Revista de Direito das Faculdades Integradas de Jaú ISSN 2318-566X O DIREITO DE SER HUMANO Fernando Frederico de Almeida Júnior* 1 INTRODUÇÃO É possível afirmar que uma metamorfose do mundo, em efetivação nas últimas décadas, está implicando no surgimento de “novos direitos”. Fala-se até na divisão dos direitos em categorias, tais como a dos direitos sociais, dos direitos individuais, dos direitos transindividuais, dos direitos oriundos dos sistemas de comunicação e dos direitos decorrentes do patrimônio genético. Todavia, não se pode olvidar que hodiernamente o que deve prevalecer, em qualquer situação, seja qual for sua natureza, é o direito da pessoa humana, o direito de viver com dignidade, o direito de ser respeitado como pessoa. Em outras palavras, o direito de ser humano. É plausível afirmar que o direito de ser humano se constitui num “novo direito”, notadamente porque os fatos históricos demonstram que nem sempre se reconheceu a todos o direito de ser uma pessoa humana e, mais que isso, apenas recentemente é que as legislações dos países e os tratados internacionais alteraram o foco principal das normas para a pessoa humana, deixando um pouso de lado os direitos patrimoniais. A esse respeito, merece destacar que, no Brasil, a Constituição Federal de 1988 tratou expressamente do princípio da dignidade da pessoa humana, fundamento maior do direito de ser humano. Portanto, a análise de tal direito, através do estudo do princípio da dignidade da pessoa humana, é o que se pretende neste trabalho. * O autor é mestre em Direito pela Universidade de Ribeirão Preto, doutor em Educação pela Universidade Federal de São Carlos, professor e coordenador dos cursos de pós-graduação lato sensu em Direito do Centro Universitário Claretiano e professor nos cursos de Direito das Faculdades Integradas de Jaú, Faculdades Integradas de Bauru e Universidade Paulista. Revista de Direito das Faculdades Integradas de Jaú ISSN 2318-566X 2 A MUDANÇA DE VALORES NAS LEGISLAÇÕES MODERNAS Com o passar dos tempos, os valores vão se alterando e implicando no progresso e no enriquecimento do próprio Direito, estando autorizada a afirmação de que a evolução das legislações é algo evidente.1 De imediato faz-se mister salientar, a título de mero exemplo, a gritante diferença do tratamento dado aos direitos humanos pela Constituição brasileira de 1988 em relação à anterior (Carta de 1967/69). Esta, ao invés de trazer a expressão direitos e garantias fundamentais, utilizava-se da elocução direitos e garantias individuais, expressão que evidentemente tem conotação muito mais restritiva que aquela. Com efeito, enquanto a Constituição anterior se preocupou em elencar apenas os direitos e garantias individuais, na atual, além de individuais e coletivos, são também fundamentais, ou seja, basilares, capitais, indispensáveis e intangíveis. Mas não é só isso. Os direitos e garantias individuais eram tratados somente na parte final da Constituição antecedente. Na atual estão dispostos no início, o que revela maior preocupação com os mesmos e maior valoração deles. Enquanto a Carta de 1967/69 sequer trazia em seu bojo a dignidade da pessoa humana, a Constituição em vigor não só a incluiu em seu texto, como a elevou a princípio fundamental da República Federativa do Brasil (artigo 1°, III), consistente, na realidade, num supraprincípio que se sobrepõe aos demais princípios, às normas constitucionais e às leis infraconstitucionais, devendo ser aplicado em toda e 1 Na seara do direito contratual moderno também se constata a mudança do tratamento que era dado ao devedor e do poder que era atribuído ao credor. A esse respeito, postula Leonardo Mattietto que “a noção de liberdade contratual havia sido construída como projeção da liberdade individual, ao mesmo tempo em que se atribuía à vontade o papel de criar direitos e obrigações. A força obrigatória do contrato era imposta como corolário da noção de direito subjetivo, do poder conferido ao credor sobre o devedor. Com a evolução da ordem jurídica, já não tem mais o credor o mesmo poder, o direito subjetivo sofre limites ao seu exercício e não compete aos contratantes, com exclusividade, a autodeterminação da lexinter partes, que sofre a intervenção do legislador e pode submeter-se à revisão do juiz” (O Direito Civil Constitucional e a Nova Teoria dos Contratos. In: TEPEDINO, Gustavo (coord.). Problemas de Direito Civil – Constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 175). Na mesma linha de raciocínio, reconhecendo o declínio do individualismo e o relacionando com a propriedade, disserta Eduardo TakemiKataoka que, “se antes imperavam a igualdade de disciplina e a liberdade para negociar, hoje impera o ser humano em sua totalidade, devendo todos os elementos sistêmicos, em face deste vetor, contribuir para a sua concretização. Insista-se neste aspecto, em razão da sua centralidade: a direção do sistema mudou de patrimonial para personalista. E todos os elementos, do sistema que afinal se caracteriza por ser um conjunto de normas dotadas de unidade e ordem, devem apontar para esta mesma direção, devendo se funcionalizar de modo a que o princípio central do ordenamento realiza-se, concretize-se, seja. Para que isso possa acontecer, é necessário que os interesses proprietários percam, na prática dos operadores do Direito, aquela centralidade que antes tinham, notadamente aquele caráter absoluto, no sentido de ilimitado” (Declínio do Individualismo e Propriedade. In: TEPEDINO, Gustavo (coord.). Problemas de Direito Civil – Constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 463-464). Revista de Direito das Faculdades Integradas de Jaú ISSN 2318-566X qualquer interpretação da norma jurídica, o que será melhor analisado no tópico seguinte.2 Tais contrastes, repita-se, são apenas exemplificativos, pois não se faz necessária uma minuciosa análise comparativa da Carta de 1988 com as anteriores para demonstrar a mudança de valores. Ressalta-se que, como cediço, os valores que predominam em determinado contexto acabam positivados numa Constituição. Como valores de uma sociedade, pode-se afirmar que são a maneira de ser ou de atuar que um indivíduo ou uma coletividade aceitem como ideal e cujas conseqüências sejam pretendidas. Nesse sentido a lição de COSTA: Por ser o ordenamento jurídico supremo, a Constituição é a sede normativa dos valores dominantes num dado contexto cultural e que dela recebem a sua positivação. Convém, antes de tudo, ressaltar que o sentido da Constituição como forma de positivação de valores é de reservar-se aos regimes políticos de conteúdo democrático, aqueles em que se busca realizar a idéia democrática, o chamado Estado Democrático de Direito. E não podia caber senão a esses regimes, a tarefa de ordenar valores, com vista a seu desenvolvimento, porque só nos regimes abertos se geram e florescem valores. Nos regimes fechados, não há valores de que cuidar, porque neles o sentido da Constituição consubstancia-se apenas como instrumento de governo e o caráter da Lei Maior apresenta-se como uma decisão existencial. Sendo assim, as Constituições dos regimes autocráticos obedecem antes as diretrizes que objetivam tão-só a disciplinar as relações políticas e a estabilizar os resultados dessas relações.3 Foi assim que a Constituição Federal de 1988 atribuiu atenção especialíssima aos direitos e garantias fundamentais, ou seja, estes tratam-se de valores absolutamente dominantes, não só no Brasil mas em todo o mundo, reconhecidos e desejados pela sociedade na sua mais ampla acepção, razão pela qual necessitavam ser positivados. Papel importante nessa positivação de valores cabe à história. Mas não basta, 2 Nesse sentido a lição de Ingo Wolfgang Sarlet: “Inspirando-se – nesse particular – especialmente no constitucionalismo lusitano e hispânico, o Constituinte de 1988 preferiu não incluir a dignidade da pessoa humana no rol dos direitos e garantias fundamentais, guindando-a, pela primeira vez – consoante já reiteradamente frisado – à condição de princípio (e valor) fundamental (artigo 1°, inciso III). Aliás, a positivação na condição de princípio jurídico-constitucional fundamental é, por sua vez, a que melhor afina coma tradição dominante no pensamento jurídico-constitucional luso-brasileiro e espanhol, apenas para mencionar os modelos