Quadram n° 22. 2()()5
Centre de recherche
en linérature de langue portllgaise
Université Palll-Valéry. Montpellier l[[
As versons ilustradas de Osmia dous modelos de mulher,
duas propostas sociais de classe
1
o assunto da princesa lusitana Osmia tivo quatro versons que conheçamos,
escritas entre 1773 e 1845. A primeira foi a de Manuel de Figueiredo, Osmia, es­
crita em 1773; a segunda, com título igual, é de Teresa de Mello Breyner, Con­
dessa de Vimieiro (1788); em 1818 aparece umha nova versom, esta vez a Nova
Osmia de Manuel Joaquim Borges de Paiva, e, finalmente, em 1845, Osmia­
Conto-histórico-luzitano em quatro quadros seguido de outras poesias de José
Osório de Castro Cabral de Albuquerque.
De entre as diferentes versons localizadas sobre este assunto, interessam­
nos, particularmente, as duas escritas no período ilustrado em Portuga12: a de
Figueiredo, escrita em 1773 e só impressa em 1804 no segundo volume das suas
Obras completas, e a de Mello Breyner, publicada em 1788 pola imprensa da
Real Academia das Ciências de Lisboa. Neste trabalho tentaremos explicitar e
analisar as relaçons que se estabelecem entre as duas tragédias, ambas com o
mesmo título e construídas a partir do mesmo assunto tirado da historiografia
portuguesa de uso comum na altura, e a coexistência de diferentes modelos
éticos e comportamentais contraditórios entre si, mas integrados nas corren­
tes ideológicas ilustradas. Umha e outra tragédia nom se relacionam apenas
pola proximidade temporal, mas também por tratar-se de textos produzidos
por agentes do campo que participaram na constituiçom de duas das institui­
çons ilustradas que definiram os modelos de Ilustraçom introduzidos em Portu1. Este trabalho fai parte de um projecto de investigaçom mais alargado sobre «Mulher e Bus­
traçom na segunda metade do século XVIII em Portugal» desenvolvido no grupo de investigaçom
GALABR..'\. da Universidade de Santiago de Compostela e orientado polo Professor Doutor Elias J.
Torres Feijó.
2.
Existe, para além destas duas, umha terceira versom «ilustrada» de Osmia, ria mao de António
Araújo de Azevedo, Conde da Barca, o qual. na década de noventa do século XVIII, e segundo Nuno
Daupias d'Alcochete (l976): «esboçou as tragédias Ósmia [sicl e Nova Lastro, que veio a terminar
no Brasil. e depois se perderam». A existência desta outra versom, provocou que tanto Inocêncio
da Silva como Jean Gagé pugessem em dúvida a autoria da Osmia de l788, atribuindo-a ao Conde
da Barca, em lugar de à Condessa de Vimieiro. A versom do Conde da Barca nom chegou a ser
publicada, e hoje só se conservam, segundo d'A/cochete, alguns fragmentos na Biblioteca Nacional
do Rio de Janeiro.
87
As uersons ilustradas da Osmia dous modelos de mulher
Raquel Bello Vázquez
gal durante o século XVIII: a Arcádia Lusitana e a Academia das Ciências de Lis­
boa. Através das diferentes escolhas repertoriais feitas por Figueiredo e Mello
Breyner, veremos como as tomadas de posiçom dos diferentes grupos ilustra­
dos em relaçom com a igualdade das mulheres diferem substancialmente em
funçom do habitus] dos seus membros, da sua classe social e das relaçons de
cada um dos grupos com o campo do poder.
Osmia é umha personagem tirada da historiografia portuguesa4 e as suas des­
venturas devêrom de ser, até os meados do século XIX, tam populares como
as de Inês de Castro, e igual que esta figura, a de Osmia também foi tomada
como símbolo nacional num período em que Portugal, próximo ainda o tempo
da monarquia dual, precisava desta classe de elementos para reafirmar a sua
identidade colectiva. As fontes historiográficas que recolhem os factos protago­
nizados pola lusitana som, fundamentalmente, três: a Monarquia lusitana de
Frei Bernardo de Brito (1597, f. 220 v.) e dous textos setecentistas que repetem de
maneira mais ou menos resumida o dito por Brito, Portugal illustrado pelo sexo
feminino de Diogo Manoel Ayres de Azevedo (1734: 108-109) e o Theatro heroino
de Damiaõ Froes Perim (1740: 299).
Segundo as informaçons de todos eles, Osmia foi umha mulher lusitana, da
qual nom se especifica a sua funçom ou posiçom social, capturada � or um sol­
.
dado romano, do qual tampouco se esclarece o nome ou o grau mIlltar, e, pos­
teriormente, violada por este. Em vingança polo assalto, a lusitana mata-o e
escapa do campo de prisioneiros com a cabeça deste como prova para mos­
trar ao seu marido que as relaçons sexuais com o romano tinham sido produto
da violência. Umha vez de regresso à sua casa, e para nom deixar nengumha
dúvida sobre a sua «honra», Osmia suicida-se diante do seu marido.
