitucional.
Vide a seguinte reportagem: <http://g1.globo.com/bom-dia-brasil/noticia/2013/06/camara-derruba-pec37-e-propoe-75-dos-royalties-para-educacao.html>. Acesso em: 22 jul. 2013.
12
Cite-se, por exemplo, o posicionamento institucional da Ordem dos Advogados do Brasil, cujo plenário, em
20 de maio de 2013, manifestou-se favoravelmente à PEC nº 37/2011, conforme noticiado no seguinte
endereço eletrônico: <http://www.oab.org.br/noticia/25648/plenario-da-oab-e-favoravel-a-aprovacaoda-pec-37>. Acesso em: 12 ago. 2013.
Dentre os argumentos usualmente invocados pelos defensores da não investigação penal pelo Ministério
Público, pode-se citar o de que concentrar a investigação criminal nas mãos do Ministério Público implica
grave desequilíbrio de armas entre acusação e defesa, inclusive pela possibilidade de, na condição de
parte acusatória, serem selecionados para embasar a denúncia apenas os elementos de informação mais
prejudiciais ao réu. Outro fundamento geralmente suscitado é o de que, por não constar expressamente da
Constituição, o exercício do poder investigatório pelo Ministério Público ofende a separação dos Poderes.
10
11
Desmilitarização da polícia – A Proposta de Emenda à Constituição nº 102/2011... 189
se a Constituição outorgou ao Ministério Público a titularidade da ação
penal (art. 129, I, da Constituição),13 conferiu-lhe, implicitamente, os
poderes necessários para ajuizá-la, entre eles o de proceder às investigações pertinentes.
É esse o entendimento da 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal
— conquanto o Tribunal Pleno esteja se debruçando sobre a questão no
HC nº 84.548/SP, ainda pendente de conclusão do julgamento.
No HC nº 91.661,14 a 2ª Turma da referida corte entendeu ser
“perfeitamente possível que o órgão do Ministério Público promova a
colheita de determinados elementos de prova que demonstrem a existência da autoria e da materialidade de determinado delito”. Ademais,
ressaltou a aplicação, ao caso, da teoria dos poderes implícitos, segundo
a qual se deve considerar que a Constituição, ao atribuir uma finalidade a um órgão, implicitamente lhe conferiu os meios necessários para
exercê-la, tendo em vista que, “se a atividade fim — promoção da ação
penal pública — foi outorgada ao parquet em foro de privatividade, não
se concebe como não lhe oportunizar a colheita de prova para tanto, já
que o CPP autoriza que ‘peças de informação’ embasem a denúncia”.
No HC nº 89.837,15 apreciado pelo mesmo órgão fracionário,
afirmou-se que
[...] o poder de investigar compõe, em sede penal, o complexo de funções
institucionais do Ministério Público, que dispõe, na condição de “dominus
litis” e, também, como expressão de sua competência para exercer o controle externo da atividade policial, da atribuição de fazer instaurar, ainda
que em caráter subsidiário, mas por autoridade própria e sob sua direção,
procedimentos de investigação penal destinados a viabilizar a obtenção de
dados informativos, de subsídios probatórios e de elementos de convicção
que lhe permitam formar a “opinio delicti”, em ordem a propiciar eventual
ajuizamento da ação penal de iniciativa pública. [...]
“Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público:
I - promover, privativamente, a ação penal pública, na forma da lei; [...]”.
14
HC nº 91.661. Segunda Turma. Rel. Min. Ellen Gracie. Julgado em 10.03.2009. DJe, 03 abr. 2009. RMDPPP
v. 5, n. 29, 2009, p. 103-109. LEXSTF v. 31, n. 364, 2009, p. 339-347. RMP n. 43, 2012, p. 211-216.
15
HC nº 89.837. Segunda Turma. Rel. Min. Celso de Mello. Julgado em 20.10.2009. DJe, 20 nov. 2009.
LEXSTF v. 31, n. 372, 2009, p. 355-412. RTJ v. 218, p. 272.
13
190 Daniel Pinheiro de Carvalho
Embora o tema seja instigante, merecedor de estudo próprio e
específico, optar-se-á, para não se desviar do objetivo do presente artigo,
por seguir o entendimento majoritário e, a partir do pressuposto de que
o Ministério Público detém atribuição investigatória criminal, focar o
debate na análise de sua natureza.
Com efeito, o que interessa por ora é averiguar a extensão e o
significado desse poder investigatório para o Ministério Público. Seria
esse poder tão relevante a ponto de configurar uma cláusula pétrea?
Sinale-se, em primeiro lugar, que o próprio Ministério Público,
enquanto “instituição permanente, essencial à função jurisdicional do
Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis” (art. 127,
caput, da Constituição Federal), também foi alcançado pelos efeitos das
cláusulas pétreas estabelecidas no art. 60, §4º, III e IV da Constituição,16
tanto na condição de guardião dos direitos e garantias individuais indisponíveis, como na de instituição destinada a compor o sistema de freios
e contrapesos (checks and balances system) delineado pelo constituinte
originário, conforme se observa por suas funções institucionais fixadas
no art. 129, especialmente em seus incisos I, II, III, IV, VI, VII e VIII,
da Constituição.17
Por tal razão, é vedado ao constituinte derivado propor emendas
tendentes a abolir funções institucionais do Ministério Público vinculadas
às duas condições acima mencionadas.
“Art. 60. [...] §4º Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:
I - a forma federativa de Estado;
II - o voto direto, secreto, universal e periódico;
III - a separação dos Poderes;
IV - os direitos e garantias individuais”.
17
“Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público:
I - promover, privativamente, a ação penal pública, na forma da lei;
II - zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos
assegurados nesta Constituição, promovendo as medidas necessárias a sua garantia;
III - promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do
meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos;
IV - promover a ação de inconstitucionalidade ou representação para fins de intervenção da União e dos
Estados, nos casos previstos nesta Constituição; [...]
VI - expedir notificações nos procedimentos administrativos de sua competência, requisitando informações
e documentos para instruí-los, na forma da lei complementar respectiva;
VII - exercer o controle externo da atividade policial, na forma da lei complementar mencionada no artigo
anterior;
VIII - requisitar diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial, indicados os fundamentos
jurídicos de suas manifestações processuais;
IX - exercer outras funções que lhe forem conferidas, desde que compatíveis com sua finalidade, sendo-lhe
vedada a representação judicial e a consultoria jurídica de entidades públicas”.
16
Desmilitarização da polícia – A Proposta de Emenda à Constituição nº 102/2011... 191
Vale frisar que esse entendimento se aplica ainda que não se
considere o Ministério Público como um quarto Poder. Com efeito, caso
não integre um Poder autônomo, será considerado integrante de um
dos outros três Poderes18 e a supressão de suas funções vinculadas ao
sis­tema de freios e contrapesos delineado na Constituição permaneceria
esbarrando na cláusula pétrea da separação dos Poderes (art. 60, §4º, III).
Ou, então, será entendido como instituição autônoma, mas que também
18
Sobre o tema, Bernardo Ladeira Ferreira, em monografia intitulada “A natureza jurídica do Ministério
Público”, realiza pertinente revisão bibliográfica, in verbis:
“Contudo, o Ministério Público, sendo participante da divisão funcional do Estado, é elemento indispensável
no sistema de freios e contrapesos na contenção do poder estatal, como o são o Legislativo, o Executivo e
o Judiciário. Ora, tanto esses como aquele (o Ministério Público), assemelham-se em virtude da autonomia,
independência e finalidades constitucionais, exercendo todos funções únicas do Estado.
Ocorre é que o posicionamento constitucional do Ministério Público sempre provocou impasses na doutrina,
principalmente devido à transformação e à evolução que a instituição sofreu ao longo dos anos, restando
perplexidade ao defini-lo como órgão atrelado (ou vinculado) a algum poder, seja ao Legislativo, seja ao
Executivo, seja ao Judiciário.
Sobre o tema, Hugo Nigro Mazzilli (1997, p. 19 e 20) discorre:
‘Há quem sustente que o Ministério Público estaria atrelado ao Poder Legislativo, a esse incumbida a
elaboração da lei e ao Ministério Público, a fiscalização do seu fiel cumprimento. Há quem defenda que
a atividade do Ministério Público é eminentemente jurisdicional, razão pela qual estaria ele atrelado ao
Poder Judiciário. E há, ainda, quem afirme que a função do Ministério Público é administrativa, pois ele
atua com o fim de promover a execução das leis e estaria atrelado ao Poder Executivo.’
Alexandre de Moraes continua (SLAIBI FILHO; MELLO FILHO; FERREIRA FILHO apud MORAES, 2003, p. 494):
‘Analisando a Carta Anterior, que colocava o Ministério Público como órgão do Poder Executivo, Celso de
Mello já apontava que seus membros sujeitavam-se a regime jurídico especial, gozando, no desempenho
de suas funções, de plena independência. Por sua vez, Manoel Gonçalves Ferreira Filho, concordando com
a independência ministerial, colocava-o como órgão administrativo, destinado a zelar pelo cumprimento
das leis, cabendo-lhe a defesa do interesse geral de que as leis sejam observadas. Da mesma forma, José
Afonso da Silva afirma que a Instituição ocupa lugar cada vez mais destacado na organização do Estado,
em virtude do alargamento de suas funções de proteção aos direitos indisponíveis e de interesses coletivos,
tendo a Constituição Federal lhe dado relevo de Instituição permanente e essencial à função jurisdicional,
mas que ontologicamente sua natureza permanece executiva, sendo seus membros agentes políticos, e
como tal, atuam com plena e total independência funcional.’
Todavia, na Carta Atual, baseada na tendência internacional, o Ministério Público consagra-se plenamente
independente, desvinculado de qualquer poder, tornando-se um “estranho no ninho” no Legislativo, no
Executivo e no Judiciário, comportando todos os requisitos, garantias e vedações atinentes aos clássicos
poderes do Estado, contudo, sem a função precípua de julgar, de administrar, muito menos de legislar.
Como bem observa o Ministro do Supremo Tribunal Federal, Sepúlveda Pertence,
‘A seção dedicada ao Ministério Público insere-se, na Constituição Federal de 1988, ao final do Título IV Da Organização dos Poderes, no seu Capítulo IV - Das Funções Essenciais à Justiça. A colocação tópica e
o conteúdo normativo da Seção revelam a renúncia, por parte do constituinte, de definir explicitamente
a posição do Ministério Público entre os Poderes do Estado. [...]
A razão subjacente à crítica contemporânea da integração do Ministério Público no Poder Executivo [ou
no Poder Legislativo e até no Poder Judiciário] está, na verdade, na postulação da independência política
e funcional do Ministério Público, pressuposto da objetividade e da imparcialidade de sua atuação nas
suas funções sintetizadas na proteção da ordem jurídica (MORAES, 2003, p. 494-495).’
Portanto, observa-se que a relação que o Ministério Público tem para com os outros poderes é emi­
nentemente independente, complementando-as tão somente naquilo que lhes foram conferidos: funcionar
para que a soberania do Estado se exteriorize, a fim de cumprir seu papel pelo qual foi criado.
Independência essa é essencial e indispensável à sobrevivência da instituição, sobretudo à viabilidade e
à eficácia de sua atuação, sendo que seu papel institucional restaria prejudicado e inócuo, se, de fato, a
instituição ministerial fosse de tal modo subjugada ou atrelada a qualquer outro órgão” (Disponível em:
<http://www.iptan.edu.br/publicacoes/saberes_interdisciplinares/pdf/revista06/A%20NATUREZA%20
JURIDICA%20DO%20MINISTERIO%20PUBLICO.pdf>. Acesso em: 24 jul. 2013).
192 Daniel Pinheiro de Carvalho
tem o poder de limitar a atuação dos três Poderes da República, de
modo que a retirada de suas atribuições igualmente afetaria, ainda que
indiretamente, a harmonia e as limitações do sistema estabelecidas pelo
constituinte originário.
É nesse contexto que se deve analisar o questionamento feito
alhures acerca do poder investigatório.
Sobre o tema, vale transcrever as seguintes lições do Min. Carlos
Ayres Britto, do Supremo Tribunal Federal, no HC nº 97.969:
[...] 18. Ora bem, investigar fatos, documentos e pessoas é da natureza mesma do
Ministério Público. É ínsito ao Ministério Público. É o seu modo de estar em perma­
nente atuação de custos legis para defesa da lei. Só que nossa Constituição foi além:
habilitou o Ministério Público a sair em defesa de todo o Direito positivo, porque é a
Ordem Jurídica, por inteiro, que se inclui entre as fina­lidades do Ministério Público.
Então, o Ministério Público, hoje, mais do que custos legis, é custos iuris. É
guar­dião, é custodiador do próprio Direito positivo. Seja para lavrar um
parecer, seja para oferecer uma denúncia, ou não oferecer, seja, ainda,
para pedir a absolvição de quem já foi denunciado e até mesmo deixar de
recorrer de decisão penal absolutória. Pois o que prevalece na atuação do
Ministério Público é a atividade de custos iuris. É por isso que ele não tem
a disponibilidade da ação penal. É por isso que ele é uma parte processual
especialíssima: não é pessoa física, nem pessoa jurídica, e pede em nome da
sociedade, ou em nome da justiça pública, a encarecer o seu insubstituível
mister de “promotor de justiça”.
19. Diante disso, privar o Ministério Público dessa peculiaríssima atividade de defensor
do Direito e promotor de justiça é apartá-lo de si mesmo. É desnaturá-lo. Dessubstanciálo até não restar pedra sobre pedra, ou, pior ainda, reduzi-lo à infamante condição de
bobo da Corte. Mas sem que sua inafastável capacidade de investigação criminal por
conta própria venha a significar o poder de abrir e presidir inquérito policial.
20. Com efeito, é preciso distinguir as coisas. Se todo inquérito policial im­
plica uma investigação criminal, nem toda investigação criminal implica um
inquérito policial. Aliás, inquérito policial é próprio da Polícia até nominalmente, até gramaticalmente, porque é aberto e presidido pela autoridade
policial. Mas não se tolera, sob a Constituição de 1988, condicionar ao exclusivo
impulso da Polícia a propositura das ações penais públicas incondicionadas; como se o
Ministério Público fosse um órgão passivo, inerte, à espera de provocação de terceiros.
Ações que só o Ministério Público pode ajuizar (inciso I do art. 129 da Constituição) e
que têm, na livre formação do convencimento dos promotores e procuradores de justiça,
um elemento conceitual de sua propositura. Quero dizer: assim como o juiz sentencia
a partir do seu livre convencimento, o promotor e o procurador de justiça também
denunciam a partir do seu livre convencimento, o que já significa poderem atuar a
Desmilitarização da polícia – A Proposta de Emenda à Constituição nº 102/2011... 193
latere do inquérito policial. Como o Código de Processo Penal bem o diz. Logo,
entendo que a Constituição, em matéria de investigação criminal, foi, antes
de tudo, democrática; ou seja, ela fez proliferar os núcleos de investigação
criminal. Daí por que o nosso sistema constitucional convive com inquéritos
parlamentares e com o poder de polícia administrativa, este a restringir o uso
da liberdade e da propriedade das pessoas. Não se pode recusar ao Ministério
Público o que não se recusou sequer ao poder de polícia. Não estou dizendo
o “poder da Polícia”, mas “poder de polícia” administrativa. Como, aliás,
bem disse Celso Antônio Bandeira de Melo — não falando, é verdade, sobre
o Ministério Público, mas sobre os exercentes da função administrativa, às
folhas 715 do seu livro “Curso de Direito Administrativo”, calçado na boa
doutrina de Francesco D’Alessio, administrativista italiano de nomeada.
21. Diria, então, que não se trata de concentrar o poder investigatório no
Ministério Público, mas de desconcentrar esse poder, o qual já não se confina no âmbito da Polícia, seja a Federal, sejam as polícias civis dos Estados.
22. Enfim, penso ser o dilema que se abre para o Ministério Público, no caso, dramático.
É investigar, ou morrer. É investigar para sair daquela triste condição de que falava
Vinícius de Moraes: há certas situações para as quais o suicídio ainda é a mais doce
das soluções.
23. À luz da Constituição brasileira, tenho que o Ministério Público se dota,
efe­ti­vamente, de poderes investigatórios e, ao contrário do que têm dito
alguns setores da mídia, não é pelo temor do abuso que se vai proibir o uso.
(grifos nossos)
Concorda-se com o posicionamento do eminente ministro. A
capacidade de o Ministério Público apurar fatos é imprescindível para
o cumprimento de suas funções institucionais. Conforme afirmado no
precedente acima citado, é-lhe ínsita.
Para zelar, de modo independente, “pelo efetivo respeito dos
Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados nesta Constituição” (art. 129, II), é fundamental o poder de
in­vestigar e buscar informações por conta própria. O mesmo vale para
o exercício do controle externo da atividade policial (art. 129, VII) que,
para ser efetivo, pressupõe a coleta de informações pelos próprios membros ministeriais. Tampouco é possível vislumbrar inquérito civil “para a
proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros
interesses difusos e coletivos” (art. 129, III) sem atribuição apuratória.
Constata-se, assim, que, ausente o poder investigatório do Minis­
tério Público, enfraquece-se o sistema de freios e contrapesos inerente ao
modelo de separação de Poderes atualmente vigente. Mas seria possível
194 Daniel Pinheiro de Carvalho
mitigar apenas parcela desse poder, relacionada à apuração criminal,
outorgando-a exclusivamente à polícia?
Segundo doutrina atualmente minoritária, que sustenta que o
Ministério Público é órgão integrante do Poder Executivo e que participa
do checks and balances system apenas enquanto tal, não haveria óbices a essa
mitigação sob o ponto de vista da separação de Poderes (sob a ótica dos
direitos e garantias fundamentais, o tema será tratado adiante), tendo
em vista que o poder investigatório criminal permaneceria no âmbito
do mesmo Poder.
