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AS LICENÇAS COMPULSÓRIAS E A LEGISLAÇÃO
BRASILEIRA SOBRE PATENTES
Lucas Rocha Furtado
Professor da Universidade de Brasília
Subprocurador-Geral do Tribunal de Contas da União
1. A concessão de patente e o dever de exploração. 2. Licenças. 2.1 Licenças
voluntárias. 2.2 Licenças compulsórias. 2.2.1 Aspectos gerais. 2.2.2 Licenças
compulsória como instrumento da livre concorrência. 2.2.3 Licença
compulsória decorrente de abuso de poder econômico e da falta de
exploração. 2.2.4 Licença compulsória e o desenvolvimento tecnológico. 3.
Conclusões.
1. A CONCESSÃO DE PATENTE E O DEVER DE EXPLORAÇÃO
A concessão de uma patente assegura a seu titular uma série de direitos; em
contrapartida, a maioria dos países estabelece para seus titulares uma obrigação básica:
explorar o objeto da patente de forma a atender às necessidades de demanda do
mercado interno. No que concerne aos mecanismos de proteção, visando a estimular a
efetiva industrialização, no país concedente, dos processos e produtos patenteados, são
estabelecidos dois mecanismos básicos: a licença compulsória e a caducidade. Entre
nós, o Código de Propriedade Industrial, nos arts. 52 e 33, § 2º, definia a exploração da
invenção nos seguintes termos:
"Art. 52. Considera-se uso efetivo a exploração
comprovada, contínua e regular da invenção em escala industrial, seja
através de produção pelo titular da patente, seja por produção através de
concessão de licenças de exploração a terceiros, observado o disposto no § 2º
do art. 33."
"Art.33...................................................................................
.................................................................................
§ 2º Não será considerada exploração de modo efetivo a
industrialização que for substituída ou suplementada por importação, salvo
no caso de ato internacional ou de acordo de complementação de que o
Brasil participe."
Observe-se que o legislador brasileiro seguiu a tendência generalizada de não
fixar critérios precisos para o conceito de exploração. Caberá à autoridade competente o INPI - avaliar, caso a caso, a observância do ônus legal.
Uma primeira constatação que se faz é a de que a mera comercialização, através
da importação, não é tida como uso efetivo. Não se deve com isso entender que o titular
esteja impedido de importar o produto patenteado ou obtido por processo patenteado;
mas que, a parcela do mercado que seja abastecida por meio de importação não será
considerada explorada, sujeitando-se seu titular às conseqüências legais, concessão de
licenças compulsórias ou a caducidade da patente, que serão adiante examinadas.
2
Portanto, se o titular da patente proíbe um terceiro de fabricá-lo, estará exercendo
o seu direito. No entanto, cumpre destacar que a patente se caracteriza por ser um fator
de produção, devendo, assim, necessariamente, "realizar a sua função dentro do instituto
jurídico da produção"1. O dever de exploração da patente, assim, é universalmente
aceito; porém, a questão de saber se esse dever de exploração pode ser atendido através
da simples importação do produto tem sido fruto de infindáveis divergências
doutrinárias. Entendendo que, em função da internacionalização do sistema de patente,
referido dever pode ser suprido pela importação, transcrevemos a seguinte
argumentação:
"Toutes fois, si nous jugeons légitime l'exigence légale
d'une exploitation, nous sommes très loin de penser que la déchéance
constitue une sanction qui soit à la mesure de cette exigence. Elle constitue un
défi à l'inventeur qui n'aura pas les moyens de conduire une exploitation de
cette sorte, et, dans l'état de la communauté internationale, elle réprésente un
obstacle majeur à la protection internationale des inventions, car on ne peut
demander à l'inventeur de poursuivre une exploitation parallèle dans tous les
pays"2
Devemos, no entanto, destacar que o sistema de patentes, nos países em
desenvolvimento, serve igualmente como fator de atração de capital estrangeiro de risco.
Assim, concedendo-se uma patente a uma empresa de um país estrangeiro, pretende-se
que ela se instale no País, e aqui mesmo explore a sua patente o que acarreta, dentre
outros fatores, transferência de tecnologia e criação de novos empregos. Tem-se, assim,
que a patente serve ao desenvolvimento econômico dos países em desenvolvimento,
consistindo essa em uma das mais importantes razões para a adesão desses últimos ao
sistema internacional de patentes.