O teatro, que era o principal meio de comunicaçom da altura, servia perfei­
tamente à vocaçom de intervençom que os ilustrados pretendiam para os seus
escritos tanto doutrinais como ficcionais. Dentro do teatro, tanto Figueiredo
como a Condessa de Vimieiro optam polo género mais prestigiado para se con­
verter no estandarte nom só de umha nova poética, mas também de umha nova
sociedade, e dentro desta, da sua classe dominante. A vinculaçom com a an­
tigüidade greco-Iatina e com o Quinhentismo, o protagonismo dos se�s �ares,
a liçom moral que devia encerrar, e um claro elitismo na selecçom do publico (a
complexidade da codificaçom deste género e o modelo lingüístico escolhido li­
mitavam o acesso aos grupos sociais que acudiam a outros espectáculos, como
a comédia portuguesa ou o teatro espanhol de «capa e espada») faziam da tra-
:
3. «Systeme de schemes incorporés qui, constitués au cours de l'histoire colle�tive, sont a quis
au cours de l'histoire individuelle et fonctionnent à l'état pratique et pour la pratIque (et non a des
fins de pure connaissance)>> (Bourdieu, 1979: 545; itálicos no original).
gédia o meio perfeito para promover ideias entre os grupos situados no topo
dos campos intelectual e do poder.
As diferenças mais significativas que encontramos entre ambos os textos
som especialmente destacáveis no que tem a ver com a caracterizaçom das
personagens femininas -e nomeadamente da protagonista-, o que se traduz
na apresentaçom de dous modelos femininos diferentes, com umha série de
implicaçons ético-sociais e mesmo políticas, que julgamos de grande impor­
táncia.
As personagens das duas peças, tirando, evidentemente, a protagonista,
nom recebem os mesmos nomes. Desconhecemos se a obra de Figueiredo te­
ria algumha difusom (bem via a encenaçom da peça, bem via a distribuiçom
de cópias manuscritas) anterior à sua publicaçom em 1804 nas obras comple­
tas e póstumas do árcade, mas parece evidente que a origem de ambos os tex­
tos está nas fontes historiográficas comuns nas bibliotecas de qualquer ilus­
trado português, que, como vimos acima, nom incluíam pormenores sobre a
acçom concreta ou sobre os nomes e procedência social das personagens. As­
sim, o Ríndaco de Mello Breyner é para Figueiredo Ragúcio, Lélio é chamado
Lívio, Elédia é Erécia e os três oficiais romanos da Condessa (Mânlio, Lúcio e
Probo) som em Figueiredo umha única personagem chamada Fábio. Por outra
parte, este utiliza mais duas personagens de que prescindirá aquela: MinUTO,
um lusitano traidor, e Tântalo, um antigo amante de Osmia. Da mesma ma­
neira, enquanto Osmia será para a Condessa de Vimieiro a guerreira e herdeira
do trono dos lusitanos, em Figueiredo é a esposa de um nobre endinheirado,
casada contra a sua vontade por um pai despótico interessado nas riquezas do
pretendente. Figueiredo, ademais, coloca um amor impossível entre Osmia e o
seu anterior amante, Tântalo, que reaparecerá em pleno desfecho da tragédia
para semear dúvidas sobre a honra da lusitana.
Em primeiro lugar, devemos pôr em destaque que a Condessa de Vimi­
eiro escolhe para a sua protagonista a mais alta classe social -é Princesa e
governante-, enquanto a Osmia de 1773 é umha mulher procedente da pri­
meira nobreza, casada contra a sua vontade e contra o amor. Isto implica umha
escolha do público a que vai dirigida cada umha das peças: a primeira, eviden­
temente, procura os seus receptores entre a aristocracia, permitindo-se, como
veremos, desenhar um modelo de Rainha. Figueiredo, por sua parte, aborda,
com a sua caracterizaçom da personagem, um assunto polémico na altura: os
matrimónios por conveniência.
Mas a diferença mais importante, do nosso ponto de vista, é a que se opera
na personagem principal, carácter feminino mais ou menos convencional em
Figueiredo, transformado por Mello Breyner numha espécie de «contra-Sofia5»,
isto é, num novo modelo de mulher oferecido desde posicionamentos ilustra-
4. Nestes sentido, cabe lembrar aqui que Aristóteles recomendava recorrer, preferentemente, a
5. Como é bem sabido, Rousseau, no seu Emílio, propunha um modelo masculino educativo e
factos reais como argumento para a tragédia: «na tragédia mantêm-se os nomes já existentes. A
_
razão é a seguinte: o possível é algo em que se crê. Ora enquanto as coisas não acontecem, nao
de comportamento incarnado polo seu protagonista, caracterizado polo racionalismo e a autono­
estamos dispostos a acreditar que elas sejam possíveis, mas é claro que são possíveis aquelas que
premeditadamente fraca e submetida ao homem, sem mais ambiçom nem objectivo que agradar
aconteceram, pois não teriam acontecido se não fossem possíveis» (Sousa, 1964: li7).