Todavia, prevalece o entendimento de que o Ministério Público
con­siste em, senão um quarto Poder, ao menos uma instituição autônoma
e independente com papel fundamental no equilíbrio e na harmonia
entre os Poderes.
Ademais, considerando as graves implicações que podem advir
das investigações criminais para a liberdade, a imagem, a privacidade e
a dignidade dos indivíduos, bem como sua fundamental relevância para
obstar ilícitos penais praticados por agentes públicos ímprobos, não é
conveniente que tal atividade fique restrita exclusivamente a um órgão
subordinado ao chefe do Poder Executivo, razão pela qual, conforme
bem ressaltado no voto do Min. Carlos Ayres Brito acima transcrito, “a
Constituição, em matéria de investigação criminal, foi, antes de tudo, democrática; ou seja, ela fez proliferar os núcleos de investigação criminal”.
Assim, a atuação ministerial paralela no campo apuratório criminal
é fundamental para se precaver de investigações criminais impulsionadas
por questões meramente políticas ou mesmo com excesso ou abuso de
poder sobre os indivíduos e para assegurar que ilícitos penais perpetrados por agentes que gozam da proteção da cúpula do Poder Executivo
sejam efetivamente examinados.
Percebe-se, portanto, que a investigação criminal a cargo do Parquet
também tem implicações no que se refere à proteção dos direitos e garantias fundamentais e ao sistema dos checks and balances. Consequentemente,
nos termos do art. 60, §4º, III e IV, da Constituição, é vedada a apresentação de proposta de emenda à Constituição que atribua exclusivamente
à Polícia a competência para realizar investigação criminal.
Assevere-se, por fim, que, conforme doutrina de Gilmar Ferreira
Mendes e Gonet Branco acerca das cláusulas pétreas, “no tocante aos
Desmilitarização da polícia – A Proposta de Emenda à Constituição nº 102/2011... 195
direitos e garantias individuais, mudanças que minimizem a sua proteção,
ainda que topicamente, não são admissíveis”.19
Em relação ao art. 10 da PEC nº 102/2011, que prevê a revogação do inciso VII do art. 129 da Constituição (que atribui ao Ministério
Público o controle externo da atividade policial), aplica-se o mesmo
raciocínio referente ao inciso III do §4º do art. 60 da Constituição
acima desenvolvido. Referido controle configura um dos mecanismos
esta­belecidos na Constituição para “frear” e supervisionar as atividades
exercidas pelo Poder Executivo.
Acrescente-se que quem tem a competência para promover as me­
didas necessárias para zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos
aos direitos assegurados na Constituição (art. 129, II) certamente terá
po­deres para realizar o controle externo também da atividade poli­cial —
independentemente da nomenclatura que se atribua a esse controle
—, inclusive por meio da realização de investigações criminais acerca da
conduta abusiva de agentes policiais.
Tal como expressou o Min. Carlos Ayres Brito no item 16 do voto
já citado, “o Ministério Público está autorizado pela Constituição a
promover todas as medidas necessárias à efetivação de todos os direitos
assegurados pela Constituição”.
4 Provimento dos cargos das carreiras policiais unificadas
4.1 Da inconstitucionalidade da regra que permite a ascensão
funcional
O §3º do art. 4º da PEC nº 102/2011 propõe que, “para provimento dos cargos das carreiras de delegado de polícia e de perito de
polícia, será permitida a ascensão funcional em percentual das vagas, a
ser fixado em lei aos integrantes das carreiras de analista de polícia, que
preencherem os requisitos legais”.
Vale registrar que o Supremo Tribunal Federal já teve a oportunidade de analisar especificamente a reserva de vagas para ocu­pantes
de outros cargos policiais, considerando-a inconstitucional em diver­sas
oportunidades, tais como na ADI nº 1854, ADI nº 308, ADI nº 245,
19
MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 7. ed. São
Paulo: Saraiva, 2011.
196 Daniel Pinheiro de Carvalho
ADI nº 361, ADI nº 498, ADI nº 89, ADI nº 388, ADI nº 231 e na ADI
nº 960, esta última assim ementada:
DIREITO CONSTITUCIONAL. AÇÃO DIRETA DE INCONS­TITU­CIO­
NA­LIDADE. LEI ORGÂNICA DO DISTRITO FEDERAL. PROGRESSÃO
FUNCIONAL. FORMA DE INVESTIDURA EM CARGO, SEM CONCURSO
PÚBLICO. ART. 37, II, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. 1. O parágrafo 7º
do art. 119 da Lei Orgânica do Distrito Federal, ao reservar metade das vagas
de cargos de nível superior, na carreira de policial civil, para provimento
por progressão funcional, viola o princípio segundo o qual “a investidura
em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso
público de provas e títulos” (inciso II do art. 37 da CF). Precedentes. 2.
Ação Direta julgada procedente, declarando-se a inconstitucionalidade das
expressões “reservando-se metade das vagas dos cargos de nível superior
para provimento por progressão funcional das categorias de nível médio”,
contidas no §7º do art. 119 da Lei Orgânica do Distrito Federal. 3. Plenário.
Votação por maioria.20
Todavia, como se está diante de proposta de emenda à Constituição,
importa analisar se a regra proposta fere alguma cláusula pétrea.
O art. 37, II da Constituição dispõe o seguinte:
Art. 37. A Administração Pública direta e indireta de qualquer dos Poderes
da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos
princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: (Redação dada pela Emenda Constitucional nº
19, de 1998) [...]
II - a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação
prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos, de acordo com
a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, na forma prevista em
lei, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado em lei de
livre nomeação e exoneração; (Redação dada pela Emenda Constitucional
nº 19, de 1998) [...]
Observa-se que o inciso II do art. 37 da Constituição expressamente se referiu a “investidura em cargo ou emprego público” como
dependente de aprovação prévia em concurso público. Não utilizou a
expressão “ingresso no serviço público” ou “primeira investidura em
cargo ou emprego público”.
20
ADI nº 960. Tribunal Pleno. Rel. Min. Sydney Sanches. Julgado em 06.02.2003. DJ, 29 ago. 2003.
Desmilitarização da polícia – A Proposta de Emenda à Constituição nº 102/2011... 197
A regra atual, portanto, é bem diversa da prevista no §1º do art. 97
da Constituição de 1969, segundo o qual “a primeira investidura em cargo
público dependerá de aprovação prévia, em concurso público de provas
ou de provas e títulos, salvo os casos indicados em lei”, sem prejuízo do
§2º que tratava especificamente dos cargos em comissão. Ou seja, além
dos cargos em comissão, a lei também poderia criar novas exceções à
regra do concurso público. Ademais, apenas era exigido concurso público
para a primeira investidura em cargo público, admitindo-se concursos
internos e ascensões funcionais (que não se confundem com promoção
no âmbito da mesma carreira) para as investiduras posteriores.
Acerca dos concursos públicos, José dos Santos Carvalho Filho
leciona o seguinte:
O concurso público é o instrumento que melhor representa o sistema do mérito,
porque traduz um certame de que todos podem participar nas mesmas con­
dições, permitindo que sejam escolhidos realmente os melhores candidatos.
Baseia-se o concurso em três postulados fundamentais. O primeiro é o princípio
da igualdade, pelo qual se permite que todos os interessados em ingressar no
serviço público disputem a vaga em condições idênticas para todos. Depois,
o princípio da moralidade administrativa, indicativo de que o concurso veda
favorecimentos e perseguições pessoais, bem como situações de nepotismo,
em ordem a demonstrar que o real escopo da Administração é o de selecionar
os melhores candidatos. Por fim, o princípio da competição, que significa que
os candidatos participam de um certame, procurando alçar-se a classificação
que os coloque em condições de ingressar no serviço público.21
Hely Lopes Meirelles, a seu turno, afirma que:
O concurso é o meio técnico posto à disposição da Administração Pública
para obter-se moralidade, eficiência e aperfeiçoamento do serviço público e,
ao mesmo tempo, propiciar igual oportunidade a todos os interessados que
atendam aos requisitos da lei, fixados de acordo com a natureza e a com­
plexidade do cargo ou emprego, consoante determina o art. 37, II, da CF.22
Nas palavras do Ministro Eros Grau, do Supremo Tribunal
Federal, “a exigência de concurso público como regra para o acesso aos
21
22
CARVALHO FILHO. Manual de direito administrativo, p. 516.
MEIRELLES. Direito administrativo brasileiro, p. 419.
198 Daniel Pinheiro de Carvalho
cargos, empregos e funções públicas confere concreção ao princípio da
isonomia”.23
Com base nessas lições, constata-se que o concurso público é
ins­trumento de concretização, entre outros postulados, do princípio
da igualdade ou da isonomia, positivado expressamente no caput do
art. 5º da Constituição,24 que atribuiu ao referido princípio, ao lado de
suas funções principiológicas típicas (normogenética, fundamentadora,
orientadora de interpretação, entre outras, a depender da classificação
doutrinária utilizada), status de direito individual.
O Supremo Tribunal Federal, em diversas oportunidades, ressaltou
a essencialidade do concurso público para a concretização do direito à
igualdade, conforme se verifica, a título de exemplo, no seguinte aresto:
AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE – LEI ESTA­DUAL
QUE PERMITE A INTEGRAÇÃO DE SERVIDOR PÚBLICO NO QUA­
DRO DE PESSOAL DE AUTARQUIAS OU FUNDAÇÕES ESTA­­DUAIS,
INDEPENDENTEMENTE DE CONCURSO PÚBLICO (LEI COM­
PLEMENTAR Nº 67/92, ART. 56) – OFENSA AO ART. 37, II, DA CARTA
FEDERAL – DESRESPEITO AO POSTULADO CONSTI­T UCIONAL
DO CONCURSO PÚBLICO, ESSENCIAL À CONCRE­T IZAÇÃO DO
PRINCÍPIO DA IGUALDADE – AÇÃO DIRETA JULGADA PROCEDENTE.
O CONCURSO PÚBLICO REPRESENTA GARANTIA CONCRETIZADORA
DO PRINCÍPIO DA IGUALDADE, QUE NÃO TOLERA TRATAMENTOS
DISCRIMINATÓRIOS NEM LEGITIMA A CONCESSÃO DE PRIVILÉGIOS.
– A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal — tendo presente a
essencialidade do postulado inscrito no art. 37, II, da Carta Política — tem
censurado a validade jurídico-constitucional de normas que autorizam,
permitem ou viabilizam, independentemente de prévia aprovação em
concurso público de provas ou de provas e títulos, o ingresso originário no
serviço estatal ou o provimento em cargos administrativos diversos daqueles
para os quais o servidor público foi admitido. Precedentes. – O respeito
efetivo à exigência de prévia aprovação em concurso público qualifica-se,
constitucionalmente, como paradigma de legitimação ético-jurídica da
investidura de qualquer cidadão em cargos, funções ou empregos públicos,
ressalvadas as hipóteses de nomeação para cargos em comissão (CF, art. 37, II).
A razão subjacente ao postulado do concurso público traduz-se na necessidade
essencial de o Estado conferir efetividade ao princípio constitucional de que
23
24
ADI nº 3819. Tribunal Pleno. Rel. Min. Eros Grau. Julgado em 24.10.2007. DJe, 28 mar. 2008.
“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e
aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança
e à propriedade, nos termos seguintes: [...]”.
Desmilitarização da polícia – A Proposta de Emenda à Constituição nº 102/2011... 199
todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, vedandose, desse modo, a prática inaceitável de o Poder Público conceder privilégios
a alguns ou de dispensar tratamento discriminatório e arbitrário a outros.
Precedentes. Doutrina.25
O Superior Tribunal de Justiça segue a mesma orientação, conforme se verifica na ementa do acórdão proferido no julgamento do
RMS nº 28.041.26 Nesse precedente, a 1ª Turma do referido tribunal
con­signou que a Constituição de 1988 “trouxe novos ideais à sociedade
brasi­leira, dentre eles o axioma de que todos são iguais perante a lei,
insculpido no art. 5º do texto maior como cláusula imodificável” e, em
seguida, acrescentou que “o preceito fundamental da igualdade exprime o consectário da exigência de concurso público para seleção dos
me­lhores candidatos ao ingresso nos quadros da Administração Pública
direta e indireta em todos os níveis governamentais”, sem prejuízo da
inci­dência dos princípios “da legalidade, impessoalidade, moralidade,
publi­cidade e eficiência (caput do art. 37 da Constituição), que devem
ser si­mul­taneamente conjugados em concomitância com os incisos I e II
do aludido dispositivo”.
Ademais, a regra do concurso público e a vedação da ascensão
funcional e dos “concursos internos” ou com reserva de vagas para ocupantes de outros cargos são apontadas pelo Supremo Tribunal Federal
como umas das mais importantes conquistas trazidas pela Constituição
Federal de 1988 no que se refere ao respeito aos princípios republicanos
da igualdade, da impessoalidade e da moralidade no acesso aos cargos
públicos.27
Ou, como ficou registrado no voto condutor do acórdão prolatado na ADI 3443, “a igualdade de oportunidade de ingresso no serviço
público é um dos alicerces da própria noção instituída de administração
pública após a Constituição da República de 1988”.28
ADI nº 1.350. Tribunal Pleno. Rel. Min. Celso de Mello. Julgado em 24.02.2005. DJ, 1º dez. 2006. LEXSTF
v. 29, n. 340, 2007, p. 28-40.
26
RMS nº 28.041/GO. Primeira Turma. Rel. Ministro Benedito Gonçalves. Julgado em 25.08.2009. DJe, 03
set. 2009.
27
MS nº 28.279. Tribunal Pleno. Rel. Min. Ellen Gracie. Julgado em 16.12.2010. DJe, 29 abr. 2011. RT
v. 100, n. 908, 2011, p. 421-436.
28
ADI nº 3.443. Tribunal Pleno. Rel. Min. Carlos Velloso. Julgado em 08.09.2005. DJ, 23 set. 2005. LEXSTF
v. 27, n. 322, 2005, p. 75-81.
25
200 Daniel Pinheiro de Carvalho
Por fim, reitere-se que, “no tocante aos direitos e garantias individuais, mudanças que minimizem a sua proteção, ainda que topicamente,
não são admissíveis”.29
Assim, eventual proposta de emenda à Constituição que veicule
regra contrária à exigência de concurso público deve ser considerada
como violadora do direito à igualdade, inserido no rol das cláusulas
pétreas previsto no §4º do art. 60 (inciso IV).
4.2 Da inconstitucionalidade da transposição entre cargos com
atribuições, estrutura remuneratória e requisitos de ingresso
distintos
O art. 6º da PEC nº 102/2011 estabelece que, “na unificação das
polícias, os oficiais oriundos da polícia militar e os delegados de polícia
dos Estados e do Distrito Federal ficam transpostos para membro da
carreira de delegado de polícia, na forma da Lei”.
Novamente, a PEC nº 102/2011 traz dispositivo que excepciona
a exigência de concurso público para a investidura em cargos públicos.
Portanto, os mesmos argumentos desenvolvidos no tópico acima podem
ser aqui utilizados, com uma particularidade a mais: trata-se de transposição de cargos de duas carreiras que serão extintas para uma nova
carreira.
O Supremo Tribunal Federal já se pronunciou sobre o tema em caso
análogo. Na ADI nº 1591,30 decidiu-se, por maioria, favoravelmente à
Lei Complementar nº 10.933-97, do Rio Grande do Sul, que unificou na
carreira de Agente Fiscal do Tesouro as carreiras de Auditor de Finanças
Públicas e de Fiscal de Tributos Estaduais.
Nos debates, o ponto central girou em torno das atribuições de
cada uma das carreiras unificadas. A maioria dos ministros (seis contra
cinco) consignou ser possível a unificação em questão com base no fundamento de que as atribuições e as remunerações de ambos os cargos
eram semelhantes.
29
30
MENDES; BRANCO. Curso de direito constitucional.
ADI nº 1.591. Tribunal Pleno. Rel. Min. Octavio Gallotti. Julgado em 19.08.1998. DJ, 30 jun. 2000.
Desmilitarização da polícia – A Proposta de Emenda à Constituição nº 102/2011... 201
Os votos vencidos, em suma, adotaram o entendimento de que se
deve considerar o núcleo essencial do feixe de atribuições dos cargos,
ainda que eventualmente haja atividades semelhantes, e concluíram pela
impossibilidade de os ocupantes das duas carreiras originárias optarem
pelo ingresso na nova, por violação ao art. 37, II, da Constituição.
Posteriormente, na ADI nº 2713,31 reafirmou-se, novamente por
maioria, a possibilidade de unificação de carreiras, desde que “verificada a
compatibilidade funcional e remuneratória, além da equivalência dos requisitos
exigidos em concurso”.
No caso em exame, todavia, as atribuições da Polícia Militar e da
Polícia Civil são nitidamente diferentes. À primeira competem o policiamento ostensivo e a preservação da ordem pública, nos termos do §5º
do art. 144 da Constituição, enquanto à segunda cabem as funções de
polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares,
como preceitua o §4º do art. 144 da Constituição.
Ademais, a estrutura e a remuneração de ambas também é, em
regra, distinta, tendo em vista, inclusive, a existência de diversas patentes
no âmbito da polícia militar.
Melhor sorte não assiste aos requisitos de ingresso, que também
não se assemelham, tendo em vista que se exige dos delegados de polícia, mas não dos oficiais da polícia militar, o bacharelado em direito, nos
termos do art. 3º da Lei nº 12.830, de 20 de junho de 2013.32
Portanto, seguindo a contrario sensu a linha de intelecção do
Supremo Tribunal Federal nos precedentes acima estudados, chega-se
inevitavelmente à conclusão de que a pretendida transposição viola o
disposto no art. 37, II, da Constituição, com status de cláusula pétrea por
concreção do direito à igualdade, conforme visto no tópico anterior. Aliás,
na ADI nº 3.332, o Supremo Tribunal Federal foi categórico ao afirmar,
à luz do art. 37, II, da Constituição, que “é inconstitucional a chamada
investidura por transposição”.33
ADI nº 2.713. Tribunal Pleno. Rel. Min. Ellen Gracie. Julgado em 18.12.2002. DJ, 07 mar. 2003.