Observamos que a imposição do ônus de exploração através de produção local,
nos países que estejam em um nível de desenvolvimento econômico como o nosso,
somente interessa a proteção da invenção na medida em que ela é posta no mercado.
Analisando o conceito de propriedade industrial, foi constatado que o ordenamento
jurídico lhe assegura proteção jurídica, atribuindo-lhe, ademais, a natureza de direito de
propriedade. Porém, esse direito de propriedade tem características que o tornam
peculiar: é uma propriedade condicionada e temporária devendo, nos termos do art. 5º,
XXIX, da Constituição Federal, atender à sua função social e ao interesse público e "(...)
ao desenvolvimento econômico e tecnológico do País".(grifo nosso).
Entendemos, destarte, que a necessidade de exploração é tão coerente e
fundamental para o sistema, que ela deixa de constituir um ônus cuja observância é
imperativa para a manutenção de direitos, para se transformar em requisito para a
própria existência do direito. Pelo exposto, poderíamos, certamente, enquadrar a
situação jurídica como uma imposição constitucional. Discorrendo sobre referidas
imposições constitucionais, J.J. Gomes Canotilho manifesta-se nos seguintes termos:
"Nos casos de não-cumprimento da constituição por falta de
regulamentação legislativa adequada - caso das chamadas imposições
1
CARVALHO, Nuno Tomaz Pires de. A caducidade de Patentes por Falta de Exploração. Tese de Doutorado
em direito econômico pela Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais. Prof. Orientador
Aroldo Plímio Gonçalves. Belo Horizonte. 1990. pag. 74.
2
ROUBIER, Paul. Le Droit de la Proprieté Industrielle. Soc. Editr. Libraria, Milão, 1993, pags. 170-171,
apud CARVALHO, Nuno Tomaz Pires de. Ob. cit. pag. 75.
3
constitucionais, em sentido estrito, e de ordens de legislar, e que existe um
dever expresso de legislar -, os tribunais constitucionais podem, com base no
princípio democrático do Estado de Direito e em normas constitucionais
expressas, declarar um silêncio legislativo como inconstitucional e considerar
o legislador responsável pela conformação de domínios existenciais,
estritamente indispensáveis à sua realização."3
Em face, portanto, da literalidade do disposto no inciso XXIX do art. 5º da
Constituição Federal, que condiciona a existência do sistema de patentes, dentre outros
fatores, ao desenvolvimento econômico do País, e sendo o dever de exploração local a
única e efetiva forma de garantir esse desenvolvimento dentro de um sistema de
patentes, poderíamos perfeitamente considerar inconstitucional qualquer dispositivo em
nossa legislação que não imponha ao titular da patente o ônus de explorá-la localmente.
Feitos esses esclarecimentos, e entendendo-se a propriedade industrial como uma
propriedade constitucionalmente condicionada, a conclusão deve ser no sentido de que
faz parte do conceito de patente, o dever de explorar seu objeto no País.
A Lei nº 9.279/96 , apesar de não possuir dispositivo disciplinando
expressamente o dever de exploração, ao contrário do que ocorre com o Código de
Propriedade Industrial (Lei nº 5.772/71), ao disciplinar os institutos da licença
compulsória e da caducidade, impõe referido ônus ao titular da patente. Esses institutos
serão a seguir analisados.
2. LICENÇAS
2.1. Licenças voluntárias
Antes de iniciarmos o efetivo estudo das licenças compulsórias, cumpre tecer
alguns rápidos comentários sobre as licenças voluntárias e sobre o novo instituto da
oferta de licença. O art. 61 da Lei nº 9.279/96 assegura ao titular de patente ou
depositante a possibilidade de celebrar contrato de licença para a exploração do objeto
da patente, podendo ficar o licenciado investido pelo titular de todos os poderes para
agir em defesa da patente. As licenças, principalmente as voluntárias, constituem
importante fonte para a transferência de tecnologia para nosso País. Buscou-se, assim,
simplificar o procedimento para seu registro junto ao INPI. Nesse sentido que o
legislador, no art. 209 da Lei, estabelece que "o INPI fará o registro dos contratos que
impliquem transferência de tecnologia, contratos de franquia e similares para
produzirem efeito em relação a terceiros". Observe-se que o contrato de licença poderá
ocorrer independentemente de qualquer registro, porém, somente poderá ser oponível a
terceiros, inclusive para fins de remessa de dividendos ao exterior ou como defesa em
eventuais demandas de licenças compulsórias ou ainda em defesa do próprio objeto da
patente, caso a licença ou cessão de uso esteja registrada. Cumpre, aqui, transcrever
jurisprudência do Supremo Tribunal Federal sobre o tema (RHC nº 0062969-85/SP,
Decisão de 24.05.85, D.J.U. de 21.06.85, 2ª Turma, Rel. Min. Leitão de Abreu):
3
Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador. Contributo para a compreensão das normas
constitucionais programáticas. Coimbra Editora, Coimbra, 1982, pag. 295.
