BNDES – cargos de Nível Médio – 2011
Dê uma chance ao ser humano
1.
A vizinha tocou a campainha e, quando abri a
2. porta, surpreso com a visita inesperada, ela entrou,
3. me abraçou forte e falou devagar, olhando fundo
4. nos meus olhos: “Você tem sido um vizinho muito
5. compreensivo, e eu ando muito relapsa na criação dos
6. meus cachorros. Isso vai mudar!” Desde então, uma
7. série de procedimentos na casa em frente à minha
8. acabou com um pesadelo que me atormentou por
9. mais de um ano. Sei que todo mundo tem um caso
10. com o cachorro do vizinho para contar, mas, com final
11. feliz assim, francamente, duvido. A história que agora
12. passo a narrar do início explica em grande parte por
13. que ainda acredito no ser humano – ô, raça!
14. Meus vizinhos, pelo menos assim os vejo da
15. janela lá do cafofo, não são pessoas comuns. Falo de
16. gente especial, um casal de artistas, ele músico, ela
17. bailarina, dupla de movimentos suaves e silenciosos,
18. olhar maduro, fuso horário próprio e descompromisso
19. amplo, geral e irrestrito com a pressa na execução
20. das tarefas domésticas que assumem sem ajuda
21. de ninguém. [...] A paz mora do outro lado da rua
22. e, confesso, morro de inveja quando me mato de
23. trabalhar noite adentro ali adiante. Queria ser como
24. eles.
25.
Quando o primeiro pastor alemão chegou ainda
26. moleque para morar com meus adoráveis vizinhos,
27. a casa de pedra onde eles moravam viveu dias de
28. alegria contagiante. O bicho era uma gracinha, foi
29. crescendo, começou a latir, mas nada que quebrasse
30. a harmonia do lugar. [...] Quando, logo depois do
31. primeiro acasalamento, o segundo pastor alemão fez
32. crescer a família, cada paralelepípedo da minha rua
33. pressentiu o que estava para acontecer. Ou não! De
34. qualquer forma, eu achava que, se porventura aquilo
35. virasse o inferno que se anunciava, outro vizinho
36. decerto perderia a paciência antes de mim, que,
37. afinal, virei tiete do jeito de viver que espiava pela
38. janela do escritório de casa. Eu, ir lá reclamar, nunca!
39. Não sei se os outros vizinhos decidiram em
40. assembleia que esperariam a todo custo por uma
41. reação minha, mas, para encurtar a história, o fato
42. é que um ano e tanto depois da chegada do primeiro
43. pastor alemão àquela casa, eu tive um ataque,
44. enlouqueci, surtei. Imagine o mico: vinha chegando
45. da rua com meus filhos – gêmeos de 10 anos –,
46. chovia baldes, eu não conseguia achar as chaves e
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47. os bichos gritavam como se fôssemos assaltantes de
48. banco. [...]
49.
– Cala a booooocaaa! – gritei para ser ouvido
50. em todo o bairro. Os cachorros emudeceram por 10
51. segundos. Fez-se um silêncio profundo na Gávea.
52. Os garotos me olhavam como se estivessem vendo
53. alguém assim, inteiramente fora de si, pela primeira
54. vez na vida. Eu mesmo não me reconhecia, mas, à
55. primeira rosnada que se seguiu, resolvi ir em frente,
56. impossível recuar: “Cala a boooooocaaa! Cala a
57. boooooocaaa!” Silêncio total. Os meninos estavam
58. agora admirados: acho que jamais tinham visto
59. aqueles bichos de boca fechada.
60.
[...] Entrei rápido com as crianças entre arrasado
61. e aliviado. Achei na hora que devia conversar com
62. meus filhos, que melhor ainda seria escrever com
63. eles uma carta educada e sincera explicando a
64. situação aos nossos vizinhos preferidos.
65.
Comecei pedindo desculpas pela explosão
66. daquela noite, mas pedia licença para contar
67. o drama que se vivia do lado de cá da rua. Havia
68. muito tempo não entrava nem saía de casa sem que
69. os cães dessem alarme de minha presença na rua.
70. Tinha vivido uma época de separações, morte de
71. gente muito querida, além de momentos de intensa
72. felicidade, sempre com aqueles bichos latindo sem
73. parar. [...] – escrevi algo assim, mais resignado que
74. irritado, o arquivo original sumiu do computador.