“Art. 3º O cargo de delegado de polícia é privativo de bacharel em Direito, devendo-lhe ser dispensado
o mesmo tratamento protocolar que recebem os magistrados, os membros da Defensoria Pública e do
Ministério Público e os advogados”.
33
ADI nº 3.332. Tribunal Pleno. Rel. Min. Eros Grau. Julgado em 30.06.2005. DJ, 14 out. 2005. LEXSTF
v. 27, n. 323, 2005, p. 70-75.
31
32
202 Daniel Pinheiro de Carvalho
Assinale-se que o mesmo raciocínio se aplica à previsão do §3º do
art. 6º da PEC nº 102/2011, que trata dos demais cargos das carreiras
policiais civil e militar.
5 Da inconstitucionalidade da cláusula que assegura aos inativos e
pensionistas das carreiras policiais as garantias da paridade e da
integralidade, por ofensa ao direito à igualdade
Segundo os ensinamentos de Paulo Bonavides, o “centro medular
do Estado social e de todos os direitos de sua ordem jurídica é indubitavelmente o princípio da igualdade”, que “materializa [...] a liberdade
da herança clássica” e “com esta compõe um eixo ao redor do qual gira
toda a concepção estrutural do Estado democrático contemporâneo”.34
Não se olvida de que é possível instituir tratamento desigual sob
determinadas condições, mas desde que tal desigualação tenha natureza
compensatória, conforme entendimento doutrinário pacífico, já acolhido
pelo Supremo Tribunal Federal em diversos precedentes, tal como na
ADI nº 3.330, de cuja ementa extraem-se as seguintes passagens:
[...] Não há outro modo de concretizar o valor constitucional da igualdade
senão pelo decidido combate aos fatores reais de desigualdade. O desvalor
da desigualdade a proceder e justificar a imposição do valor da igualdade.
[...] O típico da lei é fazer distinções. Diferenciações. Desigualações. E fazer
desigualações para contrabater renitentes desigualações. A lei existe para,
diante dessa ou daquela desigualação que se revele densamente perturbadora
da harmonia ou do equilíbrio social, impor uma outra desigualação
compensatória.35
É sob tal ótica que se deve analisar a constitucionalidade do art. 5º
da PEC em questão, que confere aos inativos e pensionistas das carreiras
policiais as garantias da integralidade e da paridade de remuneração em
relação aos servidores em atividade, dispondo de modo diverso do que
consta do §3º do art. 40 da Constituição, cuja atual redação, dada pela
EC nº 41, de 2003, extinguiu a regra da paridade e da integralidade
para os servidores públicos civis.
34
35
BONAVIDES. Curso de direito constitucional, p. 340.
ADI nº 3.330. Tribunal Pleno. Rel. Min. Ayres Britto. Julgado em 03.05.2012. DJe, 22 mar. 2013.
Desmilitarização da polícia – A Proposta de Emenda à Constituição nº 102/2011... 203
Com efeito, o §3º do art. 40 prevê que “para o cálculo dos proventos de aposentadoria, por ocasião da sua concessão, serão consideradas
as remunerações utilizadas como base para as contribuições do servidor
aos regimes de previdência de que tratam este artigo e o art. 201, na
forma da lei”.
É certo que o §4º do mesmo art. 40 permite, excepcionalmente,
a adoção de requisitos e critérios diferenciados para a concessão de
aposentadoria para os servidores portadores de deficiência, para os que
exerçam atividades de risco e para aqueles cujas atividades sejam exercidas sob condições especiais que prejudiquem a saúde ou a integridade.
Todavia, há, aí, razão para o discrímen, como forma de compensar a
desigualdade real que existe entre os servidores em tais situações, que
enfrentam condições adversas no exercício de suas atividades, e os demais.
O mesmo não se pode dizer da concessão de tratamento diferenciado à generalidade dos integrantes das carreiras policiais, independentemente do fato de exercerem suas atividades exclusivamente na sede
administrativa ou em constantes operações de elevada periculosidade.
Realmente, ainda que eventualmente seja possível, em tese, tentar
justificar a discriminação em relação aos analistas de polícia ostensivos,
que exercerão atividades de risco, não se vislumbra, por exemplo, fator
relevante de desigualdade que justifique a concessão de tratamento
privilegiado aos analistas de polícia da área cartorária ou aos peritos de
polícia, por exemplo.
Assim, entende-se pela inconstitucionalidade da PEC nº 102/2011
igualmente quanto a esse ponto, por ofensa ao direito à igualdade, previsto no art. 5º, caput, da Constituição.
6 Da desmilitarização da polícia ostensiva e unificação das polícias
O rol, em si considerado, das entidades que exercem a segurança
pública, previsto no art. 144 da Constituição, não é cláusula pétrea, sendo
possível sua alteração pelo constituinte derivado. O que não se permite
é que eventual modificação das atribuições desses órgãos interfira na
forma federativa de Estado (art. 60, §4º, I) ou na separação de Poderes
(art. 60, §4º, III).
Não haveria óbice, por exemplo, à mera unificação da polícia
rodoviária federal com a polícia ferroviária federal. O que poderia vir a
204 Daniel Pinheiro de Carvalho
ser questionado, com base no art. 60, §4º, I, da Constituição seria eventual atribuição à polícia rodoviária federal do patrulhamento ostensivo
das rodovias estaduais e das vias urbanas ou a unificação das polícias
estaduais com a polícia federal.
No caso da unificação da polícia militar com a polícia civil, estamos diante de duas instituições estaduais, igualmente subordinadas ao
governador do Estado. Assim, a mera junção das atribuições de ambos
os órgãos não afeta a separação de poderes nem o pacto federativo.
Em análise superficial, seria até possível cogitar que a intenção do
constituinte foi assegurar a existência de “exércitos” próprios de cada
Estado-membro e, consequentemente, alegar que a extinção da polícia
militar estadual afetaria o pacto federativo.
Todavia, tal entendimento não se sustenta quando confrontado com
a competência constitucionalmente atribuída às polícias militares, restrita
ao policiamento ostensivo e à preservação da ordem pública. Eventual
atuação enquanto “exército” propriamente dito apenas se admite nas
hipóteses de convocação e mobilização, na condição de reserva e força
auxiliar, pelo Exército brasileiro, cujo chefe supremo é o Presidente da
República.
A opção pelo modelo militar deve-se mais à origem da polícia do
que a eventual garantia de exércitos próprios para Estados-membros.
Aliás, sua evolução histórica, brevemente relatada no início deste artigo, remete-nos justamente à exclusão da possibilidade de os Estadosmembros utilizarem suas forças policiais como “exércitos” estaduais e ao
crescente foco de suas atribuições no policiamento ostensivo.
Por entender que o regime militar outorgado pela Constituição à
polícia ostensiva deriva de mera opção política por um regime pautado
na hierarquia e disciplina, sem repercussões relevantes no que se refere
à forma federativa de Estado, não se verifica ofensa a cláusulas pétreas
no que se refere exclusivamente à alteração do regime policial militar
para o regime policial civil.
Conclusão
A desmilitarização da polícia, tema que veio novamente à tona com
as manifestações sociais realizadas a partir de junho de 2013, é anseio
Desmilitarização da polícia – A Proposta de Emenda à Constituição nº 102/2011... 205
social, com apelo midiático, amparado pela opinião de especialistas em
segurança pública.
A alteração do regime adotado pelas polícias militares para o modelo civil reclama proposta de emenda constitucional, tendo em vista
que o art. 144 previu expressamente que se trataria de polícia “militar”.
Ademais, proposição nesse sentido seria juridicamente viável, tendo em
vista não ofender o rol de cláusulas pétreas previsto no art. 60, §4º, da
Constituição.
Contudo, a PEC nº 102/2011, que trata da possibilidade de unificação da Polícia Militar com a Polícia Civil e consequente desmilitarização
da primeira, apontada pelos movimentos sociais e pela mídia como a
solução mais célere para a questão, apresenta diversos pontos passíveis
de terem sua constitucionalidade questionada por ofenderem cláusulas
pétreas.
No presente artigo, destacou-se a inconstitucionalidade dos seguintes dispositivos: art. 4º, III e §3º; art. 5º; art. 6º, caput e §3º; e art. 10.
Tais preceitos buscaram: a) regulamentar o período de transição, com
disposições acerca a.1) da transposição dos cargos atuais para as novas
carreiras, que possuem atribuições, requisitos de ingresso e sistema remuneratório diferentes, e a.2) da forma de provimento dos novos cargos,
ressuscitando a ascensão funcional; b) atribuir privativamente à polícia
unificada o exercício da investigação criminal, retirando tal atividade
do âmbito do Ministério Público; c) revogar o controle externo sobre a
polícia exercido pelo Ministério Público; d) conceder paridade e integralidade aos inativos e pensionistas das carreiras da polícia unificada,
estabelecendo tratamento diferenciado ao concedido pela Constituição
aos demais servidores civis.
Por tal razão, considera-se que a PEC nº 102/2011 não se encontra apta a ir à votação do Congresso Nacional. Com efeito, necessita de
diversos ajustes que assegurem que a pretendida desmilitarização da
polícia respeitará o rol de cláusulas pétreas estabelecido na Constituição,
sob pena de vir a ter sua inconstitucionalidade declarada pelo Supremo
Tribunal Federal e postergar-se, ainda mais, a concretização do anseio
social por uma polícia ostensiva civil, mais próxima da população e
capaz de oferecer resposta mais adequada a situações diversas das de
enfrentamento da criminalidade.
206 Daniel Pinheiro de Carvalho
Demilitarization of the Police – Is Senate’s PEC 102/2011 Constitutional?
Abstract: The protests that occurred in June and July 2013 in Brazil made
the proposal of demilitarization of the police return to debate. One of the
possible solutions mentioned then was the approval of PEC 102, 2011,
from Senate, which unifies the civil and military police in a civil institution.
However, although the demilitarization of the police is constitutionally
possible, this proposal presents some unconstitutional rules, that offend
fundamental clauses.
Key words: Protest. Demilitarization of the Police. PEC 102/2011.
Referências
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SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. RMS nº 28.041/GO. Primeira Turma. Rel. Min.
Benedito Gonçalves, j. 25.08.2009. DJe, 03 set. 2009.
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ADI nº 1.350. Tribunal Pleno. Rel. Min. Celso de
Mello, j. 24.02.2005. DJ, 1º dez. 2006.
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ADI nº 1.591. Tribunal Pleno. Rel. Min. Octavio
Gallotti, j. 19.08.1998. DJ, 30 jun. 2000.
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ADI nº 2.713. Tribunal Pleno. Rel. Min. Ellen Gracie,
j. 18.12.2002. DJ, 07 mar. 2003.
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ADI nº 3.330. Tribunal Pleno. Rel. Min. Ayres Britto,
j. 03.05.2012. DJe, 22 mar. 2013.
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ADI nº 3.332. Tribunal Pleno. Rel. Min. Eros Grau,
j. 30.06.2005. DJ, 14 out. 2005. LEXSTF, v. 27, n. 323, 2005, p. 70-75.
208 Daniel Pinheiro de Carvalho
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ADI nº 3.443. Tribunal Pleno. Rel. Min. Carlos
Velloso, j. 08.09.2005. DJ, 23 set. 2005. LEXSTF, v. 27, n. 322, 2005, p. 75-81.
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ADI nº 3.819. Tribunal Pleno. Rel. Min. Eros Grau,
j. 24.10.2007. DJe, 28 mar. 2008.
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ADI nº 960. Tribunal Pleno. Rel. Min. Sydney
Sanches, j. 06.02.2003. DJ, 29 ago. 2003.
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. HC nº 89.837. Segunda Turma. Rel. Min. Celso de
Mello, j. 20.10.2009. DJe, 20 nov. 2009. LEXSTF, v. 31, n. 372, 2009, p. 355-412. RTJ,
v. 218, p. 272.
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. HC nº 91.661. Segunda Turma. Rel. Min. Ellen
Gracie, j. 10.03.2009. DJe, 03 abr. 2009. RMDPPP, v. 5, n. 29, 2009, p. 103-109. LEXSTF,
v. 31, n. 364, 2009, p. 339-347. RMP, n. 43, 2012, p. 211-216.
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. MS nº 28.279. Tribunal Pleno. Rel. Min. Ellen Gracie,
j. 16.12.2010. DJe, 29 abr. 2011. RT, v. 100, n. 908, 2011, p. 421-436.
VIANNA, Túlio. Desmilitarizar e unificar a polícia. Revista Forum, São Paulo, 09 jan. 2013.
Disponível em: <http://revistaforum.com.br/blog/2013/01/desmilitarizar-e-unificar-apolicia/>. Acesso em: 20 jul. 2013.
O conflito entre o regulamento
autônomo e a lei
Felipe Nogueira Fernandes
Advogado da União em exercício na Consultoria Jurídica do Ministério do Esporte.
Resumo: A concepção liberal que moldou o constitucionalismo dos séculos
XVIII e XIX enfatizou a proteção das liberdades individuais e concentrou
a função normativa no parlamento. Na medida em que o Estado passou
a intervir mais ativamente sobre o domínio econômico e social, tornou-se
necessário atribuir competência normativa ao Poder Executivo. Uma das
expressões do poder normativo do Executivo consiste no regulamento. No
Brasil, o texto original da Constituição de 1988 não previu a expedição
de regulamentos autônomos. Essa possibilidade adveio da Emenda nº 32,
de 2001, que autorizou o Chefe do Poder Executivo a dispor, mediante
decreto, sobre organização e funcionamento da Administração Pública,
desde que não houvesse aumento de despesa nem a criação ou extinção
de órgão público. Resultaram duas correntes de pensamento acerca da
extensão do poder regulamentar autônomo. A primeira delas é no sentido de que a Emenda nº 32 teria criado uma reserva de regulamento.
A outra, em sentido oposto, defende a preservação da competência do
Congresso Nacional para dispor sobre as matérias que possam ser objeto
de regulamento autônomo. Não obstante a previsão de decreto autônomo, a Constituição manteve a atribuição do Poder Legislativo para tratar
de todas as matérias de competência da União, entre elas a organização
administrativa federal. Portanto, conclui-se que não haveria reserva de
regulamento no ordenamento jurídico brasileiro. Ao lado disso, em face
do princípio da legalidade, o regulamento que trate de organização administrativa deve necessariamente respeitar eventual lei que disponha
sobre a matéria.
Palavras-chave: Poder regulamentar. Decreto autônomo. Lei. Organização
administrativa. Conflito. Princípio da legalidade.
Sumário: 1 Introdução – 2 O poder regulamentar – 3 Espécies de regulamentos – 4 O regulamento autônomo no direito brasileiro – 5 Conclusão
– Referências
1 Introdução
Quando surgiram as primeiras democracias liberais, a separação
dos poderes ou funções estatais emergiu como princípio fundamental
para a garantia das liberdades individuais. A função normativa foi concentrada nas mãos do parlamento. O Estado era então caracterizado
pelo seu absenteísmo. A preservação das liberdades individuais então
210 Felipe Nogueira Fernandes
conquistadas dependia da omissão do Estado, que se limitava a exercer
as atividades que não poderiam ser desempenhadas pelos particulares,
como a administração da Justiça, a defesa externa e a segurança interna.
Esse quadro foi radicalmente alterado durante o curso do século
XX. Por diversos fatores, o Estado assumiu um papel muito mais ativo,
passando a intervir no domínio social e econômico. A ação estatal interventiva exige a produção de normas jurídicas de conteúdo técnico com
agilidade, pois as políticas públicas surgem e se cristalizam por meio de
normas jurídicas (DERANI, 2006, p. 136). O aparato de produção de
leis desenhado após as revoluções liberais do século XVIII mostrou-se
inapropriado para atender a essa demanda (FERREIRA FILHO, 2001,
p. 275). Nesse contexto, o Poder Executivo assumiu uma função normativa mais ampla. Conforme explica Saldanha (1987, p. 64), a dilatação
dos poderes do Executivo foi uma das consequências do Estado Social.
Um dos instrumentos pelos quais o Poder Executivo exerce sua
função normativa são os regulamentos. Na França, a Constituição de 1958
contém disposição que confere amplo poder regulamentar ao Executivo
(art. 37),1 na medida em que estabelece uma espécie de reserva residual de
regulamento em contraposição às matérias que são do domínio da lei em
sentido formal (art. 34). No Brasil, entre a promulgação da Constituição
de 1988 e o advento da Emenda nº 32, de 2001, era dominante o
entendimento de que o poder regulamentar do Presidente da República
se restringia aos chamados regulamentos de execução, destinados à com­ple­
mentação das leis (CLÈVE, 2000, p. 294). Porém, com a nova redação
dada ao inciso VI do art. 84 da Constituição pela Emenda nº 32, tornou-se
explícita a possibilidade de edição de regulamentos autônomos, destinados
a disciplinar a organização e o funcionamento da Administração Pública,
desde que não implique despesa nem haja a criação ou extinção de
órgão público.
Daí surge a questão da solução a ser dada no caso de conflito entre a lei e o ato normativo emanado do Chefe do Poder Executivo, no
exercício do poder regulamentar autônomo que lhe foi atribuído pela
Constituição. Em outros termos, é necessário avaliar se a lei pode versar sobre as matérias que a Constituição inseriu no âmbito do decreto
1
“Les matières autres que celles qui sont du domaine de la loi ont un caractère réglementaire”.
O conflito entre o regulamento autônomo e a lei 211
autônomo. Em caso afirmativo, deve-se então analisar se o regulamento
que venha a ser expedido sobre tais matérias estaria ou não subordinado
à lei. É esse o propósito do presente artigo.