mais recentes e que têm exercido – ao lado do paradigma germânico – significativa influência sobre a nossa própria ordem jurídica.” (Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 68-69) 3 COSTA, Eduardo Silva. Os Valores e a Constituição de 1988. In: Revista de Informação Legislativa, n° 109, janeiro-março/1991, p. 64. Revista de Direito das Faculdades Integradas de Jaú ISSN 2318-566X porém, observar passivamente a história. “É preciso refletir sobre ela e ligá-la ao destino do homem ou da mulher em concreto, à consciência que tenha de si mesmo, à consciência que tenha dos seus direitos ou da necessidade de os adquirir e alargar em todos os domínios da vida social e política”.4 O Brasil ficou vinte e um anos sob um regime militar ditatorial (1964 a 1985), período no qual foram cometidas inúmeras atrocidades contra os direitos e garantias fundamentais das pessoas, desde a própria imposição de um regime antidemocrático, com a cominação de uma filosofia militar, até o encarceramento de presos políticos, a prática da tortura, o desaparecimento de pessoas etc. Muito antes dessa época, o mundo todo vivenciou as barbáries do nazismo, com morte de milhões de pessoas. Tais fatos só podiam ter culminado numa busca incansável pela proteção dos direitos humanos. 5 Na era pós-Hitler desencadeou-se a internacionalização dos direitos e garantias fundamentais da pessoa humana, com a confecção de declarações, convenções, cartas, e pactos internacionais tendo como objetivo precípuo a proteção do ser humano, implicando no que hoje é chamado de Direito Internacional dos Direitos Humanos.6 4 MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. Coimbra: Coimbra Editora, 2000, tomo IV, p. 47. Flávia Piovesan postula que “em face do regime do terror, no qual imperava a lógica da destruição e no qual as pessoas eram consideradas descartáveis, ou seja, em face do flagelo da Segunda Guerra Mundial, emerge a necessidade de reconstrução do valor dos direitos humanos, como paradigma e referencial ético a orientar a ordem internacional. O ‘Direito Internacional dos Direitos Humanos’ surge, assim, em meados do século XX, em decorrência da Segunda Guerra Mundial e seu desenvolvimento pode ser atribuído às monstruosas violações de direitos humanos da era Hitler e à crença de que parte dessas violações poderiam ser prevenidas, se um efetivo sistema de proteção internacional dos direitos humanos existisse” (A Constituição Brasileira de 1988 e os Tratados Internacionais de Proteção dos Direitos Humanos. In: Direitos Humanos: Visões Contemporâneas. São Paulo: Associação Juízes para a Democracia, 2001, p. 32). No mesmo sentido, ainda, a doutrina de José Luiz a Quadros de Magalhães: “Após a 2 Guerra Mundial, sente-se a necessidade de criar mecanismos eficazes que protejam os Direitos Fundamentais do homem nos diversos Estados. Já não se podia mais admitir o Estado nos moldes liberais clássicos de não intervenção. O Estado está definitivamente consagrado como administrador da sociedade e convém, então, aproveitar aquele momento, os laços internacionais criados no pós-guerra para que se estabeleça um núcleo fundamental de Direitos Internacionais do homem. É desta forma que se fará a Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948, a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem (Bogotá, 1948), a Convenção Americana dos Direitos do Homem, assinada em 22 de novembro de 1969, em São José da Costa Rica, entre outras declarações, convenções e pactos, além de organizações não estatais, sendo que dentre estas organizações, atuam hoje com maior destaque, a Anistia Internacional, a Comissão Internacional dos Juristas, O Instituto Interamericano de Direitos Humanos, este último, com sede na Costa Rica, tendo como finalidade a divulgação de idéias e a educação em Direitos Humanos.” (Direitos Humanos: sua História, sua Garantia e a Questão da Indivisibilidade. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2000, p. 34-35) 6 A esse respeito, leciona Antonio Augusto Cançado Trindade: “Tema recorrente na evolução do presente domínio de proteção nas cinco últimas décadas, a questão da universalidade dos direitos humanos ocupa permanentemente um espaço importante no tratamento adequado da matéria. Ao final de meio século de extraordinária evolução desta última, o Direito Internacional dos Direitos Humanos afirma-se em nossos dias, com inegável vigor, como um ramo autônomo da ciência jurídica contemporânea, dotado de especificidade 5 Revista de Direito das Faculdades Integradas de Jaú ISSN 2318-566X O Brasil tardou na participação desses movimentos internacionais, obviamente em razão do regime ditatorial que vigorou até poucos anos atrás. Todavia, institucionalizou o regime democrático e a proteção dos direitos humanos com a Constituição de 1988, que reconhece expressamente a dignidade da pessoa humana como princípio fundamental da República Federativa do Brasil. Mais que isso, agiu acertadamente o legislador constituinte ao não se aventurar na tentativa de relacionar todos os direitos e garantias fundamentais do homem, o que poderia implicar, dentre outras coisas, até mesmo numa atitude conservadora, alheia às aspirações das pessoas e às transformações sociais, ou, ainda, acarretar na perda da universalidade dos direitos humanos. E o legislador demonstrou sua preocupação nesse sentido ao incluir no texto constitucional o § 2° do seu artigo 5°, que consiste numa verdadeira cláusula constitucional aberta, que tornou o rol dos direitos e garantias expressos na Carta de 1988 meramente exemplificativo, possibilitando que outros direitos sejam por ela abarcados, tais como os decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados e os elencados nos tratados internacionais de direitos humanos em que o Brasil seja parte. 7 A Constituição Federal brasileira em vigor aderiu, desse modo, à tendência do constitucionalismo contemporâneo de empregar um tratamento privilegiado aos tratados internacionais de direitos humanos, inclinação esta que é decorrente de uma escala de valores na qual a pessoa humana se encontra no ápice.8 É nesse contexto que se deve situar a validade absoluta dos direitos do própria. Trata-se essencialmente de um direito de proteção, marcado por uma lógica própria, e voltado à salvaguarda dos direitos dos seres humanos e não dos Estados. Neste propósito se mostra constituído por um corpus juris dotado de uma multiplicidade de instrumentos internacionais de proteção, de natureza e efeitos jurídicos variáveis (tratados e resoluções), operando nos âmbitos tanto global (Nações Unidas) como regional.” (Tratado de Direito Internacional dos Direitos Humanos. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1997, vol. I., p. 20) 7 Para Antonio Augusto Cançado Trindade, “o reconhecimento de que os direitos humanos permeiam todas as áreas da atividade humana corresponde a um novo ethos de nossos tempos. Ao regulamentar novas formas de relações jurídicas, imbuído dos imperativos de proteção, o Direito Internacional dos Direitos Humanos vem naturalmente questionar e desafiar certos dogmas do passado, invocados até nossos dias em meio a uma falta de espírito crítico e à persistência, em certos círculos, de um positivismo jurídico degenerado. Talvez um exemplo dos mais significativos resida no próprio tratamento das relações entre o direito internacional e o direito interno, tradicionalmente enfocadas ad nauseam à luz da polêmica clássica, estéril e ociosa, entre dualistas e monistas, erigida sobre falsas premissas. Contra esta visão estática insurge o Direito Internacional dos Direitos Humanos, ao sustentar que o ser humano é sujeito tanto de direito interno quanto do direito internacional, dotado em ambos de personalidade e capacidade jurídica próprias.” (ibidem, p. 22) 8 Esse tratamento privilegiado ficou ainda mais evidente com a emenda constitucional nº 45/2004, a qual, dentre outras disposições, acrescentou o § 3º ao artigo 5º da CF/88, do seguinte teor: “Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais”. Revista de Direito das Faculdades Integradas de Jaú ISSN 2318-566X homem, intangíveis, inalienáveis e invioláveis, enquanto fundamento de toda a comunidade humana, ou, em outras palavras, a validade absoluta da eminente dignidade da pessoa humana e da liberdade, enquanto valores