88
mia. O modelo feminino, representado por Sofia, era bem diferente: tratava-se de umha mulher
o seu companheiro, e o seu plano educativo devia ser orientado nesta direcçom.
89
As versom ilustradas da Osmia dous modelos de mulher
Raquel Bello Vâzquez
niano.
dos, mas claramente enfrentados a modelos passivos como o rousseau
ns da
descriço
das
Como mostra deste contraste, propomos a contraposiçom
� pre­
e
a
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Osm
e
�
t
�
e
o
protagonista em ambas as peças a propósito do encontr
do
Flguelre
de
LlVlo
O
tor/oficial romano (Lélio/Lívio) no campo de batalha.
aapaixon
seu
do
(1804: 366; itálicos nossos) descreve desta maneira as causas
menta:
sangue. que
[ .. .] ainda guardo/Nestas veias. formosa Lusítana.!O resto desse
�/ ara
erramad
gotta.
perdi/Para livrar-te a vida. porque corra/Té á ultima
vlrgmal
A
ldade.!
tenra
içoso.
v
e
semblant
salvar-te a honra. Porém Osmia.l Teu
�
�
�
to, e pavor, e n
garganta. castos olhos:/ Esse rubor, o pejo, esse contínuo/Sobresal
De huma Donzella lfl/
innocente
alma
casada,
de
não
que
Mais
.!
ti descobrem
tacta...
Lélio (MeUo Breyner, 1788: 7; itálicos nossos), no entanto, aprecia outros valo­
res na sua amada:
Disputou no combate, Osmfa, o passo/ Aos mais animosos dos Romanos.! Quan­
tos victimas foraã de seu braço!! Na força do conflito mais s'anima;/ e quando os
nossos, de tropel, a cercaõ.! naõ volta contra si o mesmo ferro,! que no sangue
Romano se ensopâra?/ Eu felizmente o golpe lhe desvio.! Relucta, mas debalde:
imperiosa/ observa-me hum momento. e rende a espada.
A caracterizaçom que fai Figueiredo da sua heroína, mais colada às fon­
tes historiográficas, centra-se quase exclusivamente na beleza física, acompa­
nhada de outras características tipicamente associadas com a feminilidade,
como a castidade, a virgindade (mesmo sendo necessário o rodeio lingüístico
e conceptual visto acima para justificar a impressom de virgindade numha mu­
lher casada), a debilidade ou o temor, apreciadas numhas ocasions por Lívio:
«culpa a tua beleza: eUa detem/Seus mais nobres estimulas», ou «terror feminil,
panico medo»; noutras por Erécia (Figueiredo, 1804: 378; itálicos nossos), que
censura as ánsias guerreiras que parecem nascer em Osmia:
OSMIA: [ ... ] estranhai A guerreira caduca, o pezo ás armas; /e mal diz a Noviça, o
debil braço/ver cruzados os meus, a ellas feitos; /e no vigor da idade he um tor­
mentol[ . . ] /ERÉCIA: [ . .] /Perdoa-me, Senhora. que o valor/Naã he virtude, naã,
.
.
do fraco sexo.!OSMIA: falla a necessidade
e mesmo por Osmia (Figueiredo, 1804: 378), que assume o discurso da debi­
lidade das mulheres: «Sacrosanta virtude, põe teus olhos/Na casta Lusitana!
anima o braço/De huma fraca mulher. Salva-lhe a honra», ou «nós, coitadas!».
Esta classe de apreciaçons relativas às mulheres nom aparecem na Osmia de
Mello Breyner, de que nom temos descriçom física e só referências mui vagas à
sua beleza, geralmente acompanhadas doutra classe de cumprimentos como
«as Lusitanas vejo/em valor, em destreza, em soifrimentoliguaes ao nosso sexo,
sem que percaõ as delicadas graças do semblante» (MeUo Breyner, 1788: 7; itáli­
cos nossos), «tua/Tão bella como rigida virtude» (p. 41), «bella fereza» (p. 41) e
90
algum «beBa Osmía» (pp. 43 e 62), preterido, na maior parte dos casos, por «cara
Osmía» (pp. 5, 40, 44, 62). Para além disto, em todo o momento Osmia é definida
com qualificativos ou frases associados com a construçom social do masculino,
relacionados com os campos semánticos da honra, do valor, do poder ou da
guerra: «illustre mulher, honra dos Luzas» (p. l),«seu nome a par dos Numes
se levanta», «fama», «proezas» (p. 4), «valor», «destreza», «valerosa» (p. 7), «san­
gue illustre» (p. 11), «teus brincos infantis fiz tantas vezes/que ensaios fossem
do futuro esforço...» (p. 12), «Eu! ... que mandava,/Eu! ... que fui atégora obede­
cida» Cp. 13), «poucos me seguem [no combateI» (p. 15), «ardor, esforço» (p. 17),
«soberba», «os seus a respeitam» (p. 18), «furor» (p. 23), «leis d'Osmían.