2 O poder regulamentar
O termo “regulamento” não é unívoco. Em sentido amplo, os regulamentos são os atos normativos expedidos pelo Poder Executivo. Em
sentido restrito, são os atos normativos expedidos pelo Poder Executivo
que se destinam à fiel execução das leis. Certos agentes públicos têm
competência para editar atos normativos com a finalidade de desenvolver as normas legais. Ao expedir esses atos, desempenham o poder
regulamentar (GASPARINI, 2005, p. 117). Nas palavras de Carvalho
Filho (2005, p. 42), “o poder regulamentar é a prerrogativa conferida
à Administração Pública de editar atos gerais para complementar as
leis e permitir a sua efetiva aplicação”. Portanto, o poder regulamentar
consiste em uma das formas de exercício da função normativa do Poder
Executivo (MEDAUAR, 2007, p. 114).
Tratando-se de normas jurídicas, os regulamentos são preceitos
imperativos, gerais e abstratos (CYRINO, 2005, p. 67). Tal como as leis
em sentido material, dos regulamentos emanam disposições gerais e
abstratas. Pode-se dizer que o regulamento assemelha-se à lei em sentido material em relação ao conteúdo. Porém, distingue-se dela quanto à
sua fonte e natureza jurídica. Enquanto a lei consiste numa norma originária (ou primária); em regra o regulamento tem natureza de norma
derivada (ou secundária), na medida em que depende de lei preexistente
(CARVALHO FILHO, 2005, p. 42).
3 Espécies de regulamentos
De acordo com a sua relação com a lei, é possível distinguir os re­
gu­­la­mentos em dois grupos: (i) os regulamentos de execução; e (ii) os
re­gu­lamentos autônomos. Os regulamentos de execução destinam-se
a de­senvolver ou pormenorizar o conteúdo de uma lei. Não podem
am­pliar ou restringir o âmbito de aplicação da lei, limitando-se a expli­
citar o seu conteúdo para que seja devidamente executada. Ao revés,
os regulamentos autônomos dispensam a existência de lei anterior,
ex­traindo o seu fundamento de validade diretamente da Constituição.
212 Felipe Nogueira Fernandes
Sobre as espécies de regulamento, cabe citar Justen Filho:
A classificação tradicional reconhece a existência teórica de duas espécies de
regulamentos. Há os regulamentos de execução e os regulamentos autônomos.
Os regulamentos de execução pressupõem a existência de uma lei, cujas
nor­mas são objeto de sua explicitação e desenvolvimento. O regulamento
de execução contempla regras mais explícitas destinadas a permitir e a
facilitar a aplicação de normas contidas em uma lei. Então, o fundamento
ime­diato de validade das normas dos regulamentos de execução encontra-se
nas normas da lei.
Os regulamentos autônomos são aqueles desvinculados de uma lei. O regulamento autônomo encontra seu fundamento de validade diretamente na
Constituição, de modo a dispensar a existência de uma lei. Por meio de um
regulamento autônomo, são criados direitos e obrigações sem a prévia exis­
tência de lei. A adoção de um regulamento autônomo significa que o Poder
Executivo inova na ordem jurídica. (JUSTEN FILHO, 2008, p. 112)
É importante perceber que todos os regulamentos, em último grau,
possuem fundamento de validade na Constituição. O que diferencia o
regulamento de execução do regulamento autônomo é exatamente a intermediação da lei entre o ato regulamentar e a Constituição. Enquanto
no regulamento de execução essa intermediação é absolutamente imprescindível, os regulamentos autônomos podem haurir o seu fundamento
de validade diretamente da Carta Política.
Nesse sentido, é pertinente reproduzir o seguinte trecho da obra
de Cyrino:
O fundamento do regulamento é sempre a Constituição. No entanto,
diferenciam-se duas espécies básicas: (i) os que são editados para a execução
ou complementação da lei e (ii) aqueles editados sem qualquer lei prévia,
mas com base direta em atribuição constitucional. (CYRINO, 2005, p. 76)
Conforme seus efeitos, os regulamentos também podem ser classificados em: (i) regulamentos externos; e (ii) regulamentos internos.
Os regulamentos internos produzem efeitos unicamente no interior da
Administração, não atingindo terceiros, a não ser de modo reflexo. Já
os regulamentos externos produzem efeitos em relação a terceiros que
estiverem sujeitos à incidência da lei regulamentada (CLÈVE, 2011,
p. 322-323).
O conflito entre o regulamento autônomo e a lei 213
4 O regulamento autônomo no direito brasileiro
Enquanto vigorou a redação original do art. 84 da Constituição de
1988,2 sedimentou-se o entendimento de que o ordenamento jurídico
brasileiro não admitia os chamados decretos autônomos, haja vista que
tanto o seu inciso IV como o seu inciso VI exigiam a preexistência de
lei para que o Presidente da República pudesse expedir essa categoria
de ato normativo.
Esse quadro foi sensivelmente alterado pela Emenda Constitucional
nº 32, de 2001, que deu nova redação ao inciso VI do art. 84 da
Constituição, autorizando que o Presidente da República disponha,
mediante decreto, sobre organização e funcionamento da Administração
federal, quando não implicar aumento de despesa nem criação ou extinção de órgãos públicos.3 A Emenda nº 32 também alterou a redação do
inciso XI do art. 48, que trata das atribuições do Congresso Nacional,
excluindo a referência expressa à estruturação de ministérios e órgãos
da Administração Pública.
Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República: [...]
VI - dispor, mediante decreto, sobre: a) organização e funcionamento da administração federal, quando não implicar aumento de despesa nem criação
ou extinção de órgãos públicos;
Art. 48. Cabe ao Congresso Nacional, com a sanção do Presidente da
República, não exigida esta para o especificado nos arts. 49, 51 e 52, dispor
sobre todas as matérias de competência da União, especialmente sobre: [...]
XI - criação e extinção de Ministérios e órgãos da Administração Pública;
A respeito do tema, assim afirma Gilmar Mendes:
A modificação introduzida pela EC n. 32/2000 (sic) inaugurou, no sistema
constitucional de 1988, o assim chamado “decreto autônomo”, isto é, decreto
de perfil não regulamentar, cujo fundamento de validade repousa diretamente
na Constituição.
Ressalte-se, todavia, que o decreto de que cuida o art. 84, VI, da Constituição
limita-se às hipóteses de “organização e funcionamento da administração
Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República: [...] IV - sancionar, promulgar e fazer
publicar as leis, bem como expedir decretos e regulamentos para sua fiel execução; [...] VI - dispor sobre
a organização e o funcionamento da administração federal, na forma da lei;
3
A expressão “órgão público”, constante do art. 84, VI, “a” da Constituição, deve ser entendida de forma
ampla, de modo a abranger também as entidades públicas (autarquias, fundações e sociedades empresárias
estatais), a fim de compatibilizar-se com o art. 37, XIX, da Constituição.
2
214 Felipe Nogueira Fernandes
federal, quando não implicar aumento de despesa nem criação ou extinção de
órgãos públicos”, e de “extinção de funções ou cargos públicos, quando vagos”.
Em todas essas situações, a atuação do Poder Executivo não tem força criadora autônoma, nem parece dotada de condições para inovar decisivamente
na ordem jurídica, uma vez que se cuida de atividades que, em geral, estão
amplamente reguladas na ordem jurídica. (MENDES, 2012, p. 984)
No julgamento da ADI nº 2.564, o Supremo Tribunal Federal
reconheceu o poder atribuído ao Presidente da República para expedir
decretos autônomos que disponham sobre a organização e funcionamento da Administração Pública federal, quando não houver aumento
de despesa nem criação ou extinção de órgãos públicos. Esta é a ementa
do julgado:
AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. DECRETO Nº 4.010,
DE 12 DE NOVEMBRO DE 2001. PAGAMENTO DE SERVIDORES
PÚBLICOS DA ADMINISTRAÇÃO FEDERAL. LIBERAÇÃO DE
RECURSOS. EXIGÊNCIA DE PRÉVIA AUTORIZAÇÃO DO PRESIDENTE
DA REPÚBLICA. Os artigos 76 e 84, I, II e VI, “a”, todos da Constituição
Federal, atribuem ao Presidente da República a posição de Chefe supremo
da Administração Pública federal, ao qual estão subordinados os Ministros
de Estado. Ausência de ofensa ao princípio da reserva legal, diante da nova
redação atribuída ao inciso VI do art. 84 pela Emenda Constitucional nº 32/01,
que permite expressamente ao Presidente da República dispor, por decreto,
sobre a organização e o funcionamento da administração federal, quando isso
não implicar aumento de despesa ou criação de órgãos públicos, exceções
que não se aplicam ao Decreto atacado. Ação direta de inconstitucionalidade
cujo pedido se julga improcedente. (ADI nº 2.564, DJ, 06 fev. 2004, p. 21)
Portanto, a Emenda Constitucional nº 32, de 2001, introduziu o
chamado regulamento autônomo no ordenamento jurídico brasileiro,
limitado o seu campo de atuação à organização e funcionamento da
Administração Pública, vedados a criação ou extinção de órgãos e o aumento de despesa. Em suma, foi atribuído ao Chefe do Poder Executivo o
poder de expedir regulamentos autônomos de efeitos internos. De certa forma,
a Emenda Constitucional nº 32 conferiu ao Chefe do Poder Executivo
prerrogativa semelhante à de que já dispunham os demais Poderes, para
editar regimentos internos4 (AMARAL JÚNIOR, 2003). Por isso, essa espécie de
4
Vide os arts. 49, VI e VII; 51, III e IV; 52, XII e XIII; 57, §3º, II; e 96, I, “a” e “b”, da Constituição.
O conflito entre o regulamento autônomo e a lei 215
ato normativo também é denominada de regulamento de organização, conforme
explica José Afonso da Silva:
O regulamento autônomo, no sentido em que é admitido no Direito Cons­ti­
tucional e no direito estrangeiro, não encontra guarida na Constituição. Dá
ela, contudo, agora, em virtude da redação dada pela EC-32/2001, funda­
mento ao regulamento de organização como uma forma limitada de regu­
lamento autônomo. (SILVA, 2009, p. 426)
Essas alterações constitucionais provocaram entendimentos diver­
gentes quanto à existência ou não de uma separação absoluta entre os
campos de atuação da lei e do decreto, em particular no que tange à
organização e funcionamento da Administração Pública, quando não
implicar aumento de despesa nem criação ou extinção de órgãos públicos.
Fabrício Motta explica com precisão o alcance da controvérsia:
Formaram-se basicamente duas linhas opostas de entendimento a respeito da
questão. Em um lado da disputa, serve como exemplo o fecundo estudo de
André Rodrigues Cyrino, para quem as matérias que agora são atribuições
normativas autônomas do Chefe do Executivo estão fora do processo
legislativo, em razão de mudança no princípio da universalidade temática
do Legislativo. Segundo o autor “os regulamentos autônomos existem num
âmbito de reserva administrativa delimitada pela Constituição, sendo a invasão
dessas matérias pela lei considerada inconstitucional. As matérias reservadas
ao regulamento autônomo são as relativas à organização e ao funcionamento
da Administração Pública, quando isso não implicar aumento de despesa”.
Gustavo Binenbojm, em sentido oposto, entende que a preferência da lei
é garantia fundamental dos cidadãos, sendo desdobramento necessário
do sistema de separação de poderes do Estado. Nesse sentido, de acordo
com o autor, o artigo consagra apenas [...] uma hipótese de admissibilidade
expressa do regulamento autônomo — e não uma verdadeira reserva de
poder regulamentar. (MOTTA, 2007, p. 163-164)
Ao julgar a ADI nº 2.806, proposta contra lei de iniciativa
parlamentar do Estado do Rio Grande do Sul, o Supremo Tribunal
Federal considerou inconstitucional, dentre outros, o dispositivo que
dispunha sobre procedimentos para a aplicação de provas de segunda
chamada a alunos de escolas públicas e privadas que faltassem por
motivos de crença religiosa (art. 2º da Lei Estadual nº 11.830, de 2002).
Dentre os fundamentos expostos pelo Ministro Relator Ilmar Galvão
216 Felipe Nogueira Fernandes
está a violação da competência privativa do Chefe do Poder Executivo
gaúcho para disciplinar a organização e o funcionamento das escolas pú­
blicas do respectivo ente federativo, por aplicação simétrica do art. 84,
inciso VI, alínea “a”, da Constituição Federal. Em seu voto, o Ministro
Relator afirma o seguinte:
O art. 2º, por sua vez, no que toca às escolas públicas de primeiro e segundo
graus, revela-se ofensivo ao art. 84, VI, “a”, da Constituição, por igual de
aplicação extensiva aos Estados, visto cuidar de órgão da Administração, cuja
organização e funcionamento hão de ser disciplinados, privativamente, por
decreto do Chefe do Poder Executivo. (Voto do Min. Rel. Ilmar Galvão na
ADI nº 2.806, p. 366)
Assim está ementado o acórdão da referida ADI nº 2.806:
EMENTA: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI
Nº 11.830, DE 16 DE SETEMBRO DE 2002, DO ESTADO DO RIO GRANDE
DO SUL. ADEQUAÇÃO DAS ATIVIDADES DO SERVIÇO PÚBLICO
ESTADUAL E DOS ESTABELECIMENTOS DE ENSINO PÚBLICOS E
PRIVADOS AOS DIAS DE GUARDA DAS DIFERENTES RELIGIÕES
PROFESSADAS NO ESTADO. CONTRARIEDADE AOS ARTS. 22, XXIV;
61, §1º, II, C; 84, VI, A; E 207 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. No que
toca à Administração Pública estadual, o diploma impugnado padece de
vício formal, uma vez que proposto por membro da Assembléia Legislativa
gaúcha, não observando a iniciativa privativa do Chefe do Executivo, corolário
do princípio da separação de poderes. Já, ao estabelecer diretrizes para as
entidades de ensino de primeiro e segundo graus, a lei atacada revela-se
contrária ao poder de disposição do Governador do Estado, mediante decreto,
sobre a organização e funcionamento de órgãos administrativos, no caso das
escolas públicas; bem como, no caso das particulares, invade competência
legislativa privativa da União. Por fim, em relação às universidades, a Lei
estadual nº 11.830/2002 viola a autonomia constitucionalmente garantida
a tais organismos educacionais. Ação julgada procedente. (ADI nº 2.806, DJ,
27 jun. 2003, p. 29)
Parte da doutrina (ALEXANDRINO, 2004, p. 137; CYRINO, 2005,
p. 142-161; e AMARAL JÚNIOR, 2003) sustenta esse mesmo entendimento, ou seja, de que haveria uma reserva privativa de regulamento
em relação às matérias que possam ser objeto de decreto autônomo.
É este o fundamento que sustenta a conclusão de que as leis anteriores à Emenda Constitucional nº 32, de 2001, que dispuseram sobre
organização e funcionamento da Administração Pública sem que tenha
O conflito entre o regulamento autônomo e a lei 217
resultado aumento de despesa, criação ou extinção de órgão público,
teriam sido então “recepcionadas” com status de decreto executivo (deslegalização), o que permitiria a sua alteração por regulamento expedido
pelo Presidente da República. Já houve casos em que isso efetivamente
ocorreu. O art. 32 da Lei nº 10.180, de 20015 foi alterado pelo Decreto
nº 4.427, de 2002. Da mesma forma, o Decreto nº 3.995, de 2001, alterou
diversos dispositivos da Lei nº 6.385, de 1976.6
Por outro lado, o entendimento de que haveria uma reserva absoluta de regulamento para tratar das matérias indicadas no art. 84, VI,
“a” da Constituição conduziria à conclusão de que seriam formalmente
inconstitucionais todas as leis posteriores à Emenda nº 32, de 2001, que
tenham tratado sobre organização e funcionamento da Administração
Pública, com exceção dos casos em que tenha ocorrido aumento de
despesa, criação ou extinção de órgãos públicos.
Ao contrário do que defende Amaral Júnior (2003), ante a ausência
de disposição constitucional expressa que assim estabeleça, não parece
ser consistente o entendimento de que, à semelhança do que ocorre em
França, eventuais leis que tratem de matéria reservada ao regulamento
autônomo seriam válidas como se decretos fossem. Neste ponto, cabe
destacar que o Supremo Tribunal Federal atualmente adota o entendimento de que a sanção presidencial não supre vício de iniciativa (Rp
nº 890/GB; ADI nº 700/RJ; ADI nº 2.113/MG). Da mesma forma, a sanção
não seria capaz de convalidar vício ainda mais grave, decorrente de eventual
incompetência do Congresso Nacional para disciplinar determinado tema por
lei. Em consequência, o entendimento de que haveria uma reserva de
regulamento conduziria à conclusão de que seriam inconstitucionais
todas as leis posteriores à Emenda Constitucional nº 32, de 2001, que
violassem essa suposta reserva e que não são poucas.
Art. 32. Os cargos em comissão, no âmbito da Secretaria Federal de Controle Interno da CorregedoriaGeral da União, assim como os cargos de Assessor Especial de Ministro de Estado incumbido de funções
de Controle Interno, serão providos, preferencialmente, por ocupantes dos cargos efetivos da carreira de
Finanças e Controle. (Redação dada pelo Decreto nº 4.427, de 17.10.2002) §1º Na hipótese de provimento
dos cargos de que trata este artigo por não integrantes da carreira de Finanças e Controle, será exigida a
comprovação de experiência de, no mínimo, cinco anos em atividades de auditoria, de finanças públicas
ou de contabilidade pública. (Redação dada pelo Decreto nº 4.427, de 17.10.2002)
6
Contraditoriamente, o art. 6º da Lei nº 6.385, de 1976, foi alterado por uma lei superveniente à Emenda
nº 32 (Lei nº 10.411, de 2002).