75.
Mas chegou aonde devia ou a vizinha não teria
76. me dado aquele abraço comovido na noite em que
77. abri a porta, surpreso com ela se anunciando no
78. interfone, depois de meu chilique diante de casa. [...]
79.
Desde então – há coisa de um mês, portanto –,
80. meus vizinhos têm feito o possível para controlar o
81. ímpeto de seus bichos, que já não me vigiam dia
82. e noite, arrumaram para eles coisa decerto mais
83. interessante a fazer no quintal. [...] Às vezes não
84. acredito que isso esteja realmente acontecendo neste
85. mundo cão em que vivemos. Se não estou vendo
86. coisas – o que também ocorre com certa frequência –,
87. o ser humano talvez ainda tenha alguma chance de
88. dar certo. Pense nisso!
VASQUES, Tutty. Dê uma chance ao ser humano. In: SANTOS,
Joaquim Ferreira. As Cem Melhores Crônicas Brasileiras.
Rio de Janeiro: Objetiva, 2007. p. 311-313. Adaptado.
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1. Considere as afirmações abaixo sobre a compreensão do texto lido.
I - O abraço da vizinha (l. 3) ocorreu depois do episódio do grito do autor.
II - No trecho “[...] acabou com um pesadelo [...]” (l. 8), a substituição de com por em faz
com que o sentido se torne oposto ao original.
III - A razão da inveja do autor por seus vizinhos é porque eles moram numa casa de pedra.
É correto o que se afirma em
(A) I, apenas.
(B) I e II, apenas.
(C) I e III, apenas.
(D) II e III, apenas.
(E) I, II e III.
Item I – certo: A afirmação de que “o abraço da vizinha ocorreu depois do episódio do grito
do autor” pode ser comprovada com este trecho do texto: “a vizinha não teria me dado
aquele abraço comovido na noite em que abri a porta, surpreso com ela se anunciando no
interfone, depois de meu chilique diante de casa”.
Item II – certo: A substituição de com por em faz com que o sentido se torne oposto ao
original: “acabou com o pesadelo” significa “fez cessar o pesadelo”; já” acabou em
pesadelo” quer dizer “resultou em pesadelo”, “teve como consequência o pesadelo”.
Item III – errado: O autor invejava os vizinhos não por eles morarem numa casa de pedra,
mas, sim, porque tinham “horário próprio, e descompromisso amplo, geral e irrestrito”,
enquanto ele se matava de trabalhar “noite adentro ali adiante”.
Gabarito: B
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2. A utilização da expressão “ô, raça!” (l. 13) exprime que o autor
(A) pode ser surpreendido pelo ser humano, que é complexo.
(B) julga negativamente o ser humano, que não muda.
(C) iguala a raça humana a qualquer outra raça animal.
(D) admira incondicionalmente a raça humana.
(E) não se considera parte da mesma raça como os outros seres.
a) alternativa certa – A utilização da expressão “ô, raça!” exprime que o autor pode ser
surpreendido pelo ser humano, que é complexo, uma vez que o autor havia atingido o limite
do desespero por causa do “drama” causado pelo latido dos cachorros. Quando não mais
acreditava no fim do problema, eis que surge a vizinha, abraçando-o e prometendo uma
solução. Vejamos um trecho do texto que comprova a complexidade do ser humano: "Às
vezes não acredito que isso esteja realmente acontecendo neste mundo cão em que
vivemos. Se não estou vendo coisas - o que também ocorre com certa frequência -, o ser
humano talvez ainda tenha alguma chance de dar certo. Pense nisso!".
3. No 5° parágrafo do texto, a admiração dos meninos se deu porque
(A) o pai gritou muito alto.
(B) o pai estava desnorteado.
(C) o bairro estava silencioso.
(D) os cachorros pararam de latir.
(E) eles não estavam reconhecendo o pai.
d) alternativa certa – Os meninos se admiraram pelo fato de os cachorros pararem de latir.
Isso pode ser comprovado com o trecho a seguir: “Os meninos estavam agora admirados:
acho que jamais tinham visto aqueles bichos de boca fechada.”.