É evidente que, por trás desta mudança, está um objectivo ideológico de rei­
vindicaçom da igualdade de capacidades entre os géneros, enquanto em Figuei­
redo apreciamos a recuperaçom de umha figura da história portuguesa, que
serve como vindicaçom nacional, e umha crítica tipicamente ilustrada dos ma­
trimónios concertados, perfeitamente rousseauniano no que diz respeito ao
papel da mulheres, que som apresentadas como sujeitos fracos, passivos e do­
minados palo destino e palas homens.
Para colocarmos o foco adequado sobre esta análise, nom podemos perder
de vista vários elementos que explicam as evidentes diferenças entre umha
peça e outra. Manuel de Figueiredo é um produtor, teórico e promotor do te­
atro e das ideias ilustradas, vinculado com umha instituiçom como a Arcádia
Lusitana, que tinha fortes laços com o governo pombalino. O interesse funda­
mental de Figueiredo é apresentar e dignificar um modelo de actuaçom que
visa a questom, certamente mais debatida entre as classes médias do que en­
tre a primeira nobreza6, da abertura nas estratégias matrimoniais. A nobreza
mantinha ainda um férreo desenho destas, alicerçado em critérios de acumu­
laçam de diferentes capitais (segundo os momentos históricos ou, até, as famí­
lias, podia ser primado o capital económico, o cultural, o político, etc.) sempre
pensando no benefício da casa como objectivo último. Frente a este princípio,
o amor-paixom, à medida que avance o século XVIII, irá ganhando espaços,
até ser convertido em elemento central palo Romantismo no século seguinte,
como critério superior para a decisom dos enlaces sobre os interesses «de casa»,
beneficiando particularmente urnhas classes médias que com estes novos argu­
mentos conseguem romper as barreiras que as separavam da primeira nobreza.
Logicamente, quem tirava um maior rendimento desta aparente «individualiza­
çom» do amor nom eram as casas nobres que, segundo o velho sistema ainda
em vigor, nom ocultavam os interesses depositados nos intercámbios matrimo­
niais, mas as classes emergentes, que convertiam em sentimentos individuais
aspiraçons de classe que lhes permitissem ocupar postos políticos e sociais até
à altura interditos, homólogos dos que já ocupavam na economia.
6. Pense-se, por exemplo, nas medidas pombalinas contra a política matrimonial das casas pu­
ritanas ou nos intentos de fomentar matrimónios de elementos procedentes da baixa nobreza e da
burguesia mercantil endinheirada com filhos e filhas da primeira nobreza através, entre outros, do
Colégio dos Nobres.
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As versons ilustradas da Osmia dous modelos de mulher
Raquel Sello Vázquez
Por seu turno, a Condessa de Vimieiro, mostra-se na sua tragédia partidária
de uns matrimónios decididos em funçom dos interesses de casa e avaliados
segundo critérios racionais. O amor para ela nom deve ser umha paixom, mas
um sentimento racional e fundamentado.
Vemos, portanto, que as diferenças entre ambas as tragédias estám sustenta­
das nas diferenças de grupo que podemos verificar entre Figueiredo e Vimieiro.
O primeiro, membro da Arcádia Lusitana, promove, por um lado, um modelo
vinculado com as novas propostas de alianças matrimoniais apoiadas polo go­
verno pombalino e, por outro, defende um modelo de mulher similar ao rous­
seauniano que era de grande interesse para as classes médias emergentes, que,
com a mulher reduzida a um papel secundário e doméstico, conseguiam con­
sagrar unicamente o ascenso social, económico e político baseado no mérito
académico, frente a um sistema de casas que legitimava um certo papel polí­
tico das mulheres na Corte (pense-se, neste sentido, na funçom desenvolvida
polas açafatas e damas da Rainha).
A personagem de Tântalo e o passado amoroso de Osmia, fazem inclinar a
tragédia de Figueiredo para o enredo sentimental -apesar de este orgulhar-se
noutro lugar de nom tratar nunca este assunt07 -, com um marido, um antigo
amante, um aspirante a amante, e umha heroína incapaz de optar entre os afec­
tos e as obrigas de esposa. Na Osmia de Mello Breyner, o assunto amoroso é, na
realidade, um simples desencadeante doutros conflitos como a (in)justiça das
éticas tradicionais lusitana e romana, o poder absoluto do homem sobre a sua
esposa, ou a impossível liberdade de acçom de Osmia, que tenta inutilmente
separar a sua vida pessoal das suas obrigas como governante.
É evidente que, embora Figueiredo nom entre expressamente nesta classe
de conflitos, as suas escolhas tenhem umha importante carga ideológica por­
que estám imersas numha corrente europeia de reforma do papel femini � �
na sociedade, e, com ele, dos alicerces do matrimónio e das relaçons famlh­
ares. A acçom centra-se nos problemas afectivos e pessoais das personagens,
ocupando-se, sobretodo, de denunciar os inconvenientes dos matrimónios
concertados polos paisB, que começam a ser, durante o período ilustrado, mo·­
tivo de forte polémica, e que som gravemente censurados por Figueiredo, cons­
tituindo, em última instáncia, a causa da perdiçom da sua Osmia; enquanto,
para Mello Breyner, a infelicidade da sua protagonista tem a ver com as circuns­
táncias políticas e, no plano sentimental, com o abuso de poder por parte dos
maridos e com as desigualdades entre os géneros, mais do que com a existência
de matrimónios concertados que som, afinal, percebidos como legítimos.