4
"Queixa por crime contra a propriedade industrial. Art. 27 e seu §
1º, da Lei nº 5.772/71. O cessionário, que não efetuou o registro na
propriedade industrial, é parte ilegítima para proceder contra eventuais
infratores da patente, pois o seu título é inoponível a terceiros.
RHC provido."
Pode ser observado, nesse tocante, ademais, uma redefinição das atribuições do
INPI. No revogado CPI, incumbia ao INPI proceder à averbação de contratos de
transferência de tecnologia. Entendeu-se no Congresso Nacional que o termo
"averbação" poderia dar margem a que mencionado órgão decidisse, conforme seu juízo
de conveniência, se determinada tecnologia interessava ou não ao País, e, nessa última
hipótese, determinava a não-averbação desses contratos. A utilização pelo legislador do
termo "registro", em oposição a "averbação", suprime do INPI a possibilidade de querer
analisar a conveniência ou não da transferência de tecnologias, devendo ser essa decisão
apenas do empresário nacional. Destacamos, que a antiga política do INPI de negar
averbação a contratos de transferência de tecnologia que os técnicos do órgão não
julgavam adequados ou convenientes para o País tornou essa Autarquia Federal uma
das entidades mais odiadas pelo empresariado nacional. Destaque-se, no entanto, que
essa forma de atuação hoje é considerada completamente superada, inclusive pelos
técnicos do próprio INPI.
Constitui inovação da Lei nº 9.279/96 o instituto da oferta de licença,
disciplinado nos arts. 64 a 67 do Diploma Legal. Constitui esse instituto uma alternativa
que se dá ao titular de uma patente que poderá solicitar ao INPI que a coloque em oferta.
Caso o titular não tenha conseguido contactar alguém interessado em explorar o objeto
de sua patente através de contrato de licença, o INPI poderá funcionar como divulgador
desse intuito, criando assim uma policitação (oferta a pessoas indeterminadas). Nesse
tocante, o legislador agiu bem ao determinar que nenhum contrato de licença voluntário
de caráter exclusivo será registrado sem que o titular tenha desistido da oferta e,
ademais, que patente sob licença voluntária, com caráter exclusivo, não poderá ser
objeto de oferta. Determina o art. 65 que na falta de entendimento entre o ofertante e o
interessado quanto aos termos da licença, poderá o INPI funcionar como árbitro,
estabelecendo o valor da remuneração. Uma grande vantagem que a oferta de licença
traz para o titular da patente consiste no fato de que, nos termos do art. 66, enquanto essa
estiver sobre oferta, a sua anuidade será reduzida à metade.
2.2. Licenças compulsórias
2.2.1. Aspectos gerais
Em relação às licenças compulsórias propriamente ditas, cumpre tecer os
seguintes comentários. Conforme já foi mencionado, partindo-se do próprio conceito de
que o direito sobre patentes é limitado, diversos países têm inserido em suas legislações
instrumentos para coibir o uso inadequado, insatisfatório ou abusivo do privilégio.
O abuso consistente no não uso do objeto da patente é uma das causas principais
para a aplicação de sanções ou ações corretivas contra o excesso no uso do monopólio, e
5
se dá, freqüentemente, através da concessão de licenças compulsórias4, pelas quais
terceiros podem passar a explorar o privilégio mediante autorização direta do Estado.