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Gabarito: D
4. Nos parágrafos 5°, 6° e 7°, os sentimentos revelados pelo autor são, na ordem,
(A) alívio e irritação
(B) espanto e raiva
(C) impaciência e resignação
(D) constrangimento e revolta
(E) descontrole e arrependimento
e) alternativa certa – Os sentimentos revelados pelo autor são, na ordem, descontrole e
arrependimento, como podemos verificar no texto. No 5º parágrafo, o autor demonstra
descontrole: “Os garotos me olhavam como se estivessem vendo alguém assim,
inteiramente fora de si, pela primeira vez na vida. Eu mesmo não me reconhecia, mas, à
primeira rosnada que se seguiu, resolvi ir em frente, impossível recuar: “Cala a
boooooocaaa! Cala a boooooocaaa!”. Nos parágrafos 6 e 7, ele mostra-se arrependido:
“Achei na hora que devia conversar com meus filhos, que melhor ainda seria escrever com
eles uma carta educada e sincera explicando a situação aos nossos vizinhos preferidos.”
(6º§) / “Comecei pedindo desculpas pela explosão daquela noite, mas pedia licença para
contar o drama que se vivia do lado de cá da rua.” (7º §)
5. O drama a que o autor se refere na linha 67 é o fato de ter
(A) tido uma explosão na frente dos filhos.
(B) tido episódios de separações em sua vida.
(C) vivido momentos de muita felicidade.
(D) experienciado falecimentos de pessoas queridas.
(E) sido constantemente incomodado pelos latidos.
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e) alternativa certa – O drama a que o autor se refere na linha 67 é o fato de ter sido
constantemente incomodado pelos latidos: “Havia muito tempo não entrava nem saía de
casa sem que os cães dessem alarme de minha presença na rua.”.
6. A expressão “fuso horário próprio” (l. 18) significa que os vizinhos
(A) vivem em horários peculiares a eles.
(B) viajam muito por motivos profissionais.
(C) chegam sempre atrasados aos compromissos.
(D) fazem suas tarefas sozinhos, sem ajuda de ninguém.
(E) levam muito tempo para executar as tarefas domésticas.
a) alternativa certa – A expressão “fuso horário próprio” significa que os vizinhos vivem em
horários peculiares a eles, ou seja, viviam horários próprios, como pode ser comprovado no
texto: “fuso horário próprio e descompromisso amplo, geral e irrestrito com a pressa na
execução das tarefas domésticas que assumem sem ajuda de ninguém”.
7. Na passagem “Você tem sido um vizinho muito compreensivo, e eu ando muito relapsa na
criação dos meus cachorros. Isso vai mudar!” (_. 4-6) a conjunção que permite a junção da
última oração acima com sua antecedente, sem alterar o sentido, é
(A) logo
(B) porque
(C) mas
(D) pois
(E) embora
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c) alternativa certa – A conjunção que permite a junção da última oração acima com sua
antecedente, sem alterar o sentido, é “mas”, uma vez que a oração iniciada por “e”
expressa uma oposição em relação à anterior.
Nas demais alternativas, as conjunções expressam as seguintes relações:
a) alternativa errada – logo > conclusão;
b) alternativa errada – porque > causa;
d) alternativa errada – pois > causa;
e) alternativa errada – embora > concessão.
Gabarito: C
8. Observe o período abaixo.
Você tem sido um vizinho muito compreensivo, e eu ando meio relapso na criação de meu
bicho de estimação.
Substituindo-se as palavras em destaque por seus correspondentes plurais, mantendo-se a
norma-padrão de concordância, chega-se ao seguinte período:
(A) Vocês têm sido vizinhos muito compreensivos, e nós andamos meios relapsos nas criações
de nossos bichos de estimações.
(B) Vocês têm sido um vizinho muito compreensivo, e nós andamos meio relapso na criação de
meus bichos de estimação.
(C) Vocês têm sido vizinhos muito compreensivos, e nós andamos meio relapsos na criação de
nossos bichos de estimação.
(D) Vocês tem sido um vizinho muito compreensivos, e nós andamos meios relapsos na
criação de nossos bichos de estimação.
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(E) Vocês tem sido vizinhos muito compreensivos, e nós andamos meio relapso nas criações
de meus bichos de estimação.
c) alternativa certa – O plural de “Você” (3ª pessoa) é “vocês” > vocês têm sido vizinhos
muito compreensivos; o de “eu” (1ª pessoa) é “nós” > nós andamos meio relapsos na
criação de; o de “meu” (1ª pessoa) é “nossos” > nossos bichos de estimação.