supremos ou valores-guia. Já se fala hodiernamente num constitucionalismo global, o qual, sinteticamente, tem como traços caracterizadores (1) o alicerçamento do sistema jurídico-político internacional não apenas no clássico paradigma das relações horizontais entre Estados, mas no novo paradigma centrado nas relações entre o Estado e a pessoa humana, (2) um jus cogens internacional materialmente informado por valores, princípios e regras universais progressivamente plasmados em declarações e documentos internacionais, e (3) a tendencial elevação da dignidade da pessoa humana a pressuposto ineliminável de todos os constitucionalismos.9 Daí decorre a necessidade de reestudo do clássico conceito de soberania estatal, a imperiosidade de relativização do princípio da autodeterminação e a obrigação de se atribuir maior atenção e valor aos direitos humanos e à inevitável relação entre o Direito internacional e o Direito interno dos Estados. Sobre o assunto, merece transcrição os comentários de CANOTILHO: ... na sua qualidade de princípio material, de natureza internacional e constitucional, o princípio da autodeterminação deve ser reinterpretado não apenas no sentido de que os „povos‟ devem deixar de estar submetidos a quaisquer formas de colonialismo, mas também no sentido de que a legitimação da autoridade e da soberania política pode e deve encontrar suportes sociais e políticos a outros níveis – supranacionais e subnacionais – diferentes do „tradicional‟ e „realístico‟ Estado-Nação. A globalização das comunicações e informações e a „expansão mundial‟ de unidades organizativas internacionais (organizações não governamentais), privadas ou públicas (mas não estatais), deslocam o papel obsidiante do „actor estatal‟, tornando as fronteiras cada vez mais irrelevantes e a interdependência política e económica cada vez mais estruturante. A isto se acresce que os fins do estado não são imutáveis. Se ontem a „conquista territorial‟, a „colonização‟, o „espaço vital‟, o „interesse nacional‟, a „razão de estado‟ surgiam sempre como categorias quase ontológicas, hoje os fins dos estados podem e devem ser os da construção de „Estados de direito democráticos, sociais e ambientais‟, no plano interno, e Estados abertos e internacionalmente „amigos‟ e „cooperantes‟ no plano externo. Por isso, o pathos de um programa de „paz mundial‟ assenta na intensificação do „desarmamento‟ e na viabilização efectiva de uma segurança coletiva. (...) Estes parâmetros teóricos influenciam hoje claramente as imbricações do direito constitucional com o direito internacional. Com efeito, as relações internacionais devem ser cada vez mais relações reguladas em termos de direito e justiça, convertendo-se o direito internacional numa verdadeira ordem imperativa, à qual não falta um núcleo material duro – o jus cogens 9 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 3ª ed. Coimbra: Almedina, p. 1276. Revista de Direito das Faculdades Integradas de Jaú ISSN 2318-566X internacional – vertebrador quer da „política e relações internacionais‟ quer da própria construção constitucional interna. Para além deste jus cogens, o direito internacional tende a transformar-se em suporte das relações internacionais através da progressiva elevação dos direitos humanos – na parte em que não integrem já o jus cogens – a padrão jurídico de conduta política, interna e externa. Estas últimas premissas – o jus cogens e os direitos humanos –, articuladas com o papel da organização internacional, 10 fornecerão um enquadramento razoável para o constitucionalismo global. Esse cogente respeito aos direitos humanos, ao atrair a atenção do Estado, seja espontânea ou forçosamente, traz como conseqüência também a imperiosa diminuição do empenho do Estado em atender unicamente os interesses da civilização capitalista, que procura tornar o Direito uma simples técnica de organização eficiente da vida econômica, em proveito da classe empresarial. Deixa o Estado, assim, de organizar exclusivamente as atividades de mercado e, do mesmo modo, deixa a Constituição de ser um simples regulamento econômicoadministrativo, mutável ao sabor dos interesses e conveniências dos grupos dominantes. Destarte, volta-se a atenção para os direitos e garantias fundamentais do homem, alicerçados no supraprincípio da dignidade da pessoa humana, o qual, se prevalece sobre os demais princípios e norteia a interpretação e aplicação das normas constitucionais e infraconstitucionais, muito mais o faz em relação a meros interesses financeiros ou patrimoniais. Tal situação é perceptível na Carta brasileira de 1988, a qual, na lição de RAMOS, foi levada a refletir, em várias de suas normas, um perfil solidarista e intervencionista, atendendo, ao menos formalmente, (...) a pressões sociais, na busca de mecanismos capazes de suprir as necessidades dos cidadãos, em especial dos excluídos”. Num mundo em que o poder do conhecimento cada vez mais se acentua, de tal sorte que o próprio poder econômico não pode mais ser satisfatoriamente exercido senão apoiado em um conjunto de informações, programas de computadores, conhecimentos sofisticados e especializados, à pena de perecimento ou inviabilização da atividade exercida, os valores imateriais cada vez mais superam o interesse privado de apropriação de bens, o que justifica a sobrevalorização do interesse social na preservação do equilíbrios dos contratos. Neste novo contexto, ..., não há nenhum sentido na proteção de um direito proprietário de conotação individualista, privilegiando, no que se refere aos bens sobre os quais incide, a apropriação imobiliária, como o fez o texto do Código Civil brasileiro de 1916, editado numa época em que a base das fortunas era a propriedade fundiária, eis que, no momento histórico atual, 11 caminha-se na direção da despatrimonialização dos bens jurídicos, (...). 10 Ibidem, p. 1275-1276. RAMOS, Carmem Lucia Silveira. A Constitucionalização do direito privado e a sociedade sem fronteiras. In: FACHIN, Luiz Edson (coord.). Repensando Fundamentos do Direito Civil Brasileiro Contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 1998, p. 15-16. Na mesma linha de pensamento EroulthsCortiano Júnior, para quem, “no âmbito do direito privado deixa-se ... atrás a velha concepção do patrimonialismo, marcante nas codificações 11 Revista de Direito das Faculdades Integradas de Jaú ISSN 2318-566X Desse modo, o Direito não é mais unicamente protetor de meros interesses patrimoniais, mas sim, e principalmente, protetor direto da pessoa humana. Na realidade, qualquer instituto jurídico somente tem razão de ser quando existe em função do homem, pois a noção de pessoa humana é anterior até mesmo à ordem jurídica. De qualquer maneira, é fato que a Carta de 1988 colocou como princípio fundamental a dignidade da pessoa humana. Isso quer dizer que a sociedade brasileira assumiu, formal e materialmente, a obrigação de construir todo seu Direito sobre essa noção.12 Enfim, o Direito aponta o caminho da evolução irreversível. Sem a proteção efetiva da pessoa humana, avaliada esta tanto em seu livre arbítrio como em sua intangibilidade, toda e qualquer lei se torna utópica, até mesmo cruel, de modo que a concretização da perfeição do Direito tem sua plataforma de manobra exatamente neste universo: o da pessoa humana.13 Toda essa mudança de valores atinge também o Direito penal brasileiro, sobre o qual impõe tecer breves comentários, atendo-se às novas concepções sobre a pena privativa de liberdade. Enfatiza-se, assim, que referida espécie de pena, como sanção principal e de aplicação genérica, está falida.14 Para SILVA, não paira a menor dúvida sobre isso, pois ela perverte, corrompe, deforma, avilta, embrutece, é uma fábrica de reincidência, é uma universidade às avessas, onde se diploma o profissional do crime. Se não a pudermos eliminar de uma vez, só devemos conservá-la 15 para os casos em que ela é indispensável. No IX Congresso sobre Prevenção do Crime e Tratamento do Delinqüente, realizado no Cairo, nos meses de abril e maio de 1995, restou recomendada pelas Nações Unidas a utilização da pena detentiva em último caso e somente nas hipóteses de crimes graves e de condenados de intensa periculosidade. Damásio que praticamente atravessaram este século. O direito civil deixa de ser marcado pela propriedade, contrato, testamento e família. Uma contemporânea visão do direito procura tutelar não apenas estas figuras pelo que elas representam em si mesmas, mas deve tutelar certos valores tidos como merecedores de proteção: a última ratio do direito é o homem e os valores que traz encerrados em si.” (Alguns apontamentos sobre os chamados direitos da personalidade. In: FACHIN, Luiz Edson (coord.). Repensando Fundamentos do Direito Civil Brasileiro Contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 1998, p. 32). 