De acordo com o art. 5º da Convenção da União de Paris para Proteção da
Propriedade Industrial (CUP), qualquer país membro pode impor a exploração
obrigatória do objeto da patente, a contar de 3 (três) anos de sua concessão, através da
concessão de licenças compulsórias. A redação do texto da Convenção, de acordo com
Michel D. Scott5, traz as seguintes conseqüências:
"1. Member states may legislate measures
providing for the granting of compulsory licenses to prevent
abuses of the exclusive rights conferred by the patent, for the
example for failure work.
2. Forfeiture of the patent will not be provided for
except where the grant of compulsory licenses is not sufficient to
prevente abuses. Forfeiture or revocation of a patent will not be
instituted before the expiration of three years from the grant of
the first compulsory license.
3. A compulsory license may not be applied for on
the ground of failure to work or insufficient working before the
expiration of three years from the date of application for the
patent, or four years from the date of the grant of the patent
whichever period expires last. It shall be refused if the patentee
justifies his inaction by legitimate reasons. Such compulsory
license shall be non-exclusive and shall not be transferable even
in the form of the grant of a sub-license except with the
enterprise or goodwill which exploits such license."
As regras acima, no entanto, somente têm aplicação quando se trata de licença
compulsória decorrente da falta de exploração ou de exploração incompleta. O
mecanismo do licenciamento compulsório pode ainda decorrer de casos de interesse ou
calamidade pública ou emergência nacional. Essa hipótese está prevista no art. 71 da Lei
nº 9.279/96 , que estabelece: "Nos casos de emergência nacional ou interesse público,
declarados em ato do Poder Executivo Federal, desde que o titular da patente ou seu
licenciado não atenda a essa necessidade, poderá ser concedida, de ofício, licença
compulsória, temporária e não exclusiva, para a exploração da patente, sem prejuízo dos
direitos do respectivo titular".
2.2.2. Licença compulsória como instrumento da livre concorrência
Observamos, assim, que o instrumento da licença compulsória passa a
desempenhar papel fundamental para o equilíbrio do mercado em função da existência
da concessão do privilégio. Devemos, aqui, lembrar que a Constituição Federal
estabelece a liberdade do mercado como regra, através da edição dos princípios
constitucionais da ordem econômica; a própria Constituição, no entanto, dispõe sobre a
4
Nos últimos 20 (vinte) anos de vigência do Código de Propriedade Industrial, somente foram concedidas
duas únicas licenças a uma única empresa nacional : Nortox Agroquímica S.A., de patentes pertencentes à
empresa norte-americana Monsanto. Fonte: INPI.
5
Compulsory Licensing of Intellectual Property in International Transactions. Opinion. Ed. ESC Publishing
Limited Oxford. London. 1987. pag. 319.
6
repressão ao abuso de poder econômico que vise "à dominação dos mercados, à
eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros" (Art. 173, § 3º).
A correta aplicação do dispositivo constitucional acima mencionado ao sistema
de patente deve exigir do aplicador do direito grande esforço de interpretação. A
repressão ao abuso do poder econômico tem sido normalmente identificado com o
princípio da livre concorrência: "Deveras, não há oposição entre o princípio da livre
concorrência e aquele que se oculta sob a norma do § 4º do art. 173 do texto
constitucional, princípio latente, que se expressa como princípio da repressão aos abusos
do poder econômico e, em verdade - porque dele é fragmento -, compõe-se no
primeiro."6
Seria, portanto, correto querer falar de livre concorrência, e em conseqüência, de
repressão ao abuso de poder econômico em um sistema que, por definição, garante a
exclusividade do uso do objeto da patente a seu titular? Se inexiste, em princípio
concorrência, cabe falar de abuso?
Necessariamente, sim. Ao erigir a nível constitucional os princípios
mencionados, o constituinte impõe limites ao legislador ordinário. Através desses
mecanismos de repressão, visa a Constituição a salvaguardar a sociedade contra
eventuais abusos do poder econômico. Ora, se em um mercado onde existem vários
produtores concorrendo, o ordenamento jurídico visa a impedir que um ou alguns deles
cometam atos abusivos, mais necessária ainda se torna a criação de mecanismos de
proteção quando estejamos diante de um sistema de patentes onde haverá apenas um
produtor. Se é um só o produtor e ele pratica um ato abusivo, este ato tenderá a causar
efeitos muito mais danosos à sociedade se eventualmente fossem vários os concorrentes.