7. No prólogo a As irmãas (Figueiredo,
1804,
vol.
6):
«Dizem-me os homens que provém todo
� �nca se
aquelle odio [o que lhe tenhem as mulheres] de eu desterrar o Amor do Theatro, onde r
fazia a festa sem elle; e onde constantemente as Damas viaõ celebrar com os daquella Dlvmdade
os seus triunfos».
8.
Ainda nas primeiras décadas do século XIX, a Marquesa de Alorna, como representante de
umha importante casa da primeira nobreza, defendia, segundo o seu neto (Andrada.
1926: �94):
_
a concertaçom dos matrimónios por parte das famílias: «Minha Avó, a quem tambem me dmgl
[com motivo do seu casamento], disse-me que o mundo andava ás avessas, que os avós é que
annunciavam os casamentos aos netos, e não os netos aos avós».
92
Em relaçom com isto, no interessante estudo feito por Isabel Morara e Mó­
nica Bolufer (1998) sobre a «construcción histórica de la familia moderna» en­
contramos algumhas reflexons que ajudam a interpretar as diferenças entre os
modelos de matrimónio e relaçom conjugal propostos respectivamente por Fi­
gueiredo e Mello Breyner. Como bem indicam as duas autoras (Morant/Bolufer,
1998: 84) em relaçom com a promulgaçom na Espanha da Pragmática de Carlos
III, que regulava o papel das famílias nos matrimónios dos filhos, a pedimento
das próprias casas da primeira nobreza,
ni la pragmática dei rey, ni lQS discursos reformistas de la época [ .. . 1 son producto
de la aparición de una nueva ideología que defienda la libertad de los individuos
frente a la defensa a ultranza de lo que serían las viejas ideas de las familias. Las
cosas no sucedieron así. sino de otro modo más complejo. Elia implica el modo
en que aquella sociedad percibía sus conflictos y el modo en que establecía sus
soluciones. en la construcción de un nuevo orden de vida de la sociedad y los
individuas. Significó la construcción de un discurso ideológico sobre el amor
y el matrimonio que vemos referirse en los textos dei rey. como también en la
literatura moral y política de la época. Dei mismo modo que veremos expresarse
el conflicto y la construcción dei discurso ideológico en el teatro y en la novela
que se representan como la literatura de las ideas modernas.
No século XVIII assistimos em toda a Europa ao aparecimento e promoçom
das ideias sentimentais, que tenhem umha das suas vias privilegiadas de ex­
pressom na literatura tanto doutrinal como de ficçom. Esta reivindicaçom dos
sentimentos e das novas relaçons pessoais que estes implicavam, tem sido vista
como o triunfo da liberdade individual frente a umha dura repressom exercida
particularmente polas famílias contra os filhos, mas, bem ao contrário, pode
ser identificada como umha estratégia «de classe» altamente sucedida.
Do nosso ponto de vista, o processo de reivindicaçom da família sentimental
nom pode ser separado de um outro processo que tem a ver com a reconfigura­
çom do papel das mulheres (nobres e burguesas) na nova sociedade proposta
polos grupos sociais em ascenso. O estabelecimento de alianças matrimoniais
vantajosas era de grande importáncia para as casas da primeira nobreza, ainda
que fosse apenas no sentido de acumular capital económico, simbólico ou de
qualquer outro tipo, e com este objecto eram desenhadas complexas estraté­
gias para pôr em valor os diferentes capitais que cada casa podia rentabilizar
no mercado matrimonial. Nestas estratégias nom se contemplava, em princí­
pio, o sentimento como um valor, nem esta situaçom era enfrentada necessari­
amente polas filhos de maneira traumática, pois era a doxa assumida que todos
os elementos da casa trabalhavam em benefício desta. As classes médias emer­
gentes nom eram perspectivadas como passíveis de entrar neste mercado, o
que, apesar do poder económico que tinham adquirido em boa parte da Eu­
ropa (e também, embora em menor medida, em Portugal), as excluía tanto de
determinados centros de poder político e intelectual (particularmente embai­
xadas e ministérios), como lhes negava o ascenso até o topo da escala social.
93
As versons ilustradas da Osmia dOLls modelos de mulher
Raquel Bello Vázqllez
No caso português este tipo de matrimónios nom se produzia dentro da alta
nobreza portuguesa, tal como explica Nuno G. E Monteiro (1998: 75):
desde 1650 mais de 90 % dos primeiros casamentos dos sucessores se realizam
com filhas de fidalgos da «primeira nobreza de corte». O que significa que a
quase totalidade dos que não se consorciaram com filhas de Grandes, fizeram­
no com fidalgas nascidas em casas de linhagem conhecida, residentes em Lis­
boa. detentoras de bens da coroa e/ou comendas, ocupantes de lugares (ou
hereditários) de cargos palatinas ou de ofícios superiores da monarquia, e que
mantinham alianças frequentes com casas de Grandes.