5
218 Felipe Nogueira Fernandes
Não obstante abalizadas opiniões em contrário, não parece que
seja possível deduzir que a Emenda Constitucional nº 32 teria estabelecido uma reserva absoluta de regulamento, intransponível ao Poder
Legislativo.
A competência do Congresso Nacional para dispor, mediante
lei, sobre “sobre todas as matérias de competência da União” continua
prevista no caput do art. 48 da Constituição. Por conseguinte, a lista de
competências legislativas constantes dos incisos do art. 48 da Constituição
não pode ser considerada exaustiva. Não bastasse isso, o inciso IX
do pró­prio art. 48 da Constituição mantém intocada a competência do
Congresso Nacional para dispor sobre “organização administrativa [...]
da União e dos Territórios”.
Art. 48. Cabe ao Congresso Nacional, com a sanção do Presidente da Repú­
blica, não exigida esta para o especificado nos arts. 49, 51 e 52, dispor sobre
todas as matérias de competência da União, especialmente sobre: [...]
IX - organização administrativa, judiciária, do Ministério Público e da Defen­
soria Pública da União e dos Territórios e organização judiciária e do Minis­
tério Público do Distrito Federal; (Redação dada pela Emenda nº 69, de 2012)
Mais uma vez, cabe citar Justen Filho:
No direito brasileiro, a expressão reserva de lei até pode ser utilizada, mas não
apresenta maior utilidade. Em princípio, todas as matérias são reservadas à
lei, e o Poder Executivo não pode opor-se a que o Poder Legislativo discipline
certos temas por meio de lei. Portanto, a Constituição brasileira reserva todos
os assuntos (como regra) para serem disciplinados por lei. Não existe um
conjunto de temas subordinados a uma reserva de regulamento. (JUSTEN
FILHO, 2008, p. 113)
Diante disso, pode-se concluir que a Emenda nº 32, de 2001, não
retirou do Congresso Nacional a competência para dispor sobre organização e funcionamento da Administração Pública federal, desde que
observada a iniciativa privativa do Presidente da República (art. 61, §1º,
II, “e”, CRFB).7 No entanto, o art. 84, VI, “a” da Constituição autoriza
7
Art. 61. A iniciativa das leis complementares e ordinárias cabe a qualquer membro ou Comissão da Câmara
dos Deputados, do Senado Federal ou do Congresso Nacional, ao Presidente da República, ao Supremo
Tribunal Federal, aos Tribunais Superiores, ao Procurador-Geral da República e aos cidadãos, na forma e
O conflito entre o regulamento autônomo e a lei 219
que o Presidente da República disponha sobre essa matéria mediante
decreto mesmo quando não haja prévia lei a respeito, hipótese em que
o ato normativo assumiria a feição de regulamento autônomo. Portanto,
o Chefe do Poder Executivo não dependeria da existência de lei prévia
para disciplinar a organização e o funcionamento da Administração
Pública, desde que não aumente despesa nem se proponha a criar ou
extinguir órgão público.
Por conseguinte, o mais consentâneo com os dispositivos constitucionais que atualmente preveem as atribuições do Congresso Nacional e
do Presidente da República é que, em matéria de organização administrativa, quando não houver aumento de despesa, criação ou extinção de
órgão público, haveria uma espécie de competência normativa concorrente
entre o regulamento e a lei para tratar do tema.
Outro argumento em favor da ausência de reserva absoluta de
regulamento é que a Constituição manteve a competência privativa
do Congresso Nacional quanto à criação e extinção de órgãos públicos
(art. 48, XI, CRFB). Portanto, caso se considerasse que a organização e
o funcionamento da Administração Pública somente pudessem ser disciplinados por decreto executivo, nem mesmo a lei que criasse órgãos ou
entidades da Administração Pública poderia disciplinar a sua estruturação
interna. Seria algo destituído de substância a lei que, a despeito de criar
um órgão ou entidade pública, silenciasse completamente acerca de sua
organização e funcionamento. Ademais, são inúmeras as leis posteriores
à Emenda nº 32 que tratam de organização interna e funcionamento
de órgãos e entidades da Administração Pública federal, proposta pelo
próprio Presidente da República.
Além disso, a Constituição ainda mantém diversos dispositivos que
atribuem expressamente à lei a função de disciplinar a organização e
funcionamento de órgãos e entidades da Administração Pública, como
é o caso dos territórios federais (art. 33, CRFB),8 do Conselho da Re­
pública (art. 90, §2º, CRFB),9 do Conselho de Defesa Nacional (art. 91,
nos casos previstos nesta Constituição. §1º São de iniciativa privativa do Presidente da República as leis
que: [...] II - disponham sobre: [...] e) criação e extinção de Ministérios e órgãos da administração pública,
observado o disposto no art. 84, VI;
8
“Art. 33. A lei disporá sobre a organização administrativa e judiciária dos Territórios”.
9
“Art. 90. [...] §2º A lei regulará a organização e o funcionamento do Conselho da República”.
220 Felipe Nogueira Fernandes
§2º, CRFB),10 e da Advocacia-Geral da União (art. 131, CRFB).11 Assim,
compreendida em seu conjunto, percebe-se que a Constituição não retirou do Poder Legislativo a competência para dispor, mediante lei, sobre
organização e funcionamento da Administração Pública.
Consequentemente, em matéria de organização administrativa
que não implique aumento de despesa, criação ou extinção de órgão
pú­blico, pode-se considerar que, desde a Emenda Constitucional nº 32,
vigora uma competência normativa concorrente entre o Chefe do Poder Executivo
e o Congresso Nacional. Cabe ressalvar mais uma vez, entretanto, a impossibilidade de iniciativa parlamentar no caso de leis que versem sobre
organização administrativa em geral (art. 61, §1º, II, “b” e “e”, CRFB).
Por outro lado, isso não significa que o regulamento tenha sido alçado ao mesmo
patamar da lei.
É decorrência do Estado Democrático de Direito que todas as
pessoas estejam subordinadas à lei, inclusive o Presidente da República.
Como ensina Ferreira Filho (2001, p. 204), “é até redundante mencionar
a importância da lei no Estado de Direito, dado que este se caracteriza
fundamentalmente pela sujeição de tudo e todos à lei”.
Embora o Chefe do Poder Executivo também detenha legitimidade
popular, é no Congresso Nacional que se reflete o pluralismo político
da sociedade, um dos fundamentos da República Federativa do Brasil
(art. 1º, V, CRFB).12 É no Poder Legislativo onde está assegurada a participação das minorias no processo decisório relacionado aos assuntos
públicos. Portanto, nada mais óbvio que a superioridade da lei em face do
regulamento. Nada mais consentâneo com os princípios democráticos
do que a primazia da norma que emana do Congresso Nacional sobre
aquela que se origina da vontade de uma única pessoa, ainda que se trate
do Presidente da República. Como afirma Bonavides (1986, p. 114), o
princípio da legalidade pressupõe um respeito rigoroso à hierarquia das normas.
“Art. 91. [...] §2º A lei regulará a organização e o funcionamento do Conselho de Defesa Nacional”.
“Art. 131. A Advocacia-Geral da União é a instituição que, diretamente ou através de órgão vinculado,
representa a União, judicial e extrajudicialmente, cabendo-lhe, nos termos da lei complementar que
dispuser sobre sua organização e funcionamento, as atividades de consultoria e assessoramento jurídico
do Poder Executivo”.
12
“Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e
do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: [...] V - o
plura­lismo político”.
10
11
O conflito entre o regulamento autônomo e a lei 221
Novamente, é relevante mencionar o entendimento de Justen Filho:
É pacífico o entendimento de que o regulamento não pode infringir a lei.
O regulamento tem hierarquia normativa inferior ao da lei, de modo que a
contradição com a norma legal acarreta a invalidade do dispositivo nele con­
tido. Nenhum doutrinador defende a tese de que uma norma legal poderia
ser derrogada por meio de dispositivo regulamentar. (JUSTEN FILHO,
2008, p. 115)
Por isso, aplica-se ao ordenamento jurídico brasileiro o princípio
que Canotilho (2003) denomina de congelamento do grau hierárquico. A
esse respeito, assim explica o professor português:
Quando uma matéria tiver sido regulada por acto legislativo, o grau hierár­
quico desta regulamentação fica congelado e só um outro acto legislativo
poderá incidir sobre a mesma matéria, interpretando, alterando, revogando
ou integrando a lei anterior. Os princípios da tipicidade e da preeminência da
lei justificam logicamente o princípio do congelamento do grau hierárquico: uma
norma legislativa nova, substitutiva, modificativa ou revogatória de outra, deve
ter uma hierarquia normativa pelo menos igual à da norma que se pretende
alterar, revogar, modificar ou substituir. (CANOTILHO, 2003, p. 841)
Apesar de haver dispensado a lei no que se refere ao disciplinamento da organização e funcionamento da Administração Pública, quando
não houver aumento de despesa, a Constituição não atribuiu ao regulamento
autônomo o mesmo nível hierárquico da norma legal, muito menos dispensou o
Presidente da República do cumprimento das leis, mesmo aquelas que tratem
dos assuntos que poderiam ser regulados por via de decreto autônomo. Se a lei que verse sobre organização administrativa é válida ante a
Constituição, deve necessariamente ser observada pela Administração
Pública, incluído o Chefe do Poder Executivo.
Por conseguinte, considerando que são constitucionais as leis que
versem sobre organização administrativa, ainda que não haja aumento
de despesa, desde que respeitada a iniciativa privativa do Chefe do Poder
Executivo, deve ela ser fielmente observada por todos. Trata-se de exigência que decorre do princípio da legalidade. Nem mesmo o Presidente
da República, no legítimo exercício de seu poder regulamentar, está
dispensado do cumprimento da lei. Diante disso, no caso de conflito
222 Felipe Nogueira Fernandes
entre o regulamento e a lei, mesmo no âmbito de matérias em que seja
possível expedir decreto autônomo, é a lei que deve sempre prevalecer, seja
ela anterior ou posterior ao ato do Poder Executivo.
Sobre o tema, esta é a posição de Clèmerson Merlin Clève:
No Brasil, alguns juristas, vigente a última Constituição, admitiram os regu­
la­men­tos autônomos. Fundamentavam a tese, basicamente, com o art. 81, V,
que dotava o Presidente da República de competência para “dispor sobre
a estruturação, atribuições e funcionamento dos órgãos da administração
federal”. Hoje, o dispositivo encontra-se (art. 84, VI, da CF) redigido de modo
a conferir ao Chefe do Poder Executivo competência para dispor, mediante
decreto, sobre a organização e o funcionamento da Administração Federal,
bem como a extinção de funções ou cargos públicos, quando vagos. O que
permite que alguns juristas estejam a defender, vigente a atual Constituição,
em virtude da redação conferida pela Emenda Constitucional 32/2001, tratarse a hipótese do art. 84, VI de verdadeiro regulamento autônomo. Ocorre
que o regulamento autônomo reclama a partilha de competência normativa,
tal como ocorre na França. Não é o que parece manifestar-se no caso
brasileiro. Aliás, o legislador não fica impedido de dispor sobre as matérias
elencadas no art. 84, VI. E nesse caso, havendo lei prévia, fica o Presidente
da República limitado ao que ela especifica (“organização e funcionamento
da Administração Federal, quando não implicar aumento de despesa nem
criação ou extinção de órgãos públicos”), exceto na hipótese da letra “b”, em
função da qual está o Presidente da República autorizado a extinguir cargo
público criado (necessariamente) por lei. Não há aqui regulamento autônomo.
Há, sim, manifestação de “Mera competência para um arranjo intestino dos
órgãos e competências já criadas por lei”. (CLÈVE, 2011, p. 325-326)
Portanto, para Clève (2011), o Congresso Nacional não está impedido de legislar acerca das matérias sobre as quais o Presidente da
República possa dispor por meio de “decreto autônomo” (art. 84, VI,
“a”, CRFB) e, em assim fazendo, o Chefe do Poder Executivo fica obrigado a
observar o disciplinamento legal.
Como explica Hans Kelsen (1998, p. 146), “se uma norma do
escalão inferior é considerada como válida, tem de se considerar como
estando em harmonia com uma norma do escalão superior”. Portanto,
entre normas de escalões diferentes não pode haver qualquer conflito.
Neste ponto, vale transcrever a lição de Norberto Bobbio:
Uma das consequências da hierarquia normativa é justamente esta: as normas
superiores podem revogar as inferiores, mas as inferiores não podem revogar
as superiores. A inferioridade de uma norma em relação a outra consiste
O conflito entre o regulamento autônomo e a lei 223
na menor força de seu poder normativo; essa menor força se manifesta
justamente na incapacidade de estabelecer uma regulamentação que esteja
em oposição à regulamentação de uma norma hierarquicamente superior.
(BOBBIO, 2011, p. 97)
Cabe mencionar ainda que um dos fundamentos mais relevantes
que levaram à ampliação da função normativa do Poder Executivo foi a
sua maior capacidade para editar preceitos jurídicos com agilidade, em
contraposição ao lento processo legislativo. Segundo André Cyrino (2005,
p. 35), “o Poder Executivo, no estado contemporâneo, continua a ter um
papel de destaque, gozando de uma série de atribuições ditas atípicas,
sobretudo de caráter normativo, diante da necessidade de respostas rápidas e eficientes do aparato estatal”. Mas, para que essa finalidade seja
atingida, é suficiente a autorização constitucional para que o Presidente
da República, ausente qualquer lei sobre o assunto, baixe normas mediante regulamentos autônomos, entre outros instrumentos legais. Em
outros termos, o fundamento político que justifica a ampliação do poder
regulamentar não autoriza a conclusão de que os decretos emanados do
Poder Executivo possam rivalizar com a lei, muito menos se sobrepor a
ela. Isso significa que o poder regulamentar autônomo não permite que
o Chefe do Poder Executivo descumpra a lei, mas apenas que discipline
determinadas matérias autonomamente, quando não houver lei.
Em outro trecho de sua obra, ao explicar o princípio da precedência
da lei, Clève conclui o seguinte:
O Estado Democrático de Direito exige não apenas uma vinculação negativa
(dever de não contrariar), mas também uma vinculação positiva (dever
de apontar o fundamento legal) da Administração à lei. Assim, exceto no
caso do regulamento de organização, ou para tornar operativa uma norma
constitucional (i) aplicável de modo direto ao universo da Administração
Pública ou (ii) definidora de direito fundamental dependente da ação do
Executivo, não é legítima a edição de regulamento sem a prévia existência
de lei. Ora, o regulamento presta-se para favorecer a aplicação da lei.
Agora, mesmo os regulamentos baixados, nos casos citados, para viabilizar
a aplicação de norma constitucional exigente de ação imediata do Poder
Público, inexistindo reserva de lei e mantida a inércia do Legislador, residem
em patamar hierárquico inferior ao da lei. Portanto, estes regulamentos
expedidos com fundamento direto na norma constitucional não impedem a
posterior ação do legislador, cedendo ademais ao comando legal definido por
ele. A lei, mesmo neste caso, prefere ao regulamento. (CLÈVE, 2011, p. 320)
224 Felipe Nogueira Fernandes
É evidente a importância de atribuir flexibilidade para que a
Admi­nistração Pública se reorganize sempre que necessário. Para isso,
a possibilidade de expedir decretos autônomos já é suficiente. Não é
razoável que o Presidente da República possa, mediante decreto, desfigurar leis anteriores que tratem sobre organização administrativa e que
foram originadas de proposições do próprio Poder Executivo. Sempre
que houver necessidade de maior flexibilidade, a lei não deve tratar de
assuntos inerentes à organização e funcionamento da Administração
Pública, sob pena de ocorrer o congelamento do grau hierárquico da norma
com a consequente impossibilidade de disciplina em contrário por meio
de regulamento. Nesse contexto, sem negar a sua subordinação à lei, os
regulamentos e outros atos normativos infralegais são capazes de conferir
maior flexibilidade ao ordenamento jurídico positivo ao mesmo tempo
em que fica mantida a autoridade do Congresso Nacional e a ideia da
pirâmide normativa de Kelsen.
5 Conclusão
Pelo exposto, conclui-se que não há no ordenamento jurídico brasileiro um campo que seja reservado apenas ao regulamento. Mesmo no
caso das matérias que podem ser objeto de decreto autônomo, é constitucional a lei que vier a disciplinar o mesmo assunto, desde que respeitada
a iniciativa do Chefe do Poder Executivo. Em homenagem ao princípio
da legalidade, fundamento do Estado Democrático de Direito, o conflito entre o regulamento e a lei só pode resolver-se em favor desta. Não
obstante o Presidente da República detenha competência constitucional
para expedir decretos autônomos sobre organização e funcionamento
da Administração Pública federal, quando não haja aumento de despesa
nem criação ou extinção de órgão público, deve respeitar eventual lei
que regule o assunto.
The Conflict between the Autonomous Regulation and the Law
Abstract: The liberal constitutionalism that shaped the eighteenth and
nineteenth centuries emphasized the protection of individual liberties
and focused normative role on parliament. Insofar the state began to
intervene more actively on the economic and social domain, it became
necessary to assign legislative powers to the executive branch. One of the
expressions of the normative power of the Executive is regulation. In Brazil,
O conflito entre o regulamento autônomo e a lei 225
the original text of the Constitution of 1988 did not provide autonomous
executive ordinances. This possibility came from the Amendment n. 32,
2001, which authorized the Chief Executive to provide by decree on the
organization and functioning of public administration, since there was no
increase in spending or the creation or dissolution of a public agency. Two
schools of thought about the extent of autonomous regulatory power have
arisen. The first is in the sense that Amendment n. 32 would have created
a reserve of regulation. The other, in the opposite direction, upholds the
preservation of the competence of Congress to provide about subjects
that may be regulated by independent decree. Despite the provision of
autonomous decree, the Constitution maintained the assignment of the
Legislature to deal with all matters within the jurisdiction of the Union,
including the federal administrative organization. Therefore, it is possible
to conclude that there are no reserved field to the executive ordinances
in the Brazilian legal regulation. Besides that, because of the principle of
legality, the regulation that addresses administrative organization must
necessarily respect any law that provides about that kind of matter.