Gabarito: C
9. Há omissão do sinal indicativo da crase em:
(A) Os vizinhos tomaram providências a respeito dos latidos.
(B) O autor se refere a dupla de artistas como adoráveis.
(C) Agradeci a ele pelo magnífico presente.
(D) Os cães continuaram a latir sem parar.
(E) Ela visita a avó todos os domingos.
b) alternativa certa – Na frase “O autor se refere a dupla de artistas como adoráveis.”
deveria haver crase, uma vez que o verbo “referir-se” exige preposição “a”, e o substantivo
“dupla” aceita o artigo “a”. Modo prático: Haverá crase sempre que pudermos substituir a
palavra feminina por uma masculina qualquer, havendo a seguinte correlação: à – ao; às –
aos: O autor se refere a dupla de artistas como adoráveis > O autor se refere ao conjunto
de artistas como adoráveis.
Correção: O autor se refere à dupla de artistas como adoráveis.
Nas demais frases, a crase é proibida:
a) alternativa errada – Os vizinhos tomaram providências a respeito dos latidos.
Justificativa: não ocorre crase, visto que a palavra “respeito” é masculina.
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c) alternativa errada – Agradeci a ele pelo magnífico presente.
Justificativa: não pode haver crase antes de palavras masculinas (“ele”). Além disso, os
pronomes pessoais não aceitam artigo; por isso, mesmo se o pronome estivesse no
feminino (“ela), não ocorreria crase: Agradeci a ela pelo magnífico presente.
d) alternativa errada – Os cães continuaram a latir sem parar.
Justificativa: não existe crase antes de verbo (“latir”).
e) alternativa errada – Ela visita a avó todos os domingos.
Justificativa: o “a” antes de “avô” é somente artigo – inicia objeto direto –, por isso não pode
ocorrer crase. Observemos que, se trocarmos o vocábulo “avó” por um masculino, não
haverá a correlação “à” > “ao”, mas “a” > “o”: Ela visita o avô todos os domingos
Gabarito: B
10. O verbo destacado na frase, retirada do texto, pode ser substituído pela forma à direita,
sem prejuízo do sentido, em:
(A) “Quando o primeiro pastor alemão chegou [...]” (l. 25) – chegava
(B) “[...] que esperariam a todo custo [...]” (l. 40) – haviam esperado
(C) “eu tive um ataque,” (l. 43) – tivera
(D) “Achei que na hora devia conversar [...]” (l. 61) – deveria
(E) “escrevi algo assim,” – tenho escrito (l. 73)
d) alternativa certa – A substituição de “devia” por “deveria” preservaria o sentido original
do texto. De acordo com a norma culta, usa-se o futuro do pretérito (= deveria) para
indicar um fato posterior a certo momento do passado. Essa forma verbal pode ser
substituída pelo pretérito imperfeito (= chegava), caracterizando, desse modo, a linguagem
coloquial. Assim, as duas formas verbais são equivalentes semanticamente; a diferença é
que o futuro do pretérito caracteriza a linguagem formal, e o pretérito imperfeito, a
linguagem coloquial.
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As demais substituições sugeridas alterariam o sentido original:
a) alternativa errada – A forma verbal “chegou”, pretérito perfeito, expressa ação pontual,
concluída no passado; já “chegava” denota uma ação durativa no passado, isto é, indica
uma ação que ocorria habitualmente no passado.
b) alternativa errada – O futuro do pretérito (“esperariam”) indica uma ação posterior a
certo momento do passado; “haviam esperado”, pretérito mais-que-perfeito composto
denota uma ação passada, anterior a outra também passada.
c) alternativa errada – A forma verbal “tive”, pretérito perfeito, expressa ação concluída no
passado, sem se correlacionar com outra ação; já” “tivera”, mais-que-perfeito, exprime um
fato passado, anterior a outro igualmente passado.
e) alternativa errada – A forma verbal “escrevi”, pretérito perfeito simples, denota uma ação
concluída no passado; já “tenho escrito”, pretérito perfeito composto, expressa uma ação
iniciada no passado e se vem repetindo até o presente.
Gabarito: D
Gabarito:
01. B
02. A
03. D
04. E
05. E
06. A
07. C
08. C
09. B
10. D
Prof. Henrique Nuno, autor do livro “Português Descomplicado”.
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