A única possibilidade de ascenso da burguesia é, pois, desactivar a lógica
das estratégias matrimoniais da primeira nobreza atacando os seus princípios
em funçom dos valores ilustrados na moda. Desta maneira (MorantlBolufer,
1998: lU),
los ilustrados desautorizaban como intereses «particulares» la política de las fa­
mílias que buscaban afianzar o acrecentar sus bienes, su status y sus contactos
sociales. Por contra, se erigían en representantes deI interés «general» de la socie­
dado Afirmaban que éste requería de las famílias que educaran en la recta moral
a los futuros ciudadanos, y que ello exigía parejas bien avenidas. Sólo los esposos
que se unían sobre la base dei amor y la virtud, sostenían. serían capaces de cum­
plir con las funciones que la sociedad asignaba a las famílias, contribuyendo de
ese modo ai «bien común» a la vez que se aseguraban su propia felicidad.
EI «amor» frente ai «interés», la «inclinación» contra la «conveniencia», consti­
tuían. pues, en el discurso ilustrado una oposición que se esgrimía constante­
mente a la hora de definir los móviles dei matrimonio.
Este discurso sentimental nom se origina, do nosso ponto de vista, numha
oposiçom ilustrados vS. aristocratas, oposiçom que em algum momento utili­
zam Morant e Bolufer, mas numha outra entre burgueses vs. aristocratas, ilus­
trados ou nom tanto os uns como os outros, tal e como se verifica na oposi­
çom entre Figueiredo e Vimieiro. Precisamente, o sucesso desta nova lógica
matrimonial vem dado, em nossa opiniom, polo facto de que um discurso for­
temente condicionado por interesses de classe conseguisse converter-se, atra­
vés de umha importante campanha de promoçom de por meio, tanto da !itera··
tura ficcional como de textos morais e até médicos, em identificativo de todo
um movimento estético e ideológico muito mais complexo, chegando até ao ex­
tremo de que grupos da nobreza caracterizados polo seu elitismo, como aquele
em que se integra a Condessa de Vimieiro, assumissem determinados aspectos
do discurso sentimental.
Mello Breyner defende um modelo de matrimónio que, tendo em conta as
inclinaçons dos indivíduos e aspirando mesmo ao amor sentimental entre os
cônjuges, seja concertado em funçom de critérios racionais e objectivos (me­
recimento, origem, prestígio da casa) e tenha como principal objectivo os in-
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teresses gerais, sejam estes os da família ou os do reino�. Portanto, na Osmia
de Breyner nom som questionados os critérios polos quais se escolhe o ma­
rido de Os mia, mas o trato que, do seu ponto de vista, muitos homens dam
às suas esposas. Figueiredo, por seu turno. focaliza a sua crítica precisamente
nos matrimónios concertados, especificando que se trata daqueles levados a
cabo pala primeira nobreza, caracterizados, segundo ele, pola voracidade eco­
nómica dos pais (Figueiredo, 1804: 355; itálicos nossos): «a Lusitana Osmia, com
quem a natureza largamente repartíra dos bens da alma, e do corpo, foi perten­
dida por esposa de alguns Lusitanos da primeira nobreza. Aconteceo-lhe neste
caso, o que he ordinario, ser sacrificada ao interesse, e entregue ao mais rico».
Evidentemente, estas duas perspectivas a respeito do matrimónio vam ser
complementadas pala defesa de uns valores morais diferentes para Osmia, e,
portanto, pola proposta de dous modelos de comportamento mui diferentes
para as mulheres. O processo, geral na Europa, de ascenso das camadas mé­
dias da sociedade implicou um novo reparto do poder que afectou as mulheres
de forma especialmente intensa. Em contra da imagem tradicionalmente teleo­
lógica da reivindicaçom dos direitos das mulheres e da igualdade entre os géne­
ros, entendemos que, com o final do Antigo Regime, se produz um importante
recorte nas possibilidades das mulheres (de determinada classe de mulheres,
logicamente) de aceder ao poder nos diferentes campos. A sociedade de Corte,
embora nom sancionasse com empregos e distinçons o papel das mulheres
no campo do poder nem promovesse a sua posiçom pública no campo inte­
lectual, permitia a excepçom e nom impedia que determinadas mulheres, bem
polo prestígio das suas famílias, bem pola sua formaçom acedessem a deter­
minados lugares de poder -sem a visibilidade daqueles ocupados polos ho­
mens, certamente- em qualquer dos campos. Da mesma maneira, era permi­
tida umha certa liberdade de movimentos às damas da Corte para negociarem
empregos e distinçons em favor dos elementos masculinos das suas casas.