Key words: Regulatory power. Independent regulation. Law. State organization. Conflict. Principle of legality.
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A judicialização de políticas públicas
relativas à segurança pública é o
melhor caminho?
André Petzhold Dias
Advogado da União. Bacharel pela USP. Mestre em Direito Processual pela USP. Doutorando
em Direito Processual pela USP. Professor Universitário.
Resumo: O presente texto tem como objetivo analisar a questão da segurança pública e a qualidade de eventual intervenção do Poder Judiciário
na definição das políticas públicas que definem a atuação estatal nesse
campo. Para tanto, preliminarmente é feita uma análise histórica do tema,
buscando demonstrar sua relação com a origem do Estado. Em seguida,
analisa-se a segurança pública a partir do atual ordenamento jurídico. Uma
vez definido seu conceito, o estudo foca na intervenção do Poder Judiciário,
demonstrando a ineficiência dessa intervenção em razão das características
da atuação criminosa, bem como das regras processuais vigentes.
Palavras-chave: Segurança pública. Políticas públicas. Judicialização.
Sumário: 1 Introdução – 2 Do estado de natureza à reunião em sociedade
(Estado Político) – 3 Visão atual do Estado Liberal e sua atuação – 4 Se­
gurança pública na CF 88 – Preâmbulo, artigo 5º, 6º e 144 – 5 Carac­te­
rísticas do direito à segurança pública – 6 Políticas Públicas – Conceito,
características e consequências de sua formulação e implementação coercitiva pelo Poder Judiciário – 7 Necessidade de constante atualização de
políticas de segurança pública – 8 Rigidez das fases procedimentais como
incompatibilidade – 9 Institutional choice – O Judiciário é a melhor instituição para decidir sobre políticas de segurança pública? – 10 Considerações
finais – Referências
1 Introdução
É lugar comum tratar-se doutrinariamente da judicialização das
políticas públicas fazendo-se referência aos modelos de Estado e sua
evolução: do Estado Liberal, berço do constitucionalismo moderno, ao
Estado Social, com a previsão normativa de direitos sociais demonstrando maior preocupação com a igualdade material, e, por fim, o Estado
Democrático de Direito, que seria o estágio atual.
O presente estudo terá como ponto de partida a demonstração
de que a busca por segurança antecede (e muito) o constitucionalismo
mo­derno, identificado nos marcos da Constituição Americana de 1787,
228 André Petzhold Dias
na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, e na
Constituição Francesa de 1791. Os pensadores políticos clássicos a serem citados adiante (Locke, Hobbes e Montesquieu) demonstram que a
busca por segurança está na origem da própria sociedade. A propósito,
veja-se que tal digressão já foi feita por José Eduardo Faria tratando do
tema: “se a segurança dos cidadãos é o sentido da existência do Estado,
conforme dizia Hobbes, de que modo encará-lo à luz da atual realidade
sócio-econômica marcada por índices crescentes de violência?”.1
Entretanto, para os objetivos do presente texto, confere-se maior
atenção aos Estados Constitucionais modernos, visto que o tema da judicialização das políticas públicas tem como ponto central as competências
constitucionais dos três poderes, a efetivação de direitos fundamentais
(temas de direito constitucional) e ainda o tratamento dessas questões
pelo Judiciário, que, necessariamente, atua por meio de processo (tema
de direito processual).
Cumpre observar, porém, que essa comparação histórica da evolução do modelo de Estado com a evolução dos direitos fundamentais em
suas três gerações (liberdades individuais, prestações sociais, direitos de
solidariedade) se revela um pouco limitada, como se pretende demonstrar nos primeiros capítulos desse trabalho.
Isso porque restará demonstrada a existência de deveres estatais
positivos (prestacionais), já no Estado Liberal, dentre os quais está a
segurança pública.
Uma vez demonstrada a origem da segurança pública como um
dos fundamentos do próprio Estado, pretende-se estudar a natureza
jurídica da segurança pública (sua evolução do Estado Liberal — adotado arbitrariamente como marco inicial da pesquisa em razão de sua
relevância para o direito constitucional — até os dias atuais), com breve
menção a alguns aspectos históricos, para, em seguida, a partir do texto
constitucional vigente e da análise doutrinária sobre o tema, verificar o
status atualmente atribuído a esse dever estatal.
Ato contínuo, usando-se como base as premissas conceituais estabelecidas, bem como o tratamento constitucional do tema, pretende-se
1
DIAS NETO, 2005, p. 7.
A judicialização de políticas públicas relativas à segurança pública é o melhor caminho? 229
analisar a possibilidade e a utilidade de se judicializar políticas públicas
envolvendo o tema “segurança pública”, buscando-se as desvantagens
que podem decorrer dessa judicialização.
Diante das constatações feitas no decorrer do trabalho, à luz dessa
análise, são apresentadas algumas conclusões que não se propõe a en­
cerrar o debate do tema, mas a fomentá-lo, pois, se nenhuma das insti­
tuições agirá com perfeição,2 é importante que se saiba de antemão dos
efeitos negativos da judicialização do tema.
2 Do estado de natureza à reunião em sociedade (Estado Político)
O tema da segurança sempre esteve intimamente ligado ao conceito
de Estado. Não por outro motivo, a segurança é objeto de atenção dos
pensadores políticos clássicos. Sendo assim, é válida a menção a algumas
de suas ideias para mostrar seus pontos comuns e, com isso, estabelecer
algumas premissas.
Iniciando essa análise nas ideias de John Locke, verifica-se que
o ser humano se reuniu em sociedade (antes mesmo de existir Estado)
como forma de proteger sua vida, sua liberdade e seus bens. Ou seja, a
opção por viver em sociedade decorre da busca por segurança:
Se o homem é tão livre no estado de natureza como se tem dito, se ele é o
senhor absoluto de sua própria pessoa e de seus bens, igual aos maiores e
súdito de ninguém, por que renunciaria a sua liberdade, a este império, para
sujeitar-se à dominação e ao controle de qualquer outro poder? A resposta é
evidente: ainda que no estado de natureza ele tenha tantos direitos, o gozo
deles é muito precário e constantemente exposto às invasões de outros.
Todos são tão reis quanto ele, todos são iguais, mas a maior parte não
respeita estritamente, nem a igualdade nem a justiça, o que torna o gozo da
propriedade que ele possui neste estado muito perigoso e muito inseguro.
Isso faz com que ele deseje abandonar esta condição, que, embora livre, está
repleta de medos e perigos contínuos; e não é sem razão que ele solicita e
deseja se unir em sociedade com outros, que já estão reunidos ou que planejam
se unir, visando a salvaguarda mútua de suas vidas, liberdades e bens, o que
designo pelo nome geral de propriedade.3
A falta de segurança aproxima as pessoas do estado de natureza.
Em um Estado sem segurança pública, não estão os homens sujeitos a
2
3
KOMESAR, 1996, p. 5.
LOCKE, 1994, p. 156.
230 André Petzhold Dias
atos de violência uns dos outros? Podendo perder, a qualquer momento,
sua vida e seus bens? O cenário de insegurança certamente nos remete
aos problemas que Locke identificou no estado de natureza.
Hobbes, na obra clássica “Leviatã”, aponta a necessidade de um
Estado Político como forma de organização dos homens para gerar a
paz interna em oposição ao indesejado estado de natureza, atribuindo-se
ao Estado o poder de “usar a força e os recursos de todos, da maneira
que considerar conveniente, para assegurar a paz e a defesa comuns”.4
Afinal, sem o Estado para regular e fazer valer tais regras, o homem
agirá livremente, e homo homini lupus.
Também pode se ver na obra de Montesquieu a preocupação com
segurança e sua relação com liberdade, assim como a expetativa de que
seja fornecida pelo Estado: “A liberdade política, em um cidadão, é esta
tranquilidade de espírito que provem da opinião que cada um tem sobre
sua segurança; e para que se tenha esta liberdade é preciso que o governo
seja tal que um cidadão não possa temer outro cidadão”.5
Percebe-se, pois, ser antiga a preocupação com a segurança pública, que pode ser inicialmente referido como dever estatal de proteção
dos homens contra os outros homens, bem como é antigo o papel do
Estado de garanti-la.
Com a evolução do Estado e da sociedade, essa prestação estatal
foi se tornando cada vez mais complexa, abrangendo: elaboração de
leis penais e processuais penais, Sistema Judiciário de aplicação de leis
penais com respeito a garantias individuais (devido processo legal, ampla
defesa, contraditório, juiz natural imparcial, entre outras), criação de
órgão público responsável pela prevenção ostensiva e pela investigação
de crimes pretéritos para fins de efetiva aplicação da lei penal e diversas
outras formas de atuação do Estado.
A busca por segurança pode ser vista, portanto, em diversas sociedades anteriores ao Estado Constitucional, ainda que não tivesse a
amplitude e complexidade que o sistema de segurança pública tem hoje.
Sendo assim, é óbvia a conclusão de que a prestação de segurança (prestação positiva, no sentido de consistir em obrigação de fazer, e não de se
4
5
HOBBES, 2003, p. 148.
MONTESQUIEU, 2000, p. 168.
A judicialização de políticas públicas relativas à segurança pública é o melhor caminho? 231
omitir) já era devida pelo Estado Liberal, e seu conteúdo será analisado
com maior profundidade no capítulo seguinte.
3 Visão atual do Estado Liberal e sua atuação
A análise do Estado Liberal pela doutrina constitucional costuma
fazer referência a um Estado absenteísta, pois o grande objetivo da sociedade era a liberdade. Nesse sentido, apenas exemplificativamente:
Podemos destacar então, nesse primeiro momento, na concepção do cons­
titucionalismo liberal, marcado pelo liberalismo clássico, os seguintes valores:
individualismo, absenteísmo estatal, valorização da propriedade privada e
proteção do indivíduo. Essa perspectiva, para se ter um exemplo, influenciou
profundamente as Constituições brasileiras de 1824 e 1891.6
No entanto, a conduta do Estado não se esgota em uma abstenção
total, pois o Estado Liberal, ao garantir as liberdades individuais, tem essa
conduta absenteísta apenas no sentido de não perturbá-la ele mesmo.
Isso porque as liberdades públicas, direitos fundamentais de primeira
geração (vida, propriedade, direito de ir e vir, por exemplo), geram para
o Estado “a tarefa de, preventivamente, evitar que eles sejam desres­pei­
tados, e, também, a de, repressivamente, restaurá-los se violados, inclusive
punindo os responsáveis por essa violação”.7
É falsa, portanto, a noção de que o Estado Liberal, por ser preocupado com omissões e liberdades (considerados direitos negativos em
oposição aos direitos prestacionais), era ausente. Na realidade, desde
sua formação, percebe-se no Estado uma conduta presente e atuante.
Nas palavras de Cass Sustein:
Most of the so-called negative rights require governmental assistance, not
governmental abstention. Those rights cannot exist without public assistance.
Consider, for example, the right to private property. As Bentham wrote,
“Property and law are born together, and die together. Before laws were
made there was no property; take away laws, and property ceases”. In the
state of nature, private property cannot exist, at least not in the way that it
exists in a free society. In the state of nature, any property “rights” must be
protected either through self-help-useful to the strong, not to the weak-or
LENZA, 2007, p. 40-41. No mesmo sentido, GALDINO (2005, p. 226) constata essa análise superficial
comum na doutrina, citando exemplificativamente a obra de Luís Roberto Barroso.
7
FERREIRA FILHO, p. 30.
6
232 André Petzhold Dias
through social norms. This form of protection is far too fragile to support a
market economy or indeed the basic independence of citizens. As we know
it, private property is both created and protected by law; it requires extensive
governmental assistance.8
Na verdade o que existe, segundo o autor estadunidense, é verdadeira onipresença da ação estatal,9 ainda que se trate de um Estado
Liberal, pois, segundo o autor, para se garantir tais liberdades se fazem
necessárias inúmeras prestações estatais.
Essa análise de atuação positiva do Estado Liberal, em verdade,
não é tão recente como se pensa. Nos arts. 12, 13 e 16 da Declaração de
Direitos do Homem e do Cidadão fica evidente o reconhecimento da
existência de prestações positivas devidas pelo Estado.
O art. 12 dispõe: “A garantia dos direitos do homem e do cidadão
necessita de uma força pública; esta força é, pois, instituída para fruição
por todos, e não para utilidade particular daqueles a quem é confiada”.
A menção a uma força pública, portanto, deixa claro que o Estado assume
o dever de proteger os direitos.
O art. 13, por sua vez, deixa claro que se trata de uma prestação
positiva e que, com seu adimplemento, o Estado incorre em custos: “Para
manutenção da força pública e para as despesas de Administração, é
indispensável uma contribuição comum que deve ser dividida entre os
cidadãos de acordo com suas possibilidades”.
Finalmente, o artigo 16: “A sociedade em que não esteja assegurada a garantia dos direitos nem estabelecida a separação de poderes não
tem constituição”. Nesse dispositivo evidencia-se que não basta apenas
prever direitos, ou apenas usar a força para resolver conflitos por meio
do processo. Segurança, como se verá, está diretamente relacionada com
a real possibilidade de os indivíduos usufruírem seus direitos, pois cabe
ao Estado garantir que isso aconteça, por isso tomou para si o monopólio da força. Sem segurança os demais direitos se esvaziam e a busca
do bem comum almejada com a lei se torna um objetivo distante. Sem
a força estatal, os direitos deixam de existir, mas a força deve ser usada
exatamente para que os direitos de cada um sejam respeitados.
8
9
SUSTEIN, 2002, p. 466.
SUSTEIN, 2002, p. 469.
A judicialização de políticas públicas relativas à segurança pública é o melhor caminho? 233
Como explica Botelho de Mesquita, o Estado precisa ir além, pois
não basta o uso da força se esta não for usada para efetiva aplicação da
lei, que tem como objetivo último o bem comum:
A neutralidade e independência do Estado, assim entendida, se afinam com a
concepção de que o fim do processo se identifica com a pacificação dos interesses em conflito e de que essa pacificação se atinge com a simples imposição
às partes do resultado do processo, qualquer que ele seja, sem qualquer compromisso com o direito objetivo, esquecendo-se que a mera substituição da
violência privada pela força estatal, antes de constituir um fator de paz social,
constitui fonte de novas e talvez mais refinadas modalidades de violência.
Ver no Estado tão somente a figura de um pacificador equivale a esquecer
os compromissos que ele assumiu, quando chamou a si a função de legislar.
Nem nos parece exato dizer que a substituição da violência privada pela
força estatal conduza à solução pacífica dos conflitos de interesses, pois a
exe­cução de uma sentença nem sempre é pacífica e, quando o é, não o é
mais que na aparência.
Com efeito, quando o autor reclama a intervenção do Estado, ele está, na
verdade, solicitando a ajuda de uma força muitíssimo superior à que poderia
ele próprio desenvolver, se lhe fosse dado fazer justiça pelas próprias mãos. A
solução dos conflitos, portanto, nem por realizar-se processualmente, deixa
de ser violenta.
O que importa saber, portanto, não é se, ao fim do processo, o Estado impôs
sua pax, mas sim se a ordem imposta processualmente corresponde à ordem
prevista na lei. Como salientou muito bem Carnelutti, “non si è detto tutto
della legge quando all’analisi ci si trovano i due elementi della fattispicie e
della sanzione; resta afferrare il nesso che li unisce. A ciò serve, se non mi
inganno, il concetto della promessa”. E acrescenta: “intanto è bene fissare che
il processo, di fronte alla violazione del precetto, costituisce l’adempimento
della promessa che garantisce la legge”.10
Conclui-se, portanto, que o Estado, desde o modelo liberal, assumiu obrigações com conteúdo de prestações positivas, e, dentre elas,
está a segurança pública, que é definida assim na Constituição Francesa
de 1793: “a segurança consiste na proteção concedida pela sociedade a
cada um dos seus membros para a conservação da sua pessoa, dos seus
direitos e das suas propriedades”.
Mesmo esse conceito tendo sido elaborado há mais de dois séculos,
permanece atual, visto que continua válido, embora possa ser considerado
10
MESQUITA, 2005, p. 78/79.
234 André Petzhold Dias
incompleto para a realidade hodierna. Todavia, sendo esse um con­
cei­to histórico, mostra-se necessária uma investigação sobre o atual
con­­cei­to de segurança, a ser feito nas linhas que seguem.
4 Segurança pública na CF 88 – Preâmbulo, artigos 5º, 6º e 144
Esse relevante valor11 não foi deixado de lado pela Constituinte
brasileira de 1988. A segurança, primeiramente, é colocada como objetivo
do Estado e como valor supremo no Preâmbulo do texto constitucional:
“Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos
sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos”.
Além do Preâmbulo, o artigo 5º, no caput, também menciona a
segurança ao lado de outros direitos: “Todos são iguais perante a lei,
sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos
estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”.
Sendo assim, além de ser um valor, a segurança foi prevista também
como direito, ao lado das liberdades individuais, ou seja, como direito
fundamental de primeira geração. Não por que isso implica em uma
omissão do Estado, mas por que sem o aparato da segurança pública os
demais direitos ficam completamente esvaziados, conforme demonstrado
acima. A segurança pública constitui, então, um pressuposto imprescindível para o pleno exercício do direito à vida, à liberdade e à propriedade.12
No artigo 6º, a Constituição prevê, novamente, o direito à segurança, mas agora no rol dos direitos sociais: “São direitos sociais a educação,
a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a
previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência
aos desamparados, na forma desta Constituição”. O conteúdo desse direito será aprofundado a seguir, visto de portador de conteúdo diverso
de seu homônimo do artigo anterior.