Essa questão torna-se ainda mais relevante quando, face às novas alterações que sofreu
nossa legislação, segmentos essenciais da economia, como os fármacos, produtos
alimentícios, sementes agrícolas, dentre outros, passaram a ser protegidos por patentes.
Face a esse importante e fundamental aspecto, surge a questão da vinculação do
legislador ordinário. Através dos conceitos de "diretrizes"7, de Dworkin, e de
"princípios constitucionais impositivos"8, de Canotilho, e da real possibilidade de serem
cometidos sérios abusos através da exploração indevida ou mesmo da falta de
exploração da patente, cumpre ao legislador ordinário estabelecer mecanismos que
sejam efetivamente capazes de coibir abusos. Nesse contexto, insere-se, portanto, a
disciplina do instituto da licença compulsória. A licença compulsória decorrente de falta
de exploração ou de abuso de poder está prevista no art. 68 da lei, in verbis:
"Art. 68. O titular ficará sujeito a ter a patente licenciada
compulsoriamente se exercer os direitos dela decorrentes de forma
abusiva, ou por meio dela praticar abuso de poder econômico,
comprovado nos termos da lei, por decisão administrativa ou
judicial.
§ 1º Ensejam, igualmente, licença compulsória:
I – a não exploração do objeto da patente no território, por falta
de fabricação ou fabricação incompleta do produto ou, ainda, a
falta do uso integral do processo patenteado, ressalvado os casos
6
GRAU, Eros Roberto. A Ordem Econômia na Constituição de 1988 (Interpretação e Crítica). 2ª ed. Editora
Revista dos Tribunais. 1991. pag.230.
7
DWORKIN, Ronald. Taking Rights Seriously. 5ª ed. Londres. Duckworth, 1987. pag. 22
8
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Ob. cit. pag. 200.
7
de inviabilidade econômica, quando será admitida a importação;
ou
II – a comercialização que não satisfizer às necessidades do
mercado."
2.2.3. Licença compulsória decorrente de abuso de poder econômico e da falta de
exploração
Cumpre tecer alguns comentários sobre esse dispositivo. Inicialmente, que o
legislador entendeu que, a rigor, existem duas licenças diversas: uma que poderá ser
concedida na hipótese de abuso de poder econômico (caput); e outra que ocorrerá nas
hipóteses de falta de exploração local (§ 1º). A primeira conclusão a que se chega é que
o desabastecimento do mercado poderá dar ensejo a requerimento de patente
independentemente de qualquer manifestação de órgão administrativo ou judicial. Ainda
que esse desabastecimento, nos termos da Lei nº 8.884/94, constitua prática que
configure abuso de poder econômico, e que, em conseqüência, submeta seu infrator às
sanções administrativas impostas pelo CADE (Conselho Administrativo de Defesa
Econômica), o requerimento de licença compulsória com base na falta de exploração ou
exploração incompleta independerá dessa manifestação, que, ao contrário, deverá
necessariamente ser obtida caso a licença seja requerida com fundamento no caput do
art. 68. Repetimos, não será o INPI que irá julgar se alguém cometeu qualquer prática
abusiva relacionada ao objeto da patente. Caso alguém manifeste interesse em obter
licença compulsória com fundamento em abuso de poder econômico cometido pelo
titular da patente, ao dirigir-se ao INPI já deverá ter obtido a decisão administrativa,
concedia pelo CADE, ou judicial, condenando o titular da patente.
A licença compulsória que tenha fundamento na falta de exploração, ademais,
somente poderá ser requerida após decorridos 3 (três) anos da concessão da patente, o
que igualmente não se verifica em relação à que seja requerida com fundamento em
abuso de poder econômico. Esta, tão logo concedida a patente, verificando-se o abuso,
poderá ser requerida desde que comprovada nos termos da lei.
Importante regra que, indiscutivelmente, vem a facilitar a concessão de licenças
está inserida no § 3º do art. 73 que estabelece que "no caso de a licença compulsória ser
requerida com fundamento na falta de exploração, caberá ao titular da patente
comprovar a exploração". Essa regra efetivamente promove uma inversão do ônus da
prova, cabendo não a quem requer a licença, mas ao requerido o ônus de provar que está
efetivamente explorando o objeto de sua patente. Querer o contrário, ou seja, querer
impor ao requerente a prova da falta da produção seria criar regra que praticamente teria
inviabilizado a concessão dessas licenças. Inobstante, impor esse ônus ao titular da
patente que tenha contra si pedido de licença compulsória não criará nenhum gravame
excessivo, conquanto esse deverá dispor de todos os dados sobre sua produção e
comercialização que poderão sem qualquer problema afastar a hipótese de ser a licença
concedida caso o pedido seja descabido ou infundado.