O ascenso da burguesia, sem possibilidades de entrar neste jogo, impom de
maneira crescente a exigência de habilitaçons que vinhessem sancionadas por
instituiçons à margem da Corte, como som as universidades, sem que se con­
temple a possibilidade de integrar as mulheres neste percurso, pois a tolerán­
cia da excepcionalidade por parte da sociedade de Corte nom implicava umha
consideraçom igualitária de homens e mulheres. A participaçom das mulheres
nos campos intelectual e do poder é, pois, questionada e censurada por aque­
les que nom tenhem possibilidades de formar suficientemente as mulheres da
s�a classe para intervirem em igualdade de condiçons e que tampouco pode­
nam ocupar nunca lugares hereditários e reservados para a primeira nobreza
como os de damas de Corte. Fai-se necessário, deste ponto de vista, desactivar
a lógica que permite a intervençom das mulheres nos assuntos da República, e
9. Convém nom esquecer que na retórica das casas nobres colocavam-se os interesses de classe
como interesses nacionais. pois. segundo este discurso. o reino precisava de umha nobreza forte
para fazer frente aos seus problemas.
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As versons ilustradas da Osmia dOllS modelos de mulher
Raquel Bello Vázquez
isto consegue-se promovendo um novo modelo moral assentado no matrimó­
nio sentimental.
Na Osmia de 1773 encontramos, como foi dito, a presença de um antigo
amante da protagonista, frente à ausência desta personagem na versam de
1788. Entendemos que isto nom só contribui para focalizar o problema dos
matrimónios sem amor ou contra o amor, mas também para perspectivar de
maneira diferente em ambas as peças a questom da castidade da protagonista.
Se na versam da Condessa de Vimieiro, esta é vista como um elemento mais
ou menos secundário em relaçom com assuntos como a submissam da mu­
lher ao marido ou as obrigas da governante, e até substituída por um conceito
de honra mais próximo do construído como masculino, caracterizado palo res­
peito à palavra dada ou palas obrigas éticas (esta Osmia nunca confessa amor
palo pretor, mas dúvidas que venhem dadas palas exigências da j�� tiça e da
.
gratidom), na de Figueiredo o enredo principal centra-se nas amblguldades
de
umha mulher casada contra a sua vontade, com um antigo amor ainda nom
esquecido e apaixonada por um romano enquanto o seu marido ainda é vivo.
Em vários momentos da peça de Figueiredo este elemento moral é colocado
como prioritário: «Oh virtude! Sou Osmia. Sou casada./Sou Lusitana» (Figuei­
redo, 1804: 465; itálicos nossos). Encontramos ainda mais significativos, quanto
ao contraste entre as duas versons, os versos em que Osmia se nega a ser res­
gatada palo seu antigo amante: «Se Tantalo se atreve,! (Tantalo que a conhece)
a infamar Osmia:/Que não diria o Mundo, se me visse/De ti acompanhada?
Sendo pública/Tão famosa a paixão que nos unia?» (Figueiredo, 1804: 415). A
Osmia da Condessa (Mello Breyner, 1788: 42), por seu turno, afirma: «Liberdade
naõ quero; naõ desejo/Mando, que pago seja por meus PÓvos./Se do Esposo
esperar naõ pude auxilio;/Naõ quero ir supportar a sorte ingrata/De m� ver a
meus subditos vendida». Repare-se em que esta rejeita o resgate oferecldo pa­
las seus povos porque nom quer que a sua legitimidade de soberana absoluta
seja posta em questom pola intervençom destes, enquanto em Figueiredo a ne­
gativa é devida ao princípio moral que impele a lusitana nom só a conservar a
sua honra (que reside exclusivamente na sua conduta sexual), mas a guardar
umha aparência idêntica de mulher virtuosa.
Figueiredo nom apura até ao extremo a sua proposta moral, e nom cria um
exemplo de virtudes sentimentais do tipo da Pamela de Richardson ou da So­
fia de Rousseau, dous dos modelos mais sucedidos na Europa ilustrada, mas,
faltando ainda um estudo mais pormenorizado deste texto, entendemos que
participa numha corrente europeia de pensamento que propom e promove um
modelo feminino que tem as suas essências na virtude (ou, o que é o mesmo, na
castidade), e na submissom ao marido, todo isto já nom argumentado em fun­
çom de umha suposta inferioridade da mulher frente ao homem (tal e corno se
fazia em anteriores polémicas entre géneros e das quais ternos ainda algumha
amostra no século XVIII português, corno podem ser as Cartas apologéticas es-
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critas em resposta ao Espelho crítico do Irmao Amador do DezenganolO), mas
alicerçado agora em princípios ilustrados que figessem atractivo este papel
para as mulheres. Em palavras, novamente, de Morant e Bolufer (1998: 188):
en ese discurso tradicional sobre la familia la mujer [ .. . ] era una figura secunda­
ria y claramente subordinada, peldaflo intermedio en la jerarquía familiar entre
el padre y sus hijos y domésticos. Ahora, en cambio, en el nuevo elogio ilustrado
de la família la mujer pasa a ser protagonista. Los textos se refieren a ella con
más frecuencia que a la figura que la acompafla, el esposo y padre doméstico y
razonable, y lo hacen con palabras que expresan poder más que dependencia.