Por derradeiro, surge a expressão segurança pública (pela primeira
vez a segurança recebe esse adjetivo), inicialmente como nome de capítulo, e, em seguida, como atividade estatal. Importante mencionar sua
11
12
Conforme se verá no decorrer desse estudo, a segurança é um valor, mas não é apenas um valor.
Nesse sentido, SUSTEIN, 2002, p. 469.
A judicialização de políticas públicas relativas à segurança pública é o melhor caminho? 235
localização no corpo da Constituição: é nome Capítulo III do Título V
(Da Defesa do Estado e das Instituições Democráticas) e conteúdo desse
capítulo.
José Afonso da Silva explica essa utilização polissêmica do termo:
Na teoria jurídica, a palavra “segurança” assume o sentido geral de garantia,
proteção, estabilidade de situação ou pessoa em vários campos, dependente
do adjetivo que a qualifica. “Segurança jurídica” consiste na garantia de
estabilidade e de certeza dos negócios jurídicos, de sorte que as pessoas saibam
de antemão que, uma vez envolvidos em determinada relação jurídica, essa se
mantem estável, mesmo se se modificar a base legal sob a qual se estabeleceu.
“Segurança social” significa previsão de vários meios que garantam aos
indivíduos e suas famílias condições sociais dignas; tais meios se revelam
basicamente como conjunto de direitos sociais. A constituição, nesse sentido,
preferiu o espanholismo “seguridade social”, como vimos antes. “Segurança
nacional” refere-se às condições básicas de defesa do Estado. Segurança
pública é a manutenção da ordem pública interna.13
Como sabido, o foco do presente trabalho é a segurança pública,
conceituada acima como manutenção da ordem pública interna, e tida
como necessária para a defesa do Estado e das instituições democráticas,
conforme se extrai da análise topológica do termo. Sendo assim, apesar
de reconhecer a importância da segurança jurídica e da segurança social,14
o presente trabalho deixa de abordar tais temas.
Ainda com base na lição de José Afonso da Silva, é possível aprofundar a análise do instituto jurídico:
A segurança pública consiste numa situação de preservação ou restabelecimento
dessa convivência social que permite que todos gozem de seus direitos e
exerçam suas atividades sem perturbação de outrem, salvo nos limites de gozo
e reivindicação de seus próprios direitos e defesa de seus legítimos interesses.15
SILVA, 2005, p. 777.
Discordando do conteúdo de segurança social previsto no artigo 6º: “Outro ponto fundamental fora a
dupla referência à segurança tanto no rol de direitos individuais (art. 5º, CF) quanto no rol de direitos
sociais (art. 6º, CF). No primeiro caso, da segurança pessoal ou individual, a previsão remonta à nossa
primeira Constituição, o texto outorgado de 1824 (art. 179), ainda sob a égide do Império. A previsão
da segurança como direito social — eis a constitucionalização concreta de um direito fundamental à
segurança pública — é, no entanto, uma novidade jamais vista até então no constitucionalismo brasileiro”
(LINS, 2011, p. 181).
15
SILVA, 2005, p. 778.
13
14
236 André Petzhold Dias
Esta é, portanto, a situação a ser alcançada, enquanto objetivo
mencionado no texto constitucional (vide Preâmbulo). E isso se dará, prin­
cipalmente, com o exercício da atividade policial.16 17 Digno de menção,
também, o conceito de segurança pública a que chegou Rodrigo Vilardi,
elaborado em estudo específico sobre o tema:
Segurança pública, em termos conceituais, após uma breve abordagem da
evolução de seu significado no processo histórico e a comparação com a as
atuais visões acerca da questão, foi conceituada como “um estado de ausência
ou risco iminente de ocorrência de infrações penais ou atos infracionais e de
percepção dessa circunstância por parte dos integrantes da sociedade”, sendo
resultado, ainda, que ela, em conjunto com a tranquilidade e a salubridade
pública, forma a tríade dos aspectos da ordem pública, que é a situação de
convivência social pacífica entre os cidadãos.18
A atividade policial acima referida também foi analisada por José
Afonso da Silva, interpretando o artigo 144 da Constituição:
Na sua dinâmica, é uma atividade de vigilância, prevenção e repressão de
condutas delituosas. Segundo a Constituição, a segurança pública é exercida
para a preservação da ordem pública da incolumidade das pessoas e do
patrimônio através da polícia federal, da polícia rodoviária federal, da
polícia ferroviária federal, das polícias civis, das polícias militares e corpos
de bombeiros militares (art. 144).19
Tratando do tema, Pedro Lenza explica:
A atividade policial divide-se, então, em duas grandes áreas: administrativa e
ju­diciária. A polícia administrativa (polícia preventiva, ou ostensiva) atua pre­
ventivamente, evitando que o crime aconteça, na área do ilícito administrativo.
Por mais óbvio que pareça, segurança pública tem relação com a prevenção e repressão de delitos
penais e atos infracionais. E, por força do inafastável princípio da legalidade, apenas o poder legislativo
tem competência constitucional para definir as condutas típicas (que constituam delitos penais ou atos
infracionais) e abrandar ou tornar mais severas as penas. Nem o executivo, por força da vedação de edição
de medidas provisórias sobre direito penal, nem o Judiciário não tem competência constitucional. E sem
dúvida nenhuma, a legislação penal é parte integrante do sistema de segurança pública. Mas por não
poder ser objeto de adjudicação da forma como aqui tratada, esse aspecto não será objeto de maiores
investigações.
17
Não consiste em objetivo do presente texto analisar outras formas de atuação estatal que, indiretamente,
impliquem no aumento da segurança pública, como políticas que confiram ao cidadão melhores condições
de vida, desincentivando a prática de crimes, visto que estas não tem como objetivo direto o incremento
da segurança pública.
18
VILARDI, 2010, f. 24.
19
SILVA, 2005, p. 778.
16
A judicialização de políticas públicas relativas à segurança pública é o melhor caminho? 237
Já a polícia judiciária (polícia de investigação) atua repressivamente, depois
de ocorrido o ilícito penal.20
O texto constitucional, no âmbito estadual, atribui às polícias militares a atividade de policiamento ostensivo, enquanto às civis incumbiu as
funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais. No âmbito
federal, as atividades são exercidas pelas Polícias Federal, Rodoviária
Federal e Ferroviária Federal.
É correto afirmar, então, que a segurança pública não é apenas um
valor ou um objetivo a ser perseguido. A segurança pública também pode
ser considerada como direito (a partir da leitura do artigo 5º da Carta
Política), e, ainda, como um serviço público (enquanto atividade estatal
prevista no artigo 144). Em obra anterior à Constituição de 88, Cretella
Junior cita o conceito de serviço público com apoio na doutrina de Rui
Cirne Lima: “Serviço público é todo o serviço existencial, relativamente
à sociedade ou, pelo menos, assim havido num momento dado, que,
por isso mesmo, tem se prestado aos componentes daquela, direta ou
indiretamente, pelo Estado ou outra pessoa administrativa”.21
Odete Medauar, por sua vez, em obra contemporânea ao texto
constitucional vigente, elaborou conceito mais restrito, que não chega
a ser divergente:
Serviço Público, como um capítulo do direito administrativo, diz respeito
à atividade realizada no âmbito das atribuições da Administração, inserida
no Executivo. E refere-se à atividade prestacional em que o poder público
propicia algo necessário à vida coletiva [...]22
Tendo em vista a ausência de carga normativa do valor exposto
no Preâmbulo,23 podemos dizer que a segurança pública tem dupla caracterização, o que é confirmado por Rodrigo Vilardi:
No mesmo sentido, foi identificada a dupla natureza jurídica da segurança
pública. A primeira, como direito fundamental que integra em seu conteúdo,
em regra, o total respeito aos demais direitos em razão de seu caráter
instrumental, e a segunda, como serviço público, que permite um melhor
LENZA, 2007, p. 644.
CRETELLA JR., 1967, p. 255.
22
MEDAUAR, 2001, p. 368.
23
ADI nº 2.076, Rel. Min. Carlos Velloso, julgamento em 15.08.2002, Plenário, DJ, 08 ago. 2003.
20
21
238 André Petzhold Dias
relacionamento com os princípios democráticos de direito e controle pelo
poder judiciário, além de ressaltar seu caráter de prestação positiva, no sentido
de concretização de atos com o objetivo de garantir o direito à segurança
pública dos integrantes da sociedade e não apenas atuar para posterior
responsabilização penal.24
Podemos afirmar, por enquanto que, de acordo com o direito
positivo vigente, segurança pública, além de valor supremo e objetivo,
é direito fundamental, bem como é, também, um serviço público concretizado por meio das atividades policiais.
Em se tratando de estudo voltado à justiciabilidade, o foco deve
se voltar para a segurança jurídica enquanto direito. De rigor, pois, uma
análise do direito à segurança pública, para, a partir de suas características, verificar qual o tratamento que deve receber do Judiciário quando
da sua tutela.
5 Características do direito à segurança pública
Uma primeira característica da segurança pública reside em sua
fundamentalidade. Essa característica não decorre apenas de sua inclusão no caput do artigo 5º da Carta Política. A partir do conceito de
fundamentalidade de um direito elaborado por Paulo Gustavo Gonet
Branco, constata-se que a segurança pública reúne todas as características,
de modo que é correto tratá-la como tal: é um direito universal, evolui
com a história, é inalienável e indisponível, tem previsão em norma
constitucional, vincula os três poderes e tem aplicabilidade imediata.25
Analisando conceitos de fundamentalidade elaborados por outros autores, José Hugo de Alencar Linard Filho também conclui pela
fundamentalidade do direito à segurança pública, mencionando ainda
outros fatores além daqueles elencados por Paulo Gonet: é corolário
da fórmula de Estado Democrático de Direito, advém do elo entre ela
e o regime republicano, e se mostra indispensável para a normalidade
do Estado, das instituições democráticas e das relações interpessoais e
comunitárias na sociedade.26
VILARDI, 2010, f. 24-25.
MENDES, 2009, f. 269-286.
26
LINARD FILHO, 2009, f. 86-87.
24
25
A judicialização de políticas públicas relativas à segurança pública é o melhor caminho? 239
Firmada sua primeira característica, ser um direito fundamental,
é necessário também analisá-la a partir de seu titular: toda a sociedade.
Isso se percebe não só na segurança enquanto direito, mas também na
qualidade de serviço público a partir de seus destinatários e do modo
de prestação, que é uti universi.
Apesar dessa titularidade coletiva, Ada Pelegrini afirma que a segurança pública não pode ser tratada como interesse difuso:
Mas, como foi agudamente observado por Villone, nem todos os interesses
metaindividuais configuram interesses difusos. O interesse à ordem pública,
à defesa comum ou à segurança pública, por exemplo, conquanto seja indiscutivelmente um interesse suprasubjetivo, não é considerado interesse difuso,
como o é, ao contrário, o interesse à defesa do ambiente e das cidades, à
defesa do consumidor, à informação correta e completa, à lisura financeira ou
bancária, à integração pacífica das diversas componentes raciais e sociais, etc.
A diferença reside no fato de que a ordem pública (ou a segurança pública,
ou a defesa comum) constitui interesse de que todos compartilham. O único
problema que esses interesses podem suscitar situa-se na perspectiva clássica
do conflito autoridade x indivíduo. Mas sempre no pressuposto de que a ordem pública deva, em princípio, ser salvaguardada, de modo que, ao menos
teoricamente, no Estado de Direito não haveria propriamente contraste entre
os valores segurança e liberdade, por ser pacífica a aceitação do princípio de
que as liberdades devem ser exercidas respeitando-se a segurança social. [...]
Enfim, como se observou, o interesse difuso caracteriza-se por sua ampla área
de “conflittualità”. Conflituosidade, essa, que não se coloca necessariamente
ou apenas no clássico contraste indivíduo x autoridade, mas que é típica das
escolhas políticas.
Entretanto, para Carreira Alvim, o direito à segurança pública
pode sim ser considerado como direito difuso:
Se o direito à segurança é um dos direitos fundamentais inscritos no art. 5º,
caput, da CF/1988, e um direito inviolável, tanto quanto os direitos à vida e
à liberdade, não cabe discussão se os indivíduos globalmente considerados
têm um verdadeiro direito em face do Estado —, direito à segurança —, a não
ser que se leia pelo avesso o preceito constitucional; e não se tratando de um
direito potestativo, fica evidente que, ao direito dos indivíduos à segurança,
corresponde o dever do Estado de prestar-lhes essa segurança. Assim, se o
Estado (Poder Público) não tem o dever de garantir a segurança pessoal aos
brasileiros, considerados uti singuli —, pois seria impossível destinar um
guarda para proteger cada brasileiro —, têm-no, considerados uti universi,
tratando-se de um direito difuso à segurança, mas, nem por isso, menos
concreto do que o direito subjetivo individualizado.
240 André Petzhold Dias
Como os direitos difusos gozam de proteção legal (art. 129, III, da CF/1988
e art. 81, I, do CDC), fica evidente que essa garantia se estende ao próprio
direito à segurança —, gerando o dever do Estado de prestá-la —, e que,
uma vez violado pela omissão do Poder Público, faz incidir o disposto no
art. 5º, XXXV, da CF/1988, garantidor do acesso à Justiça e instrumento de
cidadania. Seria um absurdo, por exemplo, que a poluição atmosférica numa
favela autorizasse o ajuizamento de uma ação civil pública para fazer cessar
os danos à saúde dos favelistas, e a atividade marginal do tráfico de drogas,
que põe em risco permanente o seu direito à vida, não o autorizasse. Fosse
assim, o direito à saúde que, apesar de ser direito de todos e dever do Estado
(art. 196 da CF/88) estar-se-ia sobrepondo ao direito à vida, ou à preservação
da vida, que é o mais importante direito fundamental do ser humano, cuja
garantia se assenta na segurança.27
Tendo como ponto de partida a lição de Carreira Alvim, que é
acolhida por Linard Filho com base nessa opinião e na de outros autores,
é possível a judicialização da segurança pública (ou melhor, das políticas
públicas envolvendo segurança pública) considerando seu caráter difuso.
Cite-se a lição de Linard:
Santin (2004, p. 80), não desconhecendo a relação do direito à segurança
pública com cada geração ou dimensão dos direitos humanos, considera-o
um direito predominantemente de caráter difuso, com características de
direito humano. Tal posição parece sustentar-se nas características de transin­
dividualidade, indivisibilidade e de solidariedade presentes no direito à
segurança pública.28
Tal posição foi confirmada pela jurisprudência ao conferir tratamento processual de direito difuso, permitindo sua judicialização via ação
civil pública. Sim, pois, a possibilidade de judicialização já foi reconhe­cida
pelo Supremo Tribunal Federal que, reformando acórdão do Tri­bunal de
Justiça do Paraná, concluiu pela possibilidade de, judicial­mente, condenar
o Estado a contratar servidores e lhes fornecer condições de trabalho, sem
que isso violasse a harmonia entre os poderes, sendo, pois, um pedido
possível e um direito exigível judicialmente pela via processual coletiva:
Trata-se de recurso extraordinário interposto contra acórdão que, em ação
civil pública, extinguiu o processo sem resolução de mérito, cuja é a seguinte:
27
28
ALVIM, 2005, p. 50.
LINARD FILHO, 2009, f. 91.
A judicialização de políticas públicas relativas à segurança pública é o melhor caminho? 241
APELAÇÃO CÍVEL E REEXAME NECESSÁRIO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA.
SEGURANÇA PÚBLICA. INCUMBÊNCIA AO PODER EXECUTIVO DE
NOMEAÇÃO DE DELEGADOS, INVESTIGADORES E ESCRIVÃES. FOR­
NE­CIMENTO DE RECURSOS PARA AS ATIVIDADES-FIM. IM­POSSI­
BILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO.VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DA
INDE­PENDÊNCIA E HARMONIA ENTRE OS TRÊS PODERES. (fl. 186).
2. Nas razões do recurso extraordinário, sustenta-se ofensa ao artigo 2º da
Constituição Federal. 3. Inadmitido o recurso na origem, subiram os autos em
virtude do provimento do AI 611.381/PR (fls. 275). 4. O Ministério Público
Federal opinou pelo provimento do recurso (fls. 286-289). 5. Assiste razão
à parte recorrente. O acórdão recorrido, ao concluir pela impossibilidade
jurí­dica do pedido, pois desconforme com as normas jurídicas vigentes ou
esteja expressamente vedado pelo direito positivo, mormente quando se tratar
de prin­cípio constitucional, como retrata o caso em exame — princípio da
inde­pendência dos poderes —, previsto no art. 2º da Constituição Federal,
divergiu da jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal. 6. Assim,
não prospera o argumento de que a imposição de obrigação de fazer ao Poder
Exe­cutivo violaria o princípio constitucional da separação de poderes. [...] 7.
Dessa forma, dou provimento ao recurso extraordinário, com fundamento
no art. 557, §1º-A, do Código de Processo Civil, para determinar o retorno
dos au­tos ao Tribunal de Justiça do Estado do Paraná para apreciação do
recur­so de apelação, afastado o óbice que ensejou a extinção do processo sem
re­so­lução de mérito. (nº 559.646/PR, Rel. Min. Ellen Gracie, j. 31.03.2011,
DJe-067, 08 abr. 2011)
Ainda que exista divergência doutrinária, os fatos (consubstanciados na jurisprudência do órgão de cúpula do Poder Judiciário) não
devem ser ignorados. Se foi reconhecida a possibilidade de judicialização
do tema, inafastável a conclusão de que é possível ao Judiciário tratar de
políticas públicas envolvendo o direito à segurança pública.
Superada a questão da possibilidade, passa-se à questão da utilidade. Pergunta-se: essa intervenção judicial em políticas públicas de
segurança pública produz bons resultados? Seria o Judiciário o melhor
locus de decisão parra esse caso? Seria o Judiciário a instituição que produziria a melhor decisão? Afinal, como explica Badin, existem outras
instituições que podem tomar essa decisão, e por meio de um processo
decisório diverso do adjudicatório.29
29
“[A]s três grandes instituições que primeiro se apresentam à nossa escolha no estado democrático de
direito, laico e capitalista são o processo político (executivo e legislativo), o processo de trocas (mercado),
e o processo adjudicatório (judiciário)” (BADIN, 2011, p. 91).
242 André Petzhold Dias
Como o tema do trabalho se restringe à análise da intervenção
judicial nas políticas de segurança pública, as demais possibilidades são
apenas objeto de menção, visto que não constituem objeto de estudo no
presente texto.
Passando para a solução adjudica, propriamente dita, imperioso
considerar que a atuação da jurisdição se dá em um processo judicial
cercado de formalidades quanto a diversos aspectos (número de participantes e forma de participação, regime preclusivo, estabilização da
demanda, limitação da atuação do juiz pelo pedido da parte, formação
de decisão final acobertada pela coisa julgada material), pergunta-se:
o Judiciário é a melhor instituição para a formulação e concretização
(coercitiva) de políticas públicas?
Para analisar tais aspectos, indispensável um estudo prévio sobre o
conceito de políticas públicas. Feito isso será possível um aprofundamento
da observação sobre os efeitos de se transferir as decisões referentes às
políticas públicas para o poder Judiciário (considerando, principalmente,
os limites processuais de atuação do magistrado).
6 Políticas públicas – Conceito, características e consequências de
sua formulação e implementação coercitiva pelo Poder Judiciário
A política pública, antes restrita ao campo da ciência política, foi
im­por­tada recentemente para o plano jurídico, onde recebeu definição
(em­bo­ra interdisciplinar) cunhada com maestria por Maria Paula Dallari
Bucci:
Política pública é o programa de ação governamental que resulta de um
processo ou conjunto de processos juridicamente regulados — processo
eleitoral, processo de planejamento, processo de governo, processo orça­
men­tário, processo legislativo, processo administrativo, processo judicial —
visando coordenar os meios à disposição do Estado e as atividades privadas,
para a realização de objetivos socialmente relevantes e politicamente
deter­minados. Como tipo ideal, a política pública deve visar a realização
de obje­tivos definidos, expressando a seleção de prioridades, a reserva de
meios necessários à sua consecução e o intervalo de tempo em que se espera
o atingi­mento dos resultados. [...] As políticas públicas não são, portanto,
cate­goria definida e instituída pelo direito, mas arranjos complexos, típicos
da ati­vidade político-administrativa, que a ciência do direito deve estar apta
a descrever, compreender e analisar, de modo a integrar à atividade política
os valores e métodos próprios do universo jurídico.30
30
BUCCI, 2009a, p. 20.
A judicialização de políticas públicas relativas à segurança pública é o melhor caminho? 243
Trata-se de ação governamental claramente dinâmica, como se
verifica por suas fases (ou ciclos):
Há, no entanto, proposições de perspectivas mais elaboradas do ciclo de
políticas públicas, que especificam momentos e permitem um olhar analítico
mais detalhado sobre o processo. Dye (2009, p. 104) identifica os seguintes
estágios convencionais do processo político-administrativo: identificar
problemas; montar agenda para deliberação; formular propostas de políticas;
legitimar políticas; implementar políticas; avaliar políticas. Nessa perspectiva,
o foco está no como, não sendo privilegiado o conteúdo das políticas públicas,
mas o processo por meio do qual são desenvolvidas, implementadas e mudadas
(DYE, 2009).31
Ou seja, a política pública tem como uma de suas premissas a possibilidade de mudança de rumos. Sim, pois, se na fase de avaliação se
perceber que o resultado almejado não foi atingido, é possível modificá-la
para adaptá-la às novas necessidades ou a circunstâncias não imaginadas,
ou até, eventualmente, a intercorrências surgidas de sua implantação.
A partir dessas premissas (conceito de políticas públicas e fases
das políticas públicas), torna-se necessário um contraste de tais necessidades de adaptação com as características da solução dada pela via da
judicialização.
Usualmente são citados pela doutrina, como limitadores da atuação do Judiciário nesse campo das políticas públicas em geral (ou como
desvantagens da judicialização):
I) Argumentos de ordem político-institucional:
Separação de poderes, com base no art. 2º da Constituição Federal;
Déficit democrático do Poder Judiciário.
Limitações técnicas do Poder Judiciário para apreciação das políticas públicas
em toda sua complexidade;
Discricionariedade administrativa;
II) Argumentos de ordem econômico-financeira:
“reserva do possível”:
Questão da iniciativa das políticas públicas: Poder Executivo (CF, art. 61, §1º,
II, “a” e “b”) e Poder Legislativo.32
31
32
HOMERCHER; BERGUE, 2011, p. 12.
BUCCI, 2009b, p. 3-4.
244 André Petzhold Dias
Esses argumentos apresentados como limitadores para o controle
de qualquer tipo de política pública obviamente se aplicam a questões
de segurança pública. Por óbvio, aplicam-se também às vantagens da
solução adjudica e as respostas a essas críticas.33
No presente trabalho, porém, o objetivo é trazer novos aspectos
para ampliar o debate sobre o tema. E aspectos que impactem, principalmente, em eventual judicialização de políticas públicas de segurança.
Parta-se, então, da característica do dinamismo das políticas públicas (presente em todas as políticas públicas, mas de importância ainda
maior no objeto do presente estudo, conforme restará demonstrado).
7 Necessidade de constante atualização de políticas de segurança
pública
Conforme restará demonstrado, esse ponto é de suma relevância
para as políticas públicas de segurança pública. Aborde-se a questão da
rápida evolução do crime.
Há alguns anos o uso de cheques falsificados exigia, por exemplo,
preparo da polícia e material específico para o combate dessa atividade.
Com a evolução da tecnologia, os hábitos da sociedade mudaram e essa
mudança, evidentemente, fez com que os criminosos acompanhassem
suas vítimas no processo evolutivo. Hoje o problema maior envolve
fraudes com cartões magnéticos ou de chip.
A propósito, transcrevem-se algumas breves linhas de Manoel
Camassa, que podem ser consideradas proféticas ao prever, por exemplo, o aumento da prática de crimes por telefones celulares há algum
tempo (1999):
Toda esta questão torna preocupante o desenvolvimento da criminalidade
nos dias que se seguirão, em face de sua prática com a utilização de recursos
tecnológicos, que evoluem mundialmente, e com veloz modernização da
infor­mática, de maneira que a criminalidade será praticada ao espectro da
invi­sibilidade, ou seja, o agente ou agentes, os meliantes do crime não mais
estarão à frente de um microcomputador instalado sobre uma mesa, ou este
acomodado numa maleta executiva, a exemplo do “notebook”, como atual­
mente já ocorre. Mas estarão com tal equipamento camuflado num dos bolsos
do paletó, operacionalizado a qualquer distância de tão eficiente maneira,
33
BUCCI, 2009b, p. 4-6.
A judicialização de políticas públicas relativas à segurança pública é o melhor caminho? 245
que invadirão os dados bancários da conta corrente das vítimas escolhidas,
desviando seus ativos financeiros, ou de modo mais eficaz operacionalizando
os comércios ilícitos, seja envolvendo drogas, seja os contrabandos mercantis,
seja os da invasão da privacidade alheia, seja os delitos de concorrência
desleal, aqueles envolvendo sabotagens e a violência à propriedade industrial,
e os praticados contra os costumes e os abusos sexuais. Não menos tornase preocupante o desenvolvimento tecnológico da telefonia celular e do
telefone acoplado à TV a cabo, que serão canais, como já o vêm sendo, porém
mais modernizados, mais sofisticados, para a prática de crimes das mais
diversas naturezas e modalidades. [...] Não há dúvidas, pelo relato até aqui
desenvolvido, que tecnologia e criminalidade caminham atualmente de mãos
dadas, a última evoluindo a galope da evolução da primeira, influenciada
e fortalecida pela utilização da informática, explorada negativamente pela
inteligência humana.34
Evidente, pois, que a rápida evolução da criminalidade justifica a
constante necessidade de adaptação de políticas públicas de segurança
pública. Explique-se, porém, que a evolução tecnológica não é a única
causa de necessidade de adaptação. Ignorando qualquer evolução tecnológica, basta pensar no seguinte exemplo. Determinada localidade
(um cruzamento, por exemplo) torna-se alvo de criminosos por força
da ausência de policiais no local. Caso o comando da polícia desloque
homens de seu efetivo para esse cruzamento, os criminosos buscarão
outra localidade para praticar o crime, onde o policiamento ostensivo
seja menor.
Além disso, é desnecessário dizer que determinadas técnicas atingem bons resultados em algumas localidades, mas não há garantia de
que tais resultados serão repetidos, como menciona Rodrigo Vilardi sobre
a atuação da polícia com vigilância por meio de videomonitorização.35
Há, portanto, necessidade de constante análise de resultados e, a partir
destes, são feitas eventuais reformulações na atividade.
Nesse particular, vale lembrar que o mundo do crime é demasiadamente dinâmico, se adaptando com rapidez aos obstáculos que encontra.
Essa constante mutação do crime (seja em razão da tecnologia, seja em
razão de outros fatores), é absolutamente incompatível com o instituto
da coisa julgada, que tem como característica a imutabilidade.
34
35
CAMASSA, 1999, p. 226.
VILARDI, 2010, f. 27-28.
246 André Petzhold Dias
Vale dizer que a tecnologia também atua em favor do Estado,
podendo ser usada como ferramenta para investigação e repressão de
delitos. Nesse cenário, eventualmente, uma decisão de contratar mais
policiais para fazerem a vigilância de determinado local pode se tornar
obsoleta, visto que o trabalho desses homens poderá ser realizado por
máquinas com a mesma eficiência ou até com eficiência maior.
Nesse cenário hipotético de evolução, pergunta-se: Quando se
saberá se a decisão deve continuar a ser cumprida? Ou será que a decisão deve ser cumprida independentemente de resultados apenas em
razão da imutabilidade da coisa julgada e do dever da Administração
de cumprir decisões judiciais?
A contratação de peritos com determinados conhecimentos específicos (em falsidades documentais, por exemplo) pode se tornar menos
necessária que a contratação de peritos em crimes cibernéticos ou para
desarmar explosivos (vide a onda de crimes com explosivos em caixa
eletrônicos).
Enfim, entendemos que a judicialização dessa política, tendo em
vista as rápidas mudanças do cenário social, são incompatíveis com o
instituto da coisa julgada.
Da mesma forma, essa rápida evolução do crime se mostra incom­
patível com a duração razoável do processo, pois o problema que deu
causa a uma determinada demanda judicial envolvendo políticas públicas
de segurança pode ter se transformado, mudado de lugar, ou até mesmo
deixado de existir (por exemplo, em razão da prisão dos autores dos
delitos), o que torna pouco recomendável a judicialização da questão,
considerando, principalmente, o longo tempo necessário para o julgamento de questão de tamanha complexidade.
8 Rigidez das fases procedimentais como incompatibilidade
Além da duração do processo e da definitividade, acima citadas,
a rigidez do sistema preclusivo no processo civil brasileiro, que também
vigora nas ações coletivas, impede que eventuais alterações no cenário
fático sejam admitidas no processo, sob pena de violação ao princípio
do contraditório, da ampla defesa e da estabilização da demanda.
Admitida a flexibilização das regras de estabilização da demanda,
eventuais alterações dos elementos da ação (causa se pedir e pedido,
A judicialização de políticas públicas relativas à segurança pública é o melhor caminho? 247
principalmente), implicariam em dilação excessiva do processo. Sim,
pois, para fins de obediência ao devido processo legal constitucional,
que protege os princípios do contraditório e da ampla defesa, isso implicaria em tornar necessária a concessão de sucessivas oportunidades
de manifestação das partes a cada modificação da causa de pedir ou do
pedido, o que colidiria frontalmente com outro princípio processual: o
da razoável duração do processo, que também foi previsto como direito
fundamental no artigo 5º, LXXVIII, da Lei Maior.
Eduardo José da Fonseca Costa, magistrado que percebeu as dificuldades da função judicante em tais casos (tratando genericamente de
políticas públicas), sugeriu a calendarização, como forma de flexibilização
procedimental, inspirando-se no processo civil americano, mencionando
que tal instituto tem como função fixar para as partes uma expectativa
temporal para a prolação da sentença (e prática de determinados atos
processuais).36
Diante de todas essas considerações, é irresistível associar esse tipo de acordo
ao instituto da “calendarização processual” (timing of the procedural steps). [...]
Grosso modo, a calendarização significa uma delineação imediata de uma
expec­tativa temporal para a prolação da sentença (dead-line), a fim de que
todas as etapas do procedimento sejam orientadas em função dessa expectativa. Com isso, elabora-se um calendário ou tabela temporal (timetable) de
toda a fase de conhecimento e se ganha tempo não remetendo os autos à
conclusão para despacho e publicação na imprensa. Como se vê, trata-se de
uma técnica de gestão do tempo processual, em que uma tutela jurisdicional
mais racional e célere é prestada mediante flexibilização procedimental
negociada entre as partes.
A necessidade de flexibilização, na realidade, demonstra que o
instrumento utilizado pelo Judiciário para o exercício de seu mister é
inadequado para tratar do tema, por isso se sugere a flexibilização. Daí
se extrai a conclusão que o arcabouço normativo vigente não é apto a
produzir resultados satisfatórios no julgamento desse tipo de causa (que
tenha como objeto a formulação e implementação de políticas públicas).
Eis, portanto, outro aspecto que torna pouco recomendável a judicialização de políticas públicas de segurança. As normas processuais
impedem a adaptação do processo a alterações fáticas.
36
COSTA, 2012, p. 39.
248 André Petzhold Dias
9 Institutional choice – O Judiciário é a melhor instituição para
decidir sobre políticas de segurança pública?
Como mencionado supra, é cediço que nenhuma instituição é capaz de produzir soluções perfeitas no campo das escolhas que envolvem
políticas públicas. Sendo assim, em vez de se analisar a possibilidade de
cada instituição formular e implementar a política pública (tendo em
vista a atual jurisprudência do excelso pretório que admite a judicialização), parece ser melhor olhar os problemas de cada instituição no
exercício desse mister. Somente assim se terá consciência da viabilidade
da judicialização, da sua utilidade, ou até mesmo de sua aptidão de
produzir um resultado melhor do que aquele que seria produzido caso
outra instituição atuasse em seu lugar (ou sem ser sujeito de coerção).
Eis o objetivo do presente estudo: alertar a doutrina sobre desvantagens que talvez não tenham sido relacionadas com a judicialização de
políticas públicas. Em nenhum momento se pensou em trazer solução
definitiva para tema de tamanha complexidade. O que se buscou apenas, como dito desde o início, foi ampliar o conjunto de informações
disponíveis para permitir uma melhor comparação entre as instituições
que podem atuar no campo da formulação e implementação de políticas
públicas.
E, diante dos problemas aqui verificados na judicialização de
polí­ticas públicas que tenham como objeto o incremento da segurança
pública, talvez deva ser reanalisada a solução de levar ao Judiciário a
questão. Pois se todos os problemas foram levados ao Judiciário, além
dos aqui mencionados, talvez surjam novos problemas e menos soluções,
como explica Mancuso:
A reavaliação antes referida passa, necessariamente, pela renovada compre­
ensão do que hoje se deva entender por acesso à Justiça, expressão geralmente
ubicada à outrance no art. 5º, XXXV da CF, e que, à custa de ser largamente
difundida, acabou superdimensionada, perdendo seu genuíno significado,
vezo que, com o tempo, foi gerando mais de uma externalidade negativa,
sendo a principal delas o fomento à cultura demandista ou judiciarista que
grassa entre nós, sobrecarregando a Justiça estatal e, ao fim e ao cabo, desser­
vindo a cidadania, na medida em que desestimula a busca por outros meios,
auto e heterocompositivos.37
37
MANCUSO, 2010, p. 11.
A judicialização de políticas públicas relativas à segurança pública é o melhor caminho? 249
10 Considerações finais
No cenário político de crise de identificação dos eleitores com seus
representantes, torna-se lugar comum buscar soluções adjudicadas, que
teoricamente eliminam, ou, no mínimo, diminuem a influência política
nas decisões. Todavia, tal qual os demais poderes, o Judiciário exerce sua
atividade por meio do devido processo legal e, em razão da necessidade
de segurança jurídica, suas respostas são dotadas de definitividade.
No campo da segurança pública, as definições do rumo a ser seguido pelo Estado não podem dispensar constante revisão, com possibilidade
de rápida atuação em sentido diverso do anteriormente definido, caso se
faça necessário. Essa pronta possibilidade de modificação, aliada à análise
constante de critérios de conveniência e oportunidade que se alteram
com grande frequência, é característica da atuação da Administração
Pública, que não deve sofrer indevida intervenção em sua atuação.
Is the Judicialization of Public Policies Related to Public Security
Issues the Best Path?
Abstract: The present essay aims to analyze the public safety issue and
the quality of judicial intervention over the definition of public choices
regarding the State action on such area. To reach these goals, the article
starts analyzing historic aspects of public safety, willing to demonstrate
its relation with the State birth. After that, public safety is analyzed on
legal basys. Once its present concept of public safety is defined, the study
focusses on judicial intervention over it, showing the inefficiency of such
intervention due to crime characteristics as well as due to procedural rules.
Key words: Public safety. Public choice. Judicial intervention.
Referências
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Processo, v. 124, p. 40, jun. 2005.
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Universidade de São Paulo, São Paulo, 2011.
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Esta obra foi composta em fontes New Baskerville e
Humnst 777, corpo 11/15 e impressa em papel Offset
75g (miolo) e Supremo 250g (capa) pela Paulinelli Serviços
Gráficos Ltda. Belo Horizonte/MG, outubro de 2013.
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Revista Debates n.12