Em face das peculiaridades do sistema de patentes, urge que sejam estabelecidos
mecanismos céleres, que permitam, se possível de forma preventiva, evitar abusos.
Nesse tocante, o intérprete-aplicador dessa legislação desempenhará papel
importantíssimo. Deverá buscar dentre as várias hipóteses normativas que venham a
surgir quando da resolução de casos concretos, a interpretação que de forma mais célere
evite a manutenção de situações que configurem danos ao mercado consumidor. Na
8
hipótese de conflitos entre o direito do titular de patente de garantir seu uso exclusivo e
o do mercado consumidor de ter acesso a produtos em condições técnicas adequadas,
sem dúvida deverá o julgador optar pela proteção do mercado. Lembremos, que a
existência do sistema de patentes está condicionada, nos termos da própria Constituição
Federal, ao interesse social. A licença compulsória, não obstante, além de preservar o
núcleo do direito do titular da patente, conquanto será sempre remunerada, constitui um
dos poucos instrumentos peculiares ao sistema que deve ser utilizado de forma a
concretizar o princípio constitucional da livre concorrência, pois permite que terceiros
interessados e que possuam capacidade técnica e econômica possam concorrer
diretamente com o titular da patente. A concessão da patente tem por objetivo a outorga
de um privilégio exclusivo. Veda-se que qualquer outro, ainda que desenvolva por meios
próprios a invenção, possa, de qualquer forma, utilizá-lo. Permitir, portanto, que terceiro
concorra com o titular, apesar de constituir medida drástica, é absolutamente imperativa
para a segurança do mercado consumidor do produto patenteado.
Poder-se-ia argumentar que em situações especiais, tendo em vista a criação de
economias de escala, seria inviável economicamente impor a exploração no País de
determinados produtos ou processos. É verdade que certos produtos podem ser
produzidos em uma fábrica e atender à demanda de vários países ou mesmo de todo o
mundo. Nessas hipóteses, em que seja realmente inviável a produção local, o que
certamente ocorrerá será que ninguém apresentar-se-á como interessado para requerer a
concessão de licença compulsória. Se realmente é inviável para o próprio titular
explorar o objeto da patente, apesar de sua experiência e de seus conhecimentos
específicos sobre o processo industrial, ninguém mais com certeza arriscar-se-á a efetuar
gastos para explorar um mercado que não comporta mais de um produtor. A solução
para essa situação será dada pelas próprias regras do mercado. Destarte, a regra inserida
pelo Senado Federal no inciso I do § 1º do art. 68, que determina que em "casos de
inviabilidade econômica, será permitida a importação", deve ser entendida com sérias
restrições. Destaque-se que o titular da patente poderá sempre importar o produto
patenteado ou produzido por processo patenteado. O que aqui se discute é se essa mera
importação poderá ser utilizada para considerar o mercado como "abastecido", evitandose a concessão da licença compulsória. Se o titular da patente não está explorando o seu
objeto no País através de fabricação local sob a alegação de "inviabilidade econômica",
e pretende abastecer o mercado nacional através da pura e simples importação, deve o
intérprete, com fundamento no próprio texto da Constituição Federal, que condiciona a
concessão de patentes ao desenvolvimento econômico do País, determinar a concessão
da licença compulsória. Querer impedir que terceiro interessado em fabricar o objeto da
patente no Brasil através de licença compulsória não possa alcançar seu intuito em razão
da simples alegação de inviabilidade econômica, conquanto inexiste como provar em
juízo essa inviabilidade econômica, constitui regra de constitucionalidade absolutamente
questionável. Ademais, conforme já mencionamos, a licença é remunerada, ainda que
compulsória, e, se de fato a exploração no País for efetivamente economicamente
inviável, aquele que se dispôs a explorá-la será o único a ter eventuais prejuízos. Será
exclusivamente seu (Licenciado Compulsoriamente) o risco por essa exploração, e
somente essa efetiva produção ou fabricação local poderá ser utilizada para demonstrar a
sua inviabilidade econômica. Será preciso que se conceda a licença para que se prove
que, eventualmente, a fabricação local é inviável.