12 EroulthsCortiano Júnior, op. cit., p. 50. 13 ALMEIDA-DINIZ, Arthur J..Novos Paradigmas em Direito Internacional Público. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1995, p. 77. 14 BITENCOURT, Cezar Roberto. Falência da Pena de Prisão. São Paulo, RT, 1993, passim. 15 SILVA, Evandro Lins e. De Baccaria a Filippo Gramatica. In: Sistema Penal para o Terceiro Milênio. Rio de Janeiro: Ed. Revan, 1991, p. 33-34. Revista de Direito das Faculdades Integradas de Jaú ISSN 2318-566X Evangelista de Jesus foi representante do Brasil no VI Congresso da ONU, realizado em 1980 em Caracas. Eis a constatação de JESUS: Nesse Congresso, ao qual comparecemos como representante brasileiro, tomamos conhecimento durante quase duas semanas de dezenas de depoimentos dos 1.600 delegados de 160 países a respeito do fracasso da pena de prisão. E os documentos que nos foram distribuídos são no mesmo 16 sentido: a cadeia fracassou, devendo ser reservada para casos especiais. O declínio do sistema de penas é incontestável. Adverte DOTTI que a prisionalização é terapia de choque permanente, cuja natureza e extensão jamais poderiam autorizar a tese enfadonha de que constitui uma etapa para a liberdade, “assim como se fosse possível sustentar o paradoxo de preparar alguém para disputar uma prova de corrida, amarrando-o a uma cama”. Lembra, ainda, que em 1973 tal questão já preocupava, o que ficou constatado na Moção de Goiânia, elaborada por penalistas de prestígio, onde se destacou, dentre outras coisas, a necessidade de substituição do vigente sistema de penas, de garantir melhores condições de dignidade para o tratamento do preso e a imperiosidade de reconhecer que a pena privativa de liberdade tem se mostrado inadequada em relação aos seus fins.17 Vê-se, pois, que a mudança de valores e a constatação do fracasso de medidas e posições adotadas no passado implicam na reorganização e aperfeiçoamento das legislações, o que vem freqüentemente acontecendo com o Direito penal brasileiro, notadamente com relação ao sistema de penas. Ora, se no 16 JESUS, Damásio Evangelista de. Penas Alternativas. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 13. Estabelecendo uma relação entre a dignidade da pessoa humana e o Direito penal, Sérgio Salomão Shecaira postula que “o reconhecimento do fato de que o ser humano é um fim em si mesmo exige do legislador – principalmente o penal – a preservação dessa dignidade humana, resguardando sua vida, sua honra, sua liberdade, seu direito de consciência e opinião. O homem há de ser a medida primeira e última das coisas, razão pela qual se proclama que, na categoria de direitos do homem, o direito penal atinge posição de proeminência. É que a tarefa imediata do direito penal – proteção de bens jurídicos – só deverá aflorar quando a proteção de outros ramos do direito revelar-se insuficiente e se a lesão ou exposição a perigo do bem jurídico tutelado apresentar certa gravidade. O respeito devido pela pessoa do agente do delito não se realiza enquanto não se protegerem e garantirem os seus direitos, que são parte integrante e substancial da sua personalidade. A positivação do direito penal deve ter como parâmetro fundamental, pois, a condição humana e como referência externa o conceito de Estado Democrático de Direito”. O mesmo autor, ao explanar sobre a pena privativa de liberdade, reconhece que esta “é a forma mais extremada de controle penal. É sabido que o regime penitenciário regula de modo minucioso todos os momentos da vida do condenado, podendo despersonalizá-lo e convertê-lo num autômato”. Sobre as conseqüências da pena, alerta que ela atua “como geradora de desigualdades. Ela cria uma reação dos círculos familiares, de amigos, de conhecidos, que acaba por gerar uma marginalização no âmbito do mercado de trabalho e escolar. (...) A relação do esteriótipo criminal com a atividade dos aparelhos de controle social permite criar uma perspectiva crítica em relação a todo o sistema de penas, sugerindo processos e medidas alternativos a esse controle social como descriminalização, substituição de sanções estigmatizantes, penas alternativas, desinternação etc.” (Prestação de Serviços à Comunidade: Alternativa à Pena Privativa de Liberdade. São Paulo: Saraiva, 1993, p. 10 e 17-18). 17 a DOTTI, René Ariel. Bases e Alternativas para o Sistema de Penas. 2 ed. São Paulo: RT, 1998, p. 115-117. Revista de Direito das Faculdades Integradas de Jaú ISSN 2318-566X campo do Direito penal já se reconheceu expressamente a falência da pena privativa de liberdade e já se fala ser imprescindível projetos visando adescriminalização, a desinternação, a substituição de sanções estigmatizantes e a utilização das penas privativas de liberdade somente nas hipóteses de crimes graves e de condenados de intensa periculosidade, salta aos olhos o absurdo de se utilizar tal medida extrema nos casos previstos pelo Direito privado, ou seja, nas hipóteses de prisão civil.18 Derradeiramente, adverte-se que toda sociedade humana é dotada de mobilidade, estando sujeita a mudanças de natureza muito variada, algumas condicionadas por circunstâncias externas e outras originadas dentro de seu próprio seio. Essa mobilidade torna inevitável que os esquemas baseados em normas rígidas se afastem das realidades sociais em que essas normas devam ser aplicadas. 19 Conseqüência direta desse fato é o surgimento da necessidade de mudança das legislações, fazendo com que evoluam e se aperfeiçoem, sempre respeitando e regulamentando os valores de uma sociedade num determinado contexto cultural. Ratifica-se, então, que não resta a menor dúvida a respeito da evolução irreversível do Direito para a proteção da dignidade humana, tanto no âmbito 18 Vale lembrar a doutrina de Edmundo Lima de Arruda Júnior, o qual, estabelecendo um paralelo entre as mudanças sociais e o direito moderno, conclui que “o direito positivo passa a ser pensado também como uma medida de modernidade, revelando o grau de racionalidade normativa consagrada na realidade e no mundo das práticas jurídicas efetivas” (Direito Moderno e Mudança Social: Ensaios de Sociologia Jurídica. Belo Horizonte: Del Rey, 1997, p. 149). De outra parte, referindo-se especificamente a um novo Direito civil, adverte Luiz Edson Fachin que “essa projeção do que se descortina não tem (nem pode ter) pacificidade. Envolve, por certo, rompimento e superação. Futuro, ruptura e transformação seguem, pois, lado a lado, na tentativa de construção desse caminho, novo ou renovado, nascido do choque inevitável entre a realidade e as categorias jurídicas ultrapassadas; entre o novo que surge e o velho que declina”, finalizações estas que se aplicam, na verdade, a todo o Direito (Teoria Crítica do Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 329). 19 Nesse sentido Eduardo NovoaMonreal, que continua sua lição da seguinte maneira: “Podemos representar o mandato da norma, anquilosada em seu texto para o futuro, como uma flecha segmentada, de curso reto, que iniciou seu curso no momento de vigência da lei e que se prolonga indefinidamente, sem alteração (...), até o tempo vindouro. O curso cambiante da vida social, nós o representamos, ao contrário, com um traço contínuo de curso sinuoso, no qual, normalmente, pode ser encontrada uma certa direção preponderante (...). Isso nos permite observar que, em face das mudanças sociais, pouco depois de editada uma lei, se produz, de logo, um distanciamento entre ela e a realidade social que deve regular”. E conclui mais adiante: “Poder-se-ia pensar que um legislador atento a essas transformações, e ágil em sua elaboração preceptiva, poderia evitar o desequilíbrio, elaborando novas normas que tivessem por finalidade pôr em dia as regras ultrapassadas, para manter sempre um Direito viçoso e atualizado. Inexiste, contudo, na realidade prática, esse legislador atento e ágil, ... e os juristas, aos quais também se poderia pensar caber a responsabilidade de cobrar uma consciência do problema e de adotar as medidas apropriadas para solucioná-lo, não no percebem, razão pela qual não se inquietam por estimular ao legislador nem, muito menos, por fornecer-lhe colaboração técnica. Falta perceber a vertiginosa marcha do acontecer social dentro do mundo de hoje”. (O Direito como Obstáculo à Transformação Social. Tradução de Gérson Pereira dos Santos. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1988, p. 28-31) Revista de Direito das Faculdades Integradas de Jaú ISSN 2318-566X internacional quanto no interno, o que foi observado pela Constituição Federal brasileira de 1988 quando galgou a dignidade humana à categoria de princípio fundamental da República Federativa do Brasil, assumindo, como já dito, formal e materialmente, a obrigação de construir, aplicar e interpretar todo seu Direito sobre essa noção. Parafraseando BARROSO ao apresentar as características do póspositivismo,20 pode-se afirmar, enfim, que a Carta de 1988, tendo como paradigma o Direito Internacional dos Direitos Humanos, trouxe como marca a ascensão de valores, o reconhecimento da normatividade dos princípios e a essencialidade dos direitos fundamentais. A breve exposição é suficiente para fundamentar a conclusão de que a mudança de valores que tem transparecido nas legislações modernas influencia, ou deve influenciar, a interpretação de toda e qualquer norma jurídica, constitucional ou infraconstitucional. Em outras palavras, deve-se esquecer os velhos, estéreis e ultrapassados pensamentos absolutistas, individualistas e patrimonialistas, os quais encontram-se descobertos de qualquer fundamento válido e destoantes da realidade fática e jurídica, tanto nacional quanto internacional, impondo-se, ao contrário, as correntes doutrinárias defensoras e reconhecedoras do valor supremo da dignidade da pessoa humana, resguardando-a e fazendo-a prevalecer em qualquer relação jurídica, seja qual for sua natureza. 3O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA Como já dito, a Carta de 1988 estabeleceu como princípio fundamental da República Federativa do Brasil a dignidade da pessoa humana (artigo 1°, III), sendo certo que qualquer discussão que se trave a respeito da aplicação de uma norma jurídica, nacional ou internacional, encontra-se absolutamente vinculada ao citado princípio. Eis, então, o motivo pelo qual se almejará esmiuçar o conceito de princípio constitucional, sua importância e sua aplicação na interpretação da Constituição Federal e das normas infraconstitucionais, o que se fará, repita-se, dando ênfase ao princípio da dignidade da pessoa humana. 20 BARROSO, Luís Roberto. Fundamentos Teóricos e Filosóficos do Novo Direito Constitucional Brasileiro. In: Revista da Academia Brasileira de Direito Constitucional, v. 1. Curitiba: Academia Brasileira de Direito Constitucional, 2001, p. 58. Revista de Direito das Faculdades Integradas de Jaú ISSN 2318-566X Ao definir princípio, DE PLÁCIDO E SILVA leciona que, derivado do latim principium (origem, começo), em sentido vulgar quer exprimir o começo de vida ou o primeiro instante em que as pessoas ou as coisas começam a existir. É, amplamente, indicativo do começo ou da origem de qualquer coisa. No sentido jurídico, notadamente no plural, quer significar as normas elementares ou os requisitos primordiais instituídos como base, como alicerce de alguma coisa. E, assim, princípios revelam o conjunto de regras ou preceitos, que se fixaram para servir de normas a toda espécie de ação jurídica, traçando, assim, a conduta a ser tida em qualquer operação jurídica. Desse modo, exprimem sentido mais relevante que o da própria norma ou regra jurídica. Mostram-se a própria razão fundamental de ser das coisas jurídicas, convertendo-se em perfeitos axiomas. Princípios Jurídicos, sem dúvida, significam os pontos básicos, que servem de ponto de partida ou de elementos vitais do próprio Direito. Indicam o 21 alicerce do Direito. (grifo nosso) Também merece transcrição a doutrina de MELLO: Princípio é, por definição, mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência, precisamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica que lhe dá sentido harmônico...”. Violar um princípio é muito mais grave do que transgredir uma norma. A desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um específico mandamento obrigatório, mas a todo sistema de comandos. É a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio atingido, porque representa insurgência contra todo o sistema, 22 subversão de seus valores fundamentais... . DANTAS, após apresentar sua definição de princípios, ensina, com propriedade, que correta é a posição dos que advertem para a distinção entre Princípios e Normas, (...). ... se tanto o Princípio quanto a Norma consagrados nos textos constitucionais refletem um posicionamento ideológico (opção política frente a diferentes valores) ..., existe entre eles hierarquização. A partir desta, o primeiro ocupa posição de destaque, irradiando, em decorrência e 23 necessariamente, o conteúdo daquela. 21 Vocabulário Jurídico. Rio de Janeiro: Forense, 1989, vol. IV. MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Elementos de Direito Administrativo. São Paulo: RT, 1991, p. 230. Na mesma linha a aula deGeraldo Ataliba: “... princípios são linhas mestras, os grandes nortes, as diretrizes magnas do sistema jurídico. Apontam os rumos a serem seguidos por toda a sociedade e obrigatoriamente perseguidos pelos órgãos do governo (poderes constituídos). Eles expressam a substância última do querer popular, seus objetivos e desígnios, as linhas mestras da legislação, da administração e da jurisdição. Por estas não podem ser contrariados; têm que ser perseguidos até as últimas conseqüências.” (República e Constituição. São Paulo: RT, 1985, p. 6-7). 23 DANTAS, Ivo. Princípios Constitucionais e Interpretação Constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1995, p. 59-60. O mesmo autor estabelece relação entre os princípios fundamentais e o disposto no preâmbulo da Carta de 1988. Assim postula: “Bem oportuno é lembrarmos que a Constituição Federal brasileira de 1988 faz uso da expressão valores supremos quando, em seu Preâmbulo elege p ‘Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias’... Os valores aqui referidos, a Constituição os retoma, exatamente, no Título I – Dos Princípios 22 Revista de Direito das Faculdades Integradas de Jaú ISSN 2318-566X Evidente, pois, a importância que merecem os princípios fundamentais previstos na Constituição Federal de 1988, até mesmo porque possuem hierarquia superior a das normas.24 A infração de um princípio constitucional implica em desrespeito à própria Constituição, representando por isso mesmo uma inconstitucionalidade de conseqüências muito mais graves do que a violação de uma simples norma, mesmo constitucional. A doutrina vem insistindo na acentuação da importância dos princípios para iluminar a exegese dos mandamentos constitucionais. Enfim, “é o princípio que iluminará a inteligência da simples norma; que estabelecerá o conteúdo e os limites da eficácia de normas constitucionais esparsas, as quais têm que harmonizar-se com ele”.25 BONAVIDES é enfático ao defender a superioridade dos princípios, prelecionando que postos no ápice da pirâmide normativa, elevam-se, portanto, ao grau de norma das normas, de fonte das fontes. São qualitativamente a viga-mestra do sistema, o esteio da legitimidade constitucional, o penhor da 26 constitucionalidade das regras de uma Constituição. Fundamentais”. Ivo Dantas atribui tamanha relevância aos princípios fundamentais que conclui pela possibilidade de normas constitucionais inconstitucionais. Eis seu raciocínio: “A existência de Princípios Fundamentais como expressão de uma técnica legislativa utilizada pelo constituinte, representa uma hierarquia interna na própria Constituição. Tais princípios se encontram acima das demais matérias que compõem o próprio texto constitucional, sobre estas exercendo uma força vinculante, sobretudo, no instante do exercício interpretativo. Em outras palavras, responderemos positivamente à indagação ao título do livro de Otto BACHOF: existem Normas Constitucionais Inconstitucionais?.” (Instituições de Direito Constitucional Brasileiro. a 2 ed. Curitiba: Juruá, 2001, p. 376-381 – negrito original) 24 Na lição de José Cretella Júnior, “princípio é, antes de tudo, ponto de partida. Princípios de uma ciência são as proposições básicas, fundamentais, típicas que condicionam todas as estruturações subseqüentes. Princípio, neste sentido, são os alicerces, os fundamentos da ciência” (Tratado de Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Forense, 1978, p. 18). 25 BORGES, José Souto Maior. Lei Complementar Tributária. São Paulo: RT, 1975, p. 13-14. Tratando das garantias processuais, José Augusto Delgado também defende a hegemonia dos princípios ao ressaltar a necessidade de reconhecimento da sua importância, eis que, “após se articularem com normas de diferentes tipos e características, passam a ser facho que ‘ilumina’ a compreensão das regras processuais constitucionais e as de posição hierárquica menor” (A Supremacia dos Princípios nas Garantias Processuais do Cidadão. In: TEIXEIRA, Sávio de Figueiredo (coord.). As Garantias do Cidadão na Justiça. São Paulo: Saraiva, 1993, p. 64) 26 a BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 6 ed. São Paulo: Malheiros Editores, 1996, p. 265. A função interpretativa dos princípios é evidenciada por Humberto QuirogaLavié, quando classifica a estrutura constitucional positiva de um Estado e distribui as funções às suas diferentes espécies. Eissualição: “Como parte de la estructura constitucional positiva del Estado, encontramos tres subestructuras fundamentales que funcionan como elementos integradores de su ser: la estructura normativa, la estructura orgánica y la estructura de principios constitucionales. Lãs tres estructuras tienen íntima relación com el todo y le dan funcionalidad: la normativa formula la teoría sobre lãs normas y los actos jurídicos constitucionales y los clasifica; la orgánica define lãs competencias de los poderes públicos, y la de los principios constitucionales devela los criterios interpretativos utilizados por la ciencia” (Derecho Constitucional. Buenos Aires: Depalma, 1987, p. 81). No mesmo sentido, ainda, os ensinamentos de Coqueijo Costa: “Princípio fundamental é algo que devemos admitir como pressuposto de todo ordenamento jurídico e aflora de modo expresso em múltiplas e Revista de Direito das Faculdades Integradas de Jaú ISSN 2318-566X Os princípios constitucionais devem ser rigorosamente respeitados, sob pena de todo o ordenamento jurídico se corromper, pois vinculam, de modo inexorável, o entendimento e a aplicação das normas jurídicas, influindo na interpretação até mesmo das normas constitucionais. Assim, caso um dispositivo constitucional possua mais de um sentido, deverá ele ser interpretado com vistas a fixar o sentido que possibilita uma sintonia com o princípio que lhe for mais próximo, o mesmo ocorrendo na hipótese de uma aparente antinomia entre textos constitucionais.27 Nota-se, pois, que os princípios constitucionais, especialmente aqueles elevados à princípios fundamentais da República, como ocorre com o princípio da dignidade da pessoa humana (artigo 1°, III), traçam a conduta a ser tida em qualquer operação jurídica, constituem a pedra angular de toda e qualquer norma, exprimem sentido mais relevante que o da própria norma ou regra jurídica, constituem um mandamento nuclear, embasam a interpretação de todas as normas e solucionam eventuais casos não previstos. Demonstrados o conceito e a importância dos princípios fundamentais, mister a análise específica do princípio da dignidade da pessoa humana. Apresentar um conceito para tal princípio se constitui em tarefa complexa e arriscada. Na realidade, é muito mais fácil e descomplicado discriminar o que não se trata de dignidade da pessoa humana, estabelecendo as hipóteses em que é violada, embora seja forçoso admitir a impossibilidade de se apresentar um rol taxativo de violações. Individualizam-se as expressões dignidade e pessoa humana, objetivando melhor analisar o verdadeiro significado do princípio. A palavra dignidade tem sua origem etimológica no termo latino dignitas, que expressa respeitabilidade, prestígio, consideração, estima, nobreza, excelência, enfim, aponta qualidade daquilo que é digno e merece respeito ou reverência.28 Quanto à pessoa humana, destaca-se ela diferentes normas, nas quais o legislador muitas vezes necessita mencioná-lo. São linhas diretrizes que informam algumas normas e inspiram direta ou indiretamente uma série de soluções, promovem e embasam a aprovação de normas, orientam a interpretação das existentes e resolvem os casos não previstos” (Processo do Trabalho: Princípios e Peculiaridades. In Curso de Direito do Trabalho - em homenagem a Mozart Victor Russomano. São Paulo: Saraiva, 1985, p. 686). 27 NUNES, Luiz Antônio Rizzatto. O Princípio Constitucional da Dignidade da Pessoa Humana: Doutrina e Jurisprudência. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 37. E o mesmo autor conclui em seguida: “Na realidade, o princípio funciona como vetor para o intérprete. E o jurista, na análise de qualquer problema jurídico, por mais trivial que ele possa ser, deve, preliminarmente, alçar-lhe ao nível dos grandes princípios, a fim de verificar em que direção eles apontam. Nenhuma interpretação será havida por jurídica se atritar com um princípio constitucional.” (idem) 28 “Importante observar que ao lado desse substantivo abstrato – DIGNIDADE – que expressa, pois, uma Revista de Direito das Faculdades Integradas de Jaú ISSN 2318-566X na natureza e se diferencia do ser irracional em decorrência da sua condição natural de ser, da sua inteligência e da possibilidade de exercício de sua liberdade, características essas que constituem um valor e fazem do homem não mais um mero existir, tendo em vista que esse domínio sobre a própria vida, sua superação, é a raiz da dignidade humana. Diante disso, qualquer pessoa humana, pelo simples fato de existir, independentemente de sua situação social, traz na sua superioridade racional a dignidade de todo ser.29 Unificando as expressões, SARLET arrisca-se conceituar a dignidade da pessoa humana como a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e 30 da vida em comunhão com os demais seres humanos. De qualquer maneira, o princípio da dignidade da pessoa humana expressa o valor supremo que norteia e atrai o conteúdo de todos os demais direitos fundamentais humanos, destacando-se dentre os demais princípios fundamentais enunciados na Carta de 1988. Entre outras coisas, impõe aos homens, em suas relações interpessoais, e ao Estado, não agirem jamais de molde a que a pessoa seja tratada como objeto. Inexistirá a dignidade da pessoa humana, por exemplo, onde não houver respeito pela integridade física e moral do ser humano, onde não se reverenciar sua liberdade, onde não se reconhecer os direitos fundamentais, a autonomia, a igualdade, e onde não se encontrar as mínimas condições para uma existência digna.31 qualidade ou atributo de um determinado sujeito, deve-se considerar também o termo DIGNIFICAÇÃO – derivado do verbo dignificar, ou seja, tornar digno – que expressa um processo de busca ou de aprimoramento da dignidade desse mesmo sujeito. Esse processo de dignificação terá, necessariamente, como pressuposto as concepções do sujeito acerca do que considera como uma ‘vida digna’, ...” (ALVES, Cleber Francisco. O Princípio Constitucional da Dignidade da Pessoa Humana: O Enfoque da Doutrina Social da Igreja. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 109-110) 29 CAMARGO, A. L. Chaves de. Culpabilidade e Reprovação Penal. São Paulo: Sugestões Literárias, 1994, p. 2728. 30 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 60. 31 Os direitos fundamentais ligados ao princípio da dignidade da pessoa humana, na lição de José Carlos Vieira de Andrade, podem ser classificados em direitos de 1° e 2° graus. Eis sua doutrina: “... o princípio da dignidade da pessoa humana é a base de todos os direitos constitucionalmente consagrados, quer dos direitos e liberdades tradicionais, quer dos direitos de participação política, quer dos direitos dos trabalhadores e direitos a prestações sociais. Pode ser diferente o grau de vinculação dos direitos àquele princípio. Assim, alguns direitos Revista de Direito das Faculdades Integradas de Jaú ISSN 2318-566X Para NUNES, está mais do que na hora de o operador do Direito passar a gerir sua atuação social pautado no princípio fundamental estampado no Texto Constitucional. Aliás, é um verdadeiro supraprincípio constitucional que ilumina todos os demais princípios e normas constitucionais e infraconstitucionais. E por isso não pode o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana ser desconsiderado em nenhum ato de interpretação, 32 aplicação ou criação de normas jurídicas. Também buscando apresentar a aplicação prática do princípio da dignidade da pessoa humana, ALVES ressalta que ... parece-nos que esse princípio, como tantos outros princípios fundamentais inscritos na Constituição, não é apenas „fonte de solução jurídica enquanto pressuposto de validade e enquanto elemento de interpretação e integração das normas‟. Entendemos que é preciso admitir que os princípios constitucionais, como o que consagra a dignidade da pessoa humana, podem servir de fonte autônoma de solução jurídica – ou „juízos concretos do dever ser‟, na conhecida expressão de Alexy – para determinados casos onde, apesar da ausência de regras específicas, se depare com uma situação concreta submetida à decisão judicial que deva ser regulada de modo a salvaguardar a proeminência dos 33 valores existenciais da pessoa humana. (negrito original) Não se pode olvidar, ainda, que do princípio da dignidade da pessoa humana decorre também o denominado princípio da proporcionalidade. É este que permite fazer o sopesamento dos princípios e direitos fundamentais, bem como dos interesses e bens jurídicos em que se expressam, quando se encontram em estado de contradição, solucionando-a de forma que maximize o respeito a todos os envolvidos no conflito e, evidentemente, priorizando a dignidade da pessoa humana.34 constituem explicitações de 1° grau de dignidade, que modela o conteúdo essencial deles: o direito à vida, à liberdade física ou de consciência, por exemplo, tal como a generalidade dos direitos pessoais, são atributos jurídicos essenciais da dignidade dos homens concretos. Outros direitos decorrem desse conjunto de direitos fundamentalíssimos ou então completam-nos como explicitações de 2° grau, mediadas pelas particularidades das circunstâncias sociais e econômicas, políticas e ideológicas: o direito de manifestação, a liberdade de empresa, o direito a férias pagas, os direitos à habitação, à saúde, e à segurança social não decorrem necessariamente em toda a sua extensão do princípio da dignidade humana. Mas, ainda aí, é este princípio que está na base de sua previsão constitucional e de sua consideração como direitos fundamentais.” (Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976. Coimbra: Almedina, 1987, passim) 32 Luiz Antônio Rizzatto Nunes, O Princípio Constitucional da Dignidade da Pessoa Humana: Doutrina e Jurisprudência, p. 50-51. 33 Cleber Francisco Alves, O Princípio Constitucional da Dignidade da Pessoa Humana: O Enfoque da Doutrina Social da Igreja, p. 135. 34 O princípio da proporcionalidade é denominado por José Joaquim Gomes Canotilho de método deponderação ou de balanceamento, lecionando que “surge em todo o lado onde haja necessidade de ‘encontrar o direito’ para resolver ‘casos de tensão’ entre bens juridicamente protegidos”. Explica, ainda, que “a agitação metódica e teórica em torno do método de balanceamento ou ponderação no direito constitucional não é uma ‘moda’ ou um capricho dos cultores de direito constitucional. Várias razões existem para esta viragem metodológica: (1) inexistência de uma ordenação abstracta de bens constitucionais o que torna indispensável uma operação de balanceamento desses bens de modo a obter uma norma de decisão situativa, Revista de Direito das Faculdades Integradas de Jaú ISSN 2318-566X Abre-se um parêntese para salientar que na solução de conflito entre direitos fundamentais e na aplicação do princípio da dignidade da pessoa humana e, ainda, do mencionado princípio da proporcionalidade, é fecunda a jurisprudência da Corte Constitucional alemã. Aliás, vale lembrar que a Lei Maior da Alemanha, como a do Brasil, também colocou a dignidade da pessoa humana como princípio fundamental. MENDES destaca duas decisões importantes proferidas pela Corte Constitucional alemã, as quais merecem ser objeto de breve estudo.35 Uma delas diz respeito à publicação do romance Mephisto, de Klaus Mann, decisão na qual reconheceu-se o conflito entre o direito de liberdade artística e os direitos de personalidade enquanto derivações do princípio da dignidade humana. O filho adotivo do falecido ator e diretor de teatro Gustaf Gründgen postulou perante a justiça estadual de Hamburgo a proibição da publicação do romance Mephisto, com o argumento de que se cuidava de uma biografia depreciativa e injuriosa da memória de Gründgen, caricaturado no romance na figura de Hendrik Höfgen. Após o julgamento nas instâncias inferiores e a interposição de recursos,36 a ação foi apreciada pela Corte Constitucional alemã, que, em 24/02/71, proferiu decisão, cuja ementa segue adiante: 1. Art. 5, III, 1° período da Lei Fundamental representa uma norma básica da relação entre o Estado e o meio artístico. Ele assegura, isto é, uma norma de decisão adoptada às circunstâncias do caso; (2) formatação principal de muitas das normas do direito constitucional (sobretudo das normas consagradoras de direitos fundamentais) o que implica, em caso de colisão, tarefas de ‘concordância’, ‘balanceamento’, ‘pesagem’, ‘ponderação’ típicas dos modos de solução de conflitos entre princípios (...); (3) fractura da unidade de valores de uma comunidade que obriga a leituras várias dos conflitos de bens, impondo cuidadosa análise dos bens em presença e uma fundamentação rigorosa do balanceamento efectuado para a solução dos conflitos” (Direito Constitucional e Teoria da Constituição, p. 1.161). 35 MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos Fundamentais e Controle de Constitucionalidade: Estudos de Direito Constitucional. 2a ed. São Paulo: Celso Bastos Editor: Instituto Brasileiro de Direito Constitucional, 1999, p. 91-96. 36 Informa Gilmar Ferreira Mendes (op. cit., p. 91-93), que o tribunal estadual de Hamburgo julgou improcedente a ação e o romance foi publicado em 1965, com a advertência aos leitores de que “todas as pessoas deste livro são tipos, não retratos de personalidade”. Uma medida liminar deferida pelo Tribunal Superior de Hamburgo fez acrescentar à publicação uma advertênciaaos leitores na qual se enfatizava que, embora constassem referências a pessoas, as personagens haviam sido conformadas, fundamentalmente, pela “fantasia poética do autor”. O mesmo Tribunal concedeu, posteriormente, o pedido de proibição da publicação, fundamentando-se nos direitos subsistentes de personalidade do falecido teatrólogo e no direito autônomo do filho adotivo. Como o público dificilmente poderia distinguir entre poesia e realidade, sendo mesmo levado a identificar na personagem Höfgen a figura de Gründgen, não havia como deixar de reconhecer o conteúdo injurioso das afirmações contidas na obra. O direito de liberdade artística não teria precedência sobre os demais direitos, devendo, por isso, o juízo de ponderação entre a liberdade artística e os direitos de personalidade ser decidido, na espécie, em favor do autor. Dessa decisão interpôs-se pedido de revisão, o qual foi rejeitado pelo Supremo Tribunal Federal. Revista de Direito das Faculdades Integradas de Jaú ISSN 2318-566X igualmente, um direito individual. 2. A garantia da liberdade artística abrange não só a atividade artística, como a apresentação e a divulgação de obras de arte. 3. O direito de liberdade artística protege também o editor. 4. À liberdade artística não se aplicam nem a restrição do art. 5°, II, nem aquela contida no art. 2°, I, 2° período. 5. Um conflito entre a liberdade artística e o âmbito do direito de personalidade garantido constitucionalmente deve ser resolvido com fulcro na ordem de valores estabelecida pela Lei Fundamental; nesse sentido, há de ser considerada, particularmente, a garantia da inviolabilidade do princípio da dignidade humana consagrada no art. 1°, I”. Um dos fundamentos utilizados na decisão supratranscrita foi o de que o direito de liberdade artística encontra limite imanente no direito da personalidade assegurado constitucionalmente e que esses limites são violados se, a pretexto de descrever a vida ou a conduta de determinadas pessoas, se atribui a elas prática de atos negativos absolutamente estranhos à sua biografia, sem que se possa afirmar, com segurança, que se cuida, simplesmente, de uma imagem hiperbólica ou satírica.37 O não-estabelecimento de expressa reserva legal ao direito de liberdade artística não significava que eventuais limitações deveriam decorrer, diretamente, do texto constitucional. Enquanto elemento integrante do sistema de valores dos direitos individuais, o direito de liberdade artística estava subordinado ao princípio da dignidade humana, que, como princípio supremo, estabelece as linhas gerais para os demais direitos individuais.38 Outra decisão importante da Corte Constitucional alemã refere-se ao conflito havido entre a liberdade de imprensa e os direitos da personalidade ocorrido no chamado Caso Lebach. Um dos envolvidos em grave homicídio – conhecido como o assassinato dos soldados de Lebach – interpôs pedido de liminar contra a divulgação de um filme pelo Segundo Canal de Televisão alemão, sob a alegação de que tal divulgação lesaria seus direitos de personalidade e dificultaria a sua ressocialização, eis que era citado nominalmente no filme. Tanto o Tribunal estadual de Mainz quanto o Tribunal Superior de Koblenz não acolheram o pedido de liminar, entendendo que o conflito entre a liberdade de imprensa (artigo 5°, I da Constituição alemã) e os direitos de 37 38 Ibidem, p. 92. Ibidem, p. 94. Revista de Direito das Faculdades Integradas de Jaú ISSN 2318-566X personalidade do impetrante, principalmente o direito de ressocialização, haveria de ser decidido em favor da divulgação da matéria, que correspondia ao direito de informação sobre tema de inequívoco interesse público.39 Interposto recurso constitucional, tendo como uma das alegações a ofensa ao artigo 1°, I da Lei Fundamental (inviolabilidade da dignidade humana), a Corte Constitucional deferiu a medida liminar postulada, proibindo a divulgação do filme, até a decisão do processo principal, se dele constasse referência expressa ao nome do impetrante. Eis a ementa da decisão: Para a atual divulgação de notícias sobre crimes graves tem o interesse de informação da opinião pública, em geral, precedência sobre a proteção da personalidade do agente delituoso. Todavia, além de considerar a intangibilidade da esfera íntima, tem-se que levar em conta sempre o princípio da proporcionalidade. Por isso, nem sempre se afigura legítima a designação do autor do crime ou a divulgação de fotos ou imagens ou outros elementos que permitam a sua identificação. A proteção da personalidade não autoriza que a Televisão se ocupe, fora do âmbito do noticiário sobre a atualidade, com a pessoa e a esfera íntima do autor de um crime, ainda que sob a forma de documentário. A divulgação posterior de notícias sobre o fato é, em todo caso, ilegítima, se se mostrar apta a provocar danos graves ou adicionais ao autor, especialmente se dificultar a sua reintegração na sociedade. É de se presumir que um programa, que identifica o autor de fato delituoso pouco antes da concessão de seu livramento condicional ou mesmo após a sua soltura, ameaça seriamente o seu processo de reintegração social.40 Feito esse parêntese, ressalta-se que tanto a Constituição brasileira (artigo 1°, III) quanto a alemã (artigo 1°, I) consagram o princípio da dignidade da pessoa humana, o qual deve nortear a interpretação de todo e qualquer dispositivo do ordenamento jurídico do país, inclusive das normas constitucionais, e também quando direitos fundamentais se colidirem, orientando a solução do conflito e aplicando-se o princípio da proporcionalidade. Ademais, pode-se assegurar que a Constituição Federal em vigor elegeu o valor da dignidade humana como um valor essencial que lhe dá unidade de sentido, ou seja, o valor da dignidade humana informa a ordem constitucional de 1988, imprimindo-lhe uma feição particular.41 39 Ibidem, p. 95. Ibidem, p. 96. 41 PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 3ª ed. São Paulo: Max Limonad, 1997, p. 59. 40 Revista de Direito das Faculdades Integradas de Jaú ISSN 2318-566X 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS Já restou demonstrado alhures que a Carta Magna brasileira reconheceu, expressa e formalmente, a dignidade da pessoa humana como princípio fundamental da República Federativa do Brasil (artigo 1°, III), tratando-se, na realidade, de um supraprincípio que se sobrepõe a todos os demais princípios e a todas as normas constitucionais e infraconstitucionais, expressando o valor supremo que norteia e atrai o conteúdo de todos os demais direitos fundamentais humanos. Mais que isso, orienta a criação, a aplicação e a interpretação de qualquer norma, servindo, ainda, como fonte autônoma de solução jurídica para determinados casos onde não existam regras específicas e se depare com uma situação concreta, submetida à uma decisão, que deva ser regulada de modo a salvaguardar a proeminência dos valores existenciais da pessoa humana. Além de estabelecer o conteúdo, o princípio da dignidade da pessoa humana também fixa os limites da eficácia de normas constitucionais, que com ele têm que se harmonizar. Sendo assim, a única conclusão a que se pode chegar é a de que está instituído e garantido o direito de ser humano, que deve prevalecer sobre todo e qualquer outro direito. Aliás, diante de um conflito entre disposições legais, seja qual for a espécie normativa e a posição hierárquica da norma, deverá prevalecer a mais favorável à proteção da pessoa humana, pois esta se encontra no píncaro de uma escala de valores e sua intangível e inviolável dignidade constitui o valor supremo de toda a comunidade humana e de todo o Direito.42 O mesmo ocorre até quando se estiver frente a um conflito entre o Direito interno e o disposto em tratados internacionais. Não se deve mais trazer à tona a ultrapassada discussão entre as clássicas e estéreis correntes monista e dualista, que nada contribuem atualmente para o estudo da relação entre o Direito interno e o Direito internacional. A primazia hoje não é de um ou de outro, mas sim da pessoa humana. Desse modo, na hipótese de conflito, a norma que deve predominar e ser 42 Leciona no mesmo sentido a constitucionalista Flávia Piovesan. Eis sua doutrina: “Logo, na hipótese de eventual conflito entre o Direito Internacional dos Direitos Humanos e o Direitos interno, adota-se o critério da prevalência da norma mais favorável à vítima. Em outras palavras, a primazia é da norma que melhor proteja, em cada caso, os direitos da pessoa humana. Ressalte-se que o Direito Internacional dos Direitos Humanos apenas vem a aprimorar e fortalecer o grau de proteção dos direitos consagrados no plano normativo interno. A escolha da norma mais benéfica ao indivíduo é tarefa que caberá fundamentalmente aos Tribunais nacionais e a outros órgãos aplicadores do direito, no sentido de assegurar a melhor proteção possível ao ser humano.”(Op. cit., p. 123) Revista de Direito das Faculdades Integradas de Jaú ISSN 2318-566X aplicada será aquela que melhor proteja os direitos da pessoa humana, esteja ela prevista na Constituição Federal brasileira ou nos tratados internacionais de direitos humanos. Em suma, em que pesem entendimentos contrários, efetivamente deverá sempre prevalecer a norma mais benéfica ao ser humano, seja num conflito entre o Direito interno e o Direito internacional, seja num conflito entre disposições de dois instrumentos de proteção internacional dos direitos humanos, seja num conflito entre duas normas internas, enfim, seja qual for o tumulto normativo existente. Eis o direito de ser humano, hoje superior a todos os demais direitos, ao mesmo tempo em que serve de pilastra mestre dos chamados “novos direitos”. REFERÊNCIAS ALMEIDA-DINIZ, Arthur J..Novos Paradigmas em Direito Internacional Público. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1995. ALVES, Cleber Francisco. O Princípio Constitucional da Dignidade da Pessoa Humana: O Enfoque da Doutrina Social da Igreja. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976. Coimbra: Almedina, 1987. ARRUDA JÚNIOR, Edmundo Lima de. 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