Sin embargo, ese «poder» que el nuevo discurso sobre la familia ofrecía a las mu­
jeres no era un poder formal, sino una autoridad moral. En ese espada que se
iba perfilando a lo largo deI siglo XVHI, el de la privacidad como un reducto en
el que no debían intervenir los poderes externos, como el territorio de los sen­
timientos y de la moral, se les prometía que su amor obligaría a sus hijos y sus
esposos hacia ellas y su labor educativa revertiría en el bienestar de la sociedad.
A los hombres, además dei gobierno de lo público, las leyes les seguían reser­
vando en el siglo XVIII también el mando en lo privado, la administración de
los bienes comunes y la última palabra en aquellos asuntos que concernían a la
familia. Pero los apologistas dei nuevo modelo de maternidad y vida doméstica
argumentaban que si de ellos era el poder legal en la familia y en la sodedad,
a las mujeres les correspondía esa forma de poder indirecto que era la influen­
cia. En contrapartida por ese dominio simbólico de lo privado, les parecía lógico
que renunciaran a toda vida pública, a las diversiones o a cualquier pretensión
intelectual. EI verdadero poder de las mujeres, les advertían, radicaba en recono­
cer y aprovechar las cualidades que les concedía la naturaleza, la sensibilidad, la
ternura, la capacidad para conocer el corazón humano, en lugar de pretender
emular a los hombres en las actividades de exterior, que pasaban a considerarse,
de forma más intensa que nunca, como su territorio.
A proposta de Figueiredo, portanto, vincula-se com a defesa dos interesses
da burguesia portuguesa ainda emergente, mas favorecida polo Marquês de
Pombal e polo Rei D. José I, que aponta para umha valorizaçom do amor e dos
sentimentos individuais corno elementos fundamentais para a orientaçom das
escolhas matrimoniais, frente às estratégias «de casa» e de «classe» adoptadas
pola Primeira Nobreza. Vmha proposta elitista corno a de Mello Breyner, no
entanto, que acredita nos privilégios da nobreza e adere sem fissuras ao mo­
delo de monarquia absoluta, precisa de umhas estratégias matrimoniais claras
quanto aos critérios de eleiçom, e confia nas vantagens que mulheres conveni­
entemente formadas proporcionam às casas da primeira nobreza. A defesa das
classes médias, por seu turno, nom pode permitir que a situaçom de privilégio
das famílias nobres seja consagrada e perpetuada, entre outros factores, por
umhas mulheres com acesso à família real - através, particularmente, de pos­
tos corno o de dama da Rainha, lugar este que foi ocupado tanto por Mello Brey­
ner corno por sua mai e sua avó. Talvez em Portugal eram poucas as mulheres
lO. Para maiores informaçons sobre esta polémica recomendamos a leitura do artigo de Elias
J. Torres Feijó (2004).
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As versons ilustradas da Osmia dOlls modelos de mulher
Raquel Bello Vázquez
com este poder, mas nom devemos esquecer que as formulaçons sentimentais
mais beligerantes contra as mulheres provinham da França, onde as mulheres
da nobreza tinham um poder intelectual, político e social muito maior do que
em Portugal. Conhecendo a trajectória social e política da Condessa de Vimi­
eiro, a sua posiçom na Corte e o alheamento a que está submetida no momento
de publicaçom de Osmia, nom será certamente especulativo ver nesta tragédia
de umha Rainha portuguesa primitiva um «manual» para D. Maria 1, num mo­
mento político em que as suas dificuldades para ocupar-se do poder estám já
chegando ao extremo último de perder a sua posiçom política na Corte.
Em condusom, as escolhas de diferentes elementos de repertório feitas por
Figueiredo e por Mello Breyner na sua reelaboraçom dos materiais recolhidos
por Brito, Ayres de Azevedo e Froes Perim estám directamente vinculadas com
a promoçom de modelos concretos de comportamento para as mulheres que
nom se limitam a umha simples questom de moral, mas que tenhem a ver com
a existência de duas propostas de sociedade, ambas ilustradas, mas bem di­
ferentes. Por um lado, temos a proposta da primeira nobreza, que utiliza os
argumentos racionalistas que apoiam a igualdade entre os sexos para manter
umha posiçom de privilégio das mulheres das suas casas, às quais é permitido
intervir nos campos intelectual e do poder em funçom de umha certa excepci­
onalidade bem da sua formaçom particular, bem da sua origem familiar. Para
isto, é imprescindível a continuaçom das alianças matrimoniais estratégicas vi­
sando a conservaçom ou o fomento de determinados capitais. Por outro lado, é
apresentada a proposta das classes médias emergentes, que pretendem anular
as normas sociais que permitem a intervençom das mulheres da nobreza nos
assuntos públicos. Para isso, desenha-se um modelo de mulher que encontra
a sua realizaçom num matrimónio por amor, promovido como umha liberta­
çom das obrigas impostas polas casas nobres aos seus filhos, acompanhado
por umha definiçom precisa dos sentimentos e comportamentos desejáveis
que, a partir de aqui, passarám a ser vistos como intrínsecos à feminidade.
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Raquel BELLO VÁZQUEZ
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