Questão igualmente controvertida, conforme já mencionamos, diz respeito à
possibilidade de inversão do ônus da prova em casos de requerimento de licença
compulsória com fundamento em falta de exploração. Várias das legislações
9
recentemente modificadas em diversos países têm adotado esse mecanismo de inversão,
face à quase absoluta impossibilidade de o requerente da licença poder provar um fato
negativo: o não uso da patente por seu titular. Assim, requerida a patente com esse
fundamento, caberá ao titular provar que está explorando o mercado de forma a atender
às necessidades do mercado, sob pena de ter o seu privilégio compulsoriamente
licenciado. Essa sistemática é adotada pela Lei nº 9.279/96, que, em seu art. 73, §3º,
estabelece o seguinte:
"Art.73...........................................................................................
..............................
§3º. No caso de a licença compulsória ser requerida com
fundamento na falta de exploração, caberá ao titular da patente
comprovar a exploração."
Entendemos que a inversão do ônus da prova, nesses casos, além de constituir
importante instrumento para coibir a prática de eventuais abusos, assumirá, com a
inclusão dos novos segmentos essenciais para a sociedade na proteção patentária, papel
fundamental para a defesa da população consumidora, por exemplo, de medicamentos
essenciais. O interesse público, aqui, torna-se evidente. Caso não se imponha essa
inversão, a concessão de licenças compulsórias tornar-se-ia praticamente impossível
face à dificuldade da obtenção da prova negativa que o requerente teria que demonstrar.
Assim, mesmo que alguém detenha o uso exclusivo de determinada invenção, não iria
correr o risco de retirar produtos do mercado ou diminuir a sua produção visando a
forçar o governo a aumentar seus preços, o que, aliás, tem sido prática comum no
mercado farmacêutico nacional, porque poderia receber uma punição peculiar ao sistema
de patentes: passaria a ter um concorrente em seu mercado durante a vigência da
proteção. Se atualmente, face à inexistência de proteção da propriedade industrial em
vários segmentos do mercado, alguém retira produtos do mercado visando a obter
maiores lucros, a única punição possível seria a eventual condenação por prática de
infração contra a ordem econômica (Lei nº 8.884, de 11 de junho de 1994, arts. 20 e 21).
Com a adoção de licenças compulsórias, caso referida prática ocorra por quem é titular
de patente, além de eventuais punições por delito contra a ordem econômica, ficaria o
infrator sob a ameaça de punição que para ele seria muito mais gravosa: ter um
concorrente. Destarte, presente o dever jurídico de legislar, caso não tivesse sido
adotado esse mecanismo, face à sua importância e interesse público, poder-se-ia até
questionar a sua inconstitucionalidade por omissão. “Eventual incompletude de
determinado estatuto jurídico pode caracterizar a inconstitucionalidade por omissão,
ensejando a declaração de inconstitucionalidade de todo o diploma ou, apenas, da
chamada lacuna inconstitucional.”9
2.2.4. Licença compulsória e o desenvolvimento tecnológico
A questão da licença compulsória é igualmente invocada quando se está diante
de uma situação de dependência de patentes. Assim, quando determinado conhecimento
novo não puder ser explorado sem violação de patente anteriormente registrada, e esse
novo conhecimento constituir avanço técnico em relação ao privilégio anterior, será
9
MENDES, Gilmar Ferreira. Controle e Constitucionalidade, Aspectos jurídicos e políticos. Ed. Saraiva. São
Paulo, 1990. pag. 60
10
igualmente caso para concessão de licença compulsória. Imaginemos, a título de
exemplo, que determinado medicamento, que produz um efeito colateral indesejável,
esteja patenteado. Outro pesquisador, através de novas pesquisas, consegue retirar do
medicamento patenteado o efeito colateral. Para que possa ser explorado esse novo
invento haverá, porém, violação do direito do titular da patente anterior. Surge, aqui,
uma hipótese em que é do interesse da sociedade que seja permitida a exploração do
invento com a melhoria que lhe foi incorporada; isso poderá ocorrer através da
concessão de licença compulsória.
Devemos lembrar que, se de um lado a existência do sistema de patentes
constitui evidente incentivo à pesquisa, de outro, enquanto estiver a patente em vigor,
qualquer uso que se verifique em relação a seu objeto constituirá violação do direito do
titular, ainda que esse uso implique sua melhoria. Torna-se, portanto, óbvia a
necessidade de instrumentos que permitam, mesmo durante a vigência da patente, o
avanço da tecnologia. A própria Constituição Federal, ao assegurar o direito à
propriedade industrial, determina que deverá ser considerado, dentre outros aspectos, "o
desenvolvimento tecnológico" (CF, art. 5º, XXIX).
A licença compulsória surge, assim, como o instrumento capaz de viabilizar o
avanço tecnológico, sem, no entanto, comprometer o direito do titular. De acordo com
esse mecanismo, ao ser concedida licença compulsória ao titular da patente dependente
para exploração do objeto da patente anterior, surge automaticamente para o titular dessa
última o direito de obter, por sua vez, licença compulsória da patente dependente.
Assim, tanto o titular da patente dependente, quanto o da patente anterior poderão
explorar a invenção com a melhoria que lhe é introduzida, criando uma concorrência
interna, através desse mecanismo de licenças cruzadas. Da adoção desse mecanismo,
apenas benefícios decorrerão para a sociedade e para o desenvolvimento da pesquisa
científica.
Esse mecanismo de patentes dependentes desenvolve ainda importante papel no
relacionamento entre patentes de produtos e de processos. Concedida uma patente para a
produção de determinado produto por processo específico, ainda que terceiro consiga
produzi-lo por processo diverso, estará, em princípio, impedido de fazê-lo. As
legislações modernas tendem, no entanto, a considerar a patente de novos processos
como dependentes das patentes dos respectivos produtos. Esse sistema permite,
portanto, que se obtenha, igualmente, licença compulsória da patente do produto, desde
que o novo processo incorpore avanço em relação ao estado da técnica, ou seja, torne
mais econômico, célere, eficiente ou seguro o processo para obtenção do mesmo produto
patenteado. Esse mecanismo é adotado em nossa legislação, quando estabelece em seu
art. 70 o seguinte:
"Art.70. A licença compulsória será ainda concedida quando,
cumulativamente, verificarem-se as seguintes hipótese:
I – ficar caracterizada situação de dependência de uma patente
em relação a outra;
II – o objeto da patente dependente constituir substancial
progresso técnico, de considerável significação econômica, em
relação a outra;
III – o titular não realizar acordo com o titular da patente
dependente para exploração da patente anterior.
§1º Para fins deste artigo, considera-se patente dependente aquela
cuja exploração depende obrigatoriamente da utilização do objeto
de patente anterior.
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§2º Para efeito deste artigo, uma patente de processo poderá ser
considerada dependente de patente do produto respectivo, bem
como uma patente de produto poderá ser dependente de patente de
processo.
§3º O titular da patente licenciada na forma deste artigo terá direito
a licença compulsória da patente dependente."
Podemos, face à redação do texto acima, considerar que nossa legislação atende
aos requisitos necessários para o adequado funcionamento do sistema de licenciamento
compulsório.
3. CONCLUSÕES
É bem verdade que as licenças compulsórias constituem importante instrumento
para o bom funcionamento do sistema de patentes, ainda que historicamente não tenham
sido utilizadas.
As razões de sua pouca utilização talvez estejam relacionadas à existência de
acordos que são celebrados pelos industriais fora dos mecanismos legais adotados pelo
INPI, preferindo os titulares de patentes a celebração de licenças voluntárias, em relação
às quais não haverá intervenção do poder estatal em sua celebração, e nas negociações
necessárias à sua implementação.
O fato, porém, de a legislação prever tais instrumentos faz com que titulares de
patentes que estejam em situações que poderiam dar ensejo à concessão de licenças
compulsórias, quando procurados por possíveis interessados em obter licenças
voluntárias, sejam compelidos a celebrá-las a fim de não virem a ser obrigados a
celebrar as ditas licenças compulsórias.
Não obstante esta particularidade do mercado, é imprescindível que os órgãos
públicos envolvidos na concessão de tais licenças conheçam bem o processo e saibam
como dar-lhe efetividade quando necessário.
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As licenças compulsórias e a legislação brasileira